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Adriana Fernandes: Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção
Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção
Reportagem desta semana do Estadão, “Receita diz que só rico lê, e livro pode perder isenção com unificação tributária”, viralizou e levou a uma série de relatos emocionantes nas redes sociais de brasileiros que nasceram em famílias de renda mais baixa e que se viraram para ter acesso à leitura. A discussão sobre o fim da imunidade para livros foi inserida no contexto do projeto de reforma tributária do governo, mas no Brasil de hoje esse é um assunto muito mais político do que de natureza tributária.
Um país que tem o orçamento público capturado por demandas políticas de cunho eleitoreiro. Com governo e parlamentares que não tiveram coragem de fazer cortes importantes nas renúncias tributárias de setores com grande influência em Brasília.
A incoerência fica ainda mais escancarada por um presidente da República que adotou corte de tributos para incentivar a compra de armas e videogames, além de ampliar incentivo para as multinacionais de refrigerantes na Zona Franca de Manaus. Medidas que drenaram a arrecadação em plena pandemia.
A polêmica surgiu porque a Receita, para justificar o projeto que cria a Contribuição Social sobre Bens e Serviços, a CBS, disse que a isenção aos livros pode acabar com a justificativa de que a maior parte é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos. O certo teria sido o projeto retirar o incentivo ao livro e destinar o aumento da arrecadação para uma política de incentivo aos mais pobres.
A pergunta que muitos se fizeram depois de ler a reportagem foi: por que os livros?
A resposta é complexa e com vários pontos de vista. De um lado, aqueles que defendem o fim da isenção com o argumento de que os mais pobres bancam o consumo dos mais ricos. De outro, os que acham que a medida vai dificultar ainda mais o acesso aos livros pelos mais pobres.
Com a controvérsia instalada, a pesquisadora portuguesa Rita de La Feria, que já fez a reforma em São Tomé e Príncipe, Índia e vários outros países, entrou em campo nas redes sociais em defesa do projeto do governo. “Uma manchete alternativa (e verdadeira) seria: com a reforma tributária, os mais pobres vão deixar de subsidiar o consumo dos mais ricos. Fica a sugestão.”
Rita ainda disparou outro conselho: “Muitos de nós (eu inclusive) têm uma relação emotiva com livros. Mas o sistema tributário não deve refletir emoções, apenas dados.”
Patrocinador da PEC 45 de reforma tributária, o deputado Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara, alertou que a defesa da isenção aos livros era uma narrativa bonita, mas distorcida num falso dilema de um país em que os pobres financiam os ricos num Estado que não existe para reduzir as desigualdades.
No modelo tributário ideal, esses argumentos são todos muito válidos. O subsídio financeiro, via orçamento, destinado às políticas públicas, sem dúvida, é bem mais eficiente do que o tributário, que banca os ricos - assim como os livros acontece com os produtos da cesta básica. Que, aliás, o projeto da CBS não ataca.
No Brasil de hoje, porém, essa verdade não é tão certa. O setor privado captura dinheiro público por meio de incentivos muito mais robustos do que a isenção dada aos livros. E com impacto muito maior na arrecadação. Um exemplo desse método foram as tentativas frustradas de mudar a tributação de fundos exclusivos de investimentos dos super-ricos. Não tem jeito disso avançar no Congresso. Medida que garantiria hoje muito mais do que os R$ 10 bilhões calculados na última vez que se tentou emplacar a mudança, em 2018.
O enredo é sempre o mesmo. Acaba-se com o incentivo ao livro, mas ficam tantos outros. Defendidos ferozmente por lideranças políticas que não vão deixar que esse modelo tributário tão perfeito na teoria se aplique por aqui na prática. Na hora da votação, sempre tem uma listinha bem grande de exceções.
A briga feroz pelas emendas parlamentares, que divide o governo e se estende há duas semanas, é a maior prova disso. Não houve até agora nenhuma única ação para cortar incentivos ou aumentar tributos dos mais ricos para elevar a arrecadação e diminuir o endividamento público.
É por essas e outras razões que a reforma tributária faz água. Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção.
Edição temática de revista da FAP reúne análises sobre papel dos municípios na segurança pública
Edição da Política Democrática impressa reúne sete análises aprofundadas sobre o tema
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O papel dos municípios na segurança pública é o tema da 56ª edição da revista Política Democrática impressa (140 páginas), produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada e Brasília e vinculada ao Cidadania. A publicação ainda não está disponível para venda na internet, somente para doação e empréstimo gratuito na Biblioteca Salomão Malina, mantida pela FAP, no Conic, em Brasília.
Em função das regras impostas pelo Decreto nº 41.841 de 26 de fevereiro de 2021, publicado no DODF pelo Governo do Distrito Federal (GDF), que determinou a suspensão de atividades não essenciais por conta do combate à pandemia do novo coronavírus, a biblioteca se encontra fechada por tempo indeterminado, devendo retornar ao seu funcionamento normal assim que for autorizada pelo GDF.
Análises
A edição reúne sete análises aprofundadas sobre segurança pública, produzidas por 12 renomados especialistas na área. O intuito, de acordo com a fundação, é mostrar as principais vertentes e a complexidade do tema para orientar gestores a traçarem políticas públicas do setor em suas cidades, além de levantar o debate com todos os interessados no assunto.
A seguir, veja a relação de artigos e seus respectivos autores:
- O papel dos municípios na segurança pública: um debate ainda urgente (Haydée Caruso e Carolina Ricardo);
- Os municípios e o financiamento da segurança pública no Brasil (Ursula Dias Peres, Samira Bueno e Gabriel Marques Tonelli);
- A Política de Segurança Pública no Município de Betim (MG), no biênio 2015-2016, relato de uma experiência pessoal (Luis Flávio Sapori);
- Bases teóricas e práticas da Política Municipal de Segurança Cidadã de Canoas-RS (2009 a 2012) (Eduardo Pazinato);
- As guardas na gestão da segurança pública municipal (Ana Paula Miranda);
- Cultura policial e guardas municipais: um modelo de análise (Almir de Oliveira Junior e Joana Domingues Vargas);
- A Senasp e os municípios: o papel da participação social e das guardas municipais na segurança pública (Almir de Oliveira Junior e Joana Luiza Oliveira Alencar)
Além das guardas
De acordo com o diretor do ICS-UnB (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília) e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Arthur Trindade Costa, “o papel dos municípios na segurança púbica não se resume à existência das guardas municipais”.
Costa, que também é coordenador de Núcleo de Estudos sobre Segurança Pública e assina a apresentação da revista, alguns municípios desenvolvem políticas sociais de prevenção de violências. “Em alguns lugares, estas políticas foram relativamente bem-sucedidas, como Canoas (RS), Diadema (SP) e Lauro de Freitas (BA)”, afirma.
Independentemente da forma como os municípios têm atuado na segurança pública, segundo o especialista, a participação deles se dá num contexto de inexistência de um marco regulatório que defina claramente as atribuições e prerrogativas dos entes federados.
Desarticulação
“O resultado disso é uma atuação descoordenada e desarticulada entre municípios, estados e União”, critica Costa, ressaltando que um dos fenômenos mais marcantes das últimas décadas foi o aumento da participação dos municípios na segurança pública.
Entre 2000 e 2015, de acordo com Costa, houve crescimento de 327% no total de gastos com segurança pública, que saltaram de cerca de R$ 1,1 bilhão para R$ 4,5 bilhões. “Entretanto, a participação municipal varia significativamente, de acordo com o estado”, analisa.
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Cristovam Buarque: Monumento aos livros
Brasília discute sobre ser oportuno ou não termos o Museu à Bíblia, no Eixo Monumental. Faz 25 anos, a Câmara Legislativa tomou a iniciativa e aprovou uma lei com dois artigos determinando a construção desse monumento. À época, como governador, sancionei o artigo autorizando o local, mas vetando o outro que se referia a aspectos da construção. Tomei a decisão em respeito ao Poder Legislativo da capital e ao sentimento religioso de parte da população. Mas também por entender o valor cultural do museu e monumento.
O Eixo Monumental deve ser espaço para museus e homenagens que formam e formarão a mente brasileira. Como o Museu ao Índio, o Monumento a JK, o Panteão aos Próceres do Mundo (em frente ao Buriti), a Biblioteca e o Teatro Nacional, o Monumento aos Heróis da Pátria e a Oscar Niemeyer. Mas as homenagens devem ser não apenas à história política e às artes, mas também às ideias. Por isso, é justificável um museu à Bíblia e também outro ao Corão, à Torah, e às religiões sem livros sagrados, como as de origem afrodescendente, as espiritualistas, ao Budismo e mesmo ao pensamento ateu e agnóstico.
Aos que lembram a laicidade do Estado, cabe lembrar que há um templo católico no Eixo Monumental, a Catedral Militar Rainha da Paz, e que a Catedral Metropolitana de Brasília está na própria Esplanada dos Ministérios. Todos os grandes livros merecem monumentos ou um Monumento ao Livro, em geral - a história, desde Gutenberg a Jobs. Um monumento para lembrar o holocausto da escravidão e a luta abolicionista, que ainda não terminou - só terminará quando não houver desigualdade na qualidade da escola oferecida às crianças brasileiras, por causa da renda ou do endereço. Assim, seriam válidos monumentos a educadores e educacionistas, como Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e João Calmon. Como lembrou Severino Francisco, em artigo recente publicado no Correio Braziliense, precisamos levar adiante o Museu a Athos Bulcão.
Todavia, esses monumentos não terão legitimidade se forem construídos aceitando três tipos de corrupção: no comportamento dos políticos, cobrando propinas; no desperdício de recursos, por arquitetura suntuosa; ou na falta de ética, nas prioridades da política. Especialmente um monumento ao livro dos cristãos não pode tolerar que haja roubo por superfaturamento, tampouco roubo por ostentação ou por desvio de obras mais urgentes, do ponto de vista das necessidades imediatas da população pobre.
Independentemente do Museu da Bíblia ser construído com recursos públicos ou privados, é injustificável, neste momento, investir em uma nova obra como essa, se ela exigir gastos elevados para uma construção suntuosa. Mesmo que os recursos fossem enviados por um governo estrangeiro para fazer um monumento faraônico ao Corão, por exemplo, esta não é a hora. Tanto pelos outros museus e monumentos que se ressentem de recursos, quanto pelas necessidades mais imediatas de nossa população. Como lembrou Vladimir Carvalho em Carta aos Leitores, neste Correio Braziliense, nosso Teatro Nacional Claudio Santoro está fechado, há anos, degradando-se. A poucos quilômetros de distância, há famílias sem saneamento, crianças sem escola de qualidade, pessoas sem renda.
É inaceitável fazer museus caros neste momento. Sobretudo, para lembrar a Bíblia e o pensamento de Cristo, que defendeu a simplicidade e a solidariedade. Também a Lutero, que fez a Reforma para se insurgir contra a ostentação na Roma medieval.
Será educativo para nossas crianças ter contato com museus às ideias, sejam filosóficas, científicas, artísticas, ou religiosas, às ideias da ética, da lógica e da estética. Mas que os museus e monumentos sejam construídos com estilo bonito e austero, que mostre a nova arquitetura que o mundo precisa nestes tempos de limites ecológicos e fiscais. Monumentos cujas construções não signifiquem prioridades indecentes, em um momento em que os recursos deveriam ter sido usados para atender necessidades mais urgentes; e que se assegure não ocorrer roubo de dinheiro público durante a construção.
Se não tomarmos estes cuidados, corremos o risco de repetir o erro do templo à religião do futebol, o Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha, que hoje serve como monumento às corrupções da ostentação, nas prioridades e no comportamento dos políticos do tempo de sua construção.
Bem-vindos monumentos educativos, como museus ao pensamento, mas ao custo certo, no momento certo e coerentes com as necessidades sociais do momento.
*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília
Evandro Milet: Livros, uma vacina contra a ignorância
Steve Jobs vivia e respirava música. Era um fã incondicional de Bob Dylan e dos Beatles e já tinha namorado Joan Baez, cantora famosa na época. Seu interesse pessoal guiou as estratégias da Apple em música, basta lembrar do iPod e iTunes. O interesse pessoal de Jeff Bezos também teve forte influência na Amazon. Bezos não apenas amava livros; ele mergulhava neles, processando cada detalhe metodicamente.
No apêndice do livro A loja de tudo”, que conta a história da Amazon, há a lista de leitura de Jeff incluindo, entre outros, “O dilema da inovação” de Clayton Christensen, “A lógica do cisne negro” de Nassim Taleb, “Empresas feitas para vencer” e “Empresas feitas para durar”, ambos de Jim Collins, que se tornou grande consultor da empresa. Aliás também consultor fundamental da equipe de Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles em seus sonhos grandes na Ambev.
Bill Gates, criador da Microsoft, é outro leitor compulsivo. A imprensa costuma publicar sua lista de recomendação de livros, mais ampla inclusive que apenas obras de gestão e tecnologia.
O livro de Daniel Bergamasco “Da ideia ao bilhão”, conta a história dos unicórnios(startups que atingem valor de mercado de um bilhão de dólares) brasileiros. Em duas das histórias os livros também desempenham papel fundamental nos processos de gestão, incentivados pelos fundadores. Na fintech Stone a seleção de empregos é feita com uma lista de livros com sete títulos à escolha dos candidatos. Em um dos processos constavam o já citado “Feitas para vencer” e “Por que fazemos o que fazemos” de Mário Sérgio Cortella. Até alguns anos atrás só havia uma obra, “Paixão por vencer” , do icônico Jack Welch, ex-CEO da GE.
O objetivo é ler, entender, interpretar e estabelecer conexões entre os conceitos apresentados e as próprias crenças. “Estudar é uma forma de esticar as pessoas” dizem na Stone. Num livro os autores reúnem o aprendizado de uma vida em algumas páginas, diz André Street, fundador da Stone, que até hoje separa duas horas diárias para estudar. Como ele diz, começou lá pelos 12 anos de idade a encarar livros de auto-ajuda, como “Mais esperto que o diabo” de Napoleon Hill e “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, de Dale Carnegie.
Na unicórnio Arco Educação, o CEO Oto de Sá Cavalcante, um devorador de livros de diferentes estilos, premia as melhores resenhas sobre títulos indicados a cada ano, que vão de “Foco” de Daniel Goleman, a “O Príncipe” de Maquiavel. Os cinco melhores textos recebem cada um mil dólares. "Líderes também precisam ler”, dizia um folheto que anunciava o livro de 2020: “A marca da vitória”, autobiografia de Phil Knight, criador da Nike.
Além disso, as equipes da Arco participam semanalmente do “método da cumbuca”, disseminado por Vicente Falconi.
Um livro é proposto a um grupo de 4 a 6 pessoas. e a cada semana eles se encontram para falar sobre um capítulo que todos devem ter lido. Os nomes vão para a cumbuca e a pessoa sorteada deve resumir o capítulo. Se ele não tiver lido a reunião é cancelada, para constrangimento do sorteado. Aliás, a inspiração para o nome da empresa veio de uma passagem de um clássico: “As cidades invisíveis'', de Ítalo Calvino.
Atualmente há uma proliferação de clubes de leitura para empresários, como o que é organizado pela empresa de consultoria KPMG, por onde passaram o sempre presente “A lógica do cisne negro” e mais “Miopia Corporativa” de Richard S. Tedlow e “A Regra é Não ter Regras”, de Reed Hastings e Erin Meyer, com o modelo de gestão da Netflix.
Aqui também em Vitória, as organizações de jovens empreendedores Líderes do Amanhã e Ibef Academy usam a ideia de discutir livros entre os associados como forma de aprendizado em empreendedorismo, economia e gestão.
Que 2021 seja um ano sem pandemia, com muitos livros, ficção e não-ficção, clássicos ou atuais, best sellers ou não, técnicos e não-técnicos(menos o do torturador). As experiências mostram que os livros são importantes para o empreendedorismo, mas também representam o tratamento precoce amplo contra obscurantismos ou uma vacina contra a ignorância.
Diplomata, Jorio Dauster é dedicado à literatura desde a década de 1960
Em artigo publicado na revista da FAP de dezembro, autor relata um pouco de sua vida em primeira pessoa
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Mais reconhecido por seu trabalho empresarial e diplomático, Jorio Dauster se dedica à literatura desde a década de 1960, traduzindo grandes autores, como Salinger e Nabokov. Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de dezembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), ele conta uma pouco de sua jornada no mundo das palavras.
Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!
A seguir, confira trechos do artigo de Dauster:
Já lá vão mais de seis décadas, quando eu passava uns tempos em Washington na casa de minha irmã, recebi das mãos do cunhado um pocket book fininho, com umas duzentas páginas, que já era culto nos Estados Unidos. Comecei a ler naquela noite mesmo e não sei a que horas fui dormir, fascinado com a história do rapaz de dezessete anos que, expulso da escola, vaga por três dias em Nova York tentando evitar o confronto com os pais. Eu próprio, como algumas dezenas de milhões de adolescentes em todo o planeta, reconheci no angustiado protagonista todas aquelas dúvidas e aflições que o mundo adulto nos impõe em termos de acomodação a uma realidade muitas vezes envolta em hipocrisia e falsidade.
Estou falando, obviamente, de Holden Caufield, a figura icônica que J.D. Salinger eternizou em sua obra-prima The Catcher in the Rye, lançada em 1951. Terminada a leitura, senti uma vontade irreprimível de traduzir o livro, provocado até mesmo pelas três últimas frases: “É engraçado. A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.”
Já no Brasil, preparando-me para o exame do Instituto Rio Branco, reencontro um velho colega, Álvaro Alencar. Conversa vai, conversa vem, descubro que ele também quer ser diplomata e deseja traduzir o Catcher. Coincidência dupla, planos de trabalho conjunto que renderam muitas rodadas de chope e nem uma página de texto. Fast forward na fita da memória e, passados mais alguns anos, já ambos no Itamaraty, resolvemos pôr mãos à obra quando nos dizem que um colega mais antigo, Antônio Rocha, também está vertendo o livro. Fomos procurá-lo para anunciar a “competição”, e o tranquilo Rocha, ele próprio escritor, nos deseja boa sorte, pois apenas fazia aquilo por amar o texto e como grande exercício literário. Obviamente, foi recrutado ali mesmo para a rara e curiosa tarefa de uma tradução a seis mãos!
Por conta de nossas tarefas profissionais, não sei quanto tempo levou para que cada qual apresentasse o terço do texto que lhe coube por sorteio. O fato é que, por ser considerado à época subversivo, depois do golpe de 31 de março, eu fui chamado de Genebra, onde participava da I Conferência de Comércio e Desenvolvimento, e posto em casa durante seis meses enquanto ocorriam inquéritos e coisas do gênero no Itamaraty.
Como meus dois companheiros de tradução já haviam sido removidos para o exterior, dediquei incontáveis horas daquele recesso forçado a repassar a versão brasileira frase por frase, tratando de homogeneizar a linguagem dos três num livro que é intrinsecamente coloquial, pois representa de fato o depoimento gravado do Holden na clínica de repouso em que foi internado para se recuperar de seu evidente nervous breakdown.
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Mais reconhecido por seu trabalho empresarial e diplomático, Jorio Dauster se dedica à literatura desde a década de 1960, traduzindo grandes autores, como Salinger e Nabokov, entre outros
Já lá vão mais de seis décadas, quando eu passava uns tempos em Washington na casa de minha irmã, recebi das mãos do cunhado um pocket book fininho, com umas 200 páginas, que já era cult nos Estados Unidos. Comecei a ler naquela noite mesmo e não sei a que horas fui dormir, fascinado com a história do rapaz de 17 anos que, expulso da escola, vaga por três dias em Nova York tentando evitar o confronto com os pais. Eu próprio, como algumas dezenas de milhões de adolescentes em todo o planeta, reconheci no angustiado protagonista todas aquelas dúvidas e aflições que o mundo adulto nos impõe em termos de acomodação a uma realidade muitas vezes envolta em hipocrisia e falsidade.
Estou falando, obviamente, de Holden Caufield, a figura icônica que J.D. Salinger eternizou em sua obra-prima The Catcher in the Rye, lançada em 1951. Terminada a leitura, senti uma vontade irreprimível de traduzir o livro, provocado até mesmo pelas três últimas frases: “É engraçado. A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.”
Já no Brasil, preparando-me para o exame do Instituto Rio Branco, reencontro um velho colega, Álvaro Alencar. Conversa vai, conversa vem, descubro que ele também quer ser diplomata e deseja traduzir o Catcher. Coincidência dupla, planos de trabalho conjunto que renderam muitas rodadas de chope e nem uma página de texto. Fast forward na fita da memória e, passados mais alguns anos, já ambos no Itamaraty, resolvemos pôr mãos à obra quando nos dizem que um colega mais antigo, Antônio Rocha, também está vertendo o livro. Fomos procurá-lo para anunciar a “competição”, e o tranquilo Rocha, ele próprio escritor, nos deseja boa sorte, pois apenas fazia aquilo por amar o texto e como grande exercício literário. Obviamente, foi recrutado ali mesmo para a rara e curiosa tarefa de uma tradução a seis mãos!
Por conta de nossas tarefas profissionais, não sei quanto tempo levou para que cada qual apresentasse o terço do texto que lhe coube por sorteio. O fato é que, por ser considerado à época subversivo, depois do golpe de 31 de março de 1964, eu fui chamado de Genebra, onde participava da I Conferência de Comércio e Desenvolvimento, e posto em casa durante seis meses enquanto ocorriam inquéritos e coisas do gênero no Itamaraty. Como meus dois companheiros de tradução já haviam sido removidos para o exterior, dediquei incontáveis horas daquele recesso forçado a repassar a versão brasileira frase por frase, tratando de homogeneizar a linguagem dos três num livro que é intrinsecamente coloquial, pois representa de fato o depoimento gravado do Holden na clínica de repouso em que foi internado para se recuperar de seu evidente nervous breakdown. Exemplo desse cuidado é que não cabe nenhuma conjunção adversativa – tipo “contudo”, “todavia” e “entretanto” – na fala de um rapaz que só emprega “mas”. A outra dificuldade foi conciliar expressões e gírias, já que o Rocha era nordestino, eu e Álvaro, cariocas. A circunstância de que o texto resistiu à passagem do tempo me parece uma boa indicação de que o exercício valeu a pena.
Mas restavam dois problemas: o título, cuja tradução literal parecia esdrúxula, e – pequeno detalhe prático – quem imprimiria a obra, já que nos havíamos lançado na empreitada por puro amadorismo, sem que ninguém nos tivesse encomendado coisa nenhuma.
Depois de grandes elucubrações, nós três tínhamos resolvido dar à versão brasileira o título de A sentinela do abismo, retirando-o do mesmo contexto em que o autor o buscara no original, a saber a fala em que Holden diz à irmã Phoebe que, quando crescesse, queria ficar escondido num campo de centeio para salvar qualquer das crianças que, ali brincando, se aproximasse de um precipício. Mas, quem diria: indignado com a tradução feita em outras línguas, Salinger (já então um eremita) dera ordens expressas à sua editora a fim de exigir as versões literais como condição para a venda dos direitos em outros idiomas. De nada valeram minhas tentativas, até mesmo em contato direito com uma agente em Nova York, explicando que “apanhador” no Brasil era usado para quem catava papéis nas ruas ou bolas chutadas para fora em campos de futebol improvisados, que centeio só aparecia no nome de um pão comido por gente rica... Pura perda de tempo– mas entendi que era melhor assim depois de saber que tinham tacado um estrambótico El cazador (sic) oculto em espanhol, um meloso L’atrappe-coeur em francês, um ensandecido Agulha no palheiro (!!!) em português de Portugal.
Por fim, numa daquelas noites encantadas que o Rio então oferecia de graça, fui à mítica cobertura de Rubem Braga em Ipanema, bem pertinho da Nascimento Silva 107 onde, poucos anos antes, Tom Jobim ensinara a Elizete Cardoso as canções do Canção de Amor Demais. Vista fabulosa, papo magnífico no pomar suspenso, uísque do bom – mas o grande cronista não tinha ideia de quem fosse J.D. Salinger e muito menos do sucesso mundial do Catcher. Mas me tranquilizou, dizendo que faria chegar o manuscrito às mãos de seus dois sócios na Editora do Autor – Fernando Sabino e Walter Acosta. Assim foi feito, o Apanhador viu a luz do dia em 1965 e recebemos, no total, a principesca quantia de 100 dólares, que deu para eu comprar o bom par de sapatos de que precisava na época. O livro continuou na Editora do Autor depois que Braga e Sabino se afastaram para fundar a Sabiá – e nem sei quantas edições teve ao longo de mais de meio século no Brasil. Pelo número de pessoas que até hoje me procuram para dizer o que significou em suas vidas a leitura do Apanhador, acho que daria para encher o Maracanã com emoção maior que a de um Fla-Flu.
Ivan Alves Filho: Um provérbio siberiano
O livro foi feito para guardar a palavra, nascida da oralidade. Esta a sua razão de ser, a sua força. E o homem é, de certa forma, aquilo que diz. Daí o livro ter atravessado os séculos, do papiro à era digital.
Minha experiência com os livros, seja como leitor, seja como autor, marcou – e marca – a minha vida, e isso desde os tempos de guri. Meu filho chama-se Pedro devido ao livro As aventuras de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Se um dia eu desejasse morar dentro de um livro, esta seria minha primeira opção.
Li muito e continuo a ler muito. E consegui publicar alguns livros, também. E aprendi demais com cada um deles. Não foram poucas as alegrias e os encontros que eles me proporcionaram.
Eu me recordo que, quando lancei Memorial dos Palmares, em 1988, um geógrafo brasileiro que se encontrava em Angola mandou-me um recado dizendo que os soldados do MPLA que combatiam os fascistas financiados pela África do Sul, em tempos de apartheid, liam o meu livro nos cursos de formação política do Exército saído das lutas de libertação nacional na pátria de Agostinho Neto. Seus ancestrais haviam lutado contra a escravidão no Brasil e isto servia de exemplo de luta para eles. Nem é preciso dizer o quanto aquilo me comoveu.
Poucos anos depois, a Unesco me convocava, na figura de seu secretário-executivo, o diplomata senegalês Doudou Diènne, para integrar o projeto A Rota do Escravo. Segundo o próprio Doudou me revelaria, Memorial dos Palmares fora fundamental para essa decisão da Unesco. Preparei então um projeto sobre o impacto do tráfico negreiro na marcha da História moderna.
Eu me lembro ainda que, por volta de 2010, Francisco Inácio de Almeida e eu dávamos uma palestra de formação política em Manaus e um companheiro se aproximou de mim para dizer que havia remado mais de duas horas pelos igarapés amazônicos para se encontrar conosco. Ele tomara conhecimento de um livro meu sobre o saudoso Giocondo Dias e queria me conhecer. Haja coração.
Os exemplos se multiplicam. Mas, há pouquíssimo tempo, eu vivi um novo e decisivo momento: ao ofertar outro livro meu, A saída pela Democracia, a uma jovem estudante em Tiradentes, cidade-símbolo da nossa Independência, vi que ela não pôde se conter e começou a chorar. Ela nunca tinha ganhado um livro autografado antes. Isso se deu durante a FLITI, I Feira Literária de Tiradentes, à qual compareci para apresentar a referida obra, editada pela Aquarius. Há poucas semanas, a Fundação Astrojildo Pereira e a Aquarius decidiram fazer uma coedição da obra, para minha alegria.
Um velho provérbio siberiano dizia que "a palavra pode matar um homem".
De emoção, certamente.
*Historiador, autor de mais de uma dezena de obras, dos quais o último é A saída pela Democracia
André Amado analisa como grandes autores de romances seduzem seus leitores
Em artigo publicado na Política Democrática Online de novembro, embaixador aposentado analisa obras de argentino, britânico e moçambicano
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Com exemplos de três universos culturais distintos, mas que convergem na técnica, o embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online, André Amado, analisa como os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção. Os detalhes estão na edição de novembro da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!
Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. Em seu artigo, Amado analisa a abertura dos romances Sobre héroes y tumbas (do argentino Ernesto Sábato), A balada de Adam Henry (do britânico Ian McEwan, com tradução de Jorio Dauster) e Venenos de Deus, remédios do diabo (do moçambicano Mia Couto).
O embaixador aposentado analisou os trechos retirados das primeiras páginas das obras. “Ernesto Sábato seduz o leitor pela maneira como lida com a noção de tempo, maestria literária que é uma promessa de que a repetirá mais adiante na narrativa”, afirma. “Ian McEwan recorre a jogo mais sutil. Com o apoio de detalhes, em geral secundários, do ambiente doméstico, opõe o melancólico ao sofisticado e deixa no ar a questão: será o presente estéril ou ainda haverá esperança de futuro”, acrescenta.
Já Mia Couto retrata, também de entrada, a vida de um casal, cuja rotina consiste em suportar-se, como observa o autor do artigo. “Aqui a pergunta não é tanto se, mas como as relações haverão de evoluir”, diz. Segundo Amado, os três escritores procedentes de universos culturais tão distintos convergem na técnica de, no início, não mais do que insinuar a história que desenvolverão, quando, então, passam a convidar o leitor a se sentar a seu lado, para acompanhá-lo na textura da trama, no traçado dos personagens, na solução dos conflitos, no afivelamento dos fios soltos da narrativa.
“É assim que os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção. Eles têm plena consciência de que, em literatura, o leitor é fisgado pela intriga, pela curiosidade, até mesmo pela aspiração – em muitos casos, inconfessa – de querer ser o coautor do que está sendo concebido”, afirma o diretor da revista Política Democrática Online.
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RPD || André Amado: A página de abertura dos romances
Com exemplos de três universos culturais distintos, mas que convergem na técnica, André Amado nos brinda, em seu artigo, sobre como os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção
Sou dos que se deixam impressionar pela página de abertura de um romance. Como diz David Lodge, é fronteira que separa o mundo que imaginamos do que o romancista imaginou. Ilustro com três exemplos.
Vejam como o argentino Ernesto Sábato ambienta o começo de Sobre héroes y tumbas:
A esa hora en que comienzan a oírse los pequeños murmullos, en que los grandes ruidos se van retirando, como se apagan las conversaciones demasiado fuertes en la habitación de un moribundo; y entonces, el rumor de la fuente, los pasos de un hombre que se aleja, el gorjeo de los pájaros que no terminan de acomodarse en sus nidos, el lejano grito de un niño, comienzan a notarse con extraña gravedad. Un misterioso acontecimiento se produce en esos momentos: anochece.
Agora é a vez do britânico Ian McEwan, em A balada de Adam Henry, outra brilhante tradução de Jorio Dauster, que nos faz esquecer estarmos lendo um livro, cujo original não foi escrito em português:
Londres. Sessões do tribunal encerradas havia uma semana. O templo implacável de junho. Fiona Maye, juíza do Tribunal Superior, em casa na noite de domingo e deitada numa chaise longue, olha além de seus pés calçados com meia para o fundo da sala, uma pequena litografia de Renoir, representando uma mulher no banho, comprada trinta anos atrás por cinquenta libras. Provavelmente falsa. Abaixo da gravura, no centro de uma mesa redonda de nogueira, um vaso azul. Nenhuma recordação de sua origem. Nem de quando pusera flores nele pela última vez. Havia um ano a lareira não era acesa. Gotas de chuva enegrecidas caíam de forma irregular no suporte de ferro da lareira, estalando ao se chocarem com as folhas de jornal amarrotadas que já começavam a amarelar com o passar do tempo. Um tapete Bokhara cobrindo as largas tábuas enceradas. Na margem de seu campo de visão, um piano de cauda curta sobre cujo tampo negro e reluzente se viam fotografias da família em molduras de prata…
Complemento com Venenos de Deus, remédios do diabo, do moçambicano Mia Couto:
O médico Sidónio Rosa encolhe-se para vencer a porta, com respeitos de quem estivesse penetrando num ventre. Está visitando a família de Bartolomeu Sozinho, o mecânico reformado de Vila Cacimba. À porta, a esposa, Dona Munda, não desperdiça palavra, nem despende sorriso. É o visitante quem arredonda o momento, inquirindo:
– Então, o nosso Bartolomeu está bom?
– Está bom para seguir deitado, de vela e missal…
A voz rouca parece distante, contrariada como se lhe custasse o assunto. O médico acredita não ter entendido. Ele é português, recém-chegado à África. Refaz a questão:
– Perguntava eu, Dona Munda, sobre o seu marido…
– Está muito mal. O sal já está todo espalhado no sangue.
– Não é sal, são diabetes.
– Ele recusa. Diz que se ele é diabético, eu sou diabólica.
– Continuam brigando?
– Felizmente, sim. Já não temos outra coisa para fazer. Sabe o que penso, Doutor? A zanga é a nossa jura de amor.
São todos trechos retirados das primeiras páginas das obras de referência. Ernesto Sábato seduz o leitor pela maneira como lida com a noção de tempo, maestria literária que é uma promessa de que a repetirá mais adiante na narrativa. Ian McEwan recorre a jogo mais sutil. Com o apoio de detalhes, em geral secundários, do ambiente doméstico, opõe o melancólico ao sofisticado e deixa no ar a questão: será o presente estéril ou ainda haverá esperança de futuro. Já Mia Couto retrata, também de entrada, a vida de um casal, cuja rotina consiste em suportar-se. Aqui a pergunta não é tanto se, mas como as relações haverão de evoluir.
Três escritores procedentes de universos culturais tão distintos convergem na técnica de, no início, não mais do que insinuar a história que desenvolverão, quando, então, passam a convidar o leitor a se sentar a seu lado, para acompanhá-lo na textura da trama, no traçado dos personagens, na solução dos conflitos, no afivelamento dos fios soltos da narrativa. É assim que os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção. Eles têm plena consciência de que, em literatura, o leitor é fisgado pela intriga, pela curiosidade, até mesmo pela aspiração – em muitos casos, inconfessa – de querer ser o coautor do que está sendo concebido.
*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online.
Cristovam Buarque: Ler importa!
Foi preciso um policial branco asfixiar um negro, para o mundo despertar para o lema “vidas negras importam”. O grito de “não consigo respirar” ecoou em todas as partes. Pena que um analfabeto não grite o mesmo e de seu grito surja um movimento com o lema: “ler importa”. As pessoas não percebem que o analfabeto não respira plenamente, uma vez que, além de comida e oxigênio, o ser humano se alimenta de conhecimento e estes chegam, sobretudo, pela leitura.
A falta de leitura asfixia pessoas e sociedade. Lutar contra o racismo exige luta contra o analfabetismo. Até porque 10 dos nossos 12 milhões de analfabetos são descendentes de escravos. Fala-se que “vidas negras importam” esquecendo-se que a falta de importância às vidas negras decorre em parte do abandono escolar a que os jovens negros são condenados, por serem pobres. O racismo produz analfabetismo entre os negros deixados sem escola, e acirra o racismo estrutural na sociedade.
Ao lado dos esqueletos sociais da escravidão, o analfabetismo é o berço do preconceito, a causa maior da exclusão social e do racismo. A luta contra o racismo conseguiu fazer com que os negros brasileiros já não se sintam inferiores aos brancos, como ocorria até recentemente, mas negros ou brancos sentem-se inferiores quando são analfabetos. Apesar disso, os que, corretamente, lutam contra o racismo com leis que criminalizam este comportamento, não lutam contra o analfabetismo que produz o racismo. Até lutam para que um pequeno número de negros entre na universidade, mas não para que todos os negros saiam do analfabetismo.
“Ler importa” não se refere apenas à chaga do analfabetismo total, mas também à necessidade de abolir o analfabetismo funcional que atinge quase 100 milhões de brasileiros. “Ler importa” não apenas para decifrar o que uma combinação de letras quer dizer em uma palavra, mas também para saber o que as palavras querem dizer combinadas entre elas em textos longos, em livros de literatura e de filosofia. “Ler importa” não apenas para decifrar as letras na bandeira do Brasil, mas também como aquelas palavras chegaram ali, identificar a base filosófica delas, por que os republicanos as escreveram logo depois da proclamação da República - e até hoje, 131 anos depois, ainda não entendemos que “ler importa”.
Apesar de todos os nossos avanços sociais e econômicos, temos em 2020 duas vezes mais adultos analfabetos do que em 1889. Não percebemos que a liberdade de expressão deve significar mais do que liberdade para alguns escreverem o que pensam, mas também a possibilidade de todos lerem o que está escrito. Por mais liberdade que tenha, não é livre a imprensa em um país com 12 milhões de adultos analfabetos plenos e 100 milhões de analfabetos funcionais.
“Ler importa” para todos e para ler tudo.
Recentemente, a proposta de aumentar impostos sobre livros foi rejeitada pelos que compram livros, mas eles não se mobilizaram para que todos pudessem ler; não houve luta contra o imposto infinito que pesa sobre os analfabetos, plenos e funcionais, que não lerão os livros, mesmo que distribuídos gratuitamente. A compra do livro é o primeiro passo, mas sua aquisição só ocorre pela leitura. Houve um movimento no sentido de “livro importa” para quem sabe ler, mas não de “ler importa” para todos.
“Ler importa” porque a leitura não é apenas um direito de cada pessoa, é um motor para o progresso de todos. Sem conhecer a história do Brasil, sem ler as propostas dos candidatos, o eleitor pode ser enganado mais facilmente; sem literatura acessível a todos, fica difícil formar a consciência nacional de um povo. “Ler importa” porque entre dois bons médicos, dois bons cientistas, dois bons engenheiros, aqueles que leem jornais, revistas, literatura, serão melhores que os outros.
É na educação de base que, além de alfabetizar, formam-se leitores. De todas as falhas de nossa educação de base, além de não alfabetizar todos na idade certa, não ensinar matemática e ciências, não auxiliar na prática das artes, não ensinar um ofício a cada jovem, nossas escolas não formam leitores em nosso idioma, e ainda menos em idiomas estrangeiros - porque “ler importa” tanto que é preciso ler em mais de um idioma.
“Vidas negras importam” e “ler importa” também. Por isso, “educação importa”.
*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília
Gledson Vinícius mostra fragilidade do governo para taxar livros em 12%
Em artigo na revista Política Democrática Online de outubro, articulador da Bancada do Livro embasa sua análise dos dados da pesquisa Retratos da Leitura
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Pesquisa Retratos da Leitura, divulgada em setembro pelo IPL (Instituto Pró-Livro) em parceria com o Itaú Cultural e o Ibope Inteligência, mostra que o país perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019. “Essa mesma pesquisa consegue, através dos números, auxiliar no enfrentamento e desmontar os argumentos que a equipe econômica liderada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentou para propor a taxação dos livros em 12%”, afirma o empreendedor cultural e articulador da Bancada do Livro, Gledson Vinícius, em artigo na revista Política Democrática Online de outubro.
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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. O empreendedor diz que, se para o ministro, o livro é um item da elite, que não se importaria em pagar imposto, a pesquisa aponta que, para 22% dos consultados, o preço é decisivo na hora de comprar. “Fica claro também que não é apenas a elite que compõe a massa de consumidores de livros”, observa o autor do artigo.
Segundo a pesquisa, 27 milhões dos brasileiros identificados na classe C são compradores de livros, e, para esse grupo, é ainda mais sensível à variação de preço que a taxação poderá impor. Além disso, de acordo com o autor do artigo da revista Política Democrática Online, o levantamento mostra, ainda, a descontinuidade de políticas públicas, falta de investimento e desmobilização que reverberam fortemente na relação entre a sociedade e o livro.
Outro grande golpe no setor, segundo Gledson Vinícius, foi a interrupção no programa de distribuição de livros (PNBE), em 2015. Segundo ele, antes da interrupção, entre os anos de 2000 e 2014, foram quase 230 milhões de exemplares distribuídos a um custo médio de R$ 3,80 por unidade. “O investimento nesse período foi de R$ 891 milhões em compras. Ou seja, algo como R$ 68,5 milhões por ano na renovação dos acervos para escolas de todos os ciclos do ensino básico”, diz ele.
O esfacelamento não se restringiu apenas em descumprir metas ou reduzir os investimentos financeiros, de acordo com o articulador da Bancada do Livro. “O processo atingiu a fundo o setor ao extirpar grandes nomes de posições decisórias e cruciais. Recordemos a extinção do Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e da Leitura e a redução do número de representantes da sociedade civil no Conselho Diretivo do plano, por iniciativa do presidente Bolsonaro e do ministro da Cidadania, Osmar Terra”, afirma.
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RPD || José Luís Oreiro: Não, Bolsonaro não é desenvolvimentista
José Luís Oreiro questiona, em seu artigo, a análise de que o presidente Jair Bolsonaro se converteu ao desenvolvimentismo: “Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica”
Recentemente, devido à polêmica criada pela possibilidade de “flexibilização” do teto de gastos para dar espaço fiscal ao aumento do investimento público, alguns analistas da mídia e do mercado financeiro se apressaram em afirmar que o presidente da República se havia convertido ao (sic) desenvolvimentismo. Na visão desses analistas, o desenvolvimentismo seria sinônimo do velho populismo econômico latino-americano, o qual teve no ex-presidente argentino em Juan Domingo Perón seu maior expoente político. A característica fundamental, assim, do populismo/desenvolvimentismo seria a gastança desenfreada por parte do governo com o objetivo de obter resultados eleitorais de curto prazo, mas com efeitos nocivos sobre o crescimento econômico e a inflação no médio e no longo prazo.
Não tenho procuração ou interesse para defender Perón ou o peronismo de uma comparação estapafúrdia com Bolsonaro; mas, como me incluo entre os economistas desenvolvimentistas brasileiros, tentarei esclarecer, nas linhas abaixo, o que se entende por desenvolvimentismo.
O desenvolvimentismo é um sistema de pensamento econômico surgido na América Latina a partir do famoso Manifesto Latino-Americano, escrito por Raúl Prebisch por ocasião da primeira reunião da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em 1949, em Havana, Cuba. A ideia fundamental por trás do Manifesto é que a divisão internacional do trabalho entre países exportadores de produtos primários (a periferia) e os países exportadores de produtos manufaturados (o centro) gerava padrão de desenvolvimento desigual entre essas regiões. Isso porque os produtos primários apresentavam tendência secular de queda, revertida apenas temporariamente durante os dois conflitos mundiais, ao passo que os produtos manufaturados mantinham seus preços mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa deterioração dos termos de troca impunha restrições externas ao desenvolvimento econômico dos países periféricos, os quais incorriam regularmente em elevado endividamento externo e crise do balanço de pagamentos.
A solução para esse problema estrutural seria, portanto, a industrialização dos países periféricos, a qual se daria, numa primeira etapa, pela substituição de importações, a ser seguida, assim que fosse possível, pela promoção de exportações de produtos manufaturados, ou seja, pela inserção competitiva das economias latino-americanas nos mercados internacionais. O Estado teria papel importante no processo de industrialização, pois os países periféricos estão presos em uma armadilha de pobreza, em que o baixo nível de renda per capita gera, devido a uma série de falhas de mercado, uma baixa taxa de retorno para o investimento privado. Prebisch e a Cepal apoiavam, portanto, um Estado ativo que lançasse mão de todos os instrumentos de política econômica utilizados pelos países exportadores, mas dentro de uma economia de mercado, global e competitiva. Em suma, o aspecto essencial do desenvolvimentismo é a realização de uma profunda mudança na estrutura econômica dos países latino-americanos, o que incluía também reformas na estrutura fundiária, no sistema educacional e no sistema tributário com vistas a reduzir a desigualdade na distribuição de renda. Essa sempre foi vista pelos desenvolvimentistas como um obstáculo à necessária transformação estrutural da América Latina.
Como o leitor já deve ter percebido, o governo Bolsonaro não tem semelhança alguma com o pensamento desenvolvimentista. Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica cuja agenda de “reformas” tem por objetivo destruir o Estado Brasileiro e sua capacidade de ser agente indutor do processo de desenvolvimento econômico. As obras de infraestrutura que a ala militar do governo deseja realizar, por seu turno, estão centradas na construção de ferrovias para facilitar o escoamento da produção de produtos primários para a exportação; ou seja, irão apenas reforçar o caráter periférico e, portanto, dependente da economia brasileira. Não há nenhum projeto minimamente consistente para a reconstrução da indústria nacional, a qual teve sua participação na geração de empregos e no PIB da economia brasileira prematuramente reduzida nos governos tucanos e petistas. Por fim, mas não menos importante, o tratamento que o atual governo dá à área de ciência e tecnologia mostra de forma didática que o desenvolvimento econômico não é prioridade.
O leitor interessado em saber mais sobre Raúl Prebisch e o pensamento desenvolvimentista pode consultar o livro de Edgar Dosman, Raúl Prebisch (1901-1986): A construção da América Latina e do Terceiro Mundo, publicado em 2011 pela Contraponto.
*Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB).