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Professora aposentada da USP conta saga familiar e luta pela democracia em livro

Dina Lida Kinoshita participará de webinar sobre a obra Um tijolo para uma construção grandiosa, de sua autoria, no dia 27 de setembro

Cleomar Almeida, da equipe FAP

Militante na luta pela redemocratização no Brasil e filha de judeus, a professora aposentada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) Dina Lida Kinoshita, de 74 anos, registra a saga de sua família, atingida por epidemias, guerras, revoluções e mortes, em novo livro editado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP). A obra será lançada, na segunda-feira (27/9), a partir das 19h, em webinar da entidade.

Com o título Um tijolo para uma construção grandiosa: memórias de Dina Lida Kinoshita (344 páginas), a obra reúne 48 textos da autora, abordando assuntos como o quase centenário Partido Comunista Brasileiro (PCB), assim como a anistia e a divisão da oposição. O livro também tem relatos sobre a redemocratização, a primeira eleição presidencial direta desde 190 e os governos Collor, Itamar e FHC.

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O evento de lançamento online do livro será transmitido em tempo real, no portal da FAP, na página da entidade no Facebook e no canal dela no Youtube. Além autora, também confirmaram participação no webinar o sociólogo José Claudio Berghella, prefaciador da obra; o físico e consultor Laurindo Junqueira e a doutora em ciências sociais Esther Kuperman.

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Dina mudou-se com os pais para o Brasil ainda nos primeiros anos de vida dela, com lembranças de seus antepassados. “Meu avô faleceu numa epidemia de tifo que grassou no fim da Primeira Guerra Mundial, e minha mãe, Frania Lida, nascida em 1917, mal se lembrava dele. Acabou sendo educada por sua mãe e por dois irmãos mais velhos, Alter e Israel Lida”, relata.

livro Um tijolo para uma construção grandiosa
Professora aposentada da USP Dina Lida Kinoshita
Dina Lida Kinoshita mudou-se para o Brasil ainda criança
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Anos depois, com a invasão nazista no dia 1º de setembro de 1939, conforme escreve a autora, as pessoas que ficaram na Polônia tiveram o mesmo fim de toda a comunidade judaica do país do leste europeu. Diversos familiares da autora morreram. “Não conheci avós, irmãos, tios e primos de primeiro grau”, conta ela, na obra.

https://youtu.be/f8CO0wX6U1U

“No pós-2ª Guerra, viemos para o Brasil, onde me criei, estudei, trabalhei, constituí uma família, mas não tive uma vida comum”, lembra. Ela militou no PCB, desde os 14 anos de idade, durante a maior parte do tempo no partido considerado clandestino e ilegal por causa da ditadura.

Além disso, Dina participou da luta pela redemocratização e acompanhou as grandes mudanças ocorridas no mundo, no limiar do século 21. Elas acarretaram uma nova formação política do PCB, com o Partido Popular Socialista (PPS), que mais tarde viria a se tornar o Cidadania.

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A autora também militou no movimento estudantil secundarista, ainda durante o governo de João Goulart (1961-1964), e durante a ditadura de 1964-1985, em condições muito adversas no movimento estudantil universitário. Em 1971, foi contratada como docente na USP, pouco depois das aposentadorias compulsórias de grandes mestres.

“O ar na universidade era irrespirável”, afirma. Após 1975, ela ajudou na reorganização do núcleo de professores e teve uma grande participação na Associação dos Docentes da USP (Adusp).

Com a ascensão de Ronald Reagan e Margareth Tatcher ao poder, nos anos 1980, acirrou-se a escalada da Guerra Fria, e ela passou a militar mais diretamente, no campo da esquerda, em nível nacional e internacional, assumindo maiores responsabilidades e cargos.

Decorreu daí o seu trabalho, durante vinte anos, na Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância. Durante 16 anos, colaborou com a FAP, criada no ano 2000, em Brasília.

“Penso ter contribuído com um tijolo para uma construção grandiosa que depende de milhões de homens e mulheres que lutaram, lutam e lutarão por um mundo melhor. Não estou desistindo e continuarei, dentro de minhas possibilidades, a dar o melhor de mim por este maravilhoso objetivo”, ressalta.

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Prefaciador do livro, o doutor em sociologia pela UPS José Claudio Berghella observa que “as memórias de Dina não são tão somente a narrativa de episódios de uma vida ou de um tempo”. “É, acima de tudo, a encarnação daquilo que é ser militante. Não a comparo aos quadros profissionais do Partido, de antes ou de hoje. Estes são quadros do aparelho”, pondera.

“Miro uma vida que abraça uma ideologia que, de per si, vai na contramão do status quo, que carrega o fardo da luta por liberdade e igualdade, enfrentando o peso da reação, a incompreensão, a repressão e, porque não, os desatinos não pouco frequentes dos seus dirigentes”, continua Berghella. “Miro aquele que é capaz de entender seus erros e ter a coragem de fazer e assumir, na prática, a autocrítica”, assevera.

Evento online de lançamento nacional livro

Título: Um tijolo para uma construção grandiosa: memórias de Dina Lida Kinoshita

Autora: Dina Lida Kinoshita

Editora: Fundação Astrojildo Pereira

Data do webinar: 27/9/2021

Transmissão: das 20h às 21h30

Onde: Portal e redes sociais (Facebook e Youtube)

Realização: Fundação Astrojildo Pereira


Alberto Aggio: Vida e pensamento de Gramsci

Vida e pensamento de Gramsci, de Giuseppe Vacca, segue esta pista e daí emerge a primeira biografia política de Antonio Gramsci desde a prisão até sua morte

Alberto aggio / Horizontes Democráticos

Antonio Gramsci nunca publicou um livro em vida. Sua condição de autor se deve aos esforços sucessivos de seus editores, particularmente aqueles que deram publicidade aos famosos Cadernos do cárcere, escritos na prisão fascista entre as décadas de 1920 e 1930. Considerado um “clássico da política” e um dos mais profícuos pensadores do marxismo no século XX, o estudo de suas ideias passou por muitas reformulações no curso de sua progressiva difusão desde o segundo pós-guerra. Mesmo com as conhecidas lacunas, a chamada “edição temática” (1948-1951) e, depois, a consistente “edição crítica” dos Cadernos (1975) acabaram por fornecer elementos essenciais para a construção de variadas interpretações a respeito de seu pensamento.

Ilustração da edição brasileira dos Cadernos do Cárcere

Gramsci foi visto inicialmente como o “teórico da cultura nacional-popular” e, depois “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíam conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Recentemente, a partir de uma “historicização integral”, aliada à recepção e ao tratamento de fontes inéditas ou até ignoradas, vem emergindo uma nova inserção de Gramsci na política do século XX. Referida aos dramáticos acontecimentos que abarcam a chamada “grande guerra civil europeia” (1914-1945), esta perspectiva analítica tem permitido a gradativa superação dos diversos enigmas que marcaram por longos anos os estudos gramscianos, originados da fratura entre sua vida e seu pensamento.

Vida e pensamento de Gramsci, de Giuseppe Vacca, segue esta pista e daí emerge a primeira biografia política de Antonio Gramsci desde a prisão até sua morte. O livro de Vacca supera a cisão entre trajetória pessoal e reflexão teórica ao trabalhar a um só tempo os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo, cercado e atormentado pela angústia de ter sido “esquecido” pela mulher e “posto de lado” politicamente, o que aumentava suas suspeitas de que a direção do PCI havia sabotado sua libertação.

Há um pressuposto no livro: antes e depois de sua detenção, Gramsci foi, sobretudo, um homem de ação. Nas circunstâncias da prisão, tudo que Gramsci escreveu, de suas anotações nos Cadernos à correspondência com familiares e amigos, indica que ele permaneceu atuando como um dirigente. Nessa condição, por meio de um exercício extraordinário de codificação da linguagem, Gramsci procurava fazer chegar à direção do PCI, em especial a Palmiro Togliatti, avaliações do cenário italiano e mundial, bem questionamentos sobre orientações do PCI e da Internacional Comunista que lhe pareciam equivocadas. É deste permanente comprometimento que vão emergir os termos da “teoria nova” que, inúmeras vezes e incansavelmente, ele próprio anota e reescreve nas folhas dos cadernos escolares que pôde usar na prisão.

Alberto Aggio com Giuseppe Vacca, em Roma, em 25 de fevereiro de 2013

Nos Cadernos do Cárcere sedimenta-se um novo pensamento que resultaria numa revisão profunda do bolchevismo, notadamente em relação à concepção do Estado, à análise da situação mundial, à teoria das crises e à doutrina da guerra. Vacca sugere, com audácia teórica, que a formulação que revela definitivamente essa ultrapassagem estaria na proposição de luta pela conquista de uma Assembleia Constituinte contra o fascismo, desde 1929.

Esta proposta expressa um ponto de ruptura. Gramsci passaria a delinear uma visão da política como luta pela hegemonia, o que representa, na conjuntura dos primeiros anos da década de 1930, a adoção de um programa reformista de combate ao fascismo. A luta imediata do PCI deveria se deslocar da preparação da revolução proletária para a conquista da Constituinte: em outras palavras, a luta pela democracia deixava de ser pensada apenas como fase de transição para o socialismo. Para Gramsci, o núcleo da nova orientação dos comunistas italianos significaria a possibilidade de reconstrução da nação italiana. Vida e pensamento de Gramsci carrega a marca do ineditismo e da inovação em muitas dimensões. Os resultados não são de pouca monta.

O Gramsci que daqui emerge foi composto a partir de uma investigação histórica que acabou por estabelecer a passagem do bolchevismo para uma estratégia de ação com marcas claramente democráticas e reformistas. Localizar criticamente Gramsci na história de seu tempo permitiu essa grande descoberta.

(Este texto é a “orelha” do livro Vida e pensamento de Antonio Gramsci, 1926-1937, editado pela Contraponto/Fundação Astrojildo Pereira e Fundação Instituto Gramsci de Roma, em 2012, com tradução de Luiz Sérgio Henriques. O prefácio do livro, escrito por Maria Alice Rezende de Carvalho pode ser lido em https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1548).

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/vida-e-pensamento-de-gramsci/


Ancelmo Gois: Livro conta a história do PCB, que faz 100 anos em março

Obra do historiador Ivan Alves Filho será lançada em webinar da FAP nesta terça-feira (14/9)

Ancelmo Gois / O Globo

Março do ano que vem marca o centenário de fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) , em Niterói, sob a  influência do movimento anarquista então dominante nos meios sindicais. Mas a celebração já  começa amanhã, terça, em  um debate  virtual, que começa às 10h, coordenado por Roberto Freire, presidente do "Cidadania", herdeiro do PCB e PPS.  Na pauta o lançamento do livro  “Os nove de 22: o PCB na vida brasileira”, do historiador Ivan Alves Filho.

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Livro “Os Nove de 22: o PCB na vida brasileira” registra legado quase centenário

Os "nove" do título do livro  é uma referência aos fundadores do velho "Partidão", entre eles,  o escritor e  crítico literário Astrojildo Pereira Duarte Silva (1890-1965), foto. Foi ele quem cedeu uma casa no outro lado da Baía."O deslocamento para Niterói se deu em função de uma denúncia de que a polícia estaria prestes a invadir o encontro dos comunistas no Rio de Janeiro”, conta Ivan.

De lá prá cá, a  guinada ideológica do "PCB/Cidadania" pode ser medida pelo intenção recente de lançar a candidatura do apresentador Luciano Huck a presidente.


“Os Nove de 22: o PCB na vida brasileira” registra legado quase centenário

Obra do historiador Ivan Alves Filho será lançada em webinar da FAP na terça-feira (14/9)

Cleomar Almeida, da equipe FAP

Sustentado no tripé do mundo do trabalho, da cultura e da defesa pela democracia, o histórico Partido Comunista Brasileiro, que celebrará o centenário de sua fundação no próximo ano, tem agora a sua trajetória registrada em livro. A obra “Os nove de 22: O PCB na vida brasileira” (283 páginas), do historiador Ivan Alves Filho, será lançada, na terça-feira (14/9), a partir das 10h, em evento virtual da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), que editou a publicação.

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O evento de lançamento online do livro terá transmissão, em tempo real, no portal da FAP, na página da entidade no Facebook e no canal dela no Youtube. Além do autor, também confirmaram presença no webinar o presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire; o diretor-geral da FAP, Caetano Araújo; a diretora executiva da fundação Jane Monteiro Neves e o historiador José Antônio Segatto.

As pessoas interessadas em participar diretamente do lançamento, por meio da sala virtual do aplicativo Zoom, devem enviar a solicitação ao departamento de tecnologia da informação da FAP e se identificarem. O contato deve ser realizado por meio do WhatsApp (61) 98419-6983 (Clique no número para abrir o WhatsApp Web), até 20 minutos antes do início do webinar.

O livro é resultado de um levantamento do historiador, mas também representa um relato dele como militante político. Não tem nada de acadêmico. É, conforme o próprio autor define, uma tentativa de construir um instrumento político adaptado às demandas do século 21. Dessa forma, reforça o legado de nove homens que sonharam em mudar o mundo no ano de 1922, em uma casa de Niterói, com a fundação do partido.

Os fundadores do PCB aparecem, juntos, em uma foto histórica (abaixo). Em pé, estão Manoel Cendon, Joaquim Barbosa, Astrojildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva (da esquerda para a direita). Sentados, estão Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro (da esquerda para a direita).

Os fundadores do PCB. Foto. Reprodução

A fundação do partido ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, no Sindicato dos Alfaiates e dos Metalúrgicos, nos dias 25 e 26 de março, e em Niterói, no dia 27 de março de 1922. “O deslocamento para Niterói, mais precisamente para uma casa pertencente à família de Astrojildo Pereira, se deu em função de uma denúncia de que a polícia estaria prestes a invadir o encontro dos comunistas no Rio de Janeiro”, conta o livro.

Produzida sob a perspectiva histórica do PCB, a obra também lança luz sobre o presente do país diante da “extensão e velocidade do desmoronamento da esfera pública no Brasil”, segundo o autor. “Há uma verdadeira esquizofrenia social entre nós. Os números e indicativos econômicos são dramáticos e a corda social só faz esticar”, escreveu Ivan Alves Filho.

➡️ Especial PCB 100 Anos
(Clique na imagem para acessar todas as publicações da FAP sobre os 100 anos do PCB)

O livro mostra que o PCB foi um partido criado, na época, sob a influência do movimento anarquista então dominante nos meios sindicais. Atravessou a maior parte de sua história na clandestinidade, mas apresenta um saldo de realizações nos mundos do trabalho, da ciência, da cultura e da formulação de políticas públicas no Brasil muito superior ao que o número reduzido de militantes naquele contexto poderia projetar.

“O mais impressionante é que o partido saiu do movimento anarquista. Todos os partidos comunistas do mundo surgiram do antigo movimento social democrata. O único que surgiu do movimento anarquista foi o PCB, o que o fez ter muita sensibilidade para a sociedade civil”, destaca o autor.

Uma grande quantidade de informação é apresentada ao longo do livro, na forma de pequenas unidades, organizadas em torno de temas. Eles equivalem às áreas em que a atividade dos militantes comunistas foi relevante e suas consequências duradouras, ou das personalidades marcantes, tanto na perspectiva interna da organização quanto na perspectiva maior, da sociedade como um todo.

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“São, na verdade, cápsulas de informação, reunidas num conjunto que lembra um mosaico. O livro não pretende, portanto, ser uma obra de síntese, tampouco um registro minucioso da influência das organizações e personalidades vinculadas ao PCB na vida cultural, científica e política do país”, explica o diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, no prefácio.

De acordo com o prefaciador, o livro deve ser visto antes como coletor e organizador de um conjunto de informações e, ao mesmo tempo, sinalizador e guia para pesquisas futuras. “Sua vocação é tornar-se uma obra seminal”, afirma. “Claro que há, ao longo de todo o texto, informação proveniente de fontes bibliográficas. A maior parte, contudo, procede da biografia do autor, de sua convivência com grande parte dos personagens citados”, diz, em outro trecho.

Filho de um dirigente do partido, Ivan Alves Filho conheceu na infância, na sua casa, diversos dos dirigentes históricos do PCB. Lançado ao exílio, no começo de sua vida adulta, radicou-se em Paris, ponto de encontro das andanças dos exilados brasileiros, onde teve a oportunidade de conhecer outros tantos militantes e dirigentes. No seu retorno, historiador formado, dedicou-se a pesquisar a história do partido.

Lançamento online de livro: Os nove de 22
Data: 14/9/2021
Transmissão: das 10h às 11h30
Realização: Fundação Astrojildo Pereira


Horizontes Democráticos: O presente como história

Já se disse que a História não é o que passou, mas o que, no presente, permanece do que passou, desafiando a consciência que se pode ter sobre o tempo e o mundo dos contemporâneos. É por isso que muitos historiadores são convocados a emitirem suas opiniões sobre os fatos do presente. Não há, portanto, nenhuma contradição nessa convocação. O conhecimento e a reflexão historiográfica parecem ser cada vez mais reconhecidos como parte da inteligência especializada em refletir sobre permanências, muitas vezes ocultas – não só para o homem comum –, que sustentam e dão base aos embates e conflitos que nos envolvem cotidianamente.


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Para além dessa dimensão pontual, está cancelada, da mesma forma, a possibilidade de o pensar historiográfico estar afastado da investigação sobre as formações culturais comumente entendidas como alicerces do mundo, desde aquelas que possibilitaram que se projetasse um futuro melhor – mais progressista ou simplesmente fazendo par com a ideia de progresso – até aquelas, contrario sensu, que, uma vez cristalizadas, condenam pessoas ou gerações inteiras a viverem como se o tempo não se alterasse ou os fatos, mesmo os moleculares, não fossem capazes de mudar a vida.

Reconhecer no passado uma instância permanente do nosso presente é entender que os tempos humanos são estruturas fundantes da nossa cultura, no sentido lato do termo. Assim, pensar em como se lida com a História e fazer com que ela seja útil, científica ou mesmo moralmente, é o que move os historiadores do nosso tempo. Como parte disso, a História que produzimos no Brasil, por historiadores de profissão ou não, deve ser vista como uma das expressões particulares do métier historiográfico que vai da produção desse conhecimento até a função social que desempenha. E uma das dimensões essenciais desse conhecimento especializado, compartilhado por historiografias que se desenvolvem em outras latitudes, é a perspectiva de atualização constante. Assim, cada vez mais o que é entendido como interdependência em outras dimensões da atividade humana invade da mesma maneira o campo da História. Isso é notável no percurso da historiografia que hoje se produz e não poderia deixar de estar presente na reiterada proposta dos capítulos desse livro, a saber, repensar o presente brasileiro a partir de critérios que superem demarcações restritivas, notadamente as ideológicas, e possibilitem novas visões sobre o passado que insiste em demarcar sua presença nas estruturas da nossa sociedade.

No livro que o leitor tem em mãos, o mundo das narrativas, aparentemente inevitável no nosso tempo, é submetido, capítulo a capítulo, a uma operação que visa estabelecer um inventário amplo e diversificado daquilo que coloniza o território das ciências humanas e sociais, com destaque especial para a reflexão historiográfica. Essa operação é muitas vezes ampliada no sentido de incorporar também a essa reflexão o complexo de narrativas intelectuais que a vida cultural assimilou como o mainstream da opinião pública. Ambas dimensões – para mencionarmos apenas duas delas – estão aqui seletivamente recrutadas em agudos diálogos, todos pertinentemente compostos em análises rigorosas e estimulantes.

Caio Prado Jr (1907-1990)

Cada capítulo deste livro é dedicado, conforme o tema e a abordagem, tanto a sondar o que há de mais atual no debate intelectual a respeito de questões decisivas relativas às teorias e metodologias que orientam a produção do conhecimento histórico quanto a problemas análogos referentes à História do Brasil, selecionando para o debate as narrativas que, em seu tempo, ajudaram a construir as visões que temos sobre o país. Muitas delas, enfatiza o autor, contribuíram enormemente para encobrir uma visão mais complexa e plural da realidade brasileira, obstaculizando uma perspectiva política e cultural ampla e renovada que hoje a imensa crise que vivenciamos se encarrega de evidenciar com notável eloquência.

Em meio a tantas narrativas que brotam no terreno da nossa historiografia, duas merecem ser mencionadas. A primeira é de caráter metodológico e convida o leitor a ultrapassar uma visão modelar que por décadas gerou um apego a explicações e hipóteses calcadas no antagonismo como elemento explicativo da história do país. Como reafirma criticamente o autor, “lamentavelmente para muitos, quando a História não se encaixa no modelo, errada está a história, não o modelo. Assim, continuamos a reproduzir tal modelo e nele ‘encaixar’ tudo o que queremos saber. Inclusive aquilo que ele, o modelo, não é capaz de explicar”. Nesse momento do livro se faz uma crítica clara à sobrevivência de muitos equívocos da abordagem de Caio Prado Jr. a respeito da nossa história, mesmo relevando seus inúmeros acertos, mas, tal apreciação tem caráter mais geral e deve ser entendida como uma referência crítica a outras temáticas e/ou autores. A ênfase no caso mencionado se reporta ao fato de que a abordagem sistêmica com base na oposição metrópole/colônia como determinante explicativo não possibilitou uma leitura mais acurada de processos específicos de desenvolvimento que o país vivenciou, chamando atenção para sua diferenciação regional ou mesmo local, o que nos leva à segunda dimensão que queremos destacar.

Brasilia, capital do Brasil

Trata-se da perspectiva de ver na hipertrofia do Estado na história brasileira não um modelo de afirmação ou condenação, mas uma história eivada de ambiguidade ou mesmo um paradoxo que acabou gerando um labirinto para as forças políticas que buscam estabelecer projetos de futuro para o país. Acertadamente, Vinicius Müller aponta para o fato de que a centralização do Estado que marca a história brasileira desde o Império passou a ser entendida até hoje como responsável pela má distribuição dos recursos e consequentemente dos determinantes do desenvolvimento regional”. O paradoxo é que esta narrativa imagina que apenas um Estado altamente centralizado seria capaz de inverter esta tendência. Ela trabalha com a noção de que há “uma dívida histórica creditada ao Estado central, dada sua culpa em ter criado as desigualdades regionais a partir de seu arbitrário comportamento em relaçãà distribuição dos recursos e incentivos públicos. Müller nos alerta para o fato de que alguns trabalhos começam a chamar a atenção para o fato de que os descaminhos e entraves do nosso desenvolvimento residem também no modo como os poderes locais se comportam frente aquilo que a eles cabia ou lhes cabe hoje, ou seja, a oferta, a qualidade e o alcance de bens públicos que são transferidos para seu gerenciamento e aplicação. O que envolve analisar dimensões políticas e administrativas locais e regionais nem sempre relevadas como importantes ou mesmo como elementos explicativos para nossos problemas de desenvolvimento.

Haveria muito mais a explorar a respeito destes e de outros pontos apresentados nesta coletânea. Em cada um dos pequenos ensaios que a compõe há o grande mérito de buscar, por meio do debate intelectual, compreender as incompletudes e os déficits da nossa formação nacional. Não é sem razão que aqui se convoca o passado para pensar o nosso presente como História.

(Publicado originalmente como Prefácio ao livro de Vinícius Müller, A História como Presente – 46 pequenos ensaios sobre a História, seus caminhos e meios. Brasília: FAP, 2020)


Blog Horizontes Democráticos

https://horizontesdemocraticos.com.br/o-presente-como-historia/

Rodolfo Borges: ‘Tchau, querida’ – O impeachment de Dilma na versão do diretor

É como se Iago tivesse escrito sua própria versão de OteloShakespeare, no caso, seria a Rede Globo, roteirista das desgraças de todo político brasileiro —na avaliação de todo político brasileiro que cai em desgraça, como no caso do autor em questão. Não se trata de buscar em Tchau, querida – o diário do impeachment (Matrix, 2021) verdades ou mentiras. Como se filosofou no Twitter outro dia, há hoje um engarrafamento de comentaristas políticos, quando aquilo de que mais precisamos é um bom crítico de teatro. Julguemos a beleza do diário de Eduardo Cunha, portanto, como o faria Bárbara Heliodora.

O deputado cassado justifica as 800 páginas de seu longo relato, que assina com a filha Danielle, pela preocupação em se ater aos detalhes dos fatos. Já nas primeiras páginas, contudo, distribui bordoadas a desafetos como a família Garotinho, o também ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia e o ex-presidente Michel Temer —o maior alvo de seu relato, já que, ao contrário do que diz o famigerado “vice decorativo” de Dilma Rousseff, Cunha o acusa de trabalhar pelo impeachment “desde o início”. Mas é preciso reconhecer que a versão do diretor do impeachment de Dilma é bem menos romanceada que o açucarado Democracia em vertigem, para citar a crônica cinematográfica mais famosa do processo. Ao expor os meandros ordinários da política partidária do Congresso Nacional, Cunha oferece ao leitor os bastidores que sustentam o espetáculo do combate à corrupção, do enfrentamento da miséria, do crescimento econômico ou de qualquer outra bandeira virtuosa com as quais o público se entretém a cada ciclo eleitoral.

Sob a perspectiva do algoz de Dilma, a democracia brasileira sempre esteve em vertigem, mas especialmente durante o impeachment de Fernando Collor, quando o presidente foi processado politicamente por um crime comum —tanto que acabou julgado (e absolvido) pelo Supremo Tribunal Federal após renunciar para tentar escapar, sem sucesso, do julgamento político do Senado. Para deixar bem claro seu ponto, o ex-presidente da Câmara retorna no livro à proclamação da República, que classifica como um golpe de Estado, e pesca na história brasileira elementos que, somados, desembocarão no impeachment de Dilma. Esses elementos vão desde o Pacote de Abril de Geisel, que estendeu o mandato presidencial para cinco anos, o que acabaria descolando a eleição de Collor, em 1989, das eleições parlamentares e estaduais de 1992, até a vocação parlamentarista da Constituinte de 1987, conflitante com o presidencialismo adotado em sua sequência.

O presidencialismo de coalizão brasileiro é a base da instabilidade institucional para Cunha, e a opção por esse sistema só não foi mais nefasta para a República do que a adoção da possibilidade de reeleição, “o maior erro do período pós-ditadura”, que “jogou fora toda a estabilidade obtida por Fernando Henrique em seu primeiro mandato”. O livro está recheado de análises sobre estratégias feitas por um político dos mais competentes a passar pelo Parlamento brasileiro —ainda ressoa pelo plenário da Câmara a resposta de Cunha a Paulo Teixeira, em fevereiro de 2015, quando o deputado petista se valeu do “artigo 95” do regimento para tentar emplacar uma questão de ordem: “Não existe artigo 95”, respondeu de pronto o então presidente da Câmara, sem a necessidade de consultar o rebanho de assessores que ronda a mesa da presidência, deixando o adversário de momento completamente desconcertado.

Cunha aponta o clássico erro de cálculo de FHC ao deixar Lula sangrar durante a CPMI dos Correios em vez de optar pelo impeachment, optando pelo que parecia uma vitória fácil em 2006. A escolha do tucano permitiu ao petista se recuperar a ponto de conseguir se reeleger, mas se baseava em estratégia oposta —e igualmente frustrada— do próprio PT contra Collor em 1992; ao optar pelo impeachment do “caçador de marajás”, os petistas abriram espaço para a alternativa Itamar Franco e a criação do candidato FHC. Curiosamente, agora Lula estaria optando pela estratégia de deixar Jair Bolsonaro sangrar. A julgar pelo passado recente, não há garantia nenhuma de que o plano vingue. É curioso também o trecho em que Cunha explica como se baseou na ordem da votação da abertura do processo de impedimento contra Collor, do qual ele estava ao lado em 1992, para garantir de que as manobras do Governo Dilma para evitar o impeachment de 2016 não surtissem o efeito desejado.

Outra lição é dada durante a recuperação do episódio que, segundo Cunha, iniciou suas desavenças com a petista —e que a teria levado a trabalhar para isolá-lo no Congresso Nacional assim que tomou posse, em 2014. Refere-se a hidrelétrica de Furnas, onde havia diretores indicados por Cunha, trocados depois pela ex-presidenta, por suspeitas de irregularidades na gestão. “Dilma, como se vê, não havia perdoado que em 2007 eu tivesse ousado apoiar um ex-prefeito da cidade do Rio de Janeiro [Luis Paulo Conde], de extrema competência técnica, para ocupar um cargo em um setor [energia] do qual ela, naquele momento, se achava dona. Agora, eleita presidente, ela era realmente a dona de tudo”, escreve o deputado cassado. Conde presidiu Furnas, entre 2007 e 2008. “Essa é a origem de toda a raiva de Dilma contra mim”, sacramenta.

São inúmeras as vezes em que Cunha destaca os sentimentos de Dilma em relação a ele, sem mencionar o seus próprios ―e talvez não fosse necessário, pois o título e a capa de seu livro, claras provocações à petista, já o deixe bem claro. O autor segue: “Ela, pela falta de traquejo político, me transformou em seu maior inimigo, e, no curso dos anos seguintes, isso ficaria bem claro”. Em seguida, Cunha aplica a lição: “Certamente o fato de ela me transformar em inimigo acabou por me valorizar e me fazer crescer —pois em política é mais importante você escolher os adversários do que os aliados, já que os aliados se apoiam enfrentando os mesmos adversários”. E arremata: “Também em política, não se briga para baixo. Dilma, presidente da República, estava fazendo isso e não teria nada a ganhar, só a perder. Ela já era a presidente da República, e eu, um simples deputado”.

A narrativa de Cunha perde verossimilhança, contudo, quando ele tenta convencer o espectador de que a decisão de aceitar o impeachment de Dilma não teve nada a ver com o processo de cassação que ele enfrentava no Conselho de Ética e que, ao dar início à queda daquele Governo, o então presidente da Câmara pensava apenas no bem do país. Se todos os grandes eventos políticos que antecederam a derrocada de Dilma tinham uma série de variáveis político-partidárias por trás — como o próprio Cunha expõe de forma eloquente — por que apenas esse episódio, narrado pelo próprio diretor, seria diferente?

A franqueza exibida ao longo de todo o livro ganha brumas toda vez que o protagonista do enredo é Cunha —com raras exceções, como quando admite ter apresentado a proposta para limitar o número de ministérios a 20 para pressionar o Governo, e não exatamente para responder aos protestos de 2013, como alegado à época. Após descrever em tom heroico como, mudando de posição, garantiu a aprovação da MP dos Portos —que ele apelida de MP da Odebrecht, por supostamente beneficiar a empreiteira—, o autor menciona vagamente que “no meio do caminho” a Odebrecht o procurou pedindo ajuda para a votação, detalhando apenas que a empreiteira argumentou que a MP resolvia um problema de uma empresa sócia indireta do Governo, via FGTS. Argumento bom o bastante, ao que parece, para ele mudar de ideia.

Para além de indiretas, reflexões políticas, bastidores eletrizantes ―como tentativas de grampo ou mirabolantes manobras regimentais― e mesmo ousadias literárias, como a escolha por enumerar voto a voto o processo de impeachment ―“Chamei a Paraíba: Aguinaldo Ribeiro (PP); sim; Benjamin Maranhão (SD); sim; Damião Feliciano (PDT); sim (…) Faltavam apenas cinco votos”―, o livro apresenta a defesa de Cunha contra as acusações que o levaram à cassação e à prisão, fruto da Operação Lava Jato ―que, segundo ele, “atuou nos moldes de uma organização criminosa”. O leitor há de convir que seria demais exigir confissões de um político vivo ―e cada vez mais vivo, depois que um de seus pedidos de prisão foi revogado no final de abril. Afinal, como ensina Iago, quem expõe o coração à luz se arrisca a vê-lo dilacerado por gralhas.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-02/tchau-querida-o-impeachment-de-dilma-na-versao-do-diretor.html


Rosângela Bittar: Sinfonia em meio à barbárie

Livro de Aldo Rebelo transforma releitura da história política em instantâneo da atualidade.

No capítulo 12 do seu livro O Quinto Movimento – propostas para uma construção inacabada, a ser lançado nos próximos dias, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo transforma o que seria uma releitura da história política brasileira em um instantâneo da atualidade. Sua visão sobre os desafios impostos à democracia revela que não tem sido fácil mantê-la sob Jair Bolsonaro.

Sem citá-lo nominalmente, traça um retrato da ameaça à República exercida pelo comandante supremo das Forças Armadas, o presidente. As instituições democráticas, na sua avaliação, perdem prestí- gio, identidade e substância.

Bem escorado na disciplina de sua formação marxista, a que agrega experiência e trânsito entre políticos de todas as tendências, Rebelo defende, entre suas principais teses, a construção de um governo forte. Tão forte quanto democrático, com equilíbrio entre os poderes.

O problema não está só no Executivo. A situação crítica em que se transformou a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), alvejado por todos os lados tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, está arrolada como um dos maiores desafios. “Após a constituinte de 88, quando os militares se afastaram, procedeu-se à judicialização da política e, por consequência, a politização do Judiciário.”

Este desequilíbrio permanece e se amplia a cada dia, em meio à turbulência de um país de política convulsionada, em que recrudesce e se aprofunda o confronto entre parlamentares, magistrados e presidente da República. Problemas claramente expostos nos episódios mais recentes, que culminaram, ontem, com a instalação da CPI da Covid, no Senado, e a abertura, na Câmara, do debate sobre o episódio da apreensão de madeira ilegal na Amazônia. Uma reação do Congresso ao massacre de ignorância que o governo Bolsonaro impõe à sociedade.

Enquanto se desenvolve esta luta de campo aberto, surge, da quarentena da pandemia que nos esmaga, o inesperado livro de testemunhos e reflexões de Aldo Rebelo, um roteiro completo para debater o Brasil.

Político que viveu, em extensão e profundidade, como protagonista, diferentes facetas da política brasileira, Rebelo reúne uma experiência singular. Líder estudantil da época da ditadura, exerceu a presidência da UNE, seis mandatos de deputado federal e a presidência da Câmara. Foi ministro da Defesa, do Esporte, da Ciência e Tecnologia, da Coordenação Política, funções em que entrou e de que saiu sem acusações ou processos.

Aldo Rebelo sistematiza os episódios, em seu livro, com a criatividade de quem escreve uma sinfonia. Mais do que um nacionalista, como definido por todos, desde sempre, é um patriota apaixonado. E amplia, a cada dia, a confiança no seu estilo de fazer política: rigor na atenção aos diagnósticos e tolerância nas soluções.

Os sentimentos que criou com relação ao Brasil e aos brasileiros se forjaram na cena de abertura do livro. “A primeira vez que me dei conta do mundo, estava sobre um cavalo. Meu pai trabalhava em uma fazenda. Lembro que ele chegou a cavalo e me pôs montado. Eu devia ter uns três anos e vi outra dimensão do mundo. O mundo visto de cima: o rio, o horizonte, os campos. Data dessa época minha admiração, respeito e paixão pelos cavalos.”

Escrito durante a quarentena da pandemia, que Aldo Rebelo passou no Sítio Amazonas, em Viçosa, Alagoas, em companhia de sua mãe e sua mulher, o livro, de 249 páginas, tem bela ilustração de Elifas Andreato e Agélio Novaes e edição da JÁ, de Porto Alegre. Os 21 capítulos de O Quinto Movimento permitem uma visão otimista da história do Brasil, com intervenções de fatos do presente que lhe dão dinamismo.

No repertório que apresenta, com argumentos de plataforma, figuram economia e futebol, mulheres e índios, militares e diplomacia, educação e desigualdade, agricultura e Amazônia, campos nos quais se especializou nos últimos mandatos.


RPD || Martin Cezar Feijó: Karl Marx, uma biografia para o século XXI

Em seu artigo, Martin Cezar Feijó faz uma análise contundente do novo livro de José Paulo Netto, fruto de uma vida inteira dedicada ao estudo da obra marxiana

Marx está morto. Sim. Desde 1883.  Marx está vivo! O filósofo do materialismo histórico está mais vivo do que nunca. É o que demonstra um marxista “impenitente”: José Paulo Netto. E é de Marx que quero falar aqui, mais particularmente de uma biografia recém-lançada por ele escrita sobre um pensador combativo do século XIX e sua presença no quadro do século XXI: Karl Marx – uma biografia (Boitempo, 2020). 

Primeiro, quero falar do autor, que conheço bem. E devo muito. Quando eu cursava minha graduação no departamento de História (FFLCH-USP) na década de 1970, reclamávamos muito que não tínhamos Marx em nossos currículos.  

Puxa vida! A direita até hoje diz que a escola pública, principalmente a universidade pública, é um antro de comunistas, e nós não estudávamos o fundador do comunismo?!  

Mas foi por isso que um grupo de estudantes, do qual fiz parte, resolveu criar uma célula voltada à pesquisa: Associação dos Universitários para a Pesquisa em História do Brasil (AUPHIB). E sabíamos que o estudo de Marx seria importante em nossa formação intelectual. Foi por isso que no inicio da década de 1980 soubemos da volta do exílio, com a anistia, de um estudioso em Marx, José Paulo Netto, com quem organizamos um curso de introdução à Marx. O curso era ministrado em uma sala alugada na Galeria Metrópole no centro de São Paulo. Por vários sábados na parte da manhã assistíamos aquelas aulas entusiasmadas de um pesquisador sobre o tema.  

Desde então, sempre acompanhei a trajetória de “Zé Paulo” (daqui para frente, JPN) em seus estudos marxistas. Aliás, devo a ele uma das experiências profissionais mais decisivas em minha vida, a de ter sido convidado em 1985 para editar as páginas de cultura do semanário Voz da Unidade, onde fiquei até 1989. 

Então, não surpreende a publicação de um livro que já nasceu também clássico, com suas 815 páginas densas da mais refinada erudição e profundidade, que resenha nenhuma dará conta.  Principalmente de um resenhista que não esconde seu lado, nem sua admiração.   

Em Karl Marx – Uma biografia, ficamos sabendo sobre o biografado;  de sua origem, sua família, seus estudos, sua militância política, até sua vida privada. E, claro, seu amor por Jenny von Westphalen.  Uma vida difícil, com momentos de total carestia, como o período em que viveram em Londres. Não fosse a ajuda do amigo Engels (de quem se fala muito no livro), a fome seria ainda pior para a família toda, em um momento em que suas pesquisas dariam origem ao Capital.  

Mas os estímulos intelectuais de Marx foram os mais variados, principalmente, antes da economia política, seus interesses literários, principalmente por nomes como Homero, Shakespeare, Schiller e Goethe. Sem falar de sua atenção com o desenvolvimento da ciência, tendo lido e acompanhado as polêmicas envolvendo Darwin. O nome que marcou definitivamente sua formação foi o filósofo G.W.F. Hegel (1770-1831) e um contexto de dissolução da filosofia clássica alemã, que envolveu também Kant e Fichte. 

Depois de uma experiência rica, mesmo que curta, na imprensa como jornalista da Gazeta Renana (1841-1843), Marx sentiu, com a descoberta da economia, uma “necessidade urgente de qualificar-se teoricamente e compreender a vida social” (p.65).  Desse processo surgiram textos como Crítica da Filosofia do Direito em Hegel e Sobre a Questão Judaica, obras fundamentais e maduras para se entender a complexidade do pensamento de Marx.  

Mas é em Paris, segundo JPN, o aprofundamento da crítica a Hegel, e a “descoberta do mundo”. Marx passa a se dedicar ao “mundo do trabalho”, mas também a uma militância política que o levou ao exílio belga, um “exílio tranquilo”, onde formula em 1845 as famosas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, o que importa é transformá-lo”.  

A vida intelectual se somou a uma intensa militância ao lado de Engels, figura decisiva, aderindo a uma prática revolucionária na Liga dos Comunistas, sobre a qual escreve com o amigo um dos textos mais influentes da história: o Manifesto do Partido Comunista. Em Londres, apesar da penúria, até miséria, entre 1849 e 1867, Marx atinge seu pleno apogeu intelectual, a plenitude de uma obra, cuja compreensão exige muito esforço e dedicação, o que faz JPN neste estudo voltado para o século XXI.  

Marx morreu no dia 14 de março de 1883, mas sua obra se tornou uma realidade no século XX, no plano teórico e na prática histórica, assim como um imenso desafio para o século XXI.  

E, para terminar com um spoiler, usando um termo da moda, o epílogo vira prólogo, com citações de Carlos Drummond de Andrade – A rosa do povo, “Cidade prevista” - e John Lennon – “Imagine”, assumindo um toque de poesia e um conhecimento nascido do rigor da filosofia e da ciência. Marx ainda nos faz pensar. Não só pensar, mas agir, ou como John Lennon, sonhar: “Você pode dizer que sou um sonhador, mas não sou o único”, politizando uma aspiração individual. 

*Martin Cezar Feijó é historiador e professor titular-doutor na Facom da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Celso Lafer: As fronteiras e seu significado

Synesio Sampaio Goes Filho lança obra sobre ‘o estadista que desenhou o mapa do Brasil’

Fronteiras têm grande importância na vida internacional. Definem o espaço da competência jurídica e política própria dos Estados nacionais. Diferenciam o “externo” do “interno”, no âmbito do qual cabe a um Estado, por meio de suas instituições, a responsabilidade de deliberar sobre rumos de uma sociedade. Nessa esfera também se situa o desafio de se orientar no mundo, pois na realidade contemporânea as fronteiras são porosas.

Faço essas considerações para destacar que a definição das fronteiras com reconhecimento internacional é o que configura “o corpo da pátria”, para me valer do sugestivo título do livro de Demétrio Magnoli. Por isso, o primeiro item da pauta da política externa de um país é o de buscar configurar o “corpo da pátria”. Nesse item, a diplomacia brasileira teve sucesso exemplar em obra que teve início com o Tratado de Madri de 1750.

O Brasil é um país de dimensão continental, como a China, a Índia e a Rússia. Em contraste com esses e outros países grandes, médios e pequenos, não enfrenta contenciosos territoriais e suas tensões, presentes em tantas regiões do mundo. Não tem ambição de expansão territorial.

O Brasil, na lição de Rio Branco, é um país “que só ambiciona engrandecer-se pelas obras fecundas da paz, com seus próprios elementos, dentro das fronteiras em que fala a língua dos seus maiores e quer vir a ser forte, entre vizinhos grandes e fortes”. É de pertinente atualidade a afirmação de Rio Branco. Explicita uma pacífica dimensão de nossa inserção internacional.

Pela ação das bandeiras e das monções, a ocupação do território hoje brasileiro foi muito além dos limites previstos no Tratado de Tordesilhas, de 1494, pelo qual Portugal e Espanha buscaram dividir o que estava por se descobrir no “mar oceano”. Por isso, de fato e de direito, eram indefinidas as fronteiras entre os domínios da Espanha e de Portugal na América do Sul. Esses espaços passaram a ser estabelecidos pelo Tratado de Madri, que delineou a fisionomia do nosso país e é ponto de partida da grande obra da definição das fronteiras do Brasil.

O seu grande negociador foi o paulista Alexandre de Gusmão, nascido em Santos em 1695, considerado como o avô da diplomacia brasileira, pois com ele teve início a formação de um capital diplomático, que, a partir da herança portuguesa, vem favorecendo o nosso país.

Sobre Gusmão acaba de ser publicado iluminador livro de Synesio Sampaio Goes Filho: Alexandre de Gusmão (1695-1753) – o estadista que desenhou o mapa do Brasil.

Synesio, com a qualidade de escritor e a profundidade de consagrado estudioso das fronteiras do Brasil, logra transmitir ao leitor contemporâneo o significado do equilíbrio e da razoabilidade das teses defendidas por Gusmão, consagradas no Tratado de Madri. Desvenda ao mesmo tempo o perfil de uma personalidade de intrépido vigor intelectual.

O objetivo do tratado era “estreitar a cordial amizade” entre Portugal e Espanha, eliminando os embaraços das incertezas dos limites dos domínios das duas Coroas na América, para assim “manter os seus vassalos em paz e sossego”. Os critérios estabelecidos para a fixação dos limites foram os seguintes: 1) suas balizas devem ser as paragens mais conhecidas (“origem e curso dos rios e os montes mais notáveis”) para obstar disputas, valorizando assim fronteiras naturais, e 2) “cada parte há de ficar com o que atualmente possui” – é o que veio a ser a tese do uti possidetis –, “à exceção das mútuas cessões as quais se farão por conveniência comum e para que os confins fiquem, quanto possível, menos sujeitos a controvérsias” – o que levou à cessão para a Espanha da Colônia do Sacramento, origem do que veio a ser o Uruguai e a cessão para Portugal da área das missões, que vieram a configurar os contornos do Estado do Rio Grande do Sul.

As teses de Gusmão exigiam o conhecimento do Brasil da época, incluídas as incertezas amazônicas. Daí a importância dos mapas de que se valeu nas negociações. Essa é a sólida origem das bases de uma diplomacia do conhecimento que norteou as negociações do Brasil em matéria de fronteiras levadas a cabo pelo Império e completadas na República por Rio Branco, e que com seus desdobramentos esteve a serviço da construção do Brasil. Daí a relevância do livro de Synesio e sua dimensão de atualidade, pois dá destaque ao acervo de realizações da política externa brasileira e ao soft power do seu capital simbólico.

É esse capital simbólico – que permite a adequada orientação no mundo – que a diplomacia do governo Bolsonaro se dedica cotidianamente a dilapidar. Ela alcança até o Tratado de Madri, pois foi a Fundação Alexandre de Gusmão do Itamaraty, na gestão Ernesto Araújo, que se recusou a patrocinar a publicação do livro, ora editado pela Record, por conta da mensagem do prefácio de Rubens Ricúpero, que, ao realçar os indiscutíveis méritos do trabalho de Synesio, insere-o no âmbito do profícuo papel da diplomacia brasileira nos destinos do Brasil.

*Professor Emérito da USP, foi ministro das Relações exteriores (1992 e 2001-2002)


O Globo: Stepan Nercessian mostra seu lado B em estreia como escritor

Cinquenta anos após começar na TV, ator ingressa na literatura com 'Garimpo de almas', romance que revela sua faceta menos irreverente, 'da qual não dava para ficar falando na mesa de botequim'

Silvio Essinger, O Globo

RIO - Stepan, o boa praça. Stepan, o irreverente. Mas que tal Stepan Nercessian, o literato? “As almas me procuram e delas não fujo”, escreve ele em seu primeiro romance, o recém-publicado “Garimpo de almas” (Tordesilhas). “Tal como os seres humanos, elas trazem aflições e dúvidas. Muitas choram, inconformadas com o que o destino lhes reservou. Outras brincam, galhofam e se aprazem em perturbar a vida alheia. E existem as prepotentes, tiranas, que querem impor ao mundo sua visão.”

Delírios, desemprego, depressão, bullying, escravidão, assassinos de aluguel, animais selvagens... tudo isso está nas histórias que o ator de 67 anos conta em sua narrativa fragmentada. “Garimpo” é um livro em que ele se move pelas paisagens interioranas da infância e pela cidade grande. Que lembra o tempo passado de um Brasil violento e navega por uma atualidade não muito diferente.

— As coisas que a gente imaginava enterradas voltam, porque foram enterradas em covas rasas, elas são como aqueles caixões que boiam nas enchentes — filosofa Stepan, em entrevista por telefone. — Eu tenho esse outro lado (menos alegre) do qual não dava para ficar falando na mesa de botequim, mas que eu precisava colocar para fora. Essa dualidade sempre existiu na minha vida.

Páginas na gaveta

A vontade de escrever um romance vinha de mais de 20 anos. Rendeu muitos rascunhos, textos deletados por engano e umas 20 páginas impressas que Stepan resgatou de uma gaveta em 2018. Foram essas últimas que acabaram servindo de ponto de partida para o “Garimpo de almas”.

— Usei umas oito dessas 20 páginas e o resto veio todo como coisa nova — conta ele, que daí em diante recorreu a um processo muito particular de costura de histórias para estruturar o livro. — Eu não conhecia técnicas ou regras para se fazer um romance, não sabia dizer nem quem deveria ou não ser o narrador, fui descobrindo isso enquanto escrevia. Eu brinco no livro que são as almas me pedindo para contar suas histórias. Escrevi tudo de uma vez só, uma coisa atrás da outra.

Prefaciado pelo cineasta Cacá Diegues (com quem Stepan fez o filme “Xica da Silva”em 1976), “Garimpo de almas” tem um trecho muito simbólico para Stepan, no qual um menino pergunta a si mesmo, quando velho, o que foi que ele fez com a sua vida.

— Eu me pergunto muito isso. Às vezes eu olho para trás e penso que eu era muito melhor do que sou. Eu tinha menos juízo, mas era mais puro — analisa-se o ator, que na adolescência em Goiânia participava do movimento estudantil e era filiado ao “partidão” (o Partido Comunista do Brasil). — Quando veio aquela fase horrorosa (do AI-5), eu já tinha precedente na família. Minha irmã mais velha, Armínia, tinha sido presa. Acabei sendo proibido de estudar em colégio público, ganhei uma bolsa em colégio particular e no primeiro mês já estavam me acusando de ter soltado uma bomba.

Marcelo Zona Sul

No fim dos anos 1960, Armínia foi para o Rio e começou a namorar o diretor de cinema Xavier de Oliveira, que então planejava filmar o longa de ficção “Marcelo Zona Sul” (1970). “De sacanagem”, como diz, Stepan foi ao Rio fazer teste e acabou sendo foi escolhido para o papel principal: o do inconsequente garotão que namora a bela Renata (Françoise Forton, também estreando no cinema) e, ao ter a mesada cortada, resolve viajar pelo mundo de carona.

— Na época, eu ficava indo e voltando de Goiás, me achava muito jovem — diz. — Meu pai brincava que ainda eu não tinha idade nem para fazer papel de corno! Mas aí o Reginaldo (Faria) me chamou para fazer o segundo filme (“Pra quem fica, tchau”, de 1971), a televisão me chamou (para a novela “Bandeira 2”, também de 71) e eu fiquei. Eu tinha 17 anos, meu primeiro salário quem recebeu foi meu pai. Sou tão velho que o primeiro filme e a primeira novela que fiz foram em preto e branco!

O sotaque que, segundo Stepan, é uma mistura de goiano, cearense (do pai), armênio (dos antepassados) e dos 50 anos de Rio nunca o prejudicou na carreira de ator.

— Ficou um sotaque nacional. Depois fiz personagens do submundo carioca, barra pesada, como na “Rainha Diaba” (filme de 1974, de Antonio Carlos da Fontoura), e tem muita gente que não acredita que eu não sou carioca — jura. — O que sofri mesmo foi com essa tendência de, quando você faz bem uma coisa, te botarem para fazer ela sempre. Nesse sentido, o Chacrinha (papel pelo qual ganhou o Grande Prêmio de Cinema Brasileiro de ator em 2019) foi surpreendente. Tem gente que só foi ver que eu era um bom ator, depois de 50 anos, vendo o “Chacrinha”.

Vereador do Rio por duas vezes (entre 2005 e 2010) e deputado federal (2011 a 2015), Stepan se afastou da política, mas não do debate: ele vê a democracia em risco no país, com um presidente “absolutamente desnorteado” e negacionistas lotando os bares da Barra da Tijuca, onde mora.

— Estou perplexo com o momento da sociedade, muita gente pensa o oposto do que eu penso. São vizinhos, amigos e pessoas próximas vendo o mundo de uma maneira que eu nunca imaginaria que alguém ainda pudesse estar vendo. É cansativo, mas não dá para desistir — aconselha. — Não tem essa história de ficar descrente com a política e achar que essa é a hora de quem não faz política. É mentira. A política precisa fazer uma reforma em si mesma.

Com trabalhos que minguaram na pandemia (sua última participação na TV foi na novela “Éramos seis”, cujo fim foi antecipado pela Covid-19), Stepan optou há um ano “pelo isolamento radical”.

— Fui ao Retiro (dos Artistas, do qual é presidente) umas três vezes só, saí uma outra vez para gravar um “Sob pressão” e depois uns três dias para gravar um filme para Netflix. O resto do tempo eu fiquei trancado em casa. É um negócio que você não pode piscar, ou tá arriscado a morrer na praia.

Guia para inadimplentes e negativados

Os dias sem casa, o ator aproveitou para escrever mais um livro, o “Guia prático para inadimplentes e negativados”.

— Vou acrescentar o capítulo “e confinados”. O personagem ensina a arte de pedir, porque você não pode pedir errado — ensina ele, uma testemunha do melhor da boemia e da vida cultural do Rio desde os anos 1970, mas que, por enquanto, não pensa em autobiografia. —Talvez eu vá contando da minha vida ao longo das coisas que for escrevendo. Realmente fui um cara privilegiado, conheci os maiores artistas brasileiros, todo mundo ainda muito novo, e posso dizer que são todos meus grandes amigos. A única coisa que eu fico triste é de não ter nascido antes para conhecer Noel Rosa!


Folha de S. Paulo: Pandemia deixou óbvio que vivemos em um país desgovernado, diz Frei Betto

Em novo livro, frade dominicano e escritor faz reflexões sobre Covid-19, memória e política

Fernanda Canofre, Folha de S. Paulo

Os meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido de isolamento para Frei Betto, 76. Dividindo-se entre o convento dominicano, em São Paulo, e um sítio, entre palestras virtuais e a escrita, ele conta que sai apenas esporadicamente para ir a consultas médicas de rotina.

As reflexões sobre os primeiros três meses deste período foram reunidas recentemente em “Diário de Quarentena – 90 dias em Fragmentos Evocativos”, publicado pela editora Rocco.

Este é o mais recente da lista de 69 livros assinados pelo frade dominicano, reunião de ensaios, artigos, registros de notícias sobre o avanço da Covid-19, poemas, memórias da ditadura e de pessoas próximas, como frei Tito, amigo que foi torturado pelo regime.

“Colocar no papel ou computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico”, diz ele, em um dos trechos, onde sugere escrever um diário entre as dicas de como enfrentar a reclusão forçada, lembrando os dias em que foi mantido em solitárias nos Dops (Departamento de Ordem Político Social) de Porto Alegre e de São Paulo.

Apenas no estado de São Paulo, ele conta que ainda foi mantido no quartel-general da Polícia Militar, no Batalhão da Rota, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.

A lista de dicas é endereçada a um homem, casado há mais de 20 anos, hipertenso, e que resiste a ficar em casa, para angústia da mulher. Os dois aparecem em entradas variadas pelo diário, e ele acaba contraindo o vírus no decorrer do primeiro mês de uma quarentena que ainda teria muito tempo pela frente.

Ao pedido de entrevista da Folha, Frei Betto preferiu que a conversa fosse por email, pelo qual respondeu sobre a pandemia e questões políticas do cenário nacional, como as eleições municipais e o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a quem chama de BolsoNero, em referência ao imperador de Roma.

Frei Betto, que foi assessor especial da Presidência da República em 2003 e 2004, no governo Lula, diz no "Diário" que a mineirice o preservou de ambições políticas e que o maior erro da esquerda foi o abandono do trabalho de base.

“Lembre-se de que jamais fui militante de qualquer partido político. A meu respeito correm duas lendas sem respaldo na verdade e na realidade: a de que sou sacerdote (sou apenas um religioso leigo) e militante partidário”, ressaltou ele durante a correspondência virtual com a reportagem.

O seu livro mais recente, de um total de 69 publicados, traz textos que o senhor escreveu num período de três meses de quarentena. O senhor acha que alguma lição foi tirada da pandemia? Ficou óbvio que vivemos num país desgovernado, cujos quase 200 mil mortos pela pandemia foram vítimas de um presidente que sofre de tanatomania.

O Brasil voltou a registrar mais de mil mortos em um único dia em decorrência do novo coronavírus. Como estamos encarando essas mortes? Parece que a nossa população sofre também de isolamento psicológico. Esse genocídio, causado pelo descaso do governo, bem como as tragédias de Mariana Brumadinho, deveriam suscitar grandes mobilizações populares, como ocorreu nos casos George Floyd e, aqui, João Alberto. Perdemos a empatia. O sofrimento do outro não dói em nós. Mas devemos guardar o pessimismo para dias melhores.

O senhor se considera otimista, então, hoje? Tudo que os demolidores, como BolsoNero, querem é que percamos o ânimo e fiquemos à mercê de seus arroubos autoritários. Quando constato que, numa cidade conservadora como São Paulo, Guilherme Boulos passou para o segundo turno e teve mais de 2 milhões de votos, a esperança renasce. O bolsonarismo foi o grande derrotado nessas eleições municipais, como será varrido do mapa em 2022.

Em entrevista recente ao jornal argentino Página 12, o senhor disse que as eleições deste ano seriam um termômetro interessante para avaliar o olhar do população. Pela primeira vez desde 1985, o PT ficou sem governo nas capitais. Qual a leitura o senhor faz desse resultado? Enquanto os partidos progressistas não tiverem consenso em torno de um Projeto Brasil, continuarão sem condições de produzir uma alternativa de poder. E precisam retomar o trabalho de base popular. A cabeça pensa onde os pés pisam. ​

Qual foi o erro que levou a esse resultado em 2020? Em 2018, a direita soube manipular muito bem, em especial pelas redes digitais, o antipetismo alimentado pelas tramoias da Lava Jato que fomentaram uma narrativa moralista capaz de induzir muitos a esquecerem os avanços, sobretudo na área social, dos 13 anos de governo do PT. Já em 2020 PT, PSOL e PC do B deveriam ter feito mais alianças. Agora, é hora de retomar o trabalho de base popular e definir estratégias na guerra digital.

O que o PT precisa fazer para reverter isso em 2022? E como o senhor vê a figura do ex-presidente Lula nesse contexto? Lula é o mais importante líder popular do Brasil. Tem o papel fundamental de articular esse Projeto Brasil criando, agora, um fórum de partidos e movimentos sociais progressistas.

Lula deveria articular esse projeto em torno de si ou com um novo nome? Quem o senhor vê hoje como sucessor dele? Para 2022 a oposição, se lograr unidade, conta com ótimos candidatos: Lula, Boulos e Flávio Dino são três exemplos. Considero Lula um ótimo candidato a presidente em 2022 [o ex-presidente, porém, hoje está barrado pela Lei da Ficha Limpa]. Quanto ao Projeto Brasil, deverá resultar da articulação entre os partidos progressistas e os movimentos sociais.

Em 2021, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) completa cinco anos. O senhor chegou a dizer que Lula devia estar arrependido por não ter sido ele o candidato em 2014. Continua pensando assim? Sim, Lula deveria ter sido candidato em 2014. Com o patrimônio de dois mandatos presidenciais e 87% de aprovação, o PT não teria que, de novo, começar do zero. Dilma foi bem no primeiro mandato, mas perdeu o rumo no segundo.

Quais lições ficaram destes últimos cinco anos? Fora do povão não há salvação. O afastamento dos partidos progressistas das periferias, favelas e zonas rurais pobres, o refluxo das comunidades eclesiais de base, devido aos pontificados conservadores de João Paulo 2º e Bento 16, abriram espaço, no universo dos marginalizados e excluídos, ao fundamentalismo religioso que alavancou a eleição de BolsoNero.

Temos que fortalecer os movimentos sociais e começar a sinalizar que é uma falácia candidaturas de centro à Presidência da República.

Todos que, agora, se fantasiam de centro são, na verdade, convictos defensores das pautas políticas e econômicas da direita, como a prevalência da apropriação privada da riqueza sobre os direitos coletivos e o 'direito' de as empresas brasileiras sonegarem mais de R$ 400 bilhões por ano. Nenhum deles aprovará uma reforma tributária progressiva, que afete a fortuna dos mais ricos e favoreça os mais pobres.

Bolsonaro sempre tentou se aproximar do voto cristão, de católicos e evangélicos. Como um religioso, o que o senhor acha dessa postura? Ele usa e abusa do nome de Deus em vão. Um presidente que libera armas, que matam, e trava vacinas, que salvam vidas, se compara àqueles que Jesus qualificou de 'sepulcros caiados'.

Em um discurso deste ano na ONU, ele falou sobre "combate à cristofobia". Existe cristofobia no Brasil? Só na cabeça dele, que ainda procura assustar o povo com o fantasma do comunismo, mantém um ministro que passa a boiada por cima de todos os princípios de preservação ambiental e um outro que isola o Brasil, agora órfão da tutela da Casa Branca.

O senhor viveu a repressão da ditadura militar e teve pessoas próximas mortas pelo regime. Como encarou a eleição de Bolsonaro? Como uma tragédia consentida pelo Judiciário, pois como apologista da tortura, da ditadura, do racismo, da misoginia e do golpismo, deveria ter sido impedido de se candidatar.

No último texto que publicou nesta Folha, em outubro deste ano, o senhor critica a decisão judicial que proibia o uso de "católicas" no nome do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. O senhor também publicou aqui uma carta de uma neocristã que fez um aborto. Qual a posição do senhor sobre o tema? Aprovo o sistema francês, no qual tudo se faz para evitá-lo mas, em última instância, a decisão é da mulher. Já propus a várias jovens que, surpreendidas com uma gravidez inesperada, vieram ao convento com seu drama de consciência: tenham o filho e tragam aqui que eu crio. Nenhuma, que eu saiba, abortou. E ganhei um monte de afilhados...

O senhor também fez parte do Fome Zero. Como vê a questão do enfrentamento à fome hoje? Um dos escândalos da atualidade é o fato de a Covid-19 já ter matado quase 1,7 milhão de pessoas no mundo, o que provoca fantástica mobilização em busca da erradicação do vírus, enquanto a fome mata cerca de 24 mil pessoas por dia, 9 milhões por ano, e quase ninguém se mobiliza. Por quê? Porque a fome faz distinção de classe, a Covid não.

O Brasil saiu do mapa da fome em 2014 e, agora, corre o risco de retornar. Segundo a Oxfam, 5,2 milhões de pessoas passam fome no Brasil, sem contar os que não ingerem os nutrientes essenciais, como proteínas e vitaminas.

A fome é o retrato mais cruel da desigualdade social no Brasil. E, apesar disso, o governo Bolsonaro erradicou o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] e mantém total indiferença à questão da segurança alimentar, embora o nosso país seja considerado 'celeiro do mundo'.

RAIO-X

Frei Betto, 76
Frade dominicano e escritor, nasceu em Belo Horizonte. Preso duas vezes durante a ditadura militar, foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula, de 2003 a 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Tem 69 livros publicados. É assessor de movimentos sociais e da FAO/ONU para questões de soberania alimentar e educação nutricional