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Hélio Schwartsman: Livrarias orgânicas

A concorrência dos eletrônicos não é a única a assombrar livreiros tradicionais

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Por ações e omissões, sinto-me em parte responsável pelo que muitos já chamam de morte das livrarias. É que há dez anos leio quase que exclusivamente no Kindle. Nesse período, deixei de adquirir 548 itens de livreiros tradicionais.

Compreendo perfeitamente a resistência dos fãs do papel. Também tenho meu lado fetichista. Adoro o cheiro de uma edição da Bibliothèque de la Pléiade e, num lance tipo Jack, o Estripador, sinto falta de talhar as páginas dos exemplares não cortados com que a Belles Lettres às vezes me brindava.

Curvei-me, porém, às imposições do pragmatismo. O diabólico aparelhinho da Amazon serve melhor aos meus propósitos. Os livros eletrônicos chegam instantaneamente às minhas mãos (contra semanas numa importação física) e custam menos. Igualmente importante, o Kindle me permite fazer buscas no conjunto de obras da minha biblioteca e acessar anotações feitas durante a leitura.

A concorrência dos eletrônicos não é a única a assombrar livreiros tradicionais. Há também a competição das livrarias virtuais, que, por dispensar os caros aluguéis de espaço em shopping centers, a contratação de equipes de profissionais e por reduzir o capital que fica empatado na forma de livros que demoram a vender-se, conseguem praticar preços consideravelmente menores.

Não penso, porém, que as livrarias tradicionais irão todas desaparecer. Num mundo com mais de 7 bilhões de habitantes, sempre haverá um número não desprezível de leitores irredutivelmente fetichistas ou que apenas apreciam flanar entre as estantes de uma livraria em busca de uma serendipity e depois tomar um café folheando a obra. Desde que esses leitores estejam dispostos a pagar um pouco mais em cada exemplar assim adquirido, boas livrarias podem continuar existindo. É mais ou menos o mesmo modelo da agricultura orgânica, que prospera.


Míriam Leitão: Precisamos falar sobre os livros

Crise das livrarias pode virar um problema sistêmico e atingir um produto que tem um valor intangível

Há um problema rondando o Brasil, enquanto o país está totalmente dominado por suas muitas emergências e um novo governo está se formando: o risco de uma crise sistêmica na indústria do livro. As duas maiores livrarias estão em recuperação judicial e devem R$ 360 milhões às editoras. Juntas, são 40% do varejo do setor, e a crise estreitou o canal de venda. Restam as redes menores, mas hoje há 600 livrarias a menos do que antes da recessão. Esse setor tem impacto para além da economia e chega ao intangível da vida do país.

— Imagine o fechamento da loja do Conjunto Nacional da Paulista? Seria uma tragédia não apenas econômica —afirma Marcos da Veiga Pereira, do Sindicato Nacional das Editoras de Livros (SNEL), citando a megastore ícone da Livraria Cultura.

Como em todas as crises, não há uma razão só, nem soluções simples. A lista das causas que derrubam o setor é longa. Na Saraiva e na Cultura, houve erros de gestão. Livro tem um giro baixo, e o setor trabalha com pouco capital.

O país viveu nos últimos quatro anos a pior recessão da sua história, as vendas despencaram e só agora começam a subir. A tecnologia e a mudança de hábitos impõem mudanças do modelo de negócios. A venda online é uma realidade e tende a crescer, mas os editores afirmam que descontos agressivos acabaram dando prejuízo a todos.

— A venda online não tem margem e parte do princípio da captura do cliente. Para Saraiva e Cultura, que têm participação grande nessas vendas, isso foi minando o negócio. A própria Submarino, que antes da Amazon entrar era a grande vilã dessa história, saiu do negócio da venda de livros — diz Marcos Pereira.

O SNEL fez a proposta de fixar um limite máximo para o desconto no preço do livro, por um tempo. Isso significa intervenção na era do mercado livre. Eles sabem que é polêmica, mas argumentam que descontos predatórios podem matar o negócio. O consumidor que se beneficiou da queda do preço quer livro ainda mais barato.

O número de livrarias caiu porque o Brasil inteiro sentiu um impacto da recessão, acha Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias, mas o mercado se renova.

— Houve uma queda forte do número de lojas, mas, ao mesmo tempo que algumas fecharam, temos novas livrarias abrindo, a maioria delas por profissionais que começam com proposta nova, às vezes com uma loja única, mas que trazem fôlego renovado — diz Gurbanov.

Ele também define como “absurda” a guerra de preços que levou alguns livreiros a comprar por internet, evitando a editora. “Guerra fratricida”. Ele diz que a livraria é mais do que uma loja:

— Tem que ser um centro cultural, de curadoria, de livros expostos, eventos que podem ser desde lançamentos de livros a debates. Uma volta às origens.

Gurbanov informa que há redes crescendo de forma cuidadosa e cita a mineira Leitura. Contudo, na proximidade do Natal, as duas redes que são 40% do mercado e têm as maiores lojas estão desabastecidas.

Fábio Astrauskas, sócio e diretor da Siegen, especialista em recuperação judicial, diz que isso não é o fim da linha para as duas redes.

— Recuperação judicial tem o objetivo contrário, é para evitar a quebra da empresa, é para recuperar — diz ele.

Os caminhos são poucos. Astrauskas acha que, ao fim, Cultura e Saraiva terão novo dono. Só não sabe se um ou dois.

No filme sul-americano Severina, do diretor brasileiro Felipe Hirsch, a história se passa na Montevidéu dos tempos atuais, mas o clima é atemporal e a conjuntura política é apenas insinuada.

Numa livraria reúnem-se apaixonados por livros para debates e leituras conjuntas. O filme fala da força imaterial do livro. Até que ponto é irreal e romântico imaginar isso num mundo que se torna digital de forma avassaladora? A venda online e os novos hábitos reduzem o número de lojas no mundo. Tudo está em mudança, mas o livro ainda é predominantemente físico. Em qualquer formato, é mais do que mercadoria.

Luiz Schwartz, da Companhia das Letras, lançou dias atrás a sua “Carta de Amor aos Livros” com uma sugestão simples, que não resolve a crise, mas pode ser uma alegria: dar livro como presente neste fim de ano. Enquanto o setor encontra suas saídas, é bom pensar nos livros e seu valor intangível. Sem eles, fechados em bolhas digitais alimentadas por algorítimos, somos presas frágeis no tempo distópico que vivemos.