Literatura

Zumbi dos Palmares portrait1 | Foto: Reprodução

Luiz Carlos Azedo: O Zumbi de cada dia

Existe uma realidade social indelével, que explode na nossa cara, principalmente quando a exclusão, o preconceito e a violência contra os negros atingem níveis absurdos

No livro Escravidão, primeiro volume, de Laurentino Gomes, Zumbi dos Palmares é descrito como um herói em construção. Encurralado e morto no dia 20 de novembro de 1695, pelo capitão André Furtado de Mendonça, estava acompanhado de 20 guerreiros, dos quais somente um foi capturado vivo; os demais lutaram até a morte. “Decepada e salgada”, a cabeça do líder quilombola foi enviada para Recife, onde ficou exposta no Pátio do Carmo. Em carta ao rei de Portugal, o governador Mello e Castro registrou para a história a origem do mito:

“Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e injustamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares”.

Hoje, quase ninguém sabe quem foi o ex-governador de Pernambuco Mello e Castro, seu sobrenome é associado ao engenheiro, escritor, artista plástico e poeta experimentalista português Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro, que se radicou em São Paulo, onde morreu em agosto passado . Zumbi, não; a data de sua morte rivalizava com o Dia da Abolição, 13 de Maio de 1888, como marco da luta dos negros no Brasil. O Treze de Maio foi feriado nacional durante toda a República Velha; o 20 de novembro somente em 2011 foi oficializado como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, mas é considerado feriado somente no Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará e Rondônia.

O conflito de datas não é trivial, reflete uma disputa ideológica entre aqueles que não admitem a existência do racismo no Brasil, com o presidente Jair Bolsonaro — “sou daltônico”— e o vice-presidente da República, o general Hamilton Mourão – “não existe”—, e os militantes do movimento negro, que lutam contra o racismo estrutural brasileiro, para os quais a Lei Áurea seria um ato de fachada da aristocracia agrária e escravocrata. O Brasil foi o último pais do Ocidente a acabar com o tráfico de escravos, em 1850, e com a escravidão, 38 anos depois. Não haveria o que comemorar no 13 de maio porque os escravos libertos foram abandonados à própria sorte, sendo substituídos por trabalhadores imigrantes europeus nas lavouras, manufaturas e comércio.

Os mitos
Entretanto, uma biografia robusta de Zumbi, segundo alguns historiadores, é uma tarefa impossível, em razão da insuficiência de fontes primárias e da multiplicidade de versões. Haveria três Zumbis míticos:

(1) O Zumbi dos colonizadores. Palmares era apontado como um núcleo de barbárie africana e ameaça à civilização. Joaquim Manoel de Macedo, médico e escritor, autor de A Moreninha e Memórias da Rua do Ouvidor, em 1869, afirmava que os negros carregavam “os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos do escravocrata, inimigo natural e rancoroso do seu senhor, os miasmas, a sífilis moral da escravidão infeccionando a casa, a fazenda, a família dos senhores, a sua raiva concentrada, mas sempre em conspiração latente atentando contra a fortuna, a vida e a honra de seus incônscios opressores”. Essa visão permanece subliminarmente na nossa sociedade em relação aos negros.

(2) O Zumbi revolucionário. Está associado “à autêntica luta de classes que encheu séculos de nossa história” — na visão do jornalista Astrojildo Pereira, fundador e secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, no jornal A classe Operária, em 1929 —, cujo momento “culminante de heroísmo e grandeza” fora a república de Palmares, “tendo a sua frente a figura épica de Zumbi, o nosso Spartaco negro”. É uma visão ideológica, que reproduz o determinismo marxista da época na interpretação da História e predomina na velha esquerda, que subordina a questão do racismo à luta de classes.

(3) O Zumbi em construção. É o mito que nasce do movimento abolicionista, que o elegeu como ícone da resistência dos escravos, mas ganhou fôlego no século XX, como ícone literário, consagrado nos livros de Joel Rufino, Décio Freitas e Ivan Alves Filho na década de 1980, e reproduzido na pintura, no cinema, na música e nos desfiles de escolas de samba.“É o Zumbi dos oprimidos, herói das lutas pela liberdade, não só de escravos e negros, mas também dos camponeses, índios, trabalhadores, das minorias”, segundo Laurentino Gomes. É uma visão mais pluralista.

Lugar de fala
Existe um Zumbi para cada oprimido, até mesmo uma versão de que o herói de Palmares seria um gay jaga, do antropólogo baiano Luiz Mott. O mito renasce a cada dia, não por causa dos historiadores, mas em razão da existência objetiva do racismo e da luta identitária, centrada no “lugar de fala”. A exclusão, a injustiça social e a violência física incidem mais contra os negros do que contra outros segmentos da população, independentemente do nível social. Há todo um debate político sobre as agendas identitárias e a política de cotas raciais, que agora chegou à distribuição de recursos dos partidos na campanha eleitoral, e mesmo uma polêmica sobre a reprodução de conceitos e práticas do movimento negro norte-americano aqui no Brasil, que não seriam compatíveis com a realidade de um pais miscigenado como nosso, capaz de “traduzir” toda e qualquer identidade étnica do ponto de vista cultural.

Entretanto, existe uma realidade social indelével, que explode na nossa cara, principalmente quando a exclusão, o preconceito e a violência contra os negros atingem níveis absurdos. É o caso do assassinato de João Alberto Silveira de Freitas, espancado até a morte por dois seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre. O crime ocorreu na véspera do dia da morte de Zumbi dos Palmares, cujas comemorações se transformaram em manifestações de protesto em todo o país. Episódios como esse fazem o mito de Zumbi ser mais forte a cada dia, ainda mais se levarmos em conta que o herói de Palmares inspira uma nova elite artística e intelectual negra, que lidera a tomada de consciência sobre o racismo estrutural no Brasil, contra o qual lutou com relativo êxito individual, mas que permanece à espreita em cada esquina de suas vidas.

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Luiz Carlos Azedo: Bêbado a uma hora dessa?

Apesar de todo o seu poder, Góis Monteiro não escapou da gozação, até mesmo entre os colegas de farda, no auge da luta para o Brasil entrar na guerra contra o nazifascismo

Desculpem-me a analogia. Tem certas coisas no Brasil que não escapam da gozação, mesmo quando são muito sérias e preocupantes. Por exemplo, o namoro de Getúlio Vargas com o fascismo de Benito Mussolini, o ditador da Itália, e o nazismo de Adolf Hitler, da Alemanha, cujo ponto alto foi a entrega da judia alemã Olga Benário, a esposa do líder comunista Luís Carlos Prestes, grávida de sua filha Anita Prestes, à Gestapo. Olga foi morta na câmera de gás do campo de extermínio de Bernburg, mas sua filha foi resgatada antes disso, depois de uma grande campanha internacional. Hoje é professora de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nessa época, em plena ditadura Vargas, havia uma luta surda entre o ministro da Guerra, Góis Monteiro, e o chefe de Polícia do Distrito Federal, Filinto Muller, que defendiam uma aliança com o Eixo, de um lado, e o chanceler Oswaldo Aranha e o almirante Amaral Peixoto, genro de Vargas, que articulavam a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Estados Unidos e seus aliados da Europa, de outro.

O repórter David Nasser, no livro Falta alguém em Nuremberg, traça o perfil da equipe de Filinto Muller, “recrutados entre a escória do Exército”: capitão Felisberto Batista Teixeira, delegado especial de Segurança Política e Social: capitão Afonso de Miranda Correia, delegado auxiliar; tenentes Emílio Romano, chefe da Segurança Política, e Serafim Braga, chefe da Segurança Social, e, ainda, o tenente Amaury Kruel e seu irmão, capitão Riograndino Kruel, ambos da inspetoria da Guarda Civil, “indivíduos cujo servilismo ao governo e brutalidade com os presos” contribuíram, segundo Nasser, para as violações dos direitos humanos ocorrida na época. No Estado Novo, segundo o historiador Cláudio de Lacerda Paiva, “quem censurava era Lourival Fontes, quem torturava era Filinto Muller, quem instituiu o fascismo foi Francisco Campos, quem deu o golpe foi Dutra e quem apoiava Hitler era Góis Monteiro”.

É justamente nessa época que começa a gozação com o Góis Monteiro, dentro do próprio governo. Alagoano de São Luís do Quitunde, fora o comandante militar da Revolução de 1930 e chefiou as tropas federais que combateram a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo. Na época em que foi ministro da Guerra (1934 e 1935), elaborou a Doutrina de Segurança Nacional que inspirou várias leis da ditadura de Vargas e do regime militar. Em 1937, articulou o golpe do Estado Novo, sendo um dos responsáveis pelo famoso Plano Cohen, que serviu de pretexto, planejamento de uma revolução comunista forjado pelo então capitão Olímpio Mourão Filho. Góis Monteiro deu de presente ao temido deputado fluminense Tenório Cavalcanti a sua famosa “Lurdinha”, uma metralhadora alemã MP-40.

Alvorada

Apesar de todo o seu poder, Góis Monteiro não escapou da gozação até mesmo entre os colegas de farda. No auge da luta para o Brasil entrar na guerra contra o nazifascismo, seus adversários políticos se divertiam com a seguinte piada contada nos corredores do Palácio do Catete e nos bares do Rio de Janeiro: Góis Monteiro resolvera conhecer de perto o treinamento das tropas do Eixo. Na Alemanha, um oficial nazista formou um pelotão das SS e mandou que um oficial demonstrasse sua disciplina e amor a Hitler: “Tenente Fritz, tiro na cabeça!”. O jovem oficial disparou a Luger e caiu morto sem dizer um ai, enquanto a tropa fazia a tradicional saudação nazista: “Heil, Hitler!”. Gois Monteiro ficou impressionadíssimo.

No Japão, visitou o porta-aviões do almirante Yamamoto, que formou o esquadrão de pilotos e mandou que um deles dedicasse sua vida ao Imperador: “Capitão Tanaka, seppuku!”. O camicase, como autêntico samurai, sacou seu espadim e rasgou o abdômen; imediatamente, seguindo o ritual de honra, o líder da esquadrilha, num golpe certeiro, cortou sua cabeça com a espada, para evitar maior sofrimento. “Banzai!”. Foi demais para Góis Monteiro: mareado, vomitou.

De volta ao Palácio do Catete, o ministro da Guerra passou a noite em claro e mandou tocar a alvorada às 5 horas da manhã, uma hora mais cedo. Aguardou os Dragões da Independência nos jardins, cantarolando: “A voz do despertar/ Chega a nós/ Que a missão a se cumprir/ É função do que sentir/ Sentir/ Que ela vem dizer/ Com seu repercutir/ / O que é o dever/Quem entender/ Clarim tocar/ Antes do amanhecer/ Tem que se inflamar (…)”. Assustada e sonolenta, a tropa formou desengonçada, às pressas, com a farda mal-abotoada, rabos de cavalo dos capacetes embaraçados, sem saber o porquê da antecipação da alvorada. Góis Monteiro deu a voz de comando: “Primeiro pelotão, sentido!”. O sargento Tião, homem-base na formatura, soldado casca-grossa, já havia percebido a voz pastosa do general quando ele cantava, desconfiou que havia algo errado. Quando o general enrolou a língua no “Apresentar-armas”, Tião se deu conta de que a situação era crítica: “Vixe, está bebado!”. Levou o general para a cama, antes que ele fizesse mais besteira, sem saber de suas sinistras intenções.

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RPD || André Amado: A página de abertura dos romances

Com exemplos de três universos culturais distintos, mas que convergem na técnica, André Amado nos brinda, em seu artigo, sobre como os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção

Sou dos que se deixam impressionar pela página de abertura de um romance. Como diz David Lodge, é fronteira que separa o mundo que imaginamos do que o romancista imaginou. Ilustro com três exemplos.

Vejam como o argentino Ernesto Sábato ambienta o começo de Sobre héroes y tumbas:
A esa hora en que comienzan a oírse los pequeños murmullos, en que los grandes ruidos se van retirando, como se apagan las conversaciones demasiado fuertes en la habitación de un moribundo; y entonces, el rumor de la fuente, los pasos de un hombre que se aleja, el gorjeo de los pájaros que no terminan de acomodarse en sus nidos, el lejano grito de un niño, comienzan a notarse con extraña gravedad. Un misterioso acontecimiento se produce en esos momentos: anochece.

Agora é a vez do britânico Ian McEwan, em A balada de Adam Henry, outra brilhante tradução de Jorio Dauster, que nos faz esquecer estarmos lendo um livro, cujo original não foi escrito em português:

Londres. Sessões do tribunal encerradas havia uma semana. O templo implacável de junho. Fiona Maye, juíza do Tribunal Superior, em casa na noite de domingo e deitada numa chaise longue, olha além de seus pés calçados com meia para o fundo da sala, uma pequena litografia de Renoir, representando uma mulher no banho, comprada trinta anos atrás por cinquenta libras. Provavelmente falsa. Abaixo da gravura, no centro de uma mesa redonda de nogueira, um vaso azul. Nenhuma recordação de sua origem. Nem de quando pusera flores nele pela última vez. Havia um ano a lareira não era acesa. Gotas de chuva enegrecidas caíam de forma irregular no suporte de ferro da lareira, estalando ao se chocarem com as folhas de jornal amarrotadas que já começavam a amarelar com o passar do tempo. Um tapete Bokhara cobrindo as largas tábuas enceradas. Na margem de seu campo de visão, um piano de cauda curta sobre cujo tampo negro e reluzente se viam fotografias da família em molduras de prata…

Complemento com Venenos de Deus, remédios do diabo, do moçambicano Mia Couto:

O médico Sidónio Rosa encolhe-se para vencer a porta, com respeitos de quem estivesse penetrando num ventre. Está visitando a família de Bartolomeu Sozinho, o mecânico reformado de Vila Cacimba. À porta, a esposa, Dona Munda, não desperdiça palavra, nem despende sorriso. É o visitante quem arredonda o momento, inquirindo:
– Então, o nosso Bartolomeu está bom?
– Está bom para seguir deitado, de vela e missal…
A voz rouca parece distante, contrariada como se lhe custasse o assunto. O médico acredita não ter entendido. Ele é português, recém-chegado à África. Refaz a questão:
– Perguntava eu, Dona Munda, sobre o seu marido…
– Está muito mal. O sal já está todo espalhado no sangue.
– Não é sal, são diabetes.
– Ele recusa. Diz que se ele é diabético, eu sou diabólica.
– Continuam brigando?
– Felizmente, sim. Já não temos outra coisa para fazer. Sabe o que penso, Doutor? A zanga é a nossa jura de amor.

São todos trechos retirados das primeiras páginas das obras de referência. Ernesto Sábato seduz o leitor pela maneira como lida com a noção de tempo, maestria literária que é uma promessa de que a repetirá mais adiante na narrativa. Ian McEwan recorre a jogo mais sutil. Com o apoio de detalhes, em geral secundários, do ambiente doméstico, opõe o melancólico ao sofisticado e deixa no ar a questão: será o presente estéril ou ainda haverá esperança de futuro. Já Mia Couto retrata, também de entrada, a vida de um casal, cuja rotina consiste em suportar-se. Aqui a pergunta não é tanto se, mas como as relações haverão de evoluir.

Três escritores procedentes de universos culturais tão distintos convergem na técnica de, no início, não mais do que insinuar a história que desenvolverão, quando, então, passam a convidar o leitor a se sentar a seu lado, para acompanhá-lo na textura da trama, no traçado dos personagens, na solução dos conflitos, no afivelamento dos fios soltos da narrativa. É assim que os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção. Eles têm plena consciência de que, em literatura, o leitor é fisgado pela intriga, pela curiosidade, até mesmo pela aspiração – em muitos casos, inconfessa – de querer ser o coautor do que está sendo concebido.

*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online.


Luiz Carlos Azedo: Biden antecipa 2022

“O encontro do apresentador Luciano Huck com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mexeu com o tabuleiro político. O apresentador de tevê se fingia de morto”

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e, sim, sob aquela com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Quem já não leu ou ouviu essa frase na crônica política? É citada com frequência, literalmente ou não, mas com o mesmo sentido. Está no segundo parágrafo do O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx (Martin Claret), escrito em Londres, sob encomenda, para um semanário que seria lançado em Nova York, em 1º de janeiro de 1852, cujo editor, Joseph Weydemeyer, morreu. O texto acabou publicado numa revista mensal intitulada Die Revolution e introduzido na Alemanha semiclandestinamente, antes de virar um livro-reportagem sobre o golpe de Estado de Napoleão III, em 1851. O título faz alusão ao golpe de 9 de novembro de 1799, esse, sim, dado por Napoleão Bonaparte. É um clássico da análise política, que cunhou os conceitos de “bonapartismo”, “transformismo político” e “cretinismo parlamentar”.

O presidente Jair Bolsonaro não foge à regra dos grandes personagens da História que se repetem, citados por Marx naquele texto: depara-se com circunstâncias que não escolheu e são completamente diferentes daquelas nas quais se elegeu. É como se a roda da Fortuna tivesse girado a favor dos seus adversários, zerando a vantagem estratégica que a conjuntura de 2018 havia lhe proporcionado. Para piorar a situação, antecipou sua campanha à reeleição em todos os movimentos que fez desde quando assumiu a Presidência e, agora, com o gênio fora da garrafa, não tem como pô-lo de volta. Nem bem o primeiro turno das eleições municipais acabou, o quadro eleitoral de 2022 começa a ser desenhado à sua revelia, agora impulsionado por um fator externo cujo impacto no Brasil não pode ser subestimado: a vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, inequívoca, embora o presidente Donald Trump se recuse a admiti-la e se movimente como quem deseja criar uma crise institucional para permanecer no poder.

Não é à toa que líderes mundiais como Vladimir Putin, da Rússia; Xi Jinping, na China; e López Obrador, no México, ainda não enviaram congratulações ao democrata e aguardem o resultado oficial da disputa, cuja divulgação Trump procura retardar ao máximo, com seus recursos judiciais. São líderes políticos que têm grandes contenciosos com os Estados Unidos e não desejam tornar a vitória de Biden ainda mais consagradora, fortalecendo-o nas negociações. Nenhum deles, porém, tem tanta identidade ideológica com Trump como Bolsonaro. Também não se manifestaram durante o pleito a favor do candidato republicano. O retardo em reconhecer a vitória de Biden, por lealdade a Trump, está aprofundando o mal-estar que já existia com o novo presidente dos Estados Unidos. Além das implicações da vitória dos democratas em relação à política externa e à questão ambiental no Brasil, já estão aparecendo suas consequências para a política nacional propriamente dita, inclusive do ponto de vista eleitoral.

O centro renasce
Por exemplo, o encontro do apresentador Luciano Huck com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mexeu com o tabuleiro das eleições presidenciais. O jovem comunicador se fingia de morto e sua candidatura somente existia no Twitter do ex-deputado Roberto Freire, presidente do Cidadania. A partir do momento em que se tornou público seu encontro com Moro e que ambos discutiram o cenário eleitoral de 2022, todos os possíveis candidatos e seus aliados se mobilizaram. É ingenuidade acreditar que o encontro em si alterou o cenário político — o prestígio de ambos estava em declínio nas pesquisas —, o que mudou a correlação de forças foram as novas circunstâncias criadas pela vitória de Biden, com uma narrativa que não tem sintonia com Bolsonaro, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nem mesmo com Ciro Gomes (PDT).

O encontro de Huck e Moro sinalizou que o campo liberal-democrático pode buscar uma convergência e ocupar, novamente, o centro político, mas isso passa, ainda, por João Doria (PSDB), governador de São Paulo; Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul; Rodrigo Maia, presidente da Câmara; Luiz Henrique Mandetta (DEM), ex-ministro da Saúde; e Marina Silva (Rede), ex-ministra. Unificar o centro democrático não é uma tarefa fácil, nunca foi. Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, no MDB, disputaram a liderança da oposição até a derrota das Diretas Já. Fernando Henrique Cardoso teve de dobrar Mário Covas, no PSDB, para consolidar sua aliança com o PFL, de Antônio Carlos Magalhães e Marco Maciel.

De volta aos programas de tevê com forte cunho social, Huck se movimenta de forma dissimulada, mas sua permanência na TV Globo tem data marcada, precisa decidir até meados do próximo ano se é candidato ou não. Moro enfrenta o sereno na planície, é um candidato encabulado, mas tem um partido pronto para abrigá-lo, com forte bancada no Senado, o Podemos. Doria tem as dificuldades de todo político paulista para sair do Palácio dos Bandeirantes, podendo se reeleger, e arriscar a Presidência. Mandetta é candidato declarado, enquanto houver pandemia, terá pista para correr, mas precisa seduzir a cúpula partidária, que sonha com a candidatura de Huck pela legenda. Eduardo Leite pode ser a nova cara do PSDB, se Doria não concorrer. Marina Silva sonha em renascer como Fênix, para viabilizar a Rede. Reunir todos numa candidatura é um projeto ambicioso. Além disso, não se deve subestimar a força da oposição de esquerda, que pode se reagrupar, a partir das conversas entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula (PT) da Silva e Ciro Gomes (PDT), para chegar ao segundo turno.

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Luiz Carlos Azedo: Entre a águia e o dragão

Candidato a marisco entre EUA e China, faltam ao governo Bolsonaro politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo

— Espera! — exclamou Ega. — Lá vem um “americano””, ainda o apanhamos.
— Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
— Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atribulando as pernas magras:
— Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…
A lanterna vermelha do “americano”, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
— Ainda o apanhamos!
— Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

(Os Maias, Eça de Queiroz, 1888)

Essa alegoria do escritor português que tanto influenciou nossa literatura encerra um grande “afresco” literário sobre a atávica e parasitária elite lusitana e a situação de estagnação de Portugal no final do século XIX. Serve sob medida para a situação em que se encontram o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das não-Relações Exteriores, Ernesto Araujo, que agora correm atrás do prejuízo como a dupla Carlos Maia e João da Ega, por causa da vitória de Joe Biden, candidato do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump, um demagogo tresloucado que ocupou a Casa Branca por 4 anos e levou muitos a acreditarem no naufrágio da civilização ocidental, foi escolhido por ambos como aliado incondicional. Entretanto, mais uma vez, a democracia americana se recuperou de um desastre político e retomou o seu curso histórico.

No mundo globalizado — traumatizado por uma pandemia que já matou 1,4 milhão de pessoas, a recessão dela decorrente e o aprofundamento das desigualdades —, falta uma autoridade moral, portadora de valores universais capazes de influenciar a marcha da História, à qual a sociedade contemporânea possa recorrer. O Velho Mundo, com suas ideias iluministas e protagonista da história mundial do século XV ao XIX, hoje não é o candidato natural a essa posição. Somente os Estados Unidos podem exercer esse papel de liderança global nos fóruns internacionais, pela universalidade de seus fundamentos políticos, sua composição étnica e multiculturalismo, além do inegável poder que adquiriu no século passado, após vencer duas guerras mundiais e a “guerra fria”. Nenhum outro país reúne, simultaneamente, capacidade de produção industrial, força militar, pesquisa científica, conhecimento, tecnologia e influência política e cultural para isso.

Marisco

Misógino, homofóbico e chauvinista, Trump havia abdicado desse protagonismo, lançando os Estados Unidos na contramão da História. Mas é um erro supor que tudo começou com o republicano. Na verdade, o erro histórico dos Estados Unidos foi continuar a tratar os vencidos na “guerra fria” — a antiga União Soviética e os países do Leste europeu — como inimigos a serem humilhados, espoliados e isolados politicamente. É esse hegemonismo truculento que está na gênese do trumpismo, marcadamente após a Guerra do Iraque, com o seu intervencionismo para derrubar regimes e refundar nações, alterando abruptamente a geopolítica de regiões inteiras. O ponto de inflexão dessa política, porém, foram os fracassos nas tentativas de derrubar os governantes da Síria, Bashar al-Asha,d e da Venezuela, Nícolas Maduro, por subestimar o poder de intervenção militar da Rússia e a emergência da China como potência econômica e diplomática.

No seu livro Sobre a China, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, que no governo Richard Nixon negociou com êxito o restabelecimento das relações dos Estados Unidos com os chineses, chamou a atenção para o fato de que as duas guerras mundiais do século XX resultaram de uma disputa pelo controle do comercio mundial no Atlântico por uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, o Reino Unido. Agora, o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico e a disputa continua sendo entre uma potência continental e uma marítima: China e os Estados Unidos, respectivamente. É preciso evitar que essa guerra comercial não se transforme numa guerra quente, não se cansa de advertir Kissinger, o ex-diplomata hoje nonagenário.

O erro estratégico de Bolsonaro e seu não-chanceler, Ernesto Araujo, foi acreditar que isolamento diplomático em que o país mergulhou, por causa de uma agenda negacionista, reacionária e antiambientalista, seria compensado pela aliança imediatista, não com o Estado norte-americano, mas com o presidente Trump. Deu errado. A águia do Norte novamente alçou voo, em busca da liberdade, mas o dragão chinês, nosso principal parceiro comercial, espreita o processo em curso antes de estrugir labaredas de fogo. A China dispõe de recursos humanos e financeiros, capacidade industrial e tecnologia para sustentar essa disputa por longos anos. O maior desafio para a diplomacia brasileira é não virar marisco nessa disputa, que continuará com Biden, em outros termos. Bolsonaro colecionou agressões aos chineses, que pacientemente observam o curso de nossas relações com os Estados Unidos. Se forem toscamente discriminados, principalmente no caso do 5G, vão se reposicionar política e comercialmente, com um poder de retaliação muito grande. Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo.

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Luiz Carlos Azedo: A teoria do dano e a vacina

Bolsonaro não leva em conta que uma pessoa infectada, por se recusar a tomar a vacina, pode contaminar as outras, com consequências trágicas e irreparáveis

A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.

Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.

Mill defendia a legitimidade da mobilização da opinião pública para convencer as pessoas a não tomarem certas atitudes, mas condenava a repressão direta a ações individuais que afetam apenas a própria vida. É possível desenhar a sua “teoria do dano”: todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos eventualmente causados por um indivíduo a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional. Mill morreu em 1873, mas suas ideias sobre a liberdade individual continuam atuais.

Rebanho

No Brasil, a “teoria do dano” foi introduzida na nossa jurisprudência no Código Civil de 1916, que estabeleceu um nexo causal entre o dano e o fato que o produziu, e foi consagrada no artigo 403 do Código Civil de 2002. Segundo a teoria do dano direto e imediato, o Estado pode ser processado pelos prejuízos causados aos cidadãos. Por ironia, em tempos de pandemia e de “imunização de rebanho”, ou seja, da necessidade de vacinação em massa para combater o novo coronavírus, um caso analisado pelo jurista Robert Joseph Pothier, um dos autores do Código Civil francês de 1808, é estudado ainda hoje nas escolas de direito: a aquisição de uma vaca pestilenta, que contamina os bois do comprador, impedindo-o de cultivar suas terras. Ciente do vício oculto, o vendedor responde pelo perecimento da vaca como também pela morte do restante do rebanho do comprador.

No caso da vacina contra o coronavírus, que na sua opinião não deve ser obrigatória, o presidente Jair Bolsonaro não leva em conta o dano que pode ser causado voluntariamente por uma pessoa infectada, ao contaminar as outras, por se recusar a tomar a vacina. O governo também pode ser responsabilizado por não utilizar uma vacina disponível. Apesar disso, cancelou o acordo feito entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantã, do governo de São Paulo, para a compra de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac, que serão produzidas por aquela consagrada instituição científica, em parceria com o laboratório chinês, com previsão para estar pronta para imunização já em dezembro.

Anulou o protocolo assinado pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, com todos os governadores, para aquisição e aplicação da vacina, com o argumento absurdo de que o “povo brasileiro não será cobaia” da “vacina chinesa do João Doria”, o governador tucano de São Paulo. Alguém precisa avisar ao presidente que isso pode gerar uma enxurrada de pedidos de indenização por “dano direto e imediato” e caracterizar um “crime de responsabilidade”.

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Luiz Carlos Azedo: O peso da imprudência

Falta-nos um projeto capaz de construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa coesão social, para uma grande reforma democrática do Estado e a redução das desigualdades

Num de seus ensaios sobre a França no século XX — O peso da responsabilidade (Objetiva) —, o historiador britânico Tony Judt, falecido em 2010, aos 62 anos, analisa a vida pública francesa entre a Primeira Guerra Mundial e os anos 1970. Como se sabe, o primeiro grande Estado-nação da Europa influenciou toda a história moderna do Ocidente, em razão da Revolução Francesa e da Comuna de Paris. Por essa razão, Judt não esconde seu espanto com “a incompetência, a ‘insoucience’ indiferença e a negligência injuriosa dos homens que governavam o país e representavam seus cidadãos” nesse período, e dedica o livro a Léo Brum, Albert Camus e Raymond Aron, intelectuais franceses que nadaram contra a maré e confrontaram seus pares.

Segundo Judt, o problema da França era mais cultural do que político. Os deputados e senadores de todos os partidos, presidentes, primeiros-ministros, generais, funcionários públicos, prefeitos e dirigentes de partidos “exibiam uma assombrosa falta de entendimento de sua época e do seu lugar”. Para um país que no começo do século teve grandes líderes políticos, como o socialista Jean Jaurès, que tentou evitar a I Guerra Mundial e morreu assassinado num comício pela paz, e George Clemenceau, primeiro-ministro durante a guerra e um dos artífices do Tratado de Versalhes, chama atenção a petrificação das suas instituições políticas no período. Traumatizada pelo sangrento desastre que foi o conflito mundial, a França foi polarizada pela radicalização ideológica que antagonizava comunistas e socialistas, de um lado, liberais e fascistas, de outro, em toda a Europa, e imobilizava o país.

Dividida entre um anseio pela prosperidade, equivocadamente inspirada no passado, e pela estabilidade dos anos anteriores à guerra, de um lado, e as promessas de reforma e renovação a serem pagas com recursos financeiros da punição à Alemanha, de outro, a elite francesa não tinha a menor chance de acertar. Qualquer tentativa de mudança em favor de melhores condições de vida para os franceses era barrada por uma política polarizada entre esquerda e direita, toda reforma institucional ou econômica era tratada como um jogo de soma zero. O desfecho foi a ocupação alemã, período ainda mais traumático, do qual a França foi salva pela vitória dos aliados, sem embargo da heroica resistência dos maquis.

A crítica de Judt é duríssima: “Que a França tenha sido salva de seus líderes políticos, de um modo como não podia ser salvar década antes, se deu graças a grandes mudanças no pós-guerra nas relações internacionais. Membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), beneficiária do Plano Marshall e cada vez mais integrada à nascente comunidade europeia, a França não dependia de seus próprios recursos e decisões para ter segurança e prosperidade, e a incompetência e os erros de seus governantes lhe custaram muito menos do que ocorrera em anos anteriores”.

Um paralelo

A tradução literal de “insoucience” é imprudência. Essa é a palavra-chave do paralelo entre esse período da história francesa e a política brasileira atual. Talvez a maior imprudência visível seja a atual política ambiental, que está fadada ao desastre absoluto, porque assentada em base políticas e ideológicas com 50 anos de atraso, ou seja, que remontam à estratégia de ocupação e exploração econômica da Amazônia do regime militar. Suas consequências de curto prazo — perda de investimentos, dificuldades de comercialização de produtos e isolamento internacional —, apontam para um desastre muito maior, porque o mundo passa por uma mudança de padrão energético que está nos deixando muito para trás, como aconteceu na Segunda Revolução Industrial, à qual só viemos a nos incorporar na década de 1950.

A questão ambiental é apenas a ponta do iceberg: falta-nos um projeto capaz de construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa coesão social, para uma grande reforma democrática do Estado e a redução das desigualdades, no espaço de uma ou duas gerações. Ninguém tem uma fórmula pronta e acabada para isso. A única certeza é que os velhos paradigmas, que alimentam a polarização ideológica atual, não são capazes de dar as respostas adequadas aos problemas brasileiros. O pior é que o velho nacional desenvolvimentismo e os populismos de direita e de esquerda rondam as instituições políticas, sem que nenhuma dessas vertentes tenha a menor capacidade de dar respostas adequadas às contradições atuais.

A Revolução Francesa inspirou nossas instituições políticas, assim como a Revolução Americana, matriz das nossas ideias federativas. Tanto a França como os Estados Unidos, porém, vivem novos dilemas, com a revolução tecnológica e a globalização, em que perdem protagonismo econômico e político, a primeira para Alemanha, os segundos para a China. Esses quatro países protagonizam as linhas de força do desenvolvimento mundial, no qual precisamos nos inserir de maneira mais proativa. Nenhum deles, porém, nos serve de modelo de desenvolvimento.

Os Estados Unidos não nos darão de bandeja um Plano Marshall, o Mercosul está cada vez mais na contramão da União Europeia e não nos interessa a militarização do Atlântico Sul. Precisamos traçar o nosso próprio rumo. Nossos gargalos econômicos e sociais têm raízes ibéricas (patrimonialismo, compadrio, clientelismo) e escravocratas (a exclusão social e o racismo estrutural). O xis da questão é produzir uma nova síntese sobre a realidade brasileira e, politicamente, desatar os nós institucionais que impedem o nosso desenvolvimento sustentável. Nossa elite política não tem se demonstrado capaz de cumprir essa tarefa.

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Luiz Carlos Azedo: Dia das Crianças

Passou da hora de as crianças terem uma vida quase normal, o confinamento doméstico prejudica o desenvolvimento infantil, ainda mais com o liberou geral do celular e eletrônicos

Vivemos tempos sem beijos nem abraços, entre amigos, familiares e até mesmo os amantes. A vida virou uma roleta-russa, todo dia chega uma notícia triste de alguém que morreu e, em maior número, para nossa alegria, das pessoas queridas que sobreviveram à Covid-19. O isolamento social está sendo quebrado à medida em que a taxa de transmissão da doença diminui e as pessoas ficam mais confiantes de que podem desenvolver certas atividades essenciais, com os devidos cuidados. Todos torcem pela vacina eficaz, chinesa, russa, inglesa ou norte-americana, e se arriscam um pouco mais.

Tempos darwinistas sob todos os pontos de vista: sanitário, econômico, social. A sobrevivência humana não está ameaçada, muitos tiram a doença de letra, como se fosse uma “gripezinha”, mas a capacidade de adaptação às contingências do momento é mais importante do que a resistência física de cada um para sobreviver à pandemia. Para isso servem a ciência e a consciência humana. Como diz o ditado, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Depois de tanto tempo, as comorbidades começam a se tornar um problema muito grave, porque as pessoas deixaram de ir ao médico e ao dentista, reduziram as atividades físicas, alimentam-se por ansiedade, adiaram ou interromperam tratamentos, subestimam pequenos sintomas, enfim, não dão importância aos sinais que o corpo nos envia. E têm os nervos à flor da pele, o que agrava conflitos familiares e problemas psicomentais.

Mas, há muita esperança e fé. Amanhã é dia das crianças, os clubes estão abrindo para recebê-las em relativa segurança, apesar da pandemia. Os templos também promovem cultos, recebendo as famílias com maior ou menor distanciamento social, dependendo da fé na ciência de cada padre ou pastor. Criança é sinônimo de futuro. As escolas, porém, estarão fechadas. Desperdiçam a oportunidade de virar o jogo, jogar todos para cima. Por um desses mistérios da criação, desculpem-me o trocadilho, crianças têm menos vulnerabilidade ao coronavírus, quando não têm comorbidades, é claro; porém, podem ser agentes transmissores da doença, porque geralmente são assintomáticas quando contaminadas, dizem os especialistas. Por causa disso, os adultos estão com inconfessável medo das crianças, isso é um problema.

— Azedo, você não vai escrever sobre as crianças?

A pergunta foi feita por um amigo querido, o pediatra carioca Ricardo Chavez, parceiro de muitos blocos e passeatas, preocupado com o fato delas não estarem frequentando a escola. Entre os primeiros a defender o isolamento social, avalia que já passou da hora de as crianças terem uma vida quase normal, o confinamento doméstico prejudica o desenvolvimento infantil, ainda mais com o liberou geral do celular e outros equipamentos eletrônicos. Mandou-me um artigo excelente sobre o tema, da colega Ruth de Aquino, de quem foi um dos interlocutores, que recomendo. Repassei o texto e a pergunta para outro amigo querido, Luciano Rezende, prefeito de Vitória, que conclui o segundo mandato com reconhecido êxito administrativo e zero escândalos em oito anos. Médico também, respondeu-me dizendo a mesma coisa. Seu problema é convencer diretores de escola, professores e pais de alunos, na rede pública.

Pacto perverso
De memória, porque emprestei o livro e não me devolveram ainda, lembro de certa passagem de A quarta revolução (Portfólio/Penguin), de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, sobre a desilusão da sociedade com os governos. O Ocidente está ficando para trás. Não se trata da chamada indústria 4.0, como o título induz, mas da necessidade de uma nova revolução política para reinventar o Estado. Vivemos uma corrida em busca de eficiência e eficácia, não apenas nas inovações tecnológicas. Estão em jogo os valores políticos que triunfarão no século XXI. Vem daí a tensão no mundo entre forças reacionárias e democráticas.

Quando o livro fala dos lobbies corporativos, cita dois exemplos da Califórnia. O dos agentes penitenciários, focado na luta contra a violência e a criminalidade, que conseguiu endurecer a legislação e multiplicar o número de presídios e a população carcerária, sem reduzir a violência, é claro. E o dos professores, que tem muito mais poder de pressão sobre os políticos, porque conseguem mobilizar os pais de alunos. Pesquisando, vi que em abril do ano passado, por exemplo, pais de alunos de São Francisco promoveram uma campanha para arrecadar fundos para uma professora, após descobrirem que ela, além de lutar contra um câncer de mama, pagava seu próprio substituto na escola. O relato do caso no San Francisco Chronicle gerou indignação em escala nacional, chegando ao Senado. Ao jornal The Washington Post, Eric Heins, presidente da Associação dos Professores da Califórnia, denunciou que o sistema de financiamento da educação sobrecarrega os professores e não os poupa, nem mesmo em momentos críticos, como períodos de doença grave.

Desde 1970, na Califórnia, o acordo coletivo dos professores garante 10 dias de folga para tratamento de saúde, que podem ser prorrogados por mais 100 dias, mas são descontadas do salário as despesas com o substituto, entre US$ 174 e US$ 240 a diária. Um educador infantil recebe por mês, em média, US$ 4.931,67; um professor primário, US$ 4.971,67; no ensino médio, US$ 5.138,33. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em relatório de terça-feira passada, no ensino infantil brasileiro os professores receberiam por mês o equivalente a US$ 2.063,75; no primeiro grau do ensino fundamental, US$ 2.083,75; e no segundo, US$ 2.089,33. A alta do dólar, com certeza, distorceu esses números. O piso do Fundeb é de R$ 2.886,24, sendo que apenas 11 estados cumprem essa regra, segundo o Dieese. No câmbio oficial, isso equivale a US$ 521,04. Por isso, desconfio que as nossas escolas públicas já não estão fechadas por causa da pandemia; estão sem aulas por causa dos salários e, em muitos casos, das condições em que se encontram. Quem paga o pato são as crianças.

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‘O Brasil está secando estupidamente’, diz autor brasileiro Sergio Vahia

Em seu único livro, Da Mata Atlântica ao Xingu, ele registra memórias que levantam debate sobre preservação do meio ambiente

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

No momento em que o Brasil registra crescimento de incêndio e desmatamento na Amazônia, no Pantanal e na Mata Atlântica, o único livro de Sergio Bacellar Vahia de Abreu, de 92 anos, mostra a importância de preservação ambiental para o desenvolvimento do país e manutenção da vida. A obra Da Mata Atlântica ao Xingu: um integrante da Marcha para o Oeste (2016, 354 páginas) passou a ser disponibilizada nesta quinta-feira (8) para download gratuito no acervo digital da Biblioteca Salomão Malina, mantida pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília.

Clique aqui e faça o download do livro após digitar o título na barra de pesquisa

O livro contempla uma longa sequência de memórias da vida aventureira do autor, desde meados do século passado, oferecendo aos leitores relato minucioso sobre aventuras em terra, ar e mar, por múltiplas regiões rurais e urbanas brasileiras e no exterior, como Caribe e a Flórida dos Estados Unidos. Organizada com 22 títulos internos, a obra é marcada pela linguagem coloquial, de fácil entendimento do público em geral, convidando cada leitor a mergulhar em cada uma das histórias.

De sua casa no Rio de Janeiro, onde nasceu, Sergio Vahia, como é conhecido, lamenta a destruição do meio ambiente e a inércia das autoridades brasileiras. “Tenho sofrido com essa destruição do meio ambiente”, destacou, em entrevista à reportagem da FAP. Segundo ele, os crimes ambientais persistem por causa da “impunidade”.

O aumento das temperaturas do planeta é outra preocupação do autor. “A chuva é decorrência das florestas. O desmatamento vem se agravando, gradativamente. Ando pelo Brasil Central, desde os meus 16 anos, e estou vendo tudo isso secar. Fazendeiro desmata tudo”, lamenta ele, ressaltando que o assunto do livro é bastante atual. “Não adianta querer superávit, emprego, construção de hidrelétrica, se não chover. O Brasil está secando estupidamente”. Alerta.

Sérgio Vahia na época da Marcha para o Oeste. Foto: Reprodução

Marcha para o Oeste
No livro, Sergio Vahia lança luz sobre a importante Marcha para o Oeste, ocorrida nas décadas de 1940 a 1970, especificamente no Brasil Central. Ele conta que a FBC (Fundação Brasil Central), inicialmente “Expedição Roncador-Xingu”, de 1943, saindo de Aragarças (GO), chegou ao Rio das Mortes no fim daquele ano, na região em que hoje fica a cidade de Nova Xavantina (MT). “Terminou aí a penetração, função principal daquele órgão Federal. Foram só 150 km. Dali até Manaus, não existia nada. Um oco bem vazio”, relata.

Só em 1965, de acordo com o autor, com o advento da expedição Xavantina-Cachimbo (1965-1966), a penetração voltou a ocorrer rumo ao Norte, acrescentando cerca de 500 km de estrada de chão, hoje rodovia federal asfaltada. Sem dúvida, uma boa parte da Marcha para o Oeste. Depois, em meados da década de 1970, com a Sudeco (Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste), voltou-se a progredir com mais estradas continuando rumo ao Noroeste.

O livro também conta detalhes de expedições de Sergio Vahia na região do Rio Xingu. “Levamos 16 dias para fazer 125 km, do porto dos trumais até a foz com o Xingu, pouco acima da famosa cachoeira Von Martius, cujo ronco a gente já vinha escutando nos dois últimos dias. Ficava quase na divisa dos estados de Mato Grosso e Pará”, relata, em um trecho.

Em seguida, ele detalha a experiência de desbravar o Xingu rio acima. “Ligamos o motor e passamos a subir o Xinguzão”, afirma, para continuar: “Presumo que por ali tenha em média quase mil metros de largura em intrincado leito repleto de pequenas ilhas baixas e canais difíceis de se localizar para contorná-las e achar o leito, por onde tem que se passar. Com as águas bem baixas, são criadas extensas áreas rasas não navegáveis. Quem nos salvou foi o Tarepá, filho, neto e bisneto, da região”.

Sérgio Vahia retornou à região em uma nova expedição, em 2008. Foto: Roberto Percinoto

‘Dever social’
Um dos pioneiros da geografia brasileira, Pedro Geiger destacou a importância da obra de Sergio Vahia. “O autor entende o dever social de ligar a sua existência singular ao movimento geral de modo a fazer aparecer o conceito de ‘meio’ de forma implícita na sua narrativa. Ele entremeia a estória [sic] dos momentos vividos em real com informações sobre os ambientes históricos e geográficos de múltiplas regiões do imenso território brasileiro e do exterior, selvagens, rurais e urbanas”, disse Geiger, na apresentação do livro.

 Geiger, que também é um dos autores do livro Jalapão: Ontem e hoje, lançado pela FAP em novembro de 2019, ressaltou a proposta do autor de o livro não ter caráter científico. “Sem maiores pretensões de uma contribuição científica, o leitor se depara com uma espécie de sobrevivente, contando as suas aventuras, desde um longínquo passado, com descrições e imagens de heróis do passado, de uma época anterior ao atual populismo, até o presente”, diz o geógrafo.

O destaque é a prática de ajuste do homem comum aos ambientes e populações que ele encontra, segundo Geiger, que ingressou no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 1942, fez curso de especialização na França e foi professor visitante da Universidade do Texas, nos Estados Unidos.

Sem perder o bom humor e o gosto pela vida, Sergio Vahia diz não se arrepender de qualquer palavra que tenha usado no livro, que, segundo ele, retrata a sua própria essência. “Fui colocando só aquilo que me moldou. Não tiro uma vírgula de onde coloquei. É tudo sem maquiagem”, afirma.

Confira aqui mais histórias sobre Sérgio Vahia.

Para acessar o livro Da Mata Atlântica ao Xingu, basta seguir os seguintes passos:

1 – Acesse o Terminal – Shophia Bliblioteca Web por meio do link https://biblioteca.sophia.com.br/terminal/7828

2 – Na caixa de pesquisa, digite Da Mata Atlântica ao Xingu. Clique em pesquisar. Em seguida, você visualizará a imagem da edição disponível.

3 – Após clicar na imagem, você acessará a página da publicação, contendo as informações sobre ela e o link disponível para download do arquivo no formato .PDF. Para acessar o conteúdo, clique no link disponível.

4 – Após o download do arquivo no formato .PDF, basta clicar no mesmo, na barra inferior do seu navegador, para que o mesmo seja visualizado.


Luiz Carlos Azedo: De bem com o teto

Parece incrível, a velha política de conciliação começa a dar o ar de sua graça novamente, nas articulações de bastidor, envolvendo o governo Bolsonaro, o Congresso e o Supremo

Um dos períodos mais turbulentos da História do Brasil foi o regencial, entre a abdicação de D. Pedro I, em 1831, e o Golpe da Maioridade de D. Pedro II, então com 15 anos, em 1840. Os liberais reivindicavam a ampliação da autonomia dos governos provinciais e a reforma de alguns aspectos contidos na Constituição de 1824; os conservadores eram favoráveis à manutenção da estrutura política centralizada e à preservação dos poderes reservados ao imperador. Foi um período em que a integridade territorial do Brasil e a monarquia andaram ameaçadas por rebeliões sangrentas: Cabanada (1832-1835), em Pernambuco; Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul (República Rio-grandense) e em Santa Catarina (República Juliana); Cabanagem (1835-1840), no Pará; Revolta dos Malês (1835); Sabinada (1837-1838), na Bahia; Balaiada (1838-1841), no Maranhão.

Nesse ambiente, ao assumir o governo, o jovem imperador D. Pedro II foi apoiado e prestigiou a presença de liberais no ministério, mas os escândalos de violência e corrupção nas eleições provocaram a dissolução do gabinete liberal e convocação dos conservadores de volta ao poder. Como as disputas entre ambos continuaram, a alternativa foi D. Pedro II buscar uma posição de equidistância e formar um gabinete com figuras ilustres das duas correntes políticas. Foi assim que nasceu o Ministério da Conciliação, em 1853, encabeçado pelo mineiro Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês de Paraná. Apesar de ter-se extinguido formalmente em 1858, esse sistema de alianças se manteve até a década de 1870, marcando o apogeu do período imperial, financiado pelos recursos advindos da exportação do café. As pressões decorrentes da Guerra do Paraguai (1864-1870) e o crescimento das lutas pela abolição da escravidão levariam à ruptura da conciliação, resultando na criação do Partido Republicano por setores liberais mais radicais, em 1870.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, artífice de uma aliança improvável entre o PSDB e o antigo PFL nas eleições de 1994, juntamente com o falecido deputado federal Luiz Eduardo Magalhães (PFL-BA), recomendava a seus ministros e aliados a leitura de Um Estadista no Império, de Joaquim Nabuco, que exalta a política de conciliação como uma estratégia fundamental para consolidação do Brasil como nação e sua governabilidade. Era uma resposta às críticas que sofria por parte de lideranças de seu próprio partido e da esquerda de modo geral, por causa das alianças que fez com os setores conservadores, principalmente os políticos que representavam as oligarquias do Norte e do Nordeste.

Pacto fiscal

Desde o Império, não foram poucos os momentos em que a política de conciliação renasceu das cinzas. A eleição de Prudente de Moraes, por exemplo, na sucessão de Floriano Peixoto, em 1894, foi um deles, pois conseguiu pacificar o Rio Grande do Sul, negociando o fim da Revolução Federalista (1893-1895). Outro momento importante foi o governo de Juscelino Kubistchek, eleito com base numa aliança de pessedistas, trabalhistas e comunistas. No governo Jango, o regime parlamentarista foi uma tentativa de conciliação, encabeçada por Tancredo Neves e San Tiago Dantas, que acabou frustrada pela volta do presidencialismo, em 1962, aprovado em plebiscito, e o radicalismo da esquerda, que não queria a volta de Juscelino, nas eleições previstas para 1965, em razão de sua política de “conciliação com o imperialismo”.

Por mais incrível que possa parecer, a velha política de conciliação começa a dar o ar de sua graça novamente, nas articulações de bastidor, envolvendo o governo Bolsonaro, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). É um pacto conservador, que está sendo urdido a churrascos, pedaços de pizza, uísque, café e tubaína, mas ninguém pode negar que o primado da política está se restabelecendo. Se a oposição está perplexa e imobilizada com o que está acontecendo, a extrema-direita bolsonarista, mais ideológica, está esperneando e se sentindo traída. Os fatos estão mostrando uma mudança de estratégia do Palácio do Planalto, além de um reposicionamento de outros atores políticos, que sempre foram influentes no Congresso.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro da Economia, Paulo Guedes, por exemplo, que andavam se digladiando em público, selaram um pacto em defesa do teto de gastos, em nome da responsabilidade fiscal. O grande padrinho do encontro foi o senador Renan Calheiros (MDB-AL), por intermédio do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas e do seu atual presidente, José Múcio Monteiro, uma velha raposa política pernambucana, que patrocinaram um jantar entre ambos, que teve como madrinha a senadora Kátia Abreu (MDB-TO). Isso quer dizer que tudo está pacificado? Longe disso. O senador Márcio Bittar (MDB-AC) ainda não conseguiu arrancar da equipe econômica de Guedes uma fonte de pagamento para o Renda Cidadã, cujo relatório ficou para a próxima semana. Enquanto isso, o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e o líder do Centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), disputam o controle da Comissão de Orçamento da União.

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Luiz Carlos Azedo: Quem é o líder da economia?

Guedes perde a liderança da economia para os políticos do Nordeste, que prometem votos em troca de R$ 300, porque não oferece empregos nem segurança aos investidores

O presidente Jair Bolsonaro provavelmente não leu Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, nos tempos de academia militar, por causa da campanha de Canudos, o maior vexame do Exército brasileiro. Mas isso em nada o impede de ter capturado boa parcela do eleitorado do Nordeste, onde obtém crescente apoio popular. Esse parece ser o terreno eleitoral no qual sua reeleição pode ser decidida. Com competência, Bolsonaro está abduzindo o eleitorado nordestino do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Casa Grande & Senzala foi publicado no Rio de Janeiro, em 1933. História, sociologia, antropologia cultural, gastronomia, direito, sociolinguística, curiosidades, medicina e uma boa dose de intimidades da vida privada colonial, inclusive sexual, fazem da obra um clássico da chamada literatura brasiliana. Freyre, um aristocrata pernambucano, ainda provoca muitas polêmicas. A principal é o tratamento dado ao português colonizador e à escravidão. Para uns, mascarou o racismo; para outros, resgatou a autoestima do brasileiro.

Freyre compreendeu a miscigenação como um dos elementos de construção da identidade nacional. É muito criticado por isso. Sérgio Buarque de Holanda (o homem cordial), Raymundo Faoro (patrimonialismo) e Roberto DaMatta (o jeitinho brasileiro) também são acusados de generalizações exageradas e da absolutização de seus conceitos. Todos construíram um “tipo ideal”, uma abordagem de viés weberiano que os autores marxistas geralmente condenam. Entretanto, seria impossível compreender o Brasil contemporâneo sem a ajuda desses autores, até porque a crítica a eles veio muito depois, com a maioridade acadêmica das universidades brasileiras.

Freyre fala dos índios, dos portugueses e dos escravos africanos, com considerações que alguns consideram até pornográficas. Ao descrever hábitos sexuais, faz comentários machistas e até homofóbicos. Ao analisar a formação do patriarcado brasileiro, no período colonial, opõe católicos e hereges, jesuítas e fazendeiros, bandeirantes e senhores de engenho, paulistas e emboabas, pernambucanos e mascates, bacharéis e analfabetos, senhores e escravos. Mostra que a escravidão e o latifúndio fortaleceram a sociedade patriarcal onde o homem branco – o dono da Casa-Grande – era o proprietário de terras, escravos, até mesmo de seus parentes, no sentido que ele governava gado e gente. Desta maneira, criou-se uma sociedade sempre dependente de um senhor poderoso e incapaz de governar a si mesma.

Travessias

Chegamos ao xis da questão. A política no Nordeste não é pior nem melhor do que a de outras regiões do país em matéria de clientelismo, fisiologismo e patrimonialismo (o Rio de Janeiro, de cuja elite parte o maior preconceito, que o diga), mas tem a forte característica de ser dominada por um patriarcado que manteve costumes culturais e políticos tecidos no Brasil colonial. Os seis mandatos de deputado federal e suas relações com políticos do baixo clero, a partir do momento em que se aliou ao Centrão, possibilitaram a Bolsonaro a realização de alianças estratégicas no Nordeste, no leito das conexões históricas entre o poder centralizado da União e as oligarquias regionais que historicamente lhe deram sustentação, a essência da velha “política de conciliação” que herdamos do Império.

Vem daí a força que políticos nordestinos do Centrão, como o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o deputado Arthur Lira (PP-AL) demonstram na queda de braços com o ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre o financiamento do programa social Renda Cidadã. E a facilidade com que Bolsonaro construiu as pontes para se conectar com o eleitorado nordestino, que o derrotara na eleição de 2018, alicerçadas no auxílio emergencial aprovado pelo Congresso durante a pandemia e cimentadas por sua narrativa de cunho religioso, que agora incorporou a exaltação à figura do Padre Cícero, símbolo do messianismo católico brasileiro, que sempre foi um instrumento de construção da hegemonia conservadora no Nordeste.

“Viver é muito perigoso, seu moço”, ainda mais em tempos de pandemia. Não sei se Guedes leu Casa Grande & Senzala, o que o ajudaria entender um pouco mais os seus desafetos políticos da Praça dos Três Poderes. Mas, como mineiro ilustrado, deve ter lido Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Desculpem-me a comparação, para sobreviver no cargo, Guedes precisa puxar a faca e se impor como líder da política econômica do governo, como faria o jagunço Riobaldo. O universo do sertão é um espaço ambíguo, de limites indefiníveis, desafiador e de difícil travessia. Cruzar o deserto do Sussuarão é como desafiar a caatinga. O espaço empírico se relaciona com a subjetividade humana. Riobaldo explica: “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo”. Como o jagunço nas Veredas-Mortas, Guedes está num espaço de estranhamento, a Esplanada dos Ministérios, simbolicamente, entre a ordem e a desordem, a precisão e a imprecisão, o Bem e o Mal. Está perdendo a liderança do bando, isto é, da política econômica, para os políticos do Nordeste, que prometem votos a Bolsonaro em troca de R$ 300, porque não consegue oferecer trabalho aos desempregados nem segurança aos investidores. Simples assim.

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Vladimir Carvalho: O Sedutor do Sertão

Surpreende-nos, mais uma vez, Ariano Suassuna, depois do interregno que foi a sua exitosa e longa cruzada com as aulas-espetáculo, que divertiu e mobilizou o país de norte a sul – e da publicação póstuma do prometido Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores (2017) – com a descoberta recente deste “novo” rebento de sua lavra, O Sedutor do Sertão, que só recentemente veio a lume, em requintada brochura também da Editora Nova Fronteira. É o resultado de providencial descida aos baús do grande criador, realizada com o aval do condomínio de herdeiros de Ariano pelo crítico e professor Carlos Newton Júnior, que também é o autor de judiciosa e brilhante apresentação do volume.

A obra faz jus, como era de se esperar, à descomunal imaginação criadora do autor de A Compadecida, de uma infinita capacidade de absorver o espírito das fábulas do romanceiro popular nordestino de onde saltam, luminosas, a astúcia e a graça do sertanejo na sua luta tenaz para sobreviver. Mas de uma forma tão candente que a transposição eleva e sublima a ação de seus personagens, tal como vemos em seu teatro e também em seus romances encabeçados, sobretudo, por A Pedra do Reino, que já nasceu clássico como sabemos. O que nos faz rir e pensar simultaneamente.

Quem se divertiu com as proezas de João Grilo e Chicó naquela peça, inclusive na sua versão para o cinema, vai se fartar de rir com as rocambolescas aventuras pícaras desse impagável Malaquias Pavão, o tal sedutor, “aguardenteiro, conquistador, folheteiro e cambiteiro”, imbatível rei da simpatia nas relações com outros homens ou com o mulherio de maneira geral. Aliás, o livro pode ser, por seu humor contagiante, um bálsamo que nos vem socorrer bem a propósito, nessa quadra de tão penosa travessia em vista do coronavirus.

A prosopopeia desse sujeito estradeiro, capaz de enganar até o diabo, se passa nas terras que vão do sertão ao brejo, na Paraíba, típicas paisagens do Nordeste, lembrando, em muito, e guardadas as proporções, os lances da cavalaria decadente do Dom Quixote de Cervantes, uma das inegáveis influências de Suassuna. Não à toa, Pavão se faz acompanhar de seu fiel estribeiro, Miguel Biôco, “baixo, careca, meio estrábico”, para cuidar de seu cavalo Rei de Ouro. Isso tudo em pleno cenário e no desenrolar da Revolta de Princesa, uma briga entre o coronel Zé Pereira e o presidente (como eram chamados à época os governadores) João Pessoa, que se antecipou à Revolução de 30, deflagrada a partir da morte deste último, como é sabido.

É esta peça rara que tenho sob meus olhos, porém em sua forma original, um manuscrito datilografado em tipos hoje borrados, sob o amarelo que a passagem do tempo marcou. Guardo-o como preciosa relíquia em meus arquivos, porque me foi passado, em 1969, por Marcus Odilon Ribeiro, dublê de escritor e usineiro, amigo dileto, que pretendia transformá-lo num roteiro cinematográfico e produzir o filme dele resultante. Com o passar do tempo, o projeto foi sendo adiado e terminou por ser esquecido no longo período de vacas magras para o cinema brasileiro.

Não obstante, A Compadecida, a obra maior de Suassuna no teatro ter sido adaptada para o cinema pelo húngaro Georges Jonas (1969), que fez fortuna como publicitário em São Paulo, não obteve o êxito esperado. O gringo era incapaz de perceber o mínimo que fosse da cultura brasileira em geral, quanto mais da cultura nordestina. Mais fácil seria o mar secar ou uma baleia emergir das parcas águas de um açude no sertão.

Uma outra versão, muito melhor resolvida, foi a de Roberto Faria (1987), talvez o maior diretor-artesão do nosso cinema, no que pese o caráter estritamente circense que emprestou à sua realização, protagonizada pelos Trapalhões e conquistando grande parte do público. Entretanto, o sucesso mais retumbante viria pelas mãos de Guel Arrais (2000), tanto no cinema como na televisão. Senhor absoluto do tema, o pernambucano soube captar a essência dramatúrgica, o humor e o espírito universal do texto.

Afinal o nosso Ariano foi mestre dos mestres no seu ofício, como prova a genialidade deste O Sedutor do Sertão agora disponível. Não existe em nossa cultura dois Ariano Suassuna. Quem inventou o primeiro perdeu ou esqueceu a fórmula mágica.

*Vladimir Carvalho, Professor Emérito da Universidade de Brasília, jornalista e cineasta