Literatura

Luiz Carlos Azedo: A nova secessão americana

Trump obteve 74 milhões de votos, dos quais 86% supostamente seriam de eleitores que não acreditam na vitória de Joe Biden, que foi eleito por 81,3 milhões de norte-americanos

Exibidas em tempo real pelas redes de tevê, as cenas da invasão do Capitólio por partidários do presidente Donald Trump, que os incitou, ao alegar fraude nas eleições presidenciais e contestar a vitória do democrata Joe Biden — que seria confirmado na sessão do Congresso —, somente ainda não superaram a deterioração da política norte-americana nos anos 1960 e 1970 porque o presidente eleito continua vivo. Entretanto, ninguém pode descartar a possibilidade de Trump ter tramado um golpe de Estado, por mais inverossímil que isso possa parecer.

Na política norte-americana, é sinuosa a linha divisória entre ficção e realidade. Na trilogia Underwold USA (Submundo USA), o escritor noir James Elrroy, formada pelos romances Tabloide americano (1995), 6 mil em espécie (2001) e Sangue Errante (2011), todos publicados no Brasil pela Record, desnuda os bastidores da política da época. Um time de canalhas conta a história norte-americana, num épico com sinal trocado, em meio aos assassinatos de John Fitzgerald Kennedy, Robert Kennedy e Martin Luther King e o suspeito suicídio de Marilyn Monroe. O sonho americano é visto sob a mira de fuzis e pistolas de ex-policiais convertidos ao crime, membros da Ku Klux Klan, mafiosos e políticos corruptos. A trama se passa no período de crescente envolvimento na Guerra do Vietnã e maior turbulência dos movimentos da esquerda norte-americana, culminando com o impeachment de Richard Nixon.

Os heróis da trilogia são racistas e reacionários, todos brancos: o mafioso Wayne Tedrow Jr., capanga do empresário Howard Hughes; Dwight Holly, agente secreto da confiança de John Edgar Hoover, chefe do FBI; e o ex-policial Don Crutchfield, que presta serviços de detetive a qualquer causa desonrosa. Elrroy não separa ficção de realidade, porém, sua versão para a morte de Kennedy é bem melhor do que a de Oliver Stone, em seu filme JFK. Quem matou Kennedy? Para Ellroy, há um submundo povoado por mafiosos, agentes do FBI, dançarinas de strip-tease, fanáticos religiosos, direitistas raivosos e vigaristas que tramou o crime.

Em entrevista ao Los Angeles Times, disse: “A conspiração não é o coração do meu romance; o centro da história é uma espécie de infraestrutura humana dos grandes eventos públicos, especialmente nesses anos tumultuados da história norte-americana”. Sua trilogia é o fio da meada para entender de onde surgiu uma figura tão abjeta como a de Donald Trump e essa militância armada, truculenta e fanatizada, que, ontem, invadiu o Congresso norte-americano para impedir a confirmação de Joe Biden como legítimo presidente dos Estados Unidos. Foi tudo orquestrado e organizado pelas redes sociais, deixando perplexos não somente os democratas, mas, até mesmo, os parlamentares republicanos.

Maioria democrata
Mesmo depois de instado a se posicionar e pedir a saída dos seus militantes do Capitólio, pelo presidente Joe Biden, em pronunciamento, Trump manteve a narrativa de que ganhara a eleição e que seu adversário seria um presidente ilegítimo, porque as eleições foram fraudadas. Biden venceu no colégio eleitoral por ampla margem — 306 votos a 232 —, mas esse resultado precisa ser chancelado pelo Congresso. Republicanos aliados de Trump promoviam uma espécie de chicana na sessão, questionando o resultado das urnas, quando houve a invasão. O fato de ter questionado a postura legalista de seu vice, Mike Pence, que presidia a sessão, sinaliza que Trump teria a intenção de promover um golpe de estado.

Ontem, acompanhando os acontecimentos, o analista político Creomar de Souza, especialista em política norte-americana, destacou que não existe uma palavra em inglês para golpe de Estado, expressão cuja origem é francesa: coup d’état. Talvez porque não exista esse precedente na democracia norte-americana. Mas existe a palavra secession, que sintetiza a Guerra Civil Americana (1861-1865), na qual os estados sulistas se confederaram contra o presidente eleito Abraham Lincoln, liderados pela Carolina do Sul, antes mesmo que ele tomasse posse. A secessão da Carolina do Sul, em 1860, foi acompanhada pela adesão, entre janeiro e junho de 1861, de outros estados sulistas: Alabama, Flórida, Mississipi, Geórgia, Texas, Luisiana, Virgínia, Arkansas, Carolina do Norte e Tennesse.

Trump obteve 74 milhões de votos, dos quais 86% supostamente seriam de eleitores que não acreditam na vitória de Joe Biden, que foi eleito por 81,3 milhões de norte-americanos. É uma divisão muito profunda, da qual o republicano procura se aproveitar. O que não estava nas suas previsões, porém, é o inédito resultado das eleições para o Senado na Geórgia, que garantiu duas cadeiras para o Partido Democrata, uma delas ocupada por um reverendo negro; com isso, garantiu-se a maioria para Biden nas duas casas legislativas, uma vez que os democratas já controlavam a Câmara. Esse resultado inviabilizou qualquer possibilidade de Trump bloquear a confirmação de Biden no Senado e provocar uma crise institucional mais grave.

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Luiz Carlos Azedo: O ano que não começou

No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó

2021 é uma espécie de ano que ainda não começou, perdoem-me o trocadilho com o título do livro de Zuenir Ventura, 1968: o ano que não terminou. Talvez, o sinal mais emblemático de que ainda estamos vivendo no ano passado sejam os passeios do presidente Jair Bolsonaro em Guarujá (SP), nos quais voltou a provocar aglomerações e circular sem máscaras com assessores e seguranças da Presidência. Mais déjà-vu, impossível. 2020 foi um ano perdido, com 196 mil mortos pela covid-19, e parece que não quer acabar.

Para a maioria da população, o ano somente vai começar quando a vacina chegar. O negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e suas declarações sobre a real necessidade de as pessoas se vacinarem são uma cortina de fumaça para a incompetência do seu governo no enfrentamento da crise sanitária. O aumento exponencial do número de casos no mês de dezembro é um recado claro de que é impossível restabelecer plenamente as atividades econômicas sem a imunização em massa da população. A chegada do vírus mutante da Inglaterra é uma preocupação a mais, pela velocidade de sua propagação.

O tempo, porém, não corre igual para todo mundo. Por exemplo, para alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) — Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello —, que resolveram voltar a trabalhar em janeiro, em pleno recesso, o ano começou mais cedo. No Congresso, o ano só começará com a eleição das Mesas da Câmara e do Senado.

Pega fogo a disputa entre o líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo presidente Bolsonaro, e Baleia Rossi (MDB-SP), o candidato de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à sua sucessão no comando da Câmara, que, ontem, recebeu o apoio formal da maioria da bancada do PT. Lira ainda é o favorito, mas ninguém ganha eleição de véspera. No Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) tenta emplacar o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) na Presidência, mas esbarra nas candidaturas do MDB, que tem quatro postulantes cabalando votos: Simone Tebet (MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ); Eduardo Braga (AM), líder da bancada; Fernando Bezerra (PE), líder do governo no Senado; e Eduardo Gomes (TO), líder do governo no Congresso. Quem conseguir mais apoio será o candidato de toda a bancada da legenda, pactuaram.

Entregas

No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó. Além da vacina, não entregou a reforma tributária, as privatizações, a reforma administrativa, a retomada do crescimento etc. Manteve sua popularidade em plena pandemia muito mais em razão do auxílio emergencial do que das suas realizações, à custa da expansão exponencial do deficit fiscal. Como tem a pretensão de se reeleger, agora começará uma corrida contra o relógio, porque o tempo que lhe resta de mandato cada vez será o recurso mais escasso no governo.

No calendário das entregas, a vacina é a principal demanda da população. Seu ano de entregas somente vai começar quando as pessoas forem imunizadas. Mesmo assim, uma parcela enorme da população continuará desempregada, porque a economia somente deve entrar em recuperação no segundo semestre. Sem auxílio emergencial, a vida não será fácil para quase 68 milhões de brasileiros que receberam o benefício no ano passado. Muitos terão que se reinventar, porque as atividades econômicas estão passando por muitas transformações.

Com a pandemia, o trabalho remoto e a concentração de capital avançaram bastante. A maioria das empresas que sobreviveram mudou suas operações, em maior ou menor grau, impactando outras atividades. Por exemplo, o mercado imobiliário e as companhias de aviação sofreram impactos irreversíveis a curto prazo. A concentração de capital também é visível a olho nu, basta entrar num shopping center e ver as lojas que fecharam e as que estão sendo abertas. As empresas de logística também se beneficiaram tremendamente do comércio eletrônico.

Como em todo ano-novo, porém, somos passageiros da esperança. Toda crise é sinônimo de oportunidades. Elas aparecem e é preciso agarrá-las com as duas mãos. Ciência e tecnologia, ao longo da história, sempre abriram novos horizontes para a humanidade. Não será diferente agora. Que 2021 venha logo para todos.

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Henrique Brandão homenageia memória de Nelson Rodrigues, morto há 40 anos

Artigo da revista da FAP de dezembro lembra características do dramaturgo e jornalista

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Há quarenta anos, em dezembro de 1980, morria Nelson Rodrigues. “Além de dramaturgo, jornalista, contista, romancista e cronista, era um frasista de mão cheia. Talvez o maior da língua portuguesa. Suas tiradas caíram no gosto do povo. Continuam atualíssimas, sínteses do que há de melhor e pior na alma humana”, afirma o jornalista Henrique Brandão, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Para Brandão, as peças de Nelson Rodrigues são um primor de denúncia da hipocrisia reinante.  “Imoral, sem vergonha, tarado, lascivo, pornográfico, são epítetos com os quais, a cada estreia de uma peça, foi brindado pelos setores defensores da ‘moral e dos bons costumes’ da sociedade carioca –provavelmente proferidos por uma ‘grã-fina de narinas de cadáver’, uma das criações geniais do cronista implacável”, escreve, no artigo.

O artigo na revista Política Democrática Online deste mês conta que Nelson Rodrigues atuou em várias frentes. “Sua obra teatral é monumental: deixou 17 peças, algumas delas marco do teatro brasileiro, como Vestido de Noiva, de 1943. É considerado por muitos críticos o maior dramaturgo brasileiro do século XX”, diz Brandão, no texto.

Em outro trecho, ele ressalta que até quem não gosta de futebol se delicia com as crônicas esportivas de Nelson Rodrigues. “Antológicas, não perderam a atualidade. E por que não, passado tanto tempo? Porque não se referia a minúcias dos jogos. Ele captava a essência da partida em momentos mágicos, o embate futebolístico como espetáculo único, com seus personagens próprios”, assevera.

Antes do golpe de 1964, escreve Brandão, Nelson não metia a colher na política. “A partir de 1968, contudo, começou a implicar com quem fazia oposição aos militares. Revelou-se anticomunista ferrenho, apesar de ter convivido com jornalistas de credo diferente, como Antônio Callado, a quem chamava de ‘doce radical’, conta o autor do artigo.

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Evandro Milet: Livros, uma vacina contra a ignorância

Steve Jobs vivia e respirava música. Era um fã incondicional de Bob Dylan e dos Beatles e já tinha namorado Joan Baez, cantora famosa na época. Seu interesse pessoal guiou as estratégias da Apple em música, basta lembrar do iPod e iTunes. O interesse pessoal de Jeff Bezos também teve forte influência na Amazon. Bezos não apenas amava livros; ele mergulhava neles, processando cada detalhe metodicamente.

No apêndice do livro A loja de tudo”, que conta a história da Amazon, há a lista de leitura de Jeff incluindo, entre outros, “O dilema da inovação” de Clayton Christensen, “A lógica do cisne negro” de Nassim Taleb, “Empresas feitas para vencer” e “Empresas feitas para durar”, ambos de Jim Collins, que se tornou grande consultor da empresa. Aliás também consultor fundamental da equipe de Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles em seus sonhos grandes na Ambev.

Bill Gates, criador da Microsoft, é outro leitor compulsivo. A imprensa costuma publicar sua lista de recomendação de livros, mais ampla inclusive que apenas obras de gestão e tecnologia.

O livro de Daniel Bergamasco “Da ideia ao bilhão”, conta a história dos unicórnios(startups que atingem valor de mercado de um bilhão de dólares) brasileiros. Em duas das histórias os livros também desempenham papel fundamental nos processos de gestão, incentivados pelos fundadores. Na fintech Stone a seleção de empregos é feita com uma lista de livros com sete títulos à escolha dos candidatos. Em um dos processos constavam o já citado “Feitas para vencer” e “Por que fazemos o que fazemos” de Mário Sérgio Cortella. Até alguns anos atrás só havia uma obra, “Paixão por vencer” , do icônico Jack Welch, ex-CEO da GE.

O objetivo é ler, entender, interpretar e estabelecer conexões entre os conceitos apresentados e as próprias crenças. “Estudar é uma forma de esticar as pessoas” dizem na Stone. Num livro os autores reúnem o aprendizado de uma vida em algumas páginas, diz André Street, fundador da Stone, que até hoje separa duas horas diárias para estudar. Como ele diz, começou lá pelos 12 anos de idade a encarar livros de auto-ajuda, como “Mais esperto que o diabo” de Napoleon Hill e “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, de Dale Carnegie.

Na unicórnio Arco Educação, o CEO Oto de Sá Cavalcante, um devorador de livros de diferentes estilos, premia as melhores resenhas sobre títulos indicados a cada ano, que vão de “Foco” de Daniel Goleman, a “O Príncipe” de Maquiavel. Os cinco melhores textos recebem cada um mil dólares. "Líderes também precisam ler”, dizia um folheto que anunciava o livro de 2020: “A marca da vitória”, autobiografia de Phil Knight, criador da Nike.
Além disso, as equipes da Arco participam semanalmente do “método da cumbuca”, disseminado por Vicente Falconi.

Um livro é proposto a um grupo de 4 a 6 pessoas. e a cada semana eles se encontram para falar sobre um capítulo que todos devem ter lido. Os nomes vão para a cumbuca e a pessoa sorteada deve resumir o capítulo. Se ele não tiver lido a reunião é cancelada, para constrangimento do sorteado. Aliás, a inspiração para o nome da empresa veio de uma passagem de um clássico: “As cidades invisíveis'', de Ítalo Calvino.

Atualmente há uma proliferação de clubes de leitura para empresários, como o que é organizado pela empresa de consultoria KPMG, por onde passaram o sempre presente “A lógica do cisne negro” e mais “Miopia Corporativa” de Richard S. Tedlow e “A Regra é Não ter Regras”, de Reed Hastings e Erin Meyer, com o modelo de gestão da Netflix.

Aqui também em Vitória, as organizações de jovens empreendedores Líderes do Amanhã e Ibef Academy usam a ideia de discutir livros entre os associados como forma de aprendizado em empreendedorismo, economia e gestão.

Que 2021 seja um ano sem pandemia, com muitos livros, ficção e não-ficção, clássicos ou atuais, best sellers ou não, técnicos e não-técnicos(menos o do torturador). As experiências mostram que os livros são importantes para o empreendedorismo, mas também representam o tratamento precoce amplo contra obscurantismos ou uma vacina contra a ignorância.


Diplomata, Jorio Dauster é dedicado à literatura desde a década de 1960

Em artigo publicado na revista da FAP de dezembro, autor relata um pouco de sua vida em primeira pessoa

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Mais reconhecido por seu trabalho empresarial e diplomático, Jorio Dauster se dedica à literatura desde a década de 1960, traduzindo grandes autores, como Salinger e Nabokov. Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de dezembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), ele conta uma pouco de sua jornada no mundo das palavras.

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A seguir, confira trechos do artigo de Dauster:

Já lá vão mais de seis décadas, quando eu passava uns tempos em Washington na casa de minha irmã, recebi das mãos do cunhado um pocket book fininho, com umas duzentas páginas, que já era culto nos Estados Unidos. Comecei a ler naquela noite mesmo e não sei a que horas fui dormir, fascinado com a história do rapaz de dezessete anos que, expulso da escola, vaga por três dias em Nova York tentando evitar o confronto com os pais. Eu próprio, como algumas dezenas de milhões de adolescentes em todo o planeta, reconheci no angustiado protagonista todas aquelas dúvidas e aflições que o mundo adulto nos impõe em termos de acomodação a uma realidade muitas vezes envolta em hipocrisia e falsidade. 

Estou falando, obviamente, de Holden Caufield, a figura icônica que J.D. Salinger eternizou em sua obra-prima The Catcher in the Rye, lançada em 1951. Terminada a leitura, senti uma vontade irreprimível de traduzir o livro, provocado até mesmo pelas três últimas frases: “É engraçado. A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.” 

Já no Brasil, preparando-me para o exame do Instituto Rio Branco, reencontro um velho colega, Álvaro Alencar. Conversa vai, conversa vem, descubro que ele também quer ser diplomata e deseja traduzir o Catcher. Coincidência dupla, planos de trabalho conjunto que renderam muitas rodadas de chope e nem uma página de texto. Fast forward na fita da memória e, passados mais alguns anos, já ambos no Itamaraty, resolvemos pôr mãos à obra quando nos dizem que um colega mais antigo, Antônio Rocha, também está vertendo o livro. Fomos procurá-lo para anunciar a “competição”, e o tranquilo Rocha, ele próprio escritor, nos deseja boa sorte, pois apenas fazia aquilo por amar o texto e como grande exercício literário. Obviamente, foi recrutado ali mesmo para a rara e curiosa tarefa de uma tradução a seis mãos! 

Por conta de nossas tarefas profissionais, não sei quanto tempo levou para que cada qual apresentasse o terço do texto que lhe coube por sorteio. O fato é que, por ser considerado à época subversivo, depois do golpe de 31 de março, eu fui chamado de Genebra, onde participava da I Conferência de Comércio e Desenvolvimento, e posto em casa durante seis meses enquanto ocorriam inquéritos e coisas do gênero no Itamaraty.

Como meus dois companheiros de tradução já haviam sido removidos para o exterior, dediquei incontáveis horas daquele recesso forçado a repassar a versão brasileira frase por frase, tratando de homogeneizar a linguagem dos três num livro que é intrinsecamente coloquial, pois representa de fato o depoimento gravado do Holden na clínica de repouso em que foi internado para se recuperar de seu evidente nervous breakdown.

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‘Liderar as Forças Armadas é imperativo para o país’, diz Raul Jungmann

‘Projeto da frente democrática deve ser mantido’, diz José Álvaro Moisés

Como o Brasil pode ter inserção positiva na economia mundial? Bazileu Margarido explica

‘Despreparado para o exercício do governo’, diz Alberto Aggio sobre Bolsonaro

Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


RPD || Henrique Brandão: Nelson Rodrigues - O mundo pelo buraco da fechadura

Jornalista, contista, romancista e considerado por muitos críticos como o maior dramaturgo brasileiro do século XX, Nelson Rodrigues continua um verdadeiro gigante 40 anos após a sua morte

Há quarenta anos, em dezembro de 1980, morria Nelson Rodrigues. Os jovens talvez não se deem conta da dimensão de seu talento. Foi um gigante.  

Nelson atuou em várias frentes. Sua obra teatral é monumental: deixou 17 peças, algumas delas marco do teatro brasileiro, como Vestido de Noiva, de 1943. É considerado por muitos críticos o maior dramaturgo brasileiro do século XX.  

Autointitulava-se um eterno menino. A abordagem que fazia das relações humanas passava pelo filtro do garoto que observa o mundo de um lugar especial. “Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”.

Antes de mais nada, Nelson Rodrigues era um jornalista. Tudo o que produziu teve no jornalismo sua gênese, até mesmo as peças teatrais. Passou a vida nas redações. O pai, Mario, foi dono de A Manhã – onde Nelson começou a carreira, aos 13 anos – e depois, de A Crítica. Daí não parou mais. Trabalhou em vários veículos da imprensa carioca. Entre os anos de 1950/60, chegou a escrever três colunas diárias em diferentes jornais.  

“Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”
Nelson Rodrigues

Rui Castro, autor de biografia considerada definitiva (Anjo Pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues), estima que, em 55 anos de jornalismo, “é provável que nenhum outro escritor brasileiro tenha produzido tanto”. Os números são eloquentes: além das 17 peças, reencenadas várias vezes, escreveu um romance (O Casamento) e oito folhetins, alguns assinados com pseudônimo (Suzana Flag e Myrna), bem como milhares de crônicas, reunidas em diversos livros – tudo produzido nas redações de jornais.  

As adaptações cinematográficas das peças atraiu cineastas de diversos perfis: Leon Hirszman (A Falecida, 1965); Arnaldo Jabor (Toda Nudez Será Castigada, 1973 e O Casamento, 1975); Neville de Almeida (A Dama do Lotação, 1978 e Os Sete Gatinhos, 1980); Bruno Barreto (O Beijo no Asfalto, 1980), entre outros. A mais recente estreou há pouco no circuito cinematográfico, em plena pandemia: uma adaptação de Boca de Ouro, dirigida por Daniel Filho.

Até quem não gosta de futebol se delicia com suas crônicas esportivas. Antológicas, não perderam a atualidade. E por que não, passado tanto tempo? Porque Nelson Rodrigues não se referia a minúcias dos jogos. Ele captava a essência da partida em momentos mágicos, o embate futebolístico como espetáculo único, com seus personagens próprios – um acontecimento que se renovava a cada disputa, mesmo que elas se repetissem todas as tardes de domingo no Estádio Mario Filho (gostava de citar o nome do irmão, falecido antes dele e que dá nome ao Maracanã, por quem Nelson tinha adoração). Inventou, por exemplo, o Sobrenatural de Almeida, “entidade” capaz de modificar bruscamente alguma situação durante uma partida de futebol. Adorava o Fla x Flu: com suas crônicas, ajudou a criar a mística em torno deste clássico do futebol carioca.

Antes do golpe de 1964, Nelson não metia a colher na política. A partir de 1968, contudo, começou a implicar com quem fazia oposição aos militares. Revelou-se anticomunista ferrenho, apesar de ter convivido com jornalistas de credo diferente, como Antônio Callado, a quem chamava de “doce radical”. Dom Helder Câmara e Alceu Amoroso Lima, da linha progressista da Igreja Católica, foram alguns de seus alvos preferidos. Outros, os jovens religiosos católicos que, em trajes civis, participavam das passeatas em oposição à ditadura, rotulados de “padres de passeata” e “freiras de minissaia”. Chamado de reacionário, aceitou a pecha de bom grado, pois adorava uma polêmica. O Reacionário (1977), aliás, é o título de um de seus livros de crônicas. Nos últimos anos de vida, acabou revendo posições e passou a defender a anistia, após a prisão e a tortura do filho Nelsinho pelos militares.  

Suas peças são um primor de denúncia da hipocrisia reinante. Imoral, sem vergonha, tarado, lascivo, pornográfico, são epítetos com os quais, a cada estreia de uma peça, Nelson Rodrigues foi brindado pelos setores defensores da “moral e dos bons costumes” da sociedade carioca – provavelmente proferidos por uma “grã-fina de narinas de cadáver”, uma das criações geniais do cronista implacável.  

Além de dramaturgo, jornalista, contista, romancista e cronista, Nelson Rodrigues era um frasista de mão cheia. Talvez o maior da língua portuguesa. Suas tiradas caíram no gosto do povo. Continuam atualíssimas, sínteses do que há de melhor e pior na alma humana.

Uma breve amostra de suas frases, retiradas do livro organizado por Rui Castro: Flor de Obessão – As 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues.

“Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”

“Toda a unanimidade é burra”  

“Invejo a burrice, porque eterna”  

“No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte”

“A única nudez realmente comprometedora é a da mulher sem quadris”

“Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível”

“O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca”

“Todo tímido é candidato a um crime sexual”

“Sem sorte não se chupa nem um chicabon”

“A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”

“O FlaxFlu começou 40 minutos antes do nada. E, então, as multidões despertaram”

“No Maracanã, vaia-se até um minuto de silêncio”

“O videoteipe é burro”

“Brasília é outro país, quase outro idioma”

“Não há, no mundo, elites mais alienadas do que as nossas”

“De pé, ó vítimas da fome. Mas aprendi que a fome não deixa ninguém de pé, nunca”

“A fome é o mais antigo dos hábitos humanos”


RPD || Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos

Mais reconhecido por seu trabalho empresarial e diplomático, Jorio Dauster se dedica à literatura desde a década de 1960, traduzindo grandes autores, como Salinger e Nabokov, entre outros

Já lá vão mais de seis décadas, quando eu passava uns tempos em Washington na casa de minha irmã, recebi das mãos do cunhado um pocket book fininho, com umas 200 páginas, que já era cult nos Estados Unidos. Comecei a ler naquela noite mesmo e não sei a que horas fui dormir, fascinado com a história do rapaz de 17 anos que, expulso da escola, vaga por três dias em Nova York tentando evitar o confronto com os pais. Eu próprio, como algumas dezenas de milhões de adolescentes em todo o planeta, reconheci no angustiado protagonista todas aquelas dúvidas e aflições que o mundo adulto nos impõe em termos de acomodação a uma realidade muitas vezes envolta em hipocrisia e falsidade.  

Estou falando, obviamente, de Holden Caufield, a figura icônica que J.D. Salinger eternizou em sua obra-prima The Catcher in the Rye, lançada em 1951. Terminada a leitura, senti uma vontade irreprimível de traduzir o livro, provocado até mesmo pelas três últimas frases: “É engraçado. A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.”  

Já no Brasil, preparando-me para o exame do Instituto Rio Branco, reencontro um velho colega, Álvaro Alencar. Conversa vai, conversa vem, descubro que ele também quer ser diplomata e deseja traduzir o Catcher. Coincidência dupla, planos de trabalho conjunto que renderam muitas rodadas de chope e nem uma página de texto. Fast forward na fita da memória e, passados mais alguns anos, já ambos no Itamaraty, resolvemos pôr mãos à obra quando nos dizem que um colega mais antigo, Antônio Rocha, também está vertendo o livro. Fomos procurá-lo para anunciar a “competição”, e o tranquilo Rocha, ele próprio escritor, nos deseja boa sorte, pois apenas fazia aquilo por amar o texto e como grande exercício literário. Obviamente, foi recrutado ali mesmo para a rara e curiosa tarefa de uma tradução a seis mãos!  

“O Apanhador viu a luz do dia em 1965 e recebemos, no total, a principesca quantia de 100 dólares, que deu para eu comprar o bom par de sapatos de que precisava na época”
Jorio Dauster

Por conta de nossas tarefas profissionais, não sei quanto tempo levou para que cada qual apresentasse o terço do texto que lhe coube por sorteio. O fato é que, por ser considerado à época subversivo, depois do golpe de 31 de março de 1964, eu fui chamado de Genebra, onde participava da I Conferência de Comércio e Desenvolvimento, e posto em casa durante seis meses enquanto ocorriam inquéritos e coisas do gênero no Itamaraty. Como meus dois companheiros de tradução já haviam sido removidos para o exterior, dediquei incontáveis horas daquele recesso forçado a repassar a versão brasileira frase por frase, tratando de homogeneizar a linguagem dos três num livro que é intrinsecamente coloquial, pois representa de fato o depoimento gravado do Holden na clínica de repouso em que foi internado para se recuperar de seu evidente nervous breakdown. Exemplo desse cuidado é que não cabe nenhuma conjunção adversativa – tipo “contudo”, “todavia” e “entretanto” – na fala de um rapaz que só emprega “mas”. A outra dificuldade foi conciliar expressões e gírias, já que o Rocha era nordestino, eu e Álvaro, cariocas. A circunstância de que o texto resistiu à passagem do tempo me parece uma boa indicação de que o exercício valeu a pena.

Mas restavam dois problemas: o título, cuja tradução literal parecia esdrúxula, e – pequeno detalhe prático – quem imprimiria a obra, já que nos havíamos lançado na empreitada por puro amadorismo, sem que ninguém nos tivesse encomendado coisa nenhuma.    

Depois de grandes elucubrações, nós três tínhamos resolvido dar à versão brasileira o título de A sentinela do abismo, retirando-o do mesmo contexto em que o autor o buscara no original, a saber a fala em que Holden diz à irmã Phoebe que, quando crescesse, queria ficar escondido num campo de centeio para salvar qualquer das crianças que, ali brincando, se aproximasse de um precipício. Mas, quem diria: indignado com a tradução feita em outras línguas, Salinger (já então um eremita) dera ordens expressas à sua editora a fim de exigir as versões literais como condição para a venda dos direitos em outros idiomas. De nada valeram minhas tentativas, até mesmo em contato direito com uma agente em Nova York, explicando que “apanhador” no Brasil era usado para quem catava papéis nas ruas ou bolas chutadas para fora em campos de futebol improvisados, que centeio só aparecia no nome de um pão comido por gente rica... Pura perda de tempo– mas entendi que era melhor assim depois de saber que tinham tacado um estrambótico El cazador (sic) oculto em espanhol, um meloso L’atrappe-coeur em francês, um ensandecido Agulha no palheiro (!!!) em português de Portugal.

Por fim, numa daquelas noites encantadas que o Rio então oferecia de graça, fui à mítica cobertura de Rubem Braga em Ipanema, bem pertinho da Nascimento Silva 107 onde, poucos anos antes, Tom Jobim ensinara a Elizete Cardoso as canções do Canção de Amor Demais. Vista fabulosa, papo magnífico no pomar suspenso, uísque do bom – mas o grande cronista não tinha ideia de quem fosse J.D. Salinger e muito menos do sucesso mundial do Catcher. Mas me tranquilizou, dizendo que faria chegar o manuscrito às mãos de seus dois sócios na Editora do Autor – Fernando Sabino e Walter Acosta. Assim foi feito, o Apanhador viu a luz do dia em 1965 e recebemos, no total, a principesca quantia de 100 dólares, que deu para eu comprar o bom par de sapatos de que precisava na época. O livro continuou na Editora do Autor depois que Braga e Sabino se afastaram para fundar a Sabiá – e nem sei quantas edições teve ao longo de mais de meio século no Brasil. Pelo número de pessoas que até hoje me procuram para dizer o que significou em suas vidas a leitura do Apanhador, acho que daria para encher o Maracanã com emoção maior que a de um Fla-Flu.  


Ivan Alves Filho: Um provérbio siberiano

O livro foi feito para guardar a palavra, nascida da oralidade. Esta a sua razão de ser, a sua força. E o homem é, de certa forma, aquilo que diz. Daí o livro ter atravessado os séculos, do papiro à era digital.

Minha experiência com os livros, seja como leitor, seja como autor, marcou – e marca – a minha vida, e isso desde os tempos de guri. Meu filho chama-se Pedro devido ao livro As aventuras de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Se um dia eu desejasse morar dentro de um livro, esta seria minha primeira opção.

Li muito e continuo a ler muito. E consegui publicar alguns livros, também. E aprendi demais com cada um deles. Não foram poucas as alegrias e os encontros que eles me proporcionaram.

Eu me recordo que, quando lancei Memorial dos Palmares, em 1988, um geógrafo brasileiro que se encontrava em Angola mandou-me um recado dizendo que os soldados do MPLA que combatiam os fascistas financiados pela África do Sul, em tempos de apartheid, liam o meu livro nos cursos de formação política do Exército saído das lutas de libertação nacional na pátria de Agostinho Neto. Seus ancestrais haviam lutado contra a escravidão no Brasil e isto servia de exemplo de luta para eles. Nem é preciso dizer o quanto aquilo me comoveu.

Poucos anos depois, a Unesco me convocava, na figura de seu secretário-executivo, o diplomata senegalês Doudou Diènne, para integrar o projeto A Rota do Escravo. Segundo o próprio Doudou me revelaria, Memorial dos Palmares fora fundamental para essa decisão da Unesco. Preparei então um projeto sobre o impacto do tráfico negreiro na marcha da História moderna.

Eu me lembro ainda que, por volta de 2010, Francisco Inácio de Almeida e eu dávamos uma palestra de formação política em Manaus e um companheiro se aproximou de mim para dizer que havia remado mais de duas horas pelos igarapés amazônicos para se encontrar conosco. Ele tomara conhecimento de um livro meu sobre o saudoso Giocondo Dias e queria me conhecer. Haja coração.

Os exemplos se multiplicam. Mas, há pouquíssimo tempo, eu vivi um novo e decisivo momento: ao ofertar outro livro meu, A saída pela Democracia, a uma jovem estudante em Tiradentes, cidade-símbolo da nossa Independência, vi que ela não pôde se conter e começou a chorar. Ela nunca tinha ganhado um livro autografado antes. Isso se deu durante a FLITI, I Feira Literária de Tiradentes, à qual compareci para apresentar a referida obra, editada pela Aquarius. Há poucas semanas, a Fundação Astrojildo Pereira e a Aquarius decidiram fazer uma coedição da obra, para minha alegria.

Um velho provérbio siberiano dizia que "a palavra pode matar um homem".

De emoção, certamente.

*Historiador, autor de mais de uma dezena de obras, dos quais o último é A saída pela Democracia


Luiz Carlos Azedo: Poderia ser pior?

Não temos um plano efetivo de vacinação em massa por parte do Ministério da Saúde, cujo titular é um general de divisão da ativa, especialista em logística

Não gosto de análises catastróficas nem do quanto pior, melhor. Prefiro a teoria das duas hipóteses do humorista Aparíccio Apporelly, o Barão de Itararé, descrita por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere. O escritor alagoano deliciava-se com as anedotas e os comentários espirituosos do jornalista gaúcho, encarcerado durante a ditadura de Getúlio Vargas. Com sua voz pastosa e hesitante, dono de um “otimismo panglossiano”, o Barão sustentava que tudo ia bem e poderia melhorar, fundado numa demonstração de que diante de cada situação haveria sempre uma pior: “Excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida”, explicava Graciliano. Com a palavra, o próprio Apporelly quando estava preso:

“Que nos poderia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor, esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas, ainda assim, não convinha alarmar-nos, pois essa desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela”.

O raciocínio irônico do Barão de Itararé é altamente filosófico e serve para qualquer situação. Por exemplo, para a turma enrolada na Lava-Jato, que agora assiste, de tornozeleira eletrônica ou no xadrez, o ex-juiz Sergio Moro ser contratado como especialista em combate à corrupção por um grande escritório de consultoria que presta serviços à Odebrecht. Como se sabe, Emilio Odebrecht, para salvar a empresa e aliviar a cana de seu filho, Marcelo Odebrecht, negociou uma delação premiada com o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que quase implodiu o sistema político brasileiro. Alguns imaginam que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff pavimentou o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro; não, essa estrada foi asfaltada pelo escândalo da Petrobras e o uso generalizado de caixa dois nas campanhas eleitorais.

Pandemia
Mas, voltemos à teoria das duas hipóteses. O ano da pandemia do novo coronavírus está acabando, porém a covid-19 recrudesceu. Há uma corrida mundial para conter a segunda onda na Europa e nos Estados Unidos, que é repetição do que ocorreu com a gripe espanhola, 100 anos atrás. Agora, além do isolamento social, estarão sendo utilizadas vacinas em caráter emergencial. No Brasil, em razão do negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e da mentalidade castrense do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, estamos numa guerra entre o governo federal, que comprou a vacina de Oxford, inglesa, que será produzida pela Fundação Oswaldo Cruz, e o governo de São Paulo, que adquiriu a vacina chinesa CoronaVac, cuja fabricação será iniciada pelo Instituto Butantan. Há, também, uma vacina russa, a Sputnick V, adquirida pelo governo do Paraná.

Entretanto, não temos um plano efetivo de vacinação em massa por parte do Ministério da Saúde, cujo titular é um general de divisão da ativa, especialista em logística, que será o grande responsável pelo atraso da campanha de vacinação. No momento, sua grande preocupação é negar a existência de uma segunda onda da pandemia, sabotar as medidas de isolamento social e atrasar a liberação da vacina chinesa. Vidas não importam, afinal, não existe guerra sem defuntos. E onde aplica-se a teoria das duas hipóteses? Ao comparar o número de mortos com os que sobreviveram à covid-19, graças aos esforços heróicos dos profissionais da saúde.

Nas últimas 24 horas, houve 776 mortes, somando 175.307 óbitos desde o começo da pandemia. A média móvel de mortes no Brasil, nos últimos sete dias, foi de 544. Desde o começo da pandemia, 6.487.516 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus, com 50.883 desses casos confirmados nas últimas 24 horas. Em média, nos últimos sete dias, houve 40.421 novos diagnósticos por dia, a maior desde agosto, que registrou 40.526 mortes. O aumento no número de casos foi de 37%. A pandemia recrudesceu nos seguintes estados: PR, RS, SC, ES, MS, AC, AP, RO, CE, PB, PE, RN e SE.

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Luiz Carlos Azedo: Esperando Godot

Estragon: O que a gente faz agora?

Vladimir: Não sei.

Estragon: Vamos embora.

Vladimir: A gente não pode.

Estragon: Por quê?

Vladimir: Estamos esperando Godot.

Estragon: É mesmo.

Escrita no pós-Segunda Guerra Mundial, a peça do irlandês Samuel Beckett, que empresta o título à coluna, é uma obra-prima do chamado Teatro do Absurdo. Faz sucesso no mundo desde 1953, quando estreou em Paris. No Brasil, teve duas montagens amadoras na década de 1950, até o estrondoso sucesso de sua montagem profissional, no Teatro TBC, em São Paulo, sob direção de Flávio Rangel, em 1969, com Cacilda Becker no papel de Estragon e seu marido, Walmor Chagas, no de Vladimir. O contexto político da época, em plena vigência do Ato Institucional nº 5 do regime militar, e o fato de Cacilda Becker sofrer um derrame cerebral em pleno palco, numa apresentação para estudantes em São Carlos, agonizando por 38 dias, deram à peça um lugar na história da cultura brasileira.

A peça somente faz sentido quando serve de analogia para um contexto de incertezas. Sua essência é a espera. É a desconstrução completa do teatro, pois não tem história, as falas não são coesas e nada acontece do ponto de vista da ação dos personagens. Tudo parece obscuro e pessimista, mas provoca uma profunda reflexão sobre a vida e a sua incessante busca por respostas. O palco vazio desconstrói o mundo ao redor, os diálogos repetitivos reproduzem as relações humanas e a inação dos personagens mostra a paralisia que a incerteza provoca. Na espera, nada acontece.

A fábula de Becker tem tudo a ver com o momento que o Brasil está vivendo. Os resultados das eleições municipais, em vez de dissiparem as incertezas, aumentaram-nas. Em 9 de outubro passado, a pouco mais um mês das eleições, segundo a pesquisa Exame-Ideia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) seria reeleito para um segundo mandato. No primeiro turno, teria 30% das intenções de voto, contra 18% do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e 10% do ex-ministro da Justiça Sergio Moro (sem partido).

A pesquisa mostrava, ainda, Ciro Gomes (PDT), com 9%, Luciano Huck (sem partido), com 5%, e João Doria (PSDB), com 4%. A pesquisa também apontava Luiz Henrique Mandetta (DEM) com 3%, Marina Silva (Rede) com 2%, João Amoedo (Novo) com 1%, e Flávio Dino (PCdoB) com 1%. Brancos e nulos somavam 9%. Os que “não sabiam” eram 10%. Em uma projeção de segundo turno, Bolsonaro venceria Moro com 41% dos votos contra 35% do ex-ministro. Em relação a Lula, Bolsonaro teria 43%, contra 33% do petista. Numa disputa contra Doria, a vantagem do Bolsonaro seria ainda maior: 42% das intenções de voto contra 21%.

Incógnitas
Menos de dois meses depois, Bolsonaro, que venceria em todos os cenários e regiões, sofreu uma derrota acachapante nas eleições municipais. Continua sendo o principal polo de atração de forças políticas, mas viu a extrema-direita que o levou ao poder definhar e tem de disputar o centro político com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que busca alianças nesse campo, principalmente com o DEM, o MDB e o PSD.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que opera a mesma estratégia de 2018, viu o PT ser volatilizado completamente nas capitais, a ponto de não eleger nenhum vereador em Rio Branco (AC). A nova estrela da esquerda é Guilherme Boulos, do PSol, que não tem o passivo de corrupção petista. O novo líder paulista também é um problema para Ciro Gomes, do PDT, por outros motivos: fecha-lhe a porta do Sudeste.

Restam as duas incógnitas que justificam a analogia: Sergio Moro, que acabou de assinar um contrato milionário de trabalho com um escritório que presta serviços de consultoria à Odebrecht, e o apresentador Luciano Huck, que tem até junho para decidir se mantém seu contrato, também milionário, com a TV Globo. São nomes que podem aglutinar forças de centrodireita e/ou centroesquerda para construir uma alternativa de poder, mas somente serão candidatos se as pesquisas mostrarem que têm chances de vencer. Enquanto isso, o diálogo de nossos personagens reproduz as incertezas:

Vladimir: Amanhã nos enforcamos. (Pausa)

A não ser que Godot venha.

Estragon: E se vier?/

Vladimir: Estaremos salvos.

Estragon: Então, vamos?

Vladimir: Sim, vamos lá.

(Eles não se mexem)

A cortina se fecha.

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André Amado analisa como grandes autores de romances seduzem seus leitores

Em artigo publicado na Política Democrática Online de novembro, embaixador aposentado analisa obras de argentino, britânico e moçambicano

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Com exemplos de três universos culturais distintos, mas que convergem na técnica, o embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online, André Amado, analisa como os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção. Os detalhes estão na edição de novembro da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. Em seu artigo, Amado analisa a abertura dos romances Sobre héroes y tumbas (do argentino Ernesto Sábato), A balada de Adam Henry (do britânico Ian McEwan, com tradução de Jorio Dauster) e Venenos de Deus, remédios do diabo (do moçambicano Mia Couto).

O embaixador aposentado analisou os trechos retirados das primeiras páginas das obras. “Ernesto Sábato seduz o leitor pela maneira como lida com a noção de tempo, maestria literária que é uma promessa de que a repetirá mais adiante na narrativa”, afirma. “Ian McEwan recorre a jogo mais sutil. Com o apoio de detalhes, em geral secundários, do ambiente doméstico, opõe o melancólico ao sofisticado e deixa no ar a questão: será o presente estéril ou ainda haverá esperança de futuro”, acrescenta.

Já Mia Couto retrata, também de entrada, a vida de um casal, cuja rotina consiste em suportar-se, como observa o autor do artigo. “Aqui a pergunta não é tanto se, mas como as relações haverão de evoluir”, diz. Segundo Amado, os três escritores procedentes de universos culturais tão distintos convergem na técnica de, no início, não mais do que insinuar a história que desenvolverão, quando, então, passam a convidar o leitor a se sentar a seu lado, para acompanhá-lo na textura da trama, no traçado dos personagens, na solução dos conflitos, no afivelamento dos fios soltos da narrativa.

“É assim que os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção. Eles têm plena consciência de que, em literatura, o leitor é fisgado pela intriga, pela curiosidade, até mesmo pela aspiração – em muitos casos, inconfessa – de querer ser o coautor do que está sendo concebido”, afirma o diretor da revista Política Democrática Online.

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Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Luiz Carlos Azedo: A grande travessia

A transmissão do novo coronavírus do Brasil deu um salto: formou-se uma segunda onda, na qual 100 infectados contaminam outras 130 pessoas

Os brasileiros estão diante de uma grande travessia, como o jagunço Riobaldo no romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso… Porque aprender a viver é que é o viver mesmo… Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa…”. Essa forma de encarar a vida faz parte do nosso inconsciente coletivo, principalmente em razão da secular iniquidade social em que vive a maioria da população, ou seja, está entranhada na camada mais profunda e inata do nosso inconsciente social. Grande Sertão: Veredas foi publicado em 1956, sem capítulos e com mais de 600 páginas. Guimarães Rosa fundiu o experimentalismo linguístico e a temática regionalista do movimento modernista numa obra universal e, ao mesmo tempo, capaz de capturar a alma dos caboclos mineiros, no relato de Riobaldo sobre suas lutas, seus medos e o amor reprimido por Diadorim.

A analogia faz todo sentido. É mais ou menos o que acontece nesta pandemia, que está entrando numa segunda onda, com a maioria da população se arriscando, estoicamente, para manter algum nível de atividade econômica e renda, enquanto outra parcela está se expondo sem necessidade alguma, por pura irresponsabilidade e/ou negacionismo. A taxa de transmissão do novo coronavírus no Brasil deu um salto, chegando a 1,30 na última semana epidemiológica, o que equivale aos índices de maio passado, segundo o Imperial College de Londres. Isso significa que se formou uma segunda onda, na qual 100 infectados contaminam outras 130 pessoas. Como a pandemia estava em baixa, mas não havia acabado, essa segunda onda começa de um patamar muito elevado. O resultado imediato são enfermarias dos hospitais começando a ficar lotadas, na maioria das cidades.

A situação é agravada pelo fato de o presidente da República, Jair Bolsonaro, ser um negacionista, que paralisa as ações do Ministério da Saúde nas três esferas em que deveria atuar: a prevenção (é contra o isolamento social), o diagnóstico (seis milhões de testes estão se deteriorando nos estoques do governo) e o tratamento (é responsável por apenas 5% dos leitos). Mesmo as vacinas que estão em fase final de testes, não têm ainda um planejamento adequado para a compra do medicamento e a vacinação em massa da população.

Não fosse o Sistema Único de Saúde (SUS), sob comando de prefeitos e governadores, a situação seria muito pior. Entretanto, temos um presidente da República que responsabiliza-os pelos graves prejuízos causados pela pandemia, em vez de agradecer o esforço que fazem para proteger a população. A última de Bolsonaro foi afirmar que os testes de coronavírus que estão se deteriorando nos estoques do governo federal haviam sido distribuídos para os estados e municípios, o que não ocorreu.

Vacinas

Ontem, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou para que, num prazo de 30 dias, o Ministério da Saúde apresente um plano de vacinação em massa da população. É uma missão complicada para o ministro Eduardo Pazuello, em razão das idiossincrasias do presidente Jair Bolsonaro, que transformou a aquisição de vacinas numa guerra política, embora o Brasil tenha parcerias para a futura produção de três vacinas:

A ChAdOx1, desenvolvida pela AstraZeneca/Oxford, que será produzida em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, com investimentos previsto de R$ 1,9 bilhão na produção de 100 milhões de doses.

A CoronaVac, da farmacêutica chinesa Sinovac, que será adquirida pelo governo de São Paulo e produzida pelo Instituto Butantan, com chegada de 120 mil doses para uso imediato, mas que depende de autorização da Anvisa.

E a Sputinik V, do Instituto Gamaleya, da Rússia, que está sendo adquirida pelo governo do Paraná.

Diante da segunda onda, com as finanças do governo exauridas e o sistema de saúde pública sob forte pressão, já passou da hora de o presidente Jair Bolsonaro baixar a bola e deixar que os sanitaristas façam seu trabalho. “Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas”, diria o Riobaldo. “Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto.” Tudo que a população deseja é acordar do pesadelo e tomar uma vacina eficaz contra o vírus.

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