Literatura

Luiz Carlos Azedo: O juiz de Bruzundanga

Afinal, o que seria de Bruzundangas se todos tivessem a mesma aposentadoria e os mesmos direitos?

A República de Bruzundanga, de Lima Barreto, completa 95 anos, uma efeméride pouquíssimo lembrada, a não ser por alguns estudantes de Literatura. Às vésperas de Natal de 2014, ela já havia sido abalada por um escândalo envolvendo a maior empresa estatal do país, uma petroleira, e os donos da nação, entre os quais estavam a Mandachuva — a primeira mulher a assumir a Presidência — e seu padrinho, o Mandachuva que a antecedera. O problema é que ninguém ainda sabia disso, a não ser o cronista que reconta essa história, num tributo ao escritor carioca maldito (ele era pobre, mulato e gay).

No país imaginário de Lima Barreto, a esposa do presidente de uma grande empresa que estava preso ameaçara contar tudo o que sabia à polícia e à Justiça sobre o maior escândalo de corrupção da nação, se o marido passasse o ano-novo na cadeia. Estava revoltada porque os donos da empresa decidiram demitir todos os executivos e foram passar o Natal em um balneário do Caribe, depois de encerrar os negócios no ramo da construção para viver de outras fontes de renda. O recado veio cifrado numa nota de coluna de jornal.

Por essa razão, o executivo foi solto, chegou a fazer uma delação premiada, mas ela foi incinerada pelas autoridades porque houve um vazamento do conteúdo para jornais e revistas sensacionalistas, que insistiam em escandalizar o povo com os podres da República. O problema é que ele não desistiu, negociou nova delação, com mais 40 executivos da empresa. Em sua obra póstuma, o mestre do escárnio já havia desnudado a essência de Bruzundanga. Quase cem anos depois, nada havia mudado quanto aos costumes políticos. Só as velhas patacas foram substituídas pelo barusco, a moeda criada em homenagem ao ex-diretor da petroleira local que resolveu denunciar as falcatruas que escandalizavam o mundo naquele Natal. Mas já estavam inflacionadas pela enxurrada de dólares que jorraram das plataformas da petroleira para misteriosas contas no exterior.

O ex-mandachuva continuou a trajetória como aquele personagem de Todos os homens são mortais, de Simone de Beauvoir, o Conde Fosca, já citado em 2014, quando começou a Operação Enxuga Devagar. Se vocês não se lembram, por ser imortal, esse personagem podia decidir o que quisesse, os outros pagavam com a própria vida quando algo dava errado. Naquele Natal, a esposa de um executivo da petroleira que havia sido preso procurara o secretário particular do ex-mandachuva e avisara que contaria tudo se o marido continuasse em cana. Ele também foi solto a tempo de participar do amigo oculto da família, graças à Mandachuva, que gastou um dos cartuchos que tinha no tribunal para conseguir-lhe um habeas corpus. Coisas que ainda aconteciam em Bruzundangas.

Privilégios

Mas havia um juiz ferrabrás numa das províncias que resolveu subverter a ordem natural das coisas e pôs em cana todos os envolvidos no escândalo ao seu alcance. O ex-diretor da petroleira, convencido pela família, resolveu falar o que sabia. Relatou três encontros com o ex-mandachuva, que tinha conhecimento de tudo o que se passava na petroleira e agora ele está na iminência de ser preso. O executivo da estatal também entregou a ex-mandachuva, que meteu as mãos pelos pés e, no passado, acabou apeada do poder. Agora, também corre o risco de ser condenada e presa.

No meio de tanta confusão, o vice-mandachuva assumira o poder. Nele ainda se equilibra para terminar o mandato e chegar às eleições nacionais do ano que vem. A situação no país continua delicada. Durante a crise mundial, o povo viveu no mundo da fantasia, gastando mais do que podia, como naquela fábula da cigarra e da formiga. Agora, a saída é acabar com os privilégios e reinventar a economia, mas a elite política, os empresários que mamam nas tetas do governo e a alta burocracia resistem às reformas. Afinal, o que seria de Bruzundangas se todos tivessem a mesma aposentadoria e os mesmos direitos? O escândalo na petroleira virou o país de cabeça pra baixo. Quem foi mandachuva em Bruzundanga jamais perde a majestade. Na quarta-feira, ele será interrogado pelo juiz ferrabrás. O problema é que o tal magistrado veio de Curitiba.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista.


Com o Nobel para Bob Dylan, é hora de redescobrir os trovadores

Espanha, Portugal e Brasil não poderiam reagir com espanto diante do prêmio a Bob Dylan. Nossa literatura em comum nasceu com a música dos trovadores.

Por esta, as casas de aposta britânicas não esperavam: o cantor Bob Dylan ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2016. Seria um sinal de que as já questionáveis fronteiras entre a cultura pop e a chamada alta literatura estão se desfazendo? Deixemos essa questão a quem interessa: os círculos acadêmicos obcecados por categorizar os gêneros do discurso.

Ao mundo hispanoamericano, no entanto, cabe uma lembrança oportuna: a importância dos trovadores para nossa formação cultural e sua atualidade nem sempre reconhecida.

Sim, houve um tempo em que poesia e música eram indissociáveis. A literatura na Península Ibérica nasceu com o canto dos trovadores da Idade Média, menestréis ambulantes ou abrigados nas cortes da Galícia e do norte de Portugal. Eles construíram um vigoroso retrato do amor medieval e deram lugar à voz feminina nas suas composições. Foram eles também os que denunciaram as mazelas daquela sociedade em suas cantigas de escárnio e maldizer.

Soterrados por séculos de esquecimento, os trovadores sofreram críticas pedantes que os consideravam repetitivos, vulgares...populares demais, enfim. Houve uma crueldade especial por parte dos eruditos até sua eventual redescoberta pela professora Carolina Michaelis de Vasconcelos, já no início do século XX. Vale notar que a lacuna de percepção que os menosprezou por 600 anos tem uma estreita relação com o esnobismo acadêmico que recusa às letras de canção o status de nobreza da poesia.

Para os brasileiros, nada disso faz sentido. Aí esteve Vinícius de Moraes que não nos deixa mentir. Tampouco a profunda absorção e diálogo entre MPB e literatura. Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, tornou-se espetáculo musical nas mãos de Chico Buarque; Caetano Veloso e suas constantes referências e citações literárias; José Miguel Wisnik e sua produção musical; Antonio Cícero poeta e letrista, e aí vão muitos et ceteras. Quando perguntaram a Manuel Bandeira qual o mais belo verso já escrito no Brasil, o poeta pernambucano respondeu: “Tu pisavas nos astros, distraída”, decassílabo de Orestes Barbosa na letra de Chão de estrelas.

Mesmo assim, entre nós, as manchetes denunciam a surpresa diante do compositor nobelizado. Como se não fosse ele sério o suficiente. Como se ele fosse produto de outro mundo... popular demais, enfim.

Espanha, Portugal e Brasil não poderiam reagir com espanto diante do prêmio a Bob Dylan. Nossa literatura em comum nasceu com a música dos trovadores. A lírica galego-portuguesa é um ponto de convergência das culturas ibéricas e influenciou profundamente a tradição brasileira. Não há como compreender a cultura popular nordestina, os repentes, os cantos de aboiar, a literatura de cordel, sem a presença do medievo ibérico, notadamente das cantigas trovadorescas. E o amor romântico, da literatura à música popular mais dor de cotovelo, alimenta-se delas também, em boa medida.

Infelizmente, o ensino de literatura nas escolas brasileiras mais e mais abandona o trovadorismo. Já na Galícia, há um movimento de revalorização da produção dos trovadores, na educação e na cena cultural. Os jovens voltam a se interessar pela cultura daquele período, produzindo inclusive música de excelente qualidade, reinventando a tradição. Seria hora de nós, aqui no Brasil, seguirmos o exemplo.

Por: José Ruy Lozano é professor do Instituto Sidarta e autor de livros didáticos.


Fonte: El País