Lilia Lustosa

Revista Política Democrática || Lilia Lustosa: Uma plateia em transe

Terceiro longa metragem de Glauber Rocha (1939-1981), filme gerou enorme polêmica à época de seu lançamento. Em um contexto de guerra fria, a direita acusava-o de fazer “propaganda subliminar marxista” enquanto a esquerda o considerava “fascista", por se vê representada na tela como populista e demagoga

Estive há pouco em Genebra para falar sobre Terra em Transe (1967) no Festival FILMAR en América Latina, um festival de cinema que acontece nesta cidade desde 1997extremamente politizado e de fundamental importância para a divulgação do cinema latino-americanoO convite veio da Maison de l’Histoire, da Universidade de Genebra, instituição que elegeu o filme brasileiro em função de seu status de filme cult e, ao mesmo tempo, de sua incrível atualidade.

Terra em Transe é o terceiro longa metragem de Glauber Rocha (1939-1981), um dos maiores cineastas que o Brasil já teve, considerado louco por muitos, gênio ou visionário por outros, e até “profeta alado” pelo grande historiador e crítico de cinema Paulo Emilio Sales Gomes.

Realizado em 1967, o filme gerou enorme polêmica à época de seu lançamento, desagradando em cheio a gregos e troianos. Em um contexto de guerra fria, a direita acusava-o de fazer “propaganda subliminar marxista”, incitando a luta de classes; a esquerda o considerava “fascista”, já que se via representada na tela como populista e demagoga. A única unanimidade em torno do filme era a de que se tratava de uma obra confusa, hermética, praticamente impossível de se entender, um “texto chinês de cabeça para baixo”, como escreveu o direitista Nelson Rodrigues no Correio da Manhã.

Mas o que não se sabia na época é que toda essa confusão havia sido planejada - ou, ao menos almejada - por Glauber, que queria, de fato, que seu filme tivesse o efeito de uma bomba, atirando faíscas para todos os lados. Não por acaso o formato escolhido por ele foi o da alegoria, figura de linguagem/retórica que permite múltiplas interpretações. Em Terra em Transe, ele já não falava mais de Brasil, não precisando, portanto, temer nem a censura nem os militares. O Golpe acontece em Eldorado, “país interno atlântico”, que poderia ser qualquer país da América Latina, até o Brasil!

Assim, o diretor baiano acabou criando uma obra que serviu, e serve até hoje, como disparador de discussões e reflexões sobre a situação política de nosso país e de nosso continente. Não é difícil traçar paralelos entre o Eldorado de 1967 e o Brasil de 2019. O jogo político é o mesmo, tramado a portas fechadas, como nos grandes dramas barrocos, bem longe dos olhos e ouvidos do povo. Terra em Transe mostra uma esquerda populista, que convence o povo de que vai realizar as mudanças necessárias para transformar o país em um lugar mais justo, e uma direita sem escrúpulos, que não aceita perder o poder, dando o bote quando percebe o avanço do inimigo. A esquerda acaba se deixando dominar, porque também tem ali seus interesses…

Ainda que ciente de que de lá pra cá demos largos passos rumo à democracia, me peguei várias vezes conjecturando sobre que tipo de filme Glauber faria hoje… Que tipo de alegoria escolheria para retratar seu país e sua América Latina neste final de 2019? E resolvi terminar minha fala justamente lançando essa pergunta no ar.

Como era de se esperar, com essa escolha, afastei toda e qualquer possibilidade de discussão cinematográfica. As perguntas que se seguiram foram quase todas sobre a atual situação da América Latina. Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Venezuela, Argentina… todas estiveram na boca (e nos corações) do público ali presente. E eu querendo falar de Terra em Transe, querendo apresentar Glauber Rocha, querendo falar de sua genialidade, de sua poética, de sua importância para a cinematografia brasileira. Ora, não sou cientista política e só poderia dar ali uma opinião de leiga, da cidadã brasileira e latino-americana que sou. Confesso que fiquei um pouco frustrada com o rumo que tomava o debate, mas, à medida que as discussões avançavam, fui entendendo que estava sendo ali um instrumento para o que Glauber havia idealizado. Sua obra não fora concebida para ser apenas arte ou objeto estético. Sua obra sempre quis ser (e foi), acima de tudo, um manifesto. Cada um de seus filmes foi construído para gerar discussão, para fazer pensar, para colocar o espectador em situação incômoda, para fazer-lhe refletir sobre o que estava acontecendo a seu redor. Fui-me acalmando e senti que, apesar de não ter conseguido falar muito de Terra em Transe, havia feito valer o papel que Glauber sonhara para seu filme.

E concluí, com ajuda daquela plateia em transe, que infelizmente a alegoria de hoje seguiria sendo uma “alegoria do desencanto”, como é Terra em Transe, chamada assim por Ismail Xavier, maior autoridade em Glauber Rocha.

 


‘Coringa é um filmaço’, afirma Lilia Lustosa à Política Democrática online

Análise do filme de Todd Phillips é da doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL)

Cleomar Almeida, da Ascom/FAP

O filme Coringa, do diretor Todd Phillips, “é um filmaço, daqueles que você sai e fica por horas discutindo, refletindo”. A afirmação é da doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Lilia Lustosa, em artigo produzido para a nova edição da revista Política Democrática online. “Excesso de verdade atirada na nossa cara. Excesso quase insuportável quando entendemos que nós, que estamos ali sentados confortavelmente naquela sala de cinema, somos a elite ali representada”, diz ela.

» Acesse aqui a 13ª edição da revista Política Democrática online

O público tem acesso gratuito a todos os conteúdos da revista no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que produz e edita a publicação. De acordo com a Lilia Lustosa, “obviamente, Coringa é uma grande alegoria de nossa sociedade, e, por isso mesmo, se permite trabalhar com excessos e metáforas”. Segundo ela, são justamente essas extrapolações ou caricaturas que fazem entender a tela como um espelho do que as pessoas estão se tornando ou do que já são.

Segundo Lilia Lustosa, ao acompanharmos o passo a passo da construção do “monstro” em que vai se convertendo Arthur Fleck (magistralmente interpretado por Joaquin Phoenix), enxergamos muitos conhecidos nossos, quer seja na pele do próprio Arthur, quer seja na pele dos que estão em seu entorno, ajudando a construir a “criatura”.

“Enxergamos, no início, um homem com um sonho: vencer na vida como comediante. Uma pessoa que, apesar das adversidades sociais (pobreza) e psicológicas (doença mental em que não controla o riso), tenta alcançar licitamente seu sonho”, diz ela, no artigo publicado na revista Política Democrática online.

Leia mais:

» Como evitar neutralização da Lava Jato? André Amado explica em artigo na Política Democrática online

» “Sem negros, não há Brasil”, diz Ivan Alves Filho à nova edição da Política Democrática online

» Por que a manifestação no Chile? Alberto Aggio responde à Política Democrática online

» ‘Patrão manda passar motosserra na Amazônia’, diz garimpeiro de Serra Pelada

» ‘Óleo nas praias brasileiras mostra incapacidade do governo’, diz Anivaldo Miranda à Política Democrática

» Constituição deve nortear reformas no Brasil, diz Gilvan Cavalcanti de Melo à Política Democrática online

» ‘Tinha escravos nos Palmares’, diz Antonio Risério à revista Política Democrática online

» ‘Sinais da economia brasileira são alentadores’, afirma Sérgio C. Buarque na nova edição da Política Democrática online

» Nova edição da Política Democrática online analisa desastre do petróleo no litoral brasileiro


Revista Política Democrática || Lilia Lustosa: Coringa — o grito liberado

Minha curiosidade em ver Coringa foi mais forte que minha bronca. Me rendi e digo: valeu cada segundo. Filme é duro de ver, não pelo excesso de violência física, mas pelo excesso de realidade impresso na tela, avalia Lilia Lustosa

 Logo que soube que ia sair o Coringa, pensei: mais um blockbuster de heróis! No caso, de anti-herói. Superprodução, efeitos especiais, muito barulho, cortes rápidos, muita ação, pouco tempo para se analisar qualquer coisa, puro cinema de entretenimento. E logo imaginei que isso fosse uma reação da DC Films, que anda perdendo terreno para a Marvel Studios nos últimos anos, com seus Avengers e Panteras Negras da vida.

Confesso que não estava muito animada para vê-lo, até que soube da repercussão que o filme estava tendo nos Estados Unidos, onde chegou mesmo a ser entendido como uma mensagem subliminar contra o governo Trump. E, ainda, do texto que Michael Moore publicou defendendo o filme e ressaltando o valor de sua mensagem em tempos atuais, época sombria, em que tantos medos povoam nossos pensamentos.

Me rendi então à famosa peer pressure e fui assistir ao Coringa, mesmo ciente de que estava em pleno período de “invasão blockbuster”. Ou seja, um único filme hollywoodiano ocupando praticamente todas as salas de cinema da cidade, deixando os piores horários para produções locais ou estrangeiras menores. Mas minha curiosidade foi mais forte que minha bronca. Me rendi e digo: valeu cada segundo!

O filme de Todd Phillips é um filmaço, daqueles que você sai e fica por horas discutindo, refletindo. Um filme, sem dúvida, duro de ver, não pelo excesso de violência física, mas pelo excesso de realidade impresso na tela. Excesso de verdade atirada na nossa cara. Excesso quase insuportável quando entendemos que nós, que estamos ali sentados confortavelmente naquela sala de cinema, somos a elite ali representada. Aquela elite que ataca, que chuta, que discrimina e que, acima de tudo, ignora o que está acontecendo. Elite que desvia o olhar ao passar ao lado de um mendigo dormindo na rua, que fecha rapidamente o vidro do carro quando vê chegar aquele velhinho ou deficiente físico para pedir dinheiro outra vez. Mea culpa.

Obviamente, Coringa é uma grande alegoria de nossa sociedade e, por isso mesmo, se permite trabalhar com excessos e metáforas. E isso assusta! Mas são justamente essas extrapolações ou caricaturas de nós mesmos que nos fazem entender aquela tela como um espelho do que estamos nos tornando ou, quem sabe até, do que já somos.

Ao acompanharmos o passo a passo da construção do “monstro” em que vai se convertendo Arthur Fleck (magistralmente interpretado por Joaquin Phoenix), enxergamos muitos conhecidos nossos, quer seja na pele do próprio Arthur, quer seja na pele dos que estão em seu entorno, ajudando a construir a “criatura”. Enxergamos, no início, um homem com um sonho: vencer na vida como comediante. Uma pessoa que, apesar das adversidades sociais (pobreza) e psicológicas (doença mental em que não controla o riso), tenta alcançar licitamente seu sonho. Vemos, então, ao longo do filme, vários gestos de bondade (como o cuidado com a mãe velha e doente) e até mesmo de ingenuidade, transmitidos por aquele corpo frágil que não se faz compreender nem pela assistente social que deveria ajudá-lo. No entanto, o descaso e a ignorância dos que detêm o poder (políticos, empresários, imprensa, artistas, assistentes sociais, “meninos de Wall Street” etc.) vão minando a conta-gotas a bondade que resta naquele corpo solitário e sofrido.

Não à toa, o Coringa de Phillips é cheio de referências implícitas e explícitas ao grande Charles Chaplin, que sabia tão bem dosar o riso e a dor. Quem melhor, na história do cinema, soube e teve coragem de levar às telas comédias de aparência ingênua e que eram, na verdade, grandes críticas à sociedade moderna?

Não, definitivamente Coringa não é uma apologia à violência, como muitos clamam por aí. Ao contrário. O triunfo do Coringa, aplaudido em seu ato final, não é pelos assassinatos que cometeu, muito menos pelo monstro em que se transformou. Sua grande vitória – e por isso as palmas –, é ter-se feito ouvir e, assim, ter liberado o grito de milhões de “palhaços” que vivem na penumbra, escondidos atrás de máscaras que lhes roubam a identidade. É de ter dado voz aos “invisíveis”. É de ter despertado uma camada da sociedade que vinha aguentando as pequenas violências do dia a dia sem nada fazer.

O filme de Todd Phillips me fez pensar na tela O Grito, de Edvard Munch. É isso: Coringa é a liberação daquele grito sufocado, que tenta escapar de dentro de um ser deformado pela sociedade, de uma figura contorcida de dor e sofrimento. É a materialização daquele grito, do pedido de socorro de nossa gente!

 


‘Produtoras brasileiras devem se tornar independentes’, afirma Lilia Lustosa à Política Democrática online

Doutora e mestre em história e estética de cinema pela Universidad de Lausanne critica medidas de Jair Bolsonaro

Decisão do presidente Jair Bolsonaro, determinando que todas as produções candidatas a receber financiamentos do governo deverão passar doravante por um “filtro”, mostra que o mar cinematográfico brasileiro não está para peixe. É com essas palavras que a doutora e mestre em história e estética de cinema pela Universidad de Lausanne Lilia Lustosa inicia sua crítica à medida do governo, em artigo que ela produziu para a revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).

» Acesse aqui a 11 edição da revista Política Democrática online

A FAP é vinculada ao partido político Cidadania 23. No artigo, Lilia destaca que nem a onda de prêmios importantes recebidos por filmes brasileiros neste ano em Cannes serviu para acalmar a tempestade que se vinha formando no meio cinematográfico do país. “Nem Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que levou o prêmio máximo do júri, nem A vida invisível de Eurídice Gusmão (2019), de Karim Aïnouz, ganhador do prêmio Un Certain Regard, foram capazes de diminuir a vontade do presidente Jair Bolsonaro de controlar o conteúdo do que é financiado pelos cofres públicos”, lamenta a autora.

De acordo com Lilia, o recente caso da suspensão do edital de chamamento a projetos de séries para a TV Pública comprova não se tratar apenas de uma fala retórica de nosso presidente. “Com linha de crédito do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) e participação da Ancine e da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), o edital tinha entre as categorias de investimento uma dedicada à diversidade, com temas LGBT”, afirma.

Lilia diz, ainda, que, para o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, responsável pelo Conselho Superior de Cinema (CSC), “o ‘filtro’ deve ser principalmente financeiro”. Segundo ele, a atual política pública de incentivo ao cinema não tem medido os resultados obtidos, gerando obras sem relevância para a economia do país. “Até que aí ele pode ter um ponto. É preciso de fato preparar de uma vez por todas o terreno para que as produtoras brasileiras se tornem independentes”, destaca.

Mas, para isso, segundo ela, é preciso, antes de mais nada, que haja público para o filme brasileiro, o que implica redução do preço das entradas para produções nacionais e, sobretudo, aprimoramento da distribuição dessas obras, que, até hoje, têm de se espremer nas brechas das programações dos Multiplex, dominados pelos filmes norte-americanos. “Questão antiga, tão batalhada pelos cinemanovistas nos anos 60, levada a sério pela Embrafilme nos anos 70/80, interrompida nos anos 90 pelo Governo Collor, e jamais resolvida por governo algum”.

 

Leia mais:

» ‘Cresce número de adeptos a teorias sem fundamento científico’, diz Alexandre Strapasson à Política Democrática online

» ‘Quadro político mais radicalizado ameaça democracia’, alerta Vinicius Muller à Política Democrática online

» ‘Desenvolvimento é um processo complexo’, diz Sérgio C. Buarque à Política Democrática online

» Política Democrática online repercute acordo frustrado de Itaipu

» ‘Etanol é uma das maiores realizações do Brasil’, afirma Carlos Henrique Brito Cruz à Política Democrática online

» Pesquisa e inovação são destaques da nova edição de Política Democrática online