Lígia Bahia
Ligia Bahia: Poucas vacinas na mão
Num contexto de esforços para o acesso universal, pega muito mal comprar um lote particular com valores sujeitos a ágio
Primeiro, a boa notícia. Os resultados de estudos realizados em Israel, que já vacinou 75% dos idosos e 25% da população, evidenciam que a chance para teste positivo para Covid-19 é muito menor entre os imunizados. O impacto positivo da vacinação permite prever a redução das internações e mortes. Ainda é cedo para prever a eficácia na prevenção da infecção. Vai demorar para determinar se as pessoas vacinadas deixam de transmitir o vírus, mas já dá para comemorar. A segunda informação é que foram detectadas variantes (mutações) do agente biológico que causa a doença, inclusive no Brasil. Há evidências de que as vacinas conseguem atuar sobre essas linhagens. Mas o país ainda conta com poucas vacinas e doses. A vacina funciona. Porém atrasos de entrega e escassez são obstáculos para o recuo da transmissão.
O Brasil tem duas vacinas e distribuiu 8, 8 milhões de doses (6,8milhões pelo Butantan e 2 milhões pela Fiocruz). Cada pessoa necessita de duas doses, e os produtos distintos não admitem intercâmbio. É possível alongar para três meses o tempo entre o recebimento da primeira e da segunda dose da vacina denominada Oxford-AstraZeneca. Incertezas sobre prazos e quantidades a ser entregues ocorrem em todo o mundo. Mas aqui estamos fazendo as contas de trás para frente. O rateio para estados e municípios, a cada remessa de cada vacina, impede a elaboração de um cronograma e a distribuição racional de cada vacina.
Somando 5.400 litros do insumo da CoronaVac (mais 5 a 8 milhões de doses) ainda nesta semana e 10 milhões de doses da Oxford ao longo de fevereiro, não dá para vacinar o primeiro grupo prioritário definido pelo Ministério da Saúde, 15 milhões de pessoas, com duas doses. A carência estimula improvisos e fura-filas. O cronograma de vacinação foi substituído pelo acompanhamento do embarque e desembarque de aeronaves com vacinas. A ausência de um plano de vacinas, incluindo pesquisas e investimentos na produção e compras antecipadas, também condiciona preços. Estamos pagando mais que a Índia e a União Europeia por vacinas testadas no país.
O governo federal, imerso em sua bolha de cloroquina, foi incapaz de inserir o país no cenário global de disputas por vacinas. Decidiu criticar “vendedores”, em vez de diversificar encomendas. Optou pela cota mínima da iniciativa Covax Facility, vinculada à Organização Mundial da Saúde. Assumiu posição contrária ao questionamento da Índia e da África do Sul sobre patentes de vacinas na Organização Mundial do Comércio. A nova bolha, a conformada pela propaganda do Brasil como país que mais vacina e tem menos óbitos, furou antes do lançamento. Empresários preocupados com a velocidade da vacinação duvidaram da veracidade do céu de general desenhado pelo ministro da Saúde.
Grandes empresas sugeriram doar para o SUS, a exemplo dos fundos internacionais; outro grupo propôs a aquisição de cerca de 30 milhões de doses repartidas em cotas-partes públicas e privadas. Entre a modernidade e a segmentação social, o Ministério da Saúde errou de novo, ao dar aval ao modelo cercadinho VIP, compra de primeiros lugares na fila. A tentativa de estabelecer duas portas de entrada para a vacinação por meio da aquisição de insumos por entes privados é anticientífica e imoral. A definição de quem será vacinado se apoia em critérios epidemiológicos. A capacidade direta ou indireta de pagamento por ações de saúde é um parâmetro inaceitável em crises sanitárias. Num contexto global de esforços para o acesso universal, pega muito mal comprar um lote particular com valores sujeitos a ágio.
Precisamos superar a ideia de que o único acordo que temos é estar em desacordo. Seria o máximo do fundamentalismo supor que nada diferente acontece durante e após mais de 215 mil mortes por Covid-19, que tudo está fixo, que as relações sociais, inclusive de propriedade, não podem estabelecer outras interações e adquirir novos significados. Está dentro de nossas possibilidades sair da pandemia com um sistema de saúde público vinculado a uma base científica e industrial que torne sustentável a prevenção de doenças e atendimento com dignidade aos pacientes.
‘Brasil é destaque entre países com respostas tardias e insuficientes à pandemia’
Em artigo publicado na Política Democrática Online, Lígia Bahia e Mario Scheffer analisam comportamento do governo brasileiro na crise sanitária global
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Promessas não cumpridas, omissões e o reconhecimento da indisponibilidade de insumos estratégicos para o SUS (Sistema Único de Saúde) têm marcado a gestão do governo federal no combate à pandemia do coronavírus. A análise é da médica e professora adjunta da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Lígia Bahia e do professor do DMP (Departamento de Medicina Preventiva) da FMUSP (Faculdade de Medicina da USP) Mario Scheffer, em artigo que produziram, conjuntamente, para a revista Política Democrática Online de novembro.
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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. “A pandemia da Covid-19 e seus trágicos desdobramentos sanitários, políticos e econômicos concederam ao Brasil lugar destacado entre os países com respostas tardias e insuficientes à prevenção de casos e óbitos”, criticam os autores do artigo.
Lígia e Scheffer destacam que a demora e a desproporção entre a quantidade de recursos para rastreamento e tratamento de pacientes mobilizados e a magnitude da epidemia passaram a ser um problema em si. “Entre fevereiro e agosto de 2020, houve nítida mudança no conteúdo de pronunciamentos governamentais. No primeiro semestre, a preocupação com a ‘falta’ de leitos, equipamentos e testes competiu com debates em torno do uso ou não da cloroquina”, lamentam.
Em seguida, de acordo com os autores, o foco das atenções convergiu para o auxílio emergencial e para a abertura das atividades econômicas. Em maio de 2020, conforme eles lembram, três meses após o governo federal ter declarado o estado de emergência em saúde pública no Brasil, o SUS, os profissionais da saúde e a população diretamente afetada pela Covid-19 ainda conviviam, em muitas cidades, com problemas. “Grave insuficiência de leitos de internação, falta de médicos e de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde, assim como era precário o fornecimento de ventiladores e kits de testes diagnósticos”, afirmam.
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