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Arte: João Rodrigues/FAP

Ligia Bahia: “Redução da desigualdade deve ser prioridade nacional”

João Rodrigues, da equipe da FAP

O Brasil completa 200 anos da Independência na próxima semana. E para celebrar o bicentenário desta data tão relevante para o futuro do nosso país, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira iniciou na semana passada um ciclo de quatro entrevistas.

A segunda convidada da série sobre o Bicentenário da Independência, da Rádio FAP, é a professora Ligia Bahia. Ela é docente no curso de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e cursou mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Ligia Bahia também é integrante do Conselho Curador da FAP.



A redução da desigualdade como meta nacional prioritária, os desafios para o Brasil voltar a ser protagonista no século XXI e a importância de novos avanços na saúde pública brasileira também estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios dos canais do Youtube: Conteúdo Progressista, Coletividade com Saúde, Canal USP e Maestria nos Negócios.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google PodcastsAnchorRadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.

RÁDIO FAP




Lígia Bahia: Vacina antidesfaçatez

Em 2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas somadas a eventuais viroses emergentes

Oportunidades desperdiçadas para controlar a disseminação da Covid-19 em 2020 serão transferidas, com acréscimo de dificuldades, para o próximo ano. Históricas experiências do Brasil — desde as campanhas contra a febre amarela, DST/aids, dengue, chicungunha e zica — foram substituídas por charlatanismo, ameaças à Organização Mundial da Saúde e descuido proposital com a organização da prevenção, da vigilância de casos e do atendimento adequado a doentes. Desprezo pelas recomendações científicas, corte de recursos para pesquisa, presença irrelevante ou aliada automaticamente aos países ricos nos debates internacionais sobre o acesso universal ao conhecimento e inovações tecnológicas nos impediram de compartilhar plenamente o legado de 2020: ampla utilização de intervenções não farmacológicas para eliminar a transmissão de uma doença respiratória e produção rápida de testes e vacinas.

Em 2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas, somadas a eventuais viroses emergentes com potencial de transmissão global, e das visíveis e grandes falhas do sistema público de saúde. Necessitamos de uma infraestrutura de saúde pública moderna e do restabelecimento de uma gestão unificada da saúde. A garantia de suprimentos estratégicos, como equipamentos de proteção individual e testes, e da integração do país nas redes mundiais de pesquisa para restabelecer a gestão da pandemia é uma atribuição de âmbito nacional. Critérios padronizados e transparentes para a aprovação e alocação de recursos orçamentários — incluindo compras e produção de vacinas e a garantia de assistência para casos graves — são medidas objetivas para o enfrentamento de fenômenos que não respeitam limites administrativos.

Cada sociedade tem uma faixa, maior ou menor, de fanáticos, de pessoas que falam e agem sem considerar consequências nefastas de suas atitudes. No transcorrer do ano, a dose de dissimulação e irresponsabilidade foi excessiva e constante. O presidente Bolsonaro assinou a Medida Provisória 1.015, em 17 de dezembro, prevendo o gasto de R$ 20 bilhões com a vacinação, cuja justificativa técnica baseia-se no “cumprimento do dever do Estado de garantir a todos o direito à saúde” e no contato (memorandos de entendimento) com “empresas desenvolvedoras”. Poucos dias depois, declarou não aceitar pressão, não ter pressa e que “os interessados em vender para a gente” devem se apresentar.

O ministro da Economia, no fim de outubro, cometeu um erro crasso ao afirmar a diminuição da pandemia e a retomada da economia. Dois meses depois, o mandatário — que não prorrogou o auxílio emergencial no contexto de aumento do desemprego e de pessoas vivendo em situação de pobreza — disse que só a vacinação “em massa” pode sustentar a recuperação econômica.

Ora tem, ora não tem pandemia; ora a saúde é direito, ora é uma coisa que se compra se alguém quiser vender. O Poder Executivo federal mente descaradamente. Está mais que comprovada a indisposição de ocupantes de cargos estratégicos para resolver a crise sanitária. A Presidência da República e seus ministérios se recusam a processar democraticamente divergências e conflitos. Um quadro institucional incapacitado para diferenciar verdade, ou pelo menos verossimilhança, da falsidade requer atenção urgente de órgãos legislativos, judiciários, estados e prefeituras. Constata-se uma tendência assustadora de condenar idosos, trabalhadores de baixa renda, negros e indígenas à categoria de semimortos. Divergências entre quem considera que as políticas implementadas foram instáveis e ineficazes e os que as avaliam como excelentes podem ser julgadas, em 2021, pelo confronto com princípios básicos, como o direito à saúde e à vida. A administração de interesses, valores e ambições diferenciados requer profundo respeito às esperanças por justiça.

Um SUS grande, potente, efetivamente universal e de qualidade não é um procedimento eletivo ou substitutivo, um estepe para usar quando fura o auxílio pecuniário e se apela para a vacina. É essencial para que nos tornemos perene e progressivamente mais iguais.


Ligia Bahia: A PPP pró-pobres e pretos

Instituições de saúde onde pobres e negros só entram como serviçais não devem ser financiadas com dinheiro público

Falso positivo é o registro de um fenômeno que parece ser, mas não é. Quando se trata de testes, refere-se a uma alteração ou doença que não existe. Na política, indica relações causais errôneas, das quais derivam ações supostamente favoráveis. Falsos positivos não são mentiras, expressam limites na coincidência entre essência e aparência. Resultado laboratorial positivo não é necessariamente diagnóstico, depende. Para que um teste seja bom, seu valor preditivo deve ser alto, não basta detectar os positivos; é necessário discernir os negativos.

Atos governamentais são falsos positivos quando proposições supostamente favoráveis à maioria iludem. Como convicções, interesses, crenças e vontades se misturam nas formulações de programas públicos, a identificação de políticas falsas nem sempre é imediata. Enquanto as descaradamente espúrias, como a ameaça de trocar ministro da Saúde quando o número de casos e óbitos aumenta, são perceptíveis, as retóricas do tipo “não tem outra saída” passam como verídicas.

Esse é o caso das Parcerias Público-Privadas (PPPs), anunciadas como solução para reorganizar o SUS. Seus defensores consideram que a substituição de instituições públicas — morosas e vazadas por más práticas — por organizações privadas produtivas e incorruptíveis pouparia os orçamentos governamentais e modernizaria o SUS. PPP é uma denominação propositalmente vaga. Ficam na terra, os contratos do público com o privado, o repasse regular de recursos financeiros do primeiro para o segundo. Vão para o ar, os nunca atingidos choque de gestão, eficiência e probidade.

Como se trata do que já é (nunca faltou no Brasil transferência do fundo público da saúde para o setor privado), a parceria refere-se a um plus, uma ajeitadinha para incluir novos itens nos acordos vigentes. A verificação da veracidade dos efeitos benéficos das PPPs comprovaria uma proporção elevada de falsos positivos. A transferência de verbas e atribuições públicas para o setor privado, sob premissas equivocadas sobre a origem dos problemas de saúde, não reduz desigualdades, embora pareça promissora à expansão do empresariamento.

A Covid-19 revelou com nitidez que a privação e o racismo abreviam a vida. Portanto, o país precisa de uma outra PPP, a Pró-Pobres e Pretos, que compreenda quais são os riscos à saúde e expresse objetivamente a destinação dos recursos públicos para poupar vidas e assegurar longevidade. Instituições de saúde em que pobres e negros mal põem os pés, só entram como serviçais, não devem ser financiadas com orçamentos públicos diretos ou indiretos.

Atender com dignidade, realizar diagnósticos precoces e tratamentos adequados para os segmentos populacionais que moram em favelas e periferias — sem a segregação do hospital para rico ou do SUS — é parâmetro obrigatório para qualquer PPP civilizada. Em 2019, a presença de estudantes de Medicina pretos e pardos ou de famílias de baixa renda era muito maior nas faculdades públicas (36%) do que nas privadas (23%). As cotas sociais e raciais no ensino superior público, isoladamente, são insuficientes para alterar o padrão desigual no acesso à formação médica.

Muitos prefeitos eleitos incluíram PPPs em suas plataformas. O recrudescimento do número de casos e mortes pelo novo coronavírus tem sido encarado como janela de oportunidades. Empresários passaram a falar em “digitalização do SUS” e telemedicina, misturando cartão, prontuário, pacote de informações eletrônicas e consultas remotas. O combo de produtos promete tirar o SUS da indigência analógica. Mas a PPP verdadeira, duradoura e sustentável seria a vinculação do SUS a centros computacionais universitários, financiados por entes públicos e empresas privadas inovadoras.

Sem abordar a redução das disparidades sociais estruturais, as PPPs não se coadunam com o SUS. Trabalhar junto, com a participação ativa dos segmentos populacionais vulneráveis, é desejável, desde que a meta seja a prevenção de sofrimentos evitáveis. Muito difícil dar certo, mas conta a favor ser uma política autêntica. Prioridades imediatas para a saúde são um Natal sem fome e sem mais perdas de familiares e amigos. Uma PPP verdadeiro positivo tem como tarefas a ampliação do auxílio de renda, o apoio, sem vacilação, ao controle da transmissão da pandemia e a reorganização de serviços de saúde para salvar os vivos.


RPD || Ligia Bahia (UFRJ) e Mario Scheffer (USP): Como o SUS sairá da pandemia?

Promessas não cumpridas, omissões, evasivas e o reconhecimento da indisponibilidade de insumos estratégicos para o Sistema Único de Saúde têm marcado a gestão do Governo Federal no combate à pandemia

A pandemia do Covid-19 e seus trágicos desdobramentos sanitários, políticos e econômicos concederam ao Brasil lugar destacado entre os países com respostas tardias e insuficientes à prevenção de casos e óbitos. A demora e desproporção entre a quantidade de recursos para rastreamento e tratamento de pacientes mobilizados e a magnitude da epidemia passaram a ser um problema em si. Entre fevereiro e agosto de 2020, houve nítida mudança no conteúdo de pronunciamentos governamentais. No primeiro semestre, a preocupação com a “falta” de leitos, equipamentos e testes competiu com debates em torno do uso ou não da cloroquina.

Em seguida, o foco das atenções convergiu para o auxílio emergencial e para a abertura das atividades econômicas. Em maio de 2020, três meses após o Governo Federal ter declarado o estado de emergência em saúde pública no Brasil, em 4 de fevereiro, o SUS, os profissionais da saúde e a população diretamente afetada pela Covid-19 ainda conviviam, em muitas cidades, com grave insuficiência de leitos de internação, falta de médicos e de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde, assim como era precário o fornecimento de ventiladores e kits de testes diagnósticos.

O tom otimista e tranquilizador de autoridades governamentais sobre a “preparação do País” e a “capacidade do SUS” para o enfrentamento da pandemia foi pouco a pouco substituído por promessas não cumpridas, omissões, evasivas e o reconhecimento da indisponibilidade de insumos estratégicos. Por ocasião do registro oficial do primeiro caso positivo no país, em 26 de fevereiro, o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que recursos novos estariam sendo investidos para a expansão de leitos, compra de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde e em laboratórios para a realização de testes.

O alegado investimento, como outros anúncios oficiais que se seguiram, teve pouca repercussão prática. Em maio, ainda estava explícita a carência extrema de testes e leitos para internação, além do colapso de unidades de terapias intensiva em capitais como Fortaleza, Manaus e Rio de Janeiro. Entre os meses de fevereiro e maio, embora menos eufóricos, discursos oficiais insistiam, no ápice da pandemia, em anunciar a expansão da rede hospitalar e a aquisição de insumos que deveriam ter sido providenciados muito antes da explosão da Covid-19 no País.

Em pleno agravamento da falta de vagas para internação de pacientes no SUS, transmitido diariamente pela mídia, ainda se ouvia que muitos leitos estariam disponíveis somente quando estivessem prontos novos hospitais, concluídas reformas e readequações na rede pública ou iniciadas negociações de compra de vagas do setor privado. Um dos principais parâmetros para a saída do isolamento social, o indicador de ocupação hospitalar, restava inviável, num cenário em que sequer os leitos prometidos e necessários eram ofertados. A tentativa tardia de responder, face à constatação da imensa subnotificação de casos, que em parte pode até hoje ser atribuída à ausência da testagem em larga escala, foi malograda. O então Ministro da Saúde, Nelson Teich, prometeu que o governo compraria 46 milhões de testes, quando sequer a divulgação de Mandetta, o ministro anterior, de distribuir 23,9 milhões de testes, havia sido concretizada. Similarmente, a divulgação oficial de que o Ministério da Saúde cadastraria cinco milhões de profissionais da saúde para reforçar o enfrentamento ao coronavírus fracassou.

Foram crescentes a falta de médicos, de especialistas em medicina intensiva e de pessoal na linha de frente assistencial, em condições de trabalho inadequadas e inseguras, com excesso de pacientes, sobrecarga de horas de trabalho, estresse emocional, infecção, bem como os óbitos de trabalhadores da saúde. Sem uma gestão coordenada de recursos humanos, viu-se a dificuldade de contratações temporárias e improvisadas, delegadas a organizações sociais privadas, fragmentadas em editais e chamadas pouco atrativas. Promessas de recursos financeiros com dois dígitos de bilhão, testes com dois dígitos de milhão, respiradores e leitos com dois e três dígitos de milhar, respectivamente, não se concretizaram, nem nas compras anunciadas, nem nos prazos previstos, nem nas datas de entrega, invariavelmente atrasadas, se e quando ocorreram. Expressões como “colapso do sistema de saúde” e “pontuação em UTI”, para avaliar quem vive e quem morre, chegaram a ser naturalizadas em determinado momento.

O fenômeno biológico do coronavírus e as dificuldades objetivas que o cercam, como a inexistência de terapias eficazes e de vacina, definitivamente, não são da mesma natureza da desorganização de um sistema de saúde e dos desmandos políticos que repercutiram decisivamente no aumento do número de mortes e, mais de seis meses após a entrada da Covid-19 no Brasil, são responsáveis por péssimos indicadores de controle da pandemia. Mesmo em meio às incertezas sobre a doença, diversos países resolveram as equações para o controle da disseminação e a redução da letalidade no âmbito do sistema de saúde, das instituições e dos serviços.

Os obstáculos objetivos para a contagem de todos os casos de Covid-19, assintomáticos e sintomáticos, comuns a tantos países, são bem distintos das barreiras que, no Brasil, impediram a contagem transparente de leitos de internação, o acompanhamento da execução orçamentária excepcional, da quantidade de testes ou do número respiradores colocados à disposição da população.

Imprecisões das informações sobre o modo de transmissão e disseminação da doença não são comparáveis à precariedade dos registros administrativos para o exercício do controle social e a produção de conhecimento científico sobre as respostas governamentais à epidemia. No Brasil, essa confusão, seja proposital ou não, impede até agora o discernimento dos rumos tomados pelo SUS e pelas políticas de saúde durante a pandemia.

Dos recursos previstos, de rotina do SUS ou excepcionalmente autorizados para a pandemia, o que de fato foi liberado e entregue, quando e para quem? A magnitude dos recursos que foram de fato operacionalizados é compatível com as necessidades de atendimento e as demandas acrescidas durante a pandemia?

A pergunta a ser respondida futuramente é se o SUS, que passou a ser reconhecido como um sistema de saúde adequado ao Brasil, sai maior, mais potente e com maior aceitação social após a pandemia do novo coronavírus?

*Lígia Bahia é médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980), mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1990) e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1999). É professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

*Mario Scheffer é professor Doutor do Departamento de Medicina Preventiva (DMP) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde.


Lígia Bahia: Consensos e omissões na saúde

Programas de candidatos são imprecisos e medrosos

As cidades são responsáveis diretas por parte da oferta de serviços e financiamento das ações de saúde. Em 2019, 23% das internações, 44% dos procedimentos ambulatoriais e 30% dos recursos financeiros para o SUS foram originados nos municípios brasileiros. Além da geração de atividades e receitas próprias, os municípios recebem repasses da União e estados e realizam convênios com instituições públicas, filantrópicas e privadas.

Como a procura por cuidados e a insatisfação com o atendimento ocorrem nos municípios, as eleições para prefeitos e vereadores propiciam um debate objetivo sobre saúde, especialmente ao coincidirem com uma crise sanitária global. A maioria dos 14 programas que concorrem à prefeitura do Rio de Janeiro menciona consequências da transmissão da Covid-19 e contém propostas concretas e coincidentes para ampliar a saúde pública.

São pontos de convergência entre candidaturas situadas em qualquer ponto do gradiente esquerda-direita: a expansão das unidades de atenção básica; a adoção de tecnologias de informação, seja no âmbito administrativo, seja como complemento ao atendimento presencial; e a disposição para organizar e dinamizar o complexo de pesquisas e produção de vacinas, testes e equipamentos. A valorização de necessidades especificas de saúde para a população negra e LGBT é quase consensual. Fica explícita, inclusive, no programa do PSL (ex-partido do presidente Bolsonaro) e escondida na plataforma do prefeito, candidato à reeleição.

Segundo os programas eleitorais, o SUS carioca ficará maior, terá informações mais acessíveis por meios digitais e assistência digna, decorrente da redução de preconceitos e estigmas, bem como da articulação da prefeitura com as universidades, Fiocruz e indústrias setoriais. Mas as justaposições sobre a importância do SUS não se repetem na definição sobre como, com quem e quando essas medidas serão efetivadas. Os documentos programáticos são obrigatórios para o registro de candidatos a cargos executivos, mas não existem regras sobre conteúdo e forma. Cada partido político ou coligação decide sobre a divulgação de suas proposições. Existem programas-livros e outros com menos de dez páginas. Apesar das diferenças de tamanho, as ideias sobre a execução das políticas propostas são quase sempre difusas, apenas se examinadas detidamente permitem detectar divergências.

Todos são favoráveis ao SUS, ao crescimento das atividades de saúde pública, mas as soluções variam desde gastar mais R$ 5 bilhões com saúde no primeiro ano de mandato até a redução de despesas. Tampouco existe concordância sobre os profissionais de saúde. As promessas incluem a contratação de seis mil para a rede pública, aumentar salários e realizar concursos, mas também retomam a velha acepção — comprovadamente inviável desde os anos 1970 — de credenciar consultórios médicos particulares. Críticas às organizações sociais unem as candidaturas de esquerda e a de Crivella. A defesa do modelo de delegação da gestão a terceiros ficou a cargo dos partidos Novo, Socialista Cristão e Social Liberal. As filas de espera para consultas especializadas, exames e internações são motivo de preocupação, mas seguem não equacionadas. O único candidato que avança nas metas para fazer a fila andar afirma que, no final de seu mandato, a demora será 30% menor. Um desconto com pouco sentido prático. Pessoas com catarata, que não conseguem sair de casa porque não enxergam, em vez de permanecer assim durante 365 dias, serão condenadas a ficar nessa condição durante 255 dias em 2024. A espera seguiria sendo interminável

Temas tabus estão ausentes. São cinco mulheres candidatas, e praticamente zero palavra sobre aborto. A cidade “pestilenta”, denominada túmulo dos estrangeiros no final do século XIX, foi objeto de políticas efetivas de saúde pública. Em 2020, a cidade com a mais elevada taxa de letalidade por Covid-19 entre os municípios brasileiros tem um SUS degradado, concentrado nas áreas de maior renda. Os programas eleitorais estabelecem um terreno comum para o debate sobre saúde, mas são imprecisos e medrosos. Temos tempo até novembro para exigir coerência e elucidação das plataformas eleitorais.


Lígia Bahia: Desigualdades e desacertos

Cancelamento da saúde como política governamental na gestão Bolsonaro é fato inédito

Informações recém-divulgadas da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do IBGE sinalizam pequenos avanços e recuos do SUS — e a persistência do fosso entre quem mais precisa de cuidados e o acesso. Os dados são essenciais para diagnosticar a situação de saúde, captar tendências e orientar as políticas públicas. Entre os dois inquéritos, realizados com intervalo de seis anos, a cobertura para atendimento médico cresceu: era 71,2% em 2013 e passou para 76% em 2019. No mesmo período, o total de pacientes internados aumentou de 6% para 6,6%, revelando pequeno aumento na capacidade do sistema.

Mas persistem desigualdades nas chances de realizar determinados procedimentos odontológicos e médicos. Em 2019, a proporção de consulta com dentista foi de 36% para quem se situa na menor faixa (menos de um quarto de salário mínimo) e 76% para pessoas da classe mais alta de renda (acima de cinco salários mínimos). A oportunidade para realizar internações e cirurgias foi duas a três vezes maior para quem está vinculado a planos privados de saúde. Consequentemente, o padrão do atendimento na rede hospitalar do SUS difere do organizado pelo setor privado; o público tem maior proporção de casos clínicos, e a assistência suplementar, de pacientes cirúrgicos.

Os inquéritos sobre saúde realizados pelo IBGE também permitem avaliar o desempenho de políticas públicas específicas. Houve incremento no cadastramento dos domicílios pelas equipes de saúde da família; contudo as visitas de agentes comunitários diminuíram. Os programas públicos de acesso a medicamentos permitiram que 30,5% dos atendidos pelo SUS em 2019 obtivessem ao menos um dos medicamentos prescritos. Esse panorama da aquisição de remédios fica mais bem delineado pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). As despesas com remédios pesam 4% no bolso das famílias com menor renda e representam 1,4% para as que contam com orçamentos maiores. O conjunto de dados fornecidos pelas pesquisas oficiais contém evidências sólidas para orientar decisões sobre prioridades e investimentos públicos.

Entretanto essas relevantes informações são pouco consultadas pelas autoridades políticas. Basta dedicar um olhar ligeiro às pesquisas para verificar o porquê das imensas filas para cirurgia no SUS, bem como o alcance e as limitações da efetividade de equipes de saúde da família e cobertura de medicamentos.

Ideias apresentadas como geniais, definitivas, como as organizações sociais, mostraram-se frágeis para superar desigualdades exigentes de políticas que incidam sobre a formação e alocação de recursos humanos, a oferta de serviços e os gastos com saúde. É pura falácia propor “zerar filas”, “ampliar horários de atendimento” sem considerar a precarização dos vínculos dos profissionais de saúde e a diferença entre os valores de remuneração do SUS e dos planos de saúde.

Enquanto médicos e enfermeiros tiveram reconhecimento e aumento de salário na maioria dos países, o projeto de reforma administrativa apresentado pelo governo prevê a contratação provisória e salários baixos para os servidores públicos do Poder Executivo, incluindo aqueles que estão na linha de frente do enfrentamento da Covid-19. O crescente gasto direto com saúde, considerado catastrófico, parece não preocupar o governo federal. Em agosto, o ministro da Economia cogitou restringir o acesso ao programa Farmácia Popular para viabilizar o financiamento do Renda Brasil. Retrocedeu, mas insiste no corte de despesas para o SUS.

Ao longo da história houve governos que conferiram maior destaque à saúde e aqueles que levaram adiante políticas incrementais. Essa trajetória, intercalada pela inscrição do SUS na Constituição de 1988, nos assegurou sucesso no controle de riscos e doenças.

O cancelamento da saúde como política governamental, na gestão Bolsonaro, é um fato inédito. A macabra cerimônia de glorificação da cloroquina “Vencendo a Covid”, no mês passado, e a ausência dos mortos pela pandemia no discurso presidencial no Dia da Independência afirmam o empenho do governo contra a “sombra dos comunistas” e a radical indiferença perante doentes e mortes. Ao contrário de Juscelino Kubitschek, reconhecido pela dedicação para reverter a acepção nacional e internacional do “Brasil, país doente”, o atual presidente será lembrado pela insensibilidade ao sofrimento causado pelas doenças e ao combate a espectros.

*Professora da UFRJ


Ligia Bahia: Nós e os outros

A comoção perante os mesmos fenômenos de injustiças na saúde não dá início a ações semelhantes

Mudou o modo de pensar sobre o SUS. Antes da pandemia, Rodrigo Maia pretendia expandir os planos privados de saúde, “ampliar a base de brasileiros segurados de 40 milhões para 60 ou 70 milhões”, e agora passou a considerar que “tinha uma visão muito pró-mercado privado de saúde, mas a gente vê que o SUS é importante”. O uso do plural (a gente, nós) subentende os que leem e interpretam de modo similar as estatísticas e se preocupam com o atendimento aos doentes.

Nós somos pessoas orientadas pela Ciência, concordamos com as medidas de isolamento social, com o uso correto de máscaras e com a relevância do SUS. Vemos os mesmos fenômenos e os interpretamos de modo similar, mas nem sempre compartilhamos sentimentos iguais perante a indignidade e a insanidade. O consenso em torno do que seria do Brasil sem o SUS é insuficiente para igualar as expectativas sobre o futuro. Setores empresariais, instados pela declaração do presidente da Câmara sobre o SUS, querem saber: “Como você pensa que podemos melhorar o SUS, mas sem ser radical, né?”. Querem respostas sobre um SUS que não se torne um estorvo, que alavanque os negócios setoriais.

A concordância sobre a omissão e a indignidade subjacentes às mortes causadas pela Covid-19 não iguala expectativas sobre o futuro. No lugar da pergunta — como nós faremos para ter um SUS importante? —, volta-se ao “nós contra vocês”. Erudição embolada com interesse privado resulta na crença: planos privados desoneram o SUS. Um ponto de vista respeitável, mas sem nenhum fundamento científico.

O alegado alívio de demanda para a rede pública jamais ocorreu. No período 2013-2015 (quando houve o maior aumento do número de planos), a assistência suplementar realizou entre 18,5% e 19% do total dos partos. Cresceram os partos realizados pelo SUS e pela assistência suplementar. Incremento nos planos privados não é garantia de retração da procura pelo SUS. Segundo a Pnad-Covid-19, realizada pelo IBGE em maio e junho de 2020, 78,2% e 82,3% dos que buscaram serviços em função de mais de um sintoma de coronavírus a cada mês foram ao SUS (a resposta poderia indicar mais de um local, ou seja, a rede pública e a privada).

Essas informações não significam que o setor privado é inexpressivo, pode desaparecer, apenas questionam a existência de compartimentos separados num sistema de saúde complexo. Como todos sabem, mas nem sempre é conveniente admitir, uma parcela de quem tem plano usa o SUS, outra paga, além da mensalidade das operadoras, consultas médicas e dentistas particulares. Contratos com efetiva proteção financeira e qualidade assistencial são para poucos. Os transplantes, mesmo para os ricos, dependem do SUS. A comprovação de que planos privados não solucionam problemas do SUS não altera uma vírgula na história, mas talvez contribua para que a explicitação de interesses seja critério obrigatório de credenciamento ao debate.

Reagimos com as mesmas palavras para exprimir a repulsa às injustiças na saúde, dizemos que é preciso pôr fim a tanta abominação. Mas a comoção perante os mesmos fenômenos não desencadeia ações semelhantes. Parte dos indignados sente muito, mas não se interessa pelas causas das diferenças na probabilidade de morrer entre indígenas, negros, pobres e os segmentos sociais com maior renda. Tampouco divulgam a situação de saúde precária dos clientes de planos privados. A pesquisa Vigitel 2018 registrou uma proporção de excesso de peso um pouco mais elevada para clientes de planos de saúde em Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo do que na população em geral.

Todos nos indignamos, mas, quando chega a vez de definir como evitar essas atrocidades, as afinidades evanescem. O projeto de planos de saúde com coberturas ainda mais reduzidas e menor preço teve até agora duas versões: a oficial, debatida em comissão no Congresso Nacional, cujo relator foi o deputado Rogério Marinho, e o documento apócrifo noticiado pelo jornalista Elio Gaspari. Ambas foram engavetadas, tinham em comum um “nós” que pretensamente falaria por todos. Um “nós” minúsculo, reunido em torno de argumentos frágeis, indefensáveis. Caso a pergunta sobre o que fazer com a saúde fosse endereçada a um “nós” ampliado, aos familiares dos mais de cem mil mortos, qual seria a resposta?


Ligia Bahia: Falsos otimistas

Governantes omitem a parte principal da história: quando doentes, correm para hospitais privados de excelência

Quatro meses e mais de 74 mil mortes por Covid-19 separaram audazes e intrépidos médicos, empresários e políticos cloroquinistas dos céticos e prudentes pesquisadores, adeptos da preservação das estratégias de isolamento social. Ao longo do tempo, as ideias circulantes se coagularam em torno da oposição entre a prática, observações pessoais e as evidências científicas. Uma falsa dicotomia. Como se a adesão a comprimidos conferisse audácia e euforia; e a insistência nas medidas preventivas, covardia e pessimismo.

Na vida real, os impulsos se misturaram com experiências concretas e conferiram concretude a pelo menos três condutas assistenciais. Políticos, propagandistas de medicamentos, recebem pílula, dois eletrocardiogramas diários e acompanhamento médico. Pacientes acessam serviços de saúde públicos ou privados do circuito medicina-pesquisa e obtêm explicações sobre proteção e adoecimento. Parcela da população é beneficiária de pacotes com comprimidos, supostamente eficazes, entregues em casa, espaços públicos improvisados e algumas empresas de planos de saúde.

Presidente da República e prefeitos que recomendam remédio antimalárico e distribuem vermífugos omitem a parte principal da história: quando ficam doentes, correm para hospitais privados de excelência, prestigiados inclusive porque pararam de incluir essas drogas em seus protocolos. Valentes libertários, defensores da liberdade inclusive para se tornar doente e infectar os demais, não usam apenas comprimido e copo com água, contam com uma potente retaguarda. O ímpeto de estar no front de peito aberto é aparente, tanto quanto ilusório o enunciado de vivência pessoal favorável ao medicamento.

A cronologia de declarações favoráveis à hidroxicloroquina mostra a dianteira de Trump como charlatão oficial. Em 19 de março, o presidente dos EUA disse que o medicamento poderia “mudar o jogo”. O mandatário brasileiro imitou o americano. Em 21 de março anunciou aumento da produção de cloroquina. Ambos os presidentes disseram terem tomado o remédio. Trump assegurou no início de junho que não teve efeitos colaterais, e Bolsonaro se dirigiu “aos que torcem contra o uso da cloroquina, mas não apresentam alternativa” para informar que está muito bem.

Celebrar as interações humanas movidas por vontades individuais tem efeitos deletérios sobre a configuração institucional. O sumiço do Ministério da Saúde foi ocupado por novos arranjos institucionais. Empresas de saúde cloroquinistas se uniram a burocratas de ocasião, ocupantes de cargos no Ministério da Saúde que irradiam orientações para a prescrição de remédios para médicos, redes sociais e prefeituras.

Outro enclave reúne hospitais filantrópicos privados de São Paulo, que atendem a estratos de maior renda, com grandes empresas e algumas instituições públicas. Recursos doados foram aplicados para a expansão da oferta de leitos permanentes e em hospitais de campanha, telemedicina, aquisição de equipamentos e testes. São diretrizes de ação distintas. A primeira cruzada tem como missão levar medicamentos para todos. A segunda concentra-se em torno de lacunas assistenciais. Entretanto, nenhum dos esforços empresariais é capaz de desempenhar o papel de coordenação de estratégias populacionais com as iniciativas de assistência individual — reservado a autoridades sanitárias públicas.

A desconfiguração do SUS exponencia as assimetrias “naturais” de poder e desigualdades, faz do estado de natureza um ideal de sociabilidade. A briga não é entre sujeitos individuais arrojados contra cientistas hesitantes. A defesa da espontaneidade, do apelo aos instintos, ocorre em meio à dissolução dos nexos normativos e regulatórios estatais. Sem a esfera pública, não há autocontenção e reconhecimento dos danos que podemos infligir aos demais.

Esse legado de destruição, se não isolado, pode contaminar os processos científicos públicos de avaliação, que determinam a segurança e efetividade de medicamentos, e vacinas que asseguram avanços no controle de doenças. Otimistas são os que não se conformam com uma mortandade de rebanho.


IHU Online: Fim do piso para a saúde é o divórcio definitivo da economia dos problemas sociais, diz Ligia Bahia

Por Ricardo Machado, IHU Online

No centro do alvo das políticas administrativas e econômicas do atual governo estão as políticas sociais. Os três pilares que sustentam o austericídio das políticas públicas são as Reformas da Previdência e Trabalhista e a Emenda Constitucional – EC 95, que congelou os investimentos em áreas fundamentais para o país, como saúde, educação e segurança. Uma nova ofensiva visa desmantelar ainda mais o Sistema Único de Saúde – SUS. “A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais”, ressalta a professora doutora e pesquisadora Ligia Bahia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde”, avalia a pesquisadora. No fundo há uma visão, por parte de quem defende o corte de recursos para a saúde, vulgarizada do que é o SUS, ao mesmo tempo que se romantizam os planos privados, que, atualmente, devem mais de R$ 1,7 bilhão aos cofres do Sistema Único de Saúde. “A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita”, critica.

ataque à saúde pública e universal é mais um capítulo no processo contínuo de destruição das conquistas sociais da Constituição Federal de 1988, que tem ocorrido, de forma explícita, desde 2016. Ao projetar o futuro, Ligia Bahia faz um balanço sobre os investimentos na área nos últimos dez anos. “A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil”, projeta.

Ligia Bahia é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destacamos Planos e seguros de saúde. O que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (São Paulo: Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e inovação (Rio de Janeiro: Cepesc, 2015).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que a extinção dos pisos para investimento nas áreas de saúde e educação está no raio de ação da PEC do Pacto Federativo?

Ligia Bahia – A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. Ambas políticas foram justificadas com o argumento que poderia haver aumento dos recursos para a saúde e o que ocorreu foi o contrário. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais. Essa ameaça de “liberação” das amarras do orçamento é o ponto máximo dessa ruptura onde haveria um orçamento extraído de impostos, taxas e contribuições que não dialoga com as necessidades sociais do país. Em tempos de Coronavírus ao invés dos esforços para ampliar recursos para a saúde pública o governo anuncia que irá restringir as respostas para a melhoria da saúde.

IHU On-Line – Em específico para a área da saúde, quais os riscos da extinção do piso mínimo de investimento? Como isso se materializaria no cotidiano do SUS?

Ligia Bahia – O financiamento do SUS dependeria exclusivamente da boa ou má vontade de cada governo e assim fica tudo ainda mais difícil. O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde.

IHU On-Line – O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC do Pacto Federativo, já declarou que além de educação e saúde, estuda incluir o setor de segurança pública no pool de áreas que devem ter o piso mínimo para investimentos extinto. Quais podem ser as consequências de medidas como essas?

Ligia Bahia – São proposições diretamente derivadas de acepções completamente errôneas sobre as relações entre economia e questões sociais. Nós nunca defendemos engessamento do orçamento, os pisos foram adotados como estratégias de resistência às políticas sucessivas de ajustes fiscais e subfinanciamento do SUS. Os pisos se confundem com tetos exatamente porque os governos não priorizam políticas essenciais para a efetivação de direitos básicos de cidadania. O núcleo do problema nunca foi a “reserva” de recursos e sim a negligência com as políticas sociais.

IHU On-Line – Em mais um verão, o Brasil vê aumentar a incidência de doenças causadas por vetores, como a Dengue. O que esses dados revelam acerca dos investimentos estatais em saúde pública e na própria concepção do SUS nesse último ano?

Ligia Bahia – As arboviroses, entre as quais a Dengue, se tornaram endêmicas no Brasil. O país realizou investimentos na produção de vacinas e mantém esforços em relação à vigilância epidemiológica. Entretanto essas iniciativas sempre foram insuficientes e uma parte delas está sendo descontinuada. A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita. A acepção sobre as relações entre saúde e desenvolvimento econômico e social está soterrada sob o cimento da indiferença de autoridades governamentais pelo sofrimento da população com doenças que poderiam ser evitadas.

IHU On-Line – Como avalia atualmente a estrutura e ações de saúde preventiva no Brasil, desde a ação de agentes comunitários de saúde, a unidades de atenção básica?

Ligia Bahia – Estamos certamente diante de uma retração do SUS e de sua possibilidade de resolver problemas de saúde. A prevenção no sentido literal sempre foi frágil e está evidente, desde os casos de febre amarela, que temos problemas muito graves que incluem desde qualidade e transporte adequado de vacinas até a oferta de unidades de saúde abertas limpas e dotadas de profissionais de saúde e medicamentos.

IHU On-Line – Em agosto de 2019, o governo federal encerrou o programa Mais Médicos e abriu, em substituição, o Médicos pelo Brasil. Pouco mais de meio ano depois, como avalia essa mudança?

Ligia Bahia – O programa Mais Médicos foi um marco no Brasil, demonstrou ser possível alocar profissionais de saúde em lugares distantes e inóspitos. O Ministro Mandetta não suprimiu a política de interiorização de médicos. Considero que a continuidade deva ser comemorada como uma conquista da saúde pública. É importante dar seguimento a uma política que busca uma distribuição mais homogênea de recursos. Certamente houve perdas de traços importantes do programa mais médicos relacionados com a presença dos profissionais cubanos: disposição para trabalhar sob condições muito precárias em áreas remotas. Mas houve também o reconhecimento, ainda que não explícito, de seus acertos. Os desafios agora estão explicitados: 1) a alternativa carreira de Estado para médicos é de difícil viabilização, requer formulação e decisão política que são incompatíveis com o sentido e direção da reforma administrativa pretendida pela área econômica; 2) os postos de trabalho em áreas remotas e perigosas não são preenchidos mediante editais de convocação, será necessário encontrar alternativas estruturais e sustentáveis para manter a oferta de serviços nessas localidades.

IHU On-Line – O ano de 2019 encerrou com um verdadeiro caos na saúde pública do Rio de Janeiro. O que esse caso revela acerca da política de saúde pública no Brasil? Como conceber saídas para casos como esse do Rio de Janeiro?

Ligia Bahia – O Rio pode estar na “vanguarda” do caos. A queda de arrecadação, repasse irregular e insuficiente de recursos conjugada com a ausência de liderança de autoridades sanitárias e presença de milícias em unidades de saúde plasmam uma crise de enormes proporções. As saídas requerem reconhecimento dos problemas, transparência e participação e mobilização social para a definição de prioridades e monitoramento permanente da execução de políticas.

IHU On-Line – Quais os desafios para o fortalecimento e manutenção do SUS agora em 2020? E, além da PEC do Pacto Federativo, qual a maior ameaça?

Ligia Bahia – O SUS está de pé, ficou de pé. As principais ameaças são a expansão do setor privado. Os lobbies mais ativos na saúde concentram-se em torno da desregulamentação das coberturas dos planos privados. Empresas privadas querem vender mais planos. Do lado governamental, a principal ameaça é o desestímulo completo das carreiras públicas (um ministro que considera que servidores púbicos são parasitas). Não existirá um SUS abrangente e de qualidade sem servidores públicos muito bem formados, sem uma burocracia moderna e eficiente. A PEC do pacto federativo, a extinção dos mínimos orçamentários são ameaças que poderão ser revertidas por governos que priorizem a saúde, a acepção do SUS como política negativa, fracassada, ultrapassada causa danos irreversíveis.

IHU On-Line – Como o Brasil encerra a década de 2010 na área da saúde? E o que se projeta para a próxima década?

Ligia Bahia – A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil. Iniciamos a década com uma baita crise na saúde em várias cidades brasileiras.

IHU On-Line – Este ano tem eleições. Como a pauta da saúde deve emergir nesse contexto?

Ligia Bahia – Nas eleições municipais a saúde tem presença garantida nas plataformas eleitorais. Possivelmente haverá novidades porque as velhas soluções mágicas como os corujões, mutirões, atendimento móvel, nada disso deu certo, mostraram-se insuficientes. Temos que contribuir para a elaboração de programas e debates eleitorais que vinculem os temas sociais aos econômicos, buscando impedir que as promessas de campanha sejam meramente retóricas.

 

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Rio Janeiro vive desmazelo e incúria, diz Ligia Bahia na revista Política Democrática online

Em publicação da FAP, professora da UFRJ diz que desespero prevalece entre paciente e profissionais da saúde

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O desmonte do SUS (Sistema Único de Saúde) no Rio de Janeiro atinge atendimentos de ambulância na atenção primária e hospitais de emergência, que são recursos estratégicos para salvar vidas de doentes graves e acidentados. O alerta é da médica Ligia Bahia, mestre e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, em artigo que ela produziu para a 15ª edição da revista Política Democrática online. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que produz e edita a revista.

» Acesse aqui a 15ª edição da revista Política Democrática online

“Quem for ferido em um acidente de carro e encaminhado para uma emergência municipal estará no mesmo barco do restante da população”, afirma a Ligia Bahia, que também é professora associada da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). “A cidade, que, no passado, teve a melhor rede pública do país, tornou-se exemplo de desmazelo e incúria”, lamenta a médica, no artigo produzido exclusivamente para a revista Política Democrática online.

De acordo com Ligia Bahia, profissionais de saúde, contratados por organizações sociais, passaram a não receber salários em dia e a serem demitidos e reconvocados a trabalhar sob novos contratos. “Jovens médicos, expostos diariamente à insatisfação da população com condições de atendimento sempre precárias, estão migrando para cidades nas quais o SUS oferece melhores padrões assistenciais”, alerta a professora da UFRJ.

As reiteradas interpelações do Poder Judiciário, Ministério Público e órgãos de controle, como tribunais de contas são imprescindíveis, mas, conforme escreve a Ligia Bahia, chegam “na ponta”. “O desespero prevalece entre pacientes e profissionais de saúde. Os primeiros não sabem se serão atendidos; os segundos não conseguem aplicar seus conhecimentos porque não dispõem de condições adequadas de trabalho”, conta ela.

Ligia Bahia também tem experiência na área de saúde coletiva, com ênfase em políticas de saúde e planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destaca-se Planos e seguros de saúde: O que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (São Paulo: Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e inovação (Rio de Janeiro: Cepesc, 2015).

Todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online serão divulgados no site e nas redes sociais da FAP ao longo dos próximos dias. O conselho editorial da publicação é composto por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

 

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Política Democrática || Ligia Bahia: Saúde no Rio de Janeiro - ascensão, queda e desespero

Reconhecida internacionalmente até os anos 1990, a rede pública de saúde do Rio de Janeiro hoje está sem recursos e enfrenta o caos na atual gestão do prefeito Crivella

A rede pública de saúde no Rio, com seus hospitais de grande porte, centros de saúde e institutos de pesquisa, teve destaque internacional até os anos 1990. A cidade tinha o maior hospital de emergência da América do Sul, realizou a primeira cirurgia de coração e abrigou as iniciativas dos sanitaristas “jovens turcos” (a expressão alude aos oficiais conduzidos ao poder pelo General Ataturke), que propuseram reformas “rápidas e enérgicas”. Durante os governos do médico Pedro Ernesto Baptista (por dois períodos no início dos anos 1930), foram construídos os hospitais Getúlio Vargas, Jesus, Carlos Chagas, Rocha Faria, Paulino Werneck, Miguel Couto e o Hospital Central de Vila Isabel (que recebeu o nome de Pedro Ernesto). Após a II Guerra, os institutos de aposentadorias e pensões edificaram hospitais de grande porte na então capital do país.

Após a II Guerra, mudanças nas práticas clínicas e cirúrgicas impulsionaram investimentos dos Institutos de Aposentadoras e Pensões em hospitais de grande porte, muitos dos quais sediados no Rio de Janeiro. No início dos anos 1960, embaladas pela luta por democratização durante o Estado Novo, as ideias de Mario Magalhães, médico integrante do ISEB, sobre sanitarismo desenvolvimentista, adquirem destaque. A acepção segundo a qual “no Brasil se morre de tuberculose, mas igualmente morre-se de verminose, malária; de falta de assistência médica, por ignorância, e, principalmente, de miséria e fome, em consequência do grande atraso da economia nacional” inspirou um projeto de mudanças estruturantes, sustado pelo golpe de 1964. Com os governos militares e priorização de subsídios e contratos com estabelecimentos privados, termina a época de ouro da saúde pública no Rio.

As acepções reformistas do sistema de saúde só serão retomadas com os movimentos pela redemocratização nos anos 1980, protagonizados por pesquisadores do Rio de Janeiro, como Sérgio Arouca e Hésio Cordeiro. A inscrição do direito à saúde e do SUS na Constituição de 1988 tinha como fundamento a existência de uma rede pública no país e especialmente na cidade do Rio de Janeiro, que seria a base concreta para a garantia de atenção de qualidade para todos. A probabilidade de o SUS “dar certo” seria maior nas regiões com maior densidade de serviços públicos. E o que ocorreu de lá para cá foi uma conjugação de obstáculos à implementação do SUS, exatamente na cidade com a maior rede pública do país. Retração de recursos federais e ziguezagues de políticas de prefeitos e governos estaduais concorreram para o sucateamento dos estabelecimentos públicos de saúde.

A partir dos anos 1990, a cidade de São Paulo, com seus hospitais filantrópicos, privados, luxuosos e equipados, deixa o Rio, até então a cidade vanguarda da medicina e saúde pública, para trás. Houve esforços esparsos para reformar ou expandir a capacidade pública instalada na gestão Cesar Maia, e mais intensos durante o mandato de Eduardo Paes. Mas foram insuficientes para deter tendência estrutural de precarização das instalações físicas e condições de atendimento. Segundo denúncia da Defensoria e do Ministério Público do Rio de Janeiro, a administração municipal deixou de investir R$ 2,2 bilhões na saúde desde o início da gestão de Marcelo Crivella, em 2017, e quase R$ 1 bilhão referente a redução, bloqueio e remanejamento indevido só em 2019, segundo informações da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS. Houve redução de leitos, médicos, agentes comunitários de saúde e procedimentos ambulatoriais. O tempo de espera para consultas eletivas na atenção especializada aumentou de 47 para 88 dias.

Profissionais de saúde, contratados por organizações sociais, passaram a não receber salários em dia e a serem demitidos e reconvocados a trabalhar sob novos contratos. Jovens médicos, expostos diariamente à insatisfação da população com condições de atendimento sempre precárias, estão migrando para cidades nas quais o SUS oferece melhores padrões assistenciais. O desmonte do SUS no Rio de Janeiro atinge atendimentos de ambulância na atenção primária e hospitais de emergência, que são recursos estratégicos para salvar vidas de doentes graves e acidentados. Quem for ferido em um acidente de carro e encaminhado para uma emergência municipal estará no mesmo barco do restante da população. A cidade, que, no passado, teve a melhor rede pública do país, tornou-se exemplo de desmazelo e incúria.

As reiteradas interpelações do Poder Judiciário, Ministério Público e órgãos de controle, como tribunais de contas são imprescindíveis, mas chegam “na ponta”. O desespero prevalece entre pacientes e profissionais de saúde. Os primeiros não sabem se serão atendidos; os segundos não conseguem aplicar seus conhecimentos porque não dispõem de condições adequadas de trabalho.