lei de segurança nacional

Maria Cristina Fernandes: A boiada, agora, passa sobre o capital

Adiamento de manifesto empresarial foi crucial para Bolsonaro

Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico

A unidade frustrada de entidades empresariais e financeiras na apresentação de um único manifesto em defesa da ordem constitucional não poderia ter acontecido num momento melhor para o presidente Jair Bolsonaro. Depois de já ter passado por cima de menos aquinhoados pela virtude ou pela sorte, a boiada bolsonarista agora atropela também o capital.

Por duas razões: o recuo das entidades acontece no momento em que se afunila, sob as bênçãos dos Poderes, um cambalacho nas contas públicas, e também quando se confirma mais uma frustração nas expectativas de retomada econômica.

O manifesto dos empresários, apesar de não fazer referência direta à conjuntura econômica, serviria para adensar o peso de sua reação num momento de escalada golpista do bolsonarismo.

Ao colocar o ministro da Economia e os presidentes dos bancos estatais a serviço do desbaratamento da unidade do movimento, o presidente não é capaz de sufocar o azedume. Adia, porém, sua expressão para um momento em que espera estar vitaminado pela aposta que fez no 7 de setembro.

O alvo de Bolsonaro é a capacidade de articulação empresarial para pôr na roda uma terceira via em condições de tirá-lo da reta final de 2022.

A boiada parecia longe quando o governo passou a faca na Previdência Social de 72 milhões de brasileiros, produziu recorde de informalidade no mercado de trabalho, patrocinou o pior orçamento da educação básica em uma década, registrou o menor número de inscritos no Enem nos últimos 16 anos, fez liberação recorde de agrotóxicos, promoveu a maior letalidade policial desde 2013 e paralisou a política habitacional para a faixa de mais baixa renda e a demarcação de terras indígenas.

A centralidade do debate ambiental na economia mundial fez tocar o alarme quando, no primeiro semestre de 2021, o país se deparou com o pior desmatamento em uma década. A boiada se aproximava.

O galope da inflação, do juro de longo prazo e do câmbio, a iminência da crise hídrica e, por fim, a queda do PIB no segundo trimestre do ano acabaram por dar alguma concretude à expressão “estouro da boiada”.

Nada, porém, alarmou mais as perspectivas do que a negociação em torno das dívidas da União, os chamados precatórios. Foi aí que se mostrou inútil a tentativa de fechar a cancela para resguardar os interesses empresariais.

A consultoria legislativa da Câmara dos Deputados e a IFI já mostraram os números. A proposta de parcelamento negociada pelo ministro da Economia com o TCU, o presidente do Supremo Tribunal e os presidentes da Câmara e do Senado, pode acumular esqueletos no armário no valor de até R$ 1,4 trilhão até 2037, quando acaba o teto de gastos.

Reclamar do salto nas despesas com precatórios é jogar por terra velha demanda nacional que é o aumento da produtividade do Judiciário. Enfurnada na pandemia, a magistratura esvaziou gavetas e multiplicou sentenças, devidamente anotadas pela AGU.

A instituição encarregada de defender a União de seus cobradores foi chefiada, em grande parte do governo Bolsonaro, por André Mendonça, candidato ao Supremo, instância máxima do cumprimento de sentenças judiciais.

A saída para honrar as dívidas e pagar um Auxílio Brasil turbinado sem derrubar o teto seria a redução das emendas de relator, mas isso é capaz de fazer tremer o país mais do que 7 de setembro bolsonarista.

O deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) encantam suas plateias engravatadas apesar de não quererem nem ouvir falar em cortar emendas de relator, cuja execução condiciona sua autoridade.

Tem sido assim desde a PEC Emergencial, aprovada em março sem corte de gastos. A gastança prosseguiu com a privatização da Eletrobras, custeada pelo contribuinte, e agora esbarrou numa reforma do Imposto de Renda com risco de mais desembolsos da União.

Empresários e banqueiros despertaram da conivência ao concluir que apesar de toda a gastança, o país ainda não havia adquirido paz institucional, que dirá futuro para sua economia.

Se o manifesto “A Praça é dos Três Poderes” é uma reação a este estado de coisas, permanece uma incógnita por que, em determinado momento, seus signatários originais, entre os quais a Febraban, resolveram entregar o comando de um movimento que chegou a abrigar 250 entidades, para a Fiesp. Mais precisamente para Paulo Skaf.

A rigor, Skaf nem presidente da Fiesp é mais. Depois de 17 anos sob sua presidência, a Federação das Indústrias de São Paulo elegeu, há dois meses, Josué Gomes da Silva, da Coteminas, para seu lugar. Skaf permanece no cargo até dezembro para melhor definir seu futuro político. No presente faz política contra o interesse de seus representados.

Foi isso que aconteceu com o manifesto empresarial. Filiado ao MDB, Skaf move-se entre as pressões do governo sobre o Sistema S e uma brecha na palheta de opções à direita num Estado em que Bolsonaro ainda não tem um palanque para chamar de seu em 2022.

Parecia óbvio que havia vasos comunicantes e poluentes entre os interesses envolvidos. Apesar disso - ou por causa - conseguiu o mandato para comandar o manifesto. Seu maior feito até agora foi o de adiar a divulgação do documento para depois do 7 de setembro abrindo brechas para o governo desbaratar a iniciativa.

De maciça, a adesão da Febraban, por exemplo, que havia sido tomada pelo voto de 14 dos 18 integrantes do conselho da entidade, contra a vontade de dois (BB e Caixa) e a abstinência de outros dois, se transformou em um racha.

A anunciada saída dos dois bancos públicos da Febraban permanece como uma ameaça sem confirmação de um lado ou do outro. Seu maior patrocinador, o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, nunca abandonou suas ambições políticas nem oportunidade de mostrar serviço ao chefe.

A Febraban contesta o recuo e mantém apoio ao documento. Na impossibilidade de unir a todos os signatários poderia ter tomado o mesmo rumo das entidades do agronegócio e encabeçado um documento à parte do setor financeiro.

Preferiu se manter sob a liderança de Skaf e aguardar a divulgação do documento no dia D e na hora H. Ponto pra Bolsonaro e sinal verde para a boiada.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/a-boiada-agora-passa-sobre-o-capital.ghtml


Bolsonaro veta punição para quem divulgar fake news

O presidente sancionou PL que revoga Lei de Segurança Nacional, mas vetou crime para quem praticar "comunicação enganosa em massa"

Thaís Paranhos / Metrópoles

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou, com vetos, nessa quarta-feira (1º/9), projeto de lei que revoga a Lei de Segurança Nacional, criada durante a ditadura militar.

Entre os vetos do mandatário da República, está o trecho que prevê punição para quem praticar “comunicação enganosa em massa”. O PL determinava reclusão de 1 a 5 anos mais multa para quem “promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”.

No veto, o chefe do Executivo diz que “a proposição legislativa contraria o interesse público por não deixar claro qual conduta seria objetivo da criminalização, se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que compartilhou”. O presidente questiona também se “haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico”.

Por fim, o presidente alega que a proposta tem “o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais”.

Inquérito das Fake News

Bolsonaro é investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito do Inquérito das Fake News, que apura a disseminação de notícias falsas. O relator do inquérito, ministro Alexandre de Moraes, incluiu o mandatário do país na investigação no último dia 4 de agosto, a pedido do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O STF vai apurar se o presidente cometeu crimes durante a tradicional live de quinta-feira, na qual afirmou, sem provas, que houve fraude nas eleições presidenciais de 2018.

Outros vetos

O titular do Planalto também vetou trecho do PL que determinava punição para quem impedisse “o livre e pacífico exercício de manifestação” sob o argumento de que haveria dificuldade para definir “o que viria a ser manifestação pacífica”.

Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/bolsonaro-veta-punicao-para-quem-divulgar-fake-news


Renata Giannini e Maria Eduarda Pessoa: Para construção de uma democracia sólida, uma limpa em entulhos autoritários

Uma espécie de entulho autoritário resistiu por anos esquecido em um canto, até voltar aos holofotes, em mais uma demonstração de que nossa democracia, em constante processo de construção, anda com as estruturas abaladas. Criada em 1983, a Lei de Segurança Nacional é problemática desde a sua concepção, pautada na lógica do inimigo interno. Apesar de sua raiz autoritária, ela continuou vigente no regime democrático, após a promulgação da Constituição de 1988.

Seus contornos de inconstitucionalidade, porém, só voltaram a chamar atenção com denúncias recentes de uso indiscriminado e as consequentes reações e debates protagonizados pela sociedade civil, Congresso e Supremo Tribunal Federal. As respostas das instituições e reações da sociedade civil já começaram a ser dadas, mas muitos pontos demandam a nossa atenção.

De acordo com levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, o número de procedimentos abertos pela Polícia Federal para apurar supostos delitos tipificados na Lei de Segurança Nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro. A segunda edição do monitoramento periódico GPS do Espaço Cívico, lançada esta semana pelo Instituto Igarapé, também indica uma intensificação nas notícias sobre a utilização abusiva da norma.

A legislação anacrônica passou a ser utilizada para fundamentar investigações contra vozes dissidentes e críticos ao governo, o que pode figurar, no mínimo, como intimidação e assédio. Neste cenário, a revisão da LSN tornou-se imperativa para a garantia do espaço cívico e da democracia brasileira.

O uso abusivo da LSN mobilizou o chamado sistema de freios e contrapesos. Antigos projetos de lei sobre o tema, que já tramitavam no Congresso, ganharam fôlego. Além disso, o Supremo Tribunal Federal foi acionado numa tentativa de revogar dispositivos específicos, ou derrubar a norma em sua integralidade. No dia 4 de maio, a Câmara, em regime de urgência, aprovou o Projeto de Lei 6.764 de 2002, que revoga a LSN e tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito.

O processo legislativo foi acelerado e prejudicou a realização de um amplo debate com a sociedade. Apesar disso, organizações da sociedade civil, juristas e acadêmicos conseguiram encontrar espaços para debater de forma intensa e transparente e, assim, contribuir com o texto-base. Foram realizadas duas audiências públicas e, parte relevante das recomendações e preocupações foram acatadas pela relatora, a deputada Margarete Coelho, com avanços relevantes alcançados.

Um exemplo foi a maior precisão em relação aos tipos penais, na tentativa de impedir que movimentos sociais sejam criminalizados e liberdades fundamentais dos cidadãos, cerceadas. Também passou-se a exigir a chamada “lesividade concreta das condutas”. Esse princípio da lesividade estabelece que só são passíveis de punição por parte do Estado as condutas que lesionem ou coloquem em perigo um bem jurídico penalmente tutelado, ou seja, um valor ou interesse protegido por lei em razão de sua relevância para a sociedade.

Outro componente importante incluído foi a previsão de elementos subjetivos, nos quais é analisada a intenção do agente praticar aquele delito determinado. Esses aspectos jurídicos são importantes para delimitar com clareza quem deve ou não ser alvo da lei. O crime de “sabotagem”, por exemplo, determina que as condutas previstas devem ser praticadas “com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito”, reduzindo as chances de a norma ser usada para criminalizar manifestações e protestos legítimos.

Por outro lado, ainda há pontos que preocupam. Um deles é o grau de subjetividade do que a lei chama de disseminação de “fatos que sabe inverídicos”, que pode dar margem a eventuais censuras. E, ainda, a referência à incitação à “animosidade” – expressão excessivamente ampla, que, a depender da interpretação, pode incluir restrições a eventuais críticas contra as Forças Armadas. Seria importante indicar expressamente que só é criminalizada a incitação das Forças Armadas contra a sociedade, e não o contrário.

O texto-base aprovado, portanto, não é um projeto ideal. Porém, há de se reconhecer que está consideravelmente à frente da atual legislação, que coloca em risco o debate crítico e a liberdade de expressão. O movimento na Câmara sinaliza um progresso, especialmente no momento histórico de ameaças à democracia que enfrentamos. O texto agora segue para o Senado, que deve zelar pelos avanços até agora conquistados, e aprimorar trechos que ainda despertam preocupação. Como demonstra esse processo, a sociedade civil brasileira continuará trabalhando arduamente, tijolo por tijolo, na construção de uma democracia sólida, segura e plural.

RENATA GIANNINI é pesquisadora sênior do Instituto Igarapé. 

MARIA EDUARDA PESSOA de Assis é assessora jurídica do Instituto Igarapé.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-16/para-construcao-de-uma-democracia-solida-uma-limpa-em-entulhos-autoritarios.html


Correio Braziliense: ‘A ficha do brasileiro demorou a cair’, diz Marco Aurélio Mello

Por Ana Dubeux

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello enxerga uma espécie de delay coletivo do Brasil em relação à pandemia. “Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia… Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões”, diz, nesta entrevista.

Defensor do isolamento, ele acredita que a pandemia alerta sobre a necessidade de restabelecer valores caros à vida em sociedade. E preocupa-se: “A ficha do brasileiro demorou muito a cair. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva — a militar — para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante”.

Após mais de três décadas como ministro do STF e 42 anos de magistratura, Marco Aurélio está na antessala da aposentadoria, marcada para julho próximo. Mas avisa: “Não morrerei de tédio”. Não morre, nem nunca deixou ninguém morrer, é fato.

Ministro que nunca se furtou a declarações fortes e posicionamentos, ele afirma não ter arrependimentos e se declara um “estivador do direito”, referindo-se à carga de processos que hoje um ministro acumula. “Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes”. Pretende se dedicar agora à vida acadêmica.

Ser ministro do Supremo durante mais de 30 anos cansa? Do que se arrepende? Do que se orgulha?
Orgulho-me do Supremo que encontrei em 1990, quando, na gestão do ministro Néri da Silveira, tomei posse. Havia integrado o Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Regional do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho. Sempre decidi segundo ciência e consciência possuídas. Daí não haver qualquer arrependimento. Magistratura é opção de vida, e é preciso atuar sempre buscando o melhor, procurando conciliar o trinômio lei, direito e justiça, visando a entrega da prestação jurisdicional a tempo e modo. Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes. Atuo em colegiado julgador há 42 anos e completarei, em 13 de junho próximo, 31 no Supremo, com o sentimento do dever cívico cumprido. Continuarei na área acadêmica, na presidência do Instituto UniCeub de Altos Estudos. Estejam certos: não morrerei de tédio. O crescimento é infindável.

O senhor foi professor na Universidade de Brasília e no Ceub. Que lembranças tem desse contato com novas gerações?
A melhor lembrança possível, e sigo no mundo acadêmico. Estive ontem na Universidade de Brasília, continuo no UniCeub e palestrei diversas vezes nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. O contato com as novas gerações é enriquecedor, no que se percebe mentes abertas.

Quais mudanças o senhor destacaria na Justiça brasileira desde 1990, quando foi escolhido para o Supremo?
Houve o aprimoramento da atuação da Justiça. O que ocorre, no Brasil, é que não se caminha, por exemplo, para solucionar conflito de interesse na mesa de negociações. O País conta com lei moderníssima sobre arbitragem, mas dificilmente se tem descompasso solucionado mediante a atuação de árbitros. O brasileiro somente acredita em uma solução, a solução ditada pelo Estado-juiz. Então, há a judicialização em massa, que acaba emperrando a máquina judiciária.

As demandas da sociedade ampliaram a necessidade de o Judiciário modernizar-se, principalmente diante da pandemia. Como o STF pode contribuir no esforço para reduzir os impactos sociais da covid-19?
O Supremo somente atua mediante provocação, buscando, no âmbito de competência inimaginável, muito grande, conciliar celeridade e conteúdo. O Tribunal, não me canso de repetir, é o guarda maior da Constituição Federal. A segurança jurídica pressupõe a observância irrestrita, por todos, do arcabouço normativo.

Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
É preciso haver avanço cultural. De qualquer forma, a pandemia implicou alerta quanto à necessidade de preservar valores caros à convivência. A sociedade sairá mais fortalecida dessa quadra.

É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?
Em primeiro lugar, julgo, integrando o Supremo, destinos e não papéis. Sempre busco – sei que é utopia – a perfeição. Não há tensão propriamente dita. Sou um juiz à antiga, trazendo processos para a residência. Vou ao Tribunal apenas nos dias de sessão. Aliás, ia ao Tribunal, porque, agora, quando se tem reunião de integrantes, ocorre mediante videoconferência. Como julgador, cuido muito da parte humanística. Por isso tenho sempre aberto um romance. Estou lendo obra de Hilary Mantel, sobre a Inglaterra da época de Henrique VIII, O Espelho e a Luz. Admiro muito essa escritora.

O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Tenho presente, há mais de um ano, que a vacina maior é a revelada pelo isolamento. Então o mantenho, desde março de 2020, e vou tocando a vida, buscando deixar, no gabinete, o menor resíduo possível para o sucessor, considerada a aposentadoria que se avizinha, em 5 de julho do corrente ano.

Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
Os homens públicos devem ter os olhos voltados ao bem-estar social. No caso do Brasil, precisa haver atenção ímpar com os menos afortunados, proporcionando-se educação, saúde e segurança pública.

O momento exige resiliência e ativismo solidário. Engajou-se pessoalmente em alguma atividade coletiva a distância?
Exige dedicação e a busca do resgate desse predicado que é a solidariedade. Não me sobra tempo para estar engajado em outra atividade, além da acadêmica e judicante. Costumo dizer que hoje não sou, ante a carga de processos, um operador do Direito, mas sim um estivador.

Que ensinamento este momento nos deixa?
O relativo à necessidade de respeito à natureza. Em pleno século XXI, o homem veio a perceber, com essa pandemia, a fragilidade e que deve cuidar da mãe terra.

O senhor vive em Brasília há mais de 30 anos, como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Aqui cheguei, em 1981. A ficha do brasileiro demorou muito a cair quanto ao momento vivenciado, quanto aos efeitos da pandemia. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva – a militar – para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante. A conscientização passa, de qualquer forma, por uma mudança na percepção da vida gregária, da vida em sociedade.

Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia, os efeitos que poderia causar. Sempre é tempo de tomar decisões visando o melhor, considerados os brasileiros. Sim, os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões. Observa-se o que ocorreu em outros países, como a Inglaterra, em que medidas foram adotadas.

A importância da união em torno de um projeto suprapartidário, para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos, é possível?
É possível desde que haja, como disse, conscientização, sobretudo dos homens públicos, e que não prevaleçam interesses isolados, momentâneos e que não levam ao bem-estar geral.

Fonte:

Correio Braziliense

https://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/a-ficha-do-brasileiro-demorou-a-cair-diz-marco-aurelio-mello/


Demétrio Magnoli: Lei do Estado democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições

Câmara revogou a Lei de Segurança Nacional, com módico atraso de 32 anos. No seu lugar, aprovou uma Lei do Estado Democrático que flerta, aqui e ali, com a criminalização da opinião política. Paira no ar o perigoso conceito de democracia militante.

A LSN já vai tarde. Bolsonaro e seu assecla André Mendonça a invocam, dia sim e outro também, para tentar intimidar críticos do governo. Mas, como o Bombril, a lei da ditadura tem mil e uma utilidades: o STF também achou conveniente brandi-la quando inaugurou o infindável inquérito das fake news. No percurso, diante do arruaceiro deputado Daniel Silveira, enfiou numa sacola única o elogio retórico do AI-5 e os crimes de incitação à violência e ameaça. Ao redigir a Lei do Estado Democrático, a Câmara avaliza a manobra dos supremos juízes.

“A Constituição não permite a propagação de ideias contrárias ao Estado democrático”, escreveu o STF ao tornar réu o parlamentar bolsonarista. Falso! Nada, na Carta de 1988, proíbe defender ideias autoritárias. Silveira tem o direito de elogiar o regime militar e suas leis, assim como comunistas da velha estirpe estão cobertos pelo princípio da liberdade de expressão ao propor a substituição do Congresso pelos sovietes. O que é proibido, para um como para os outros, é cruzar o limite entre a palavra e a ação.

Gilmar Mendes sustentou a criminalização da difusão de ideias autoritárias com base no conceito legal alemão de democracia militante (streitbare Demokratie). A Constituição da República Federal Alemã, de 1949, veta a negação do Holocausto e o uso da suástica. Mas o Brasil, que nunca experimentou algo como o nazismo, não se define como democracia militante. Por aqui, só são puníveis explícitos discursos de ódio contra segmentos da população, além de calúnia, injúria ou difamação.

A caduca LSN é um código de uma ditadura militante (há outro tipo?). No seu artigo 23, criminaliza “incitar à subversão da ordem política ou social”, expressão que permite encarcerar o comunista ortodoxo por palavras proferidas numa entrevista ou passeata pacífica. A nova Lei do Estado Democrático tipifica vagamente crimes “contra as instituições democráticas” e de disseminação “de fatos inverídicos” em redes sociais no curso de processos eleitorais. Na forma como redigida pela Câmara, oferece caminhos para encarcerar o cachorro que apenas late.

Talíria Petrone, líder do PSOL, identificou os contornos da besta: “Sabemos bem como esses tipos penais abertos podem levar à criminalização de movimentos sociais”. O PSOL ama a ditadura castrista, que persegue movimentos sociais como as Damas de Branco ou o Movimento San Isidro por meio da acusação legal de subversão. Mas a duplicidade moral não impugna a crítica específica: o texto pode, efetivamente, ser interpretado de modo a punir a mera palavra subversiva, tanto de direita quanto de esquerda.

“Não seríamos nós que iríamos escrever uma lei que perseguisse os movimentos sociais”, retrucou Orlando Silva. O deputado do PC do B é um pândego: seu partido ama de paixão o regime totalitário chinês, que editou a Lei de Segurança de Hong Kong, uma LSN com esteroides, para encarcerar os estudantes do Movimento Guarda-Chuva.

Há pouco, um popular youtuber investiu no negócio da moda, que é rotular Bolsonaro como genocida. André Mendonça, então ministro da Intimidação, poderia processá-lo por calúnia, exigindo retratação. Preferiu, porém, erguer a espada afiada da LSN. Quando apreciar o texto proveniente da Câmara, o Senado tem o dever de evitar a promulgação de uma “LSN do Bem” que, inevitavelmente, serviria aos propósitos dos Mendonças vindouros.

Já temos leis suficientes sobre as fronteiras da liberdade de palavra. A Lei do Estado Democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições. Nossa democracia não milita.

Fonte:

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/05/a-democracia-nao-milita.shtml


Folha de S. Paulo: Câmara aprova projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional

Daniele Brandt, Folha de S. Paulo

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (4) o projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional e prevê punição para quem atentar contra o Estado democrático de Direito.

Após aprovação do texto-base em votação simbólica, os deputados rejeitaram sugestões de modificação ao projeto, que, agora, será submetido ao Senado.

A proposta aprovada prevê até cinco anos de prisão para quem contratar empresas para disseminar notícias falsas que possam comprometer o processo eleitoral no país.

Texto substitutivo da relatora Margarete Coelho (PP-PI), o projeto revoga a LSN, resquício da ditadura militar (1964-1985), que vem sendo usada com mais frequência nos últimos anos.

Reportagem publicada pela Folha mostrou que a Polícia Federal disse ter aberto 77 inquéritos com base na lei em 2019 e 2020, número que supera o registrado nos quatro anos anteriores, quando a corporação diz ter instaurado 44 inquéritos.

O ex-ministro da Justiça André Mendonça, hoje chefe da AGU (Advocacia-Geral da União), pediu que a PF investigasse jornalistas e opositores do governo Jair Bolsonaro, como o youtuber Felipe Neto.

Já o STF (Supremo Tribunal Federal) usou a mesma LSN para prender o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) e organizadores de manifestações antidemocráticas.

A discussão sobre a revogação da LSN foi retomada no início de abril pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Com a votação, o Congresso tenta se antecipar à análise da legislação pelo Supremo.

O substitutivo de Margarete tomou como base projeto apresentado em 2002 por Miguel Reale Júnior, então ministro da Justiça do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002).

O texto insere um título dentro do Código Penal. A relatora retirou dispositivos relacionados a terrorismo, associação discriminatória e discriminação racial, que já possuem leis próprias. Também excluiu conspiração e crimes de atentado à autoridade.

Por outro lado, ela incluiu um capítulo sobre crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral. Um dos artigos inseridos pela deputada criminaliza a comunicação enganosa em massa.

O ato é descrito como “promover, ofertar, constituir, financiar, ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos capazes de colocar em risco a higidez do processo eleitoral, ou o livre exercício dos poderes constitucionais”.

Ou seja, pune quem contratar empresa que divulgar notícia que sabe ser falsa. A pena prevista é de reclusão de um a cinco anos e multa.

Outro dispositivo inserido trata da interrupção do processo eleitoral, como no caso de ataque hacker ao sistema da Justiça Eleitoral. A punição prevista é de três a seis anos de reclusão e multa.

Além disso, a relatora incluiu o crime de violência política, que seria “restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual, ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

A pena prevista é de de três a seis anos de reclusão e multa, além da pena correspondente à violência.

Margarete incluiu dispositivo que afirma não ser crime a manifestação crítica aos Poderes constituídos, nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais.

Essa era uma preocupação da oposição, que temia ter o direito de protestar tolhido.

O projeto também criminaliza a incitação à animosidade entre as Forças Armadas ou entre elas e Poderes legitimamente constituídos, as instituições civis ou a sociedade.

Além disso, Margarete acrescentou um dispositivo sobre abolição violenta do Estado democrático de Direito, que seria a tentativa, com emprego de violência ou grave ameaça, de abolir o Estado de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes constitucionais.

É o que buscaram, por exemplo, apoiadores do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com a invasão do prédio do Capitólio, em janeiro. A pena prevista é de quatro a oito anos de reclusão, além da pena correspondente à violência.

A relatora estipulou ainda aumento das penas se o crime for cometido por funcionário público, que perderia o cargo ou função pública, ou por militar.

Na discussão do projeto, bolsonaristas criticaram a votação e disseram que o debate havia sido açodado. “É uma lei que deve ser estudada, é fato, mas da forma açodada que essa lei vem para este plenário, nós não podemos aceitar”, disse Carlos Jordy (PSL-RJ).

“Se o objetivo da nova Lei de Segurança Nacional, ou Lei do Estado democrático de Direito, um termo que foi expressamente prostituído para poder alegar todo tipo de questões que estejam violando a própria democracia. Se é para torná-la melhor, ela deveria estar sendo melhorada, aprimorada. Da forma como está, traz consigo diversos dispositivos ruins da antiga Lei de Segurança Nacional e também traz questões muito piores para a nova legislação.”

Já a oposição defendeu a revogação da lei.

“Temos que acabar com a Lei de Segurança Nacional, aquilo que ainda vem da época sombria da nossa história que este país viveu, infelizmente, da ditadura, que alguns ensaiam, estimulam condutas para que volte e defendem como se aquilo fosse o melhor dos mundos, como se aquele período fosse democrático, não tivesse sido violento”, afirmou o deputado Alencar Santana (PT-SP) .

“Com base nessa lei, muitas pessoas foram punidas, injustamente. Eu acho que esse novo marco que nós podemos aprovar hoje é condizente com o Estado democrático que nós defendemos. O Judiciário vai ter melhores parâmetros para poder agir quando provocado. Não é justo que legislações como essas ainda sejam utilizadas”, acrescentou Santana.​

A votação dos destaques expôs um racha na esquerda. O PSOL considerou o texto aberto. “Sabemos bem, como esses tipos penais abertos, e aí eu quero me permitir divergir dos meus colegas da oposição, podem levar à criminalização, sim, de movimentos sociais”, afirmou a líder do partido na Câmara, Talíria Petrone (RJ).

“Sabemos o quão seletivo é o estado penal, que cada vez mais é reforçado por esta Casa e cada vez mais é utilizado para perseguir os mesmos corpos de sempre.”

O deputado Orlando Silva (PC do B-SP) divergiu e negou que a lei fosse ser instrumento para perseguir o movimento social.

“Não seríamos nós que iríamos escrever uma lei que perseguisse os movimentos sociais. Sem autorização, quero dizer que o PT também não o faria, o PSB também não o faria, o PDT, a Rede e tantos outros partidos, só para falar do nosso campo citei alguns deles, nós nunca iríamos subscrever uma lei que perseguisse movimentos sociais”, disse.

Silva disse que entendia a dificuldade de o PSOL explicar por que votou com o governo e o PSL, “mas o argumento não pode ser que a lei pode ser instrumento para perseguir movimento social”.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/camara-aprova-texto-base-de-projeto-que-revoga-a-lei-de-seguranca-nacional.shtml


Valor: ‘Bolsonaro abraçou a morte’, diz Felipe Santa Cruz

Monica Gugliano, Valor Econômico

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe de Santa Cruz Oliveira Scaletsky, viu um fantasma que julgava exorcizado voltar a assombrar. “Nenhum de nós que passou pelos tempos da redemocratização poderia ter ideia do risco que esse vírus incubado do autoritarismo deixou na sociedade brasileira”, diz o advogado de 49 anos.

Entre muitas outras sinalizações de retrocessos e de que “esse vírus” voltou a circular, aponta Santa Cruz, está a “reaparição” no governo de Jair Bolsonaro da Lei de Segurança Nacional (LSN), promulgada em 1983. A lei tem sido usada para justificar inquéritos que investigam manifestações e qualquer comentário considerado crítico ao chefe do Executivo e prevê penas de até quatro anos.

O youtuber Felipe Neto e o político Guilherme Boulos (PSOL) foram intimados a depor com base na lei. “Faz parte da política de intimidação do governo, que recorre a esse entulho autoritário para proteger aqueles que tentam derrubar o estado democrático de direito”, afirma o advogado, lembrando que o texto já começou a ser modificado na Câmara dos Deputados, incluindo crimes como o do uso de fake news. “Todos os presidentes da República pós-democratização foram acossados por críticas. Por que Bolsonaro não pode ser?”

Passa do meio-dia e a sala de Santa Cruz reluz com a claridade do Sol a pino do lado de fora da casa, onde ele vive com a mulher, a advogada tributarista Daniela Ribeiro de Gusmão, e os quatro filhos: Lucas, 20; Beatriz, 18; Maria Eduarda, 15; e João Felipe, 11. Ele explica que é um condomínio tranquilo, rodeado de verde, na Barra da Tijuca. Está sentado à frente do quadro do artista plástico goiano Marcelo Solá, uma explosão de cores que parece amenizar a frieza destas conversas em frente da tela do computador.

Elas estão incorporadas à rotina de Santa Cruz desde que o isolamento passou a ser, junto com o uso de máscaras, álcool em gel e outros cuidados, a forma de prevenir o contágio do coronavírus. Diz ele que, mantendo o isolamento, não passa dia sem que várias reuniões, conversas e entrevistas, como este “À Mesa com o Valor” pelo Zoom, estejam marcadas em sua agenda. Suas poucas saídas, relata, são até a sede da OAB, próxima de sua casa, também na Barra da Tijuca.

Há muito tempo que o Judiciário não tinha esse protagonismo na vida pública do país. “Acabou tendo esse papel preponderante pelo enfraquecimento do Legislativo e do Executivo”, pondera. Segundo ele, esse cenário está mudando, inclusive porque há muitas críticas entre os próprios juízes e advogados à exposição que esse quadro tem permitido, porque o Legislativo busca retomar seu protagonismo.

“Acho que não podemos negar o acesso ao Judiciário, quando há tanta disfuncionalidade”, diz, lembrando que foi a OAB a responsável pela ação que permitiu a Estados e municípios decidirem suas próprias ações no combate à covid-19. “O que teria sido do Brasil, sem isso? Porque Bolsonaro abraçou a morte, literalmente.”

Outro tema que expôs o Judiciário, assinala ele, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de promover um novo julgamento dos casos que envolviam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Santa Cruz, o julgamento foi um divisor de águas, e ele lembra também que em muitas ocasiões se opôs à forma como os integrantes da Operação Lava-Jato procederam. “O mais importante nessa questão é que não joguemos a criança com a água da banheira.”

“Jogar a criança junto com a água da banheira”, explica ele, seria não preservar o legado de combate à corrupção que a Lava-Jato trouxe à sociedade brasileira.

Santa Cruz diz que não lhe cabe discutir o caso do ex-presidente Lula. O que lhe cabe, afirma, é mostrar que o processo necessita ter os devidos cuidados com a constitucionalidade, com o contraditório, garantir o direito de defesa.

O almoço pedido por Santa Cruz é mais do que frugal. Ele escolhe uma salada caesar, acompanhada por uma Coca Zero, pedida no Gula Gula, um restaurante com mais de 36 anos, considerado quase uma “instituição” no Rio de Janeiro.

Na foto do cardápio, a salada parece um prato de alface, com algumas lascas de queijo parmesão por cima. Mas o advogado explica que o prato faz parte da dieta que começou com a pandemia e conta que perdeu 30 quilos nos últimos meses passando fome em casa e fazendo exercícios físicos. “A noite é uma sopa – e só”, diz, contente com o emagrecimento, mas também com uma ponta de tristeza por não poder comer nada do que gosta.

Santa Cruz diz que a OAB tem tido muito trabalho desde a posse de Bolsonaro. Em sua opinião, a pandemia atingiu o Brasil em um dos piores momentos no que diz respeito a representação. “O presidente boicotou a máscara, a vacina, fez pouco caso de uma doença que está matando mais de 2 mil cidadãos por dia. É o governo da ignorância”, critica. “Este governo caminha para a reta final, com uma conta trágica de mortos e sem nada para apresentar, além de peculiaridades como a ministra da Mulher ser machista; o representante dos negros, racista; o do Meio Ambiente, um ecocida militante; e o secretário da Cultura, analfabeto”. Procurados, o Palácio do Planalto, a ministra da Mulher, Damares Alves, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o secretário de Cultura, Mario Frias, e o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, não se pronunciaram.

Em sua opinião, o Brasil vive um momento muito delicado e de muita instabilidade. “É importante que as Forças Armadas reafirmem permanentemente o papel de instituições de Estado, que elas não pertencem a Jair Bolsonaro”, diz. Ele também critica os decretos que ampliam as licenças para ter armas e a política para armar a população.

Embora esteja acostumado com os encontros via tela de computador, Santa Cruz aparenta estar um pouco sem graça em falar e comer ao mesmo tempo. É preciso explicar que, como a comida faz parte da entrevista, ele não precisa deixar o prato de lado, ainda que no caso dele não se corra o risco de as folhas de alface esfriarem. “Não tem problema. Muitas vezes preciso postergar o almoço.”

Felipe Santa Cruz era líder estudantil no governo de Fernando Collor (1990-1992) – hoje senador pelo Pros-AL – quando milhares de jovens, inclusive ele, saíram às ruas, com os rostos pintados de verde e amarelo – os caras-pintadas – pedindo a destituição do presidente da República. Primeiro chefe da nação escolhido pelo voto direto após a ditadura militar, Collor foi acusado de corrupção e perdeu o mandato no julgamento da Câmara e do Senado, que votou a favor do pedido de impeachment assinado pelo então presidente da OAB Marcello Lavenere e pelo presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho.

A participação da OAB em episódios da história recente, como o impeachment de Collor, segundo o advogado, fomenta a ideia de que ali se faz política partidária. “A OAB não é politizada, como Bolsonaro quer fazer crer. É um instrumento de política institucional. Há pessoas aqui de esquerda, de direita, de centro, de todos os lados. Há eleitores bolsonaristas e de oposição”, afirma.

Formado em direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, ele foi por duas vezes consecutivas presidente da seção fluminense da OAB (2013-2015, 2016-2018). Em 31 de janeiro de 2019, foi eleito presidente nacional da OAB. “Era o começo do governo Bolsonaro, e acho que ele sabia que sou um democrata radical. Jornalista, artista e advogado que não são democratas radicais não compreenderam a faculdade. Porque estas são profissões que vivem da liberdade”, diz.

Segundo Santa Cruz, o presidente nunca compreendeu – entre muitas outras coisas – o sentido do sigilo entre advogado e cliente. Bolsonaro passou a exigir que lhe fosse revelado quem havia defendido Adélio Bispo, o autor das facadas desferidas contra ele ainda na campanha eleitoral, durante um ato em Juiz de Fora, em setembro de 2018.

Mesmo depois de muitas investigações, inclusive da Polícia Federal, Bolsonaro sempre deu e dá a entender que o atentado teve motivação política e que Adélio foi usado para tirar-lhe a vida, evitando que se tornasse presidente. “Ele ficou inconformado com a defesa das prerrogativas do acusado”, diz Santa Cruz.

Ainda deputado, Bolsonaro disse mais de uma vez que o pai de Santa Cruz, Fernando Santa Cruz, desaparecera porque havia caído bêbado na rua. Antes mesmo da posse na presidência, relata Santa Cruz, o presidente, que incluiu a entidade no amplo rol de comunistas que boicotavam seu trabalho, já havia atiçado suas redes sociais, que passaram a atacá-lo sem piedade. Mas o pior momento desse embate ainda estava por vir.

Era julho de 2019, quando Bolsonaro, em uma das entrevistas que dava na grade do Palácio da Alvorada, afirmou que “um dia” contaria ao presidente da OAB como o pai dele desaparecera durante a ditadura. Ainda segundo Bolsonaro, certamente Santa Cruz não iria querer saber “a verdade”.

Segundo a Comissão Nacional da Verdade, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, estudante de direito, servidor público e militante da Ação Popular Marxista Leninista, foi preso no dia 23 de fevereiro de 1974, morto por agentes do Estado, e seu corpo nunca foi encontrado. “Quando Bolsonaro disse aquilo, fiquei em choque. Minha mãe, meus tios, todos ficaram em estado de choque. Foi um segundo assassinato”, descreve, com lágrimas correndo pelo rosto.

Bolsonaro, no entanto, disse na entrevista – e nunca mostrou alguma prova – ter informações de que o militante não fora sequestrado e assassinado por agentes da ditadura. Mas por seus próprios companheiros. “Não é minha versão. É a que a minha vivência me fez chegar às conclusões naquele momento. O pai dele (Felipe Santa Cruz) integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro”, insinuou o presidente.

“Foi de uma perversidade que eu jamais pensei encontrar. Meu pai foi um herói da história brasileira. Não era um clandestino, era um estudante, tinha emprego, endereço. Mas Bolsonaro fez com que eu, de repente, me visse sozinho, com a ajuda da imprensa e outros tentando defender uma pessoa que está morta há 40 anos.”

O desaparecimento de Fernando, naquele Carnaval de 1974, marcou para sempre a família Santa Cruz. Felipe tinha apenas dois anos e vivia em São Paulo quando o pai foi sequestrado no Rio de Janeiro com o também militante e amigo de infância Eduardo Collier Filho. O corpo de Eduardo também nunca foi encontrado, e as famílias só presumiam que os dois rapazes haviam sido capturados.

A mãe do estudante, a pernambucana Elzita Santa Cruz, morreu em junho de 2019 em Olinda (PE), aos 105 anos, sem conseguir resposta para a angústia e a dor da perda. Durante 45 anos, ela buscou qualquer indício ou pista do paradeiro que fora dado ao corpo de seu filho. Percorreu gabinetes, quartéis, recorreu a autoridades e até presidentes brasileiros, explicando que só queria o direito de enterrar os restos do filho e já não lhe interessava saber quem o havia executado.

Tal qual a estilista Zuzu Angel, cujo filho, Stuart, também desapareceu na ditadura, Elzita – como dizem os versos de Chico Buarque na canção “Angélica”, escrita em homenagem a Zuzu – “só queria embalar seu filho, que mora na escuridão do mar”.

A mãe de Santa Cruz, Ana Lúcia, se casou novamente e se mudou com o filho para Porto Alegre, onde moravam os pais do marido. Entre 1977 e 1987, a família se instalou no Bom Fim, bairro tradicional entre as famílias judaicas. Ele conta que cresceu sem a mais vaga lembrança do pai. “Meu pai, para mim, é uma história contada pelos outros”, descreve.

O padrasto, Eduardo Scaletsky, militava na Convergência Socialista. Era professor, mas passava muito tempo em porta de fábricas. “Moramos em 17 lugares, no subúrbio de São Paulo, em Minas Gerais”, recorda Santa Cruz, acrescentando que sua vida só passou a ter alguma normalidade no fim dos anos 1970, quando seus pais terminaram a faculdade.

Ainda assim, lembra de ter tido um susto muito grande quando sua mãe, que liderava uma das primeiras e grandes greves nacionais dos bancários, foi presa pela Polícia Federal. “Entrei em pânico, mas aí os tempos já eram outros. Ela teve direito a advogados, sua prisão foi notícia.”

Muitos anos de terapia depois de passadas sua infância e adolescência, Santa Cruz diz que foi tão marcado por esses episódios que uma das razões de rejeitar até agora os convites para fazer carreira política são os filhos. Ele chegou a se candidatar a vereador do Rio em 2004 pelo PT, mas não tentou novamente depois daquele primeiro fracasso. Seu nome agora tem sido cogitado para uma possível candidatura a governador do Rio em 2022.

“Posso até pensar e, em algum momento, até aceitar. Mas a vida inteira quis dar a eles uma vida de propaganda de margarina. É aquela coisa de pai, mãe, estabilidade e não achar que a qualquer momento pode acontecer uma hecatombe”, explica, acrescentando que os filhos têm medo de que ele sofra um atentado, da violência nas redes sociais.

Santa Cruz recorda que foi uma criança com muito medo. Mas não carregava esse sentimento na vida adulta. O sentimento, conta ele, voltou desde que apareceram os primeiros infectados com o coronavírus e a “perversidade” de Bolsonaro se fez mais presente. Hoje, afirma o advogado, parte dos brasileiros vive com muito medo do presente e do futuro.

“Vivemos cercados pela morte”, lamenta. “Estive pensando sobre as famílias que não conseguem cumprir o luto quando seus familiares e amigos morrem vítimas da covid. É uma situação semelhante àquela da ditadura. Semelhante à morte do meu pai.”

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/04/30/a-mesa-com-o-valor-felipe-santa-cruz-bolsonaro-abracou-a-morte-diz-o-presidente-da-oab.ghtml


Pablo Ortellado: Revisão da Lei de Segurança Nacional é necessária, mas traz riscos

A Lei de Segurança Nacional é um entulho autoritário que precisa de revisão urgente. Leis desse tipo deveriam ser usadas apenas em momentos extraordinários, quando o regime é ameaçado, e talvez não seja por acaso que nossa lei de 1983 tem sido bastante usada —por Bolsonaro, para perseguir dissidentes, e pelo STF, para investigar atividades antidemocráticas.

Por isso, o Supremo e o Congresso aparentemente acertaram uma revisão acelerada da lei que pode melhorar nosso arcabouço jurídico, mas pode também trazer novos problemas num caminho cheio de riscos e percalços.

A estratégia adotada pelo presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira, foi propor um substitutivo ao projeto de lei de 1991 de Hélio Bicudo, que definia crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Lira designou como relatora a deputada Margarete Coelho (PP-PI), que está conduzindo um amplo processo de consulta a diferentes atores da sociedade, o que levou o substitutivo a acumular 10 revisões.

A mera revogação da Lei de Segurança Nacional, com seus muitos dispositivos autoritários, já seria motivo para celebração. Mas o substitutivo da deputada tem alguns méritos. Ele se concentra em crimes como golpe de Estado, insurreição, sabotagem, traição, espionagem e atentado contra a integridade do território nacional, sem aberturas muito explícitas que permitam o enquadramento de atividades regulares de protesto como crimes contra a democracia.

Mas detalhes de redação e possibilidades de emendas de parlamentares, assim como vetos seletivos do presidente da República, trazem enormes riscos à empreitada.

O crime de insurreição, caracterizado como o impedimento do exercício de um poder mediante ameaça, poderia ser usado para enquadrar manifestantes que ocupam um escritório (do Ibama ou do Incra, por exemplo) exigindo direitos. O mesmo acontece com o crime de sabotagem, definido como a inutilização de meios de comunicação ou transporte, que poderia ser usado para enquadrar manifestantes indígenas ou caminhoneiros que bloqueiem uma via.

Ainda que se possa questionar a licitude de uma ocupação de escritório governamental ou do fechamento de uma via, a reivindicação de um direito não é o mesmo que uma tentativa de alteração da ordem democrática. Protesto não pode ser tratado como se fosse subversão do regime.

Um artigo específico do substitutivo diz isso explicitamente, mas há o temor de que ele possa ser seletivamente vetado pelo presidente, para permitir que a lei seja usada para perseguir manifestantes contrários ao governo.

Há também preocupação com o artigo que trata da “comunicação enganosa em massa”, que se baseia no escorregadio conceito de disseminação de fatos sabidamente inverídicos. Ele poderia ser mais restrito e mais efetivo se se concentrasse não em notícias “falsas”, mas na difusão de conteúdos, mesmo que “verídicos”, que promovem crimes contra o Estado de Direito, o que atingiria em cheio as atividades de propaganda no WhatsApp que diariamente convocam a população contra o Congresso e o Supremo.


Igor Gielow: Novas falas de Bolsonaro sobre Forças Armadas incomodam militares

Sob pressão, presidente reprisa tática de 2020 e faz insinuações de uso de força

A nova tentativa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de envolver as Forças Armadas na defesa de suas bandeiras está incomodando os altos escalões militares.

Oficiais-generais influentes da ativa e da reserva passaram o domingo (21) e a segunda (22) conversando entre si após Bolsonaro ter sugerido o uso do Exército contra governadores de estado que aplicam medidas para reduzir a circulação de pessoas para tentar coibir a transmissão do novo coronavírus.

“Alguns tiranetes ou tiranos tolhem a liberdade de muitos de vocês. Pode ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade”, disse o presidente a uma multidão aglomerada na frente do Palácio da Alvorada no domingo.

“Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”, afirmou Bolsonaro, que celebrava seus 66 anos.

É um filme conhecido. Sempre que Bolsonaro se vê pressionado politicamente, ele "grita lobo", nas palavras de um oficial da Marinha. No caso, o "lobo" da fábula é algum tipo de intervenção militar.

No ensaio de crise constitucional do primeiro semestre do ano passado, quando o presidente estimulou atos golpistas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro arrastou consigo a cúpula militar.

O presidente levou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, para sobrevoar de helicóptero um desses atos. Ao mesmo tempo, as cúpulas das Forças tiveram de emitir duas notas para negar que houvesse tentações golpistas e reafirmando o compromisso com a Constituição.

Por outro lado, o mesmo Azevedo apoiou seu colega Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), que "gritou lobo" ao divulgar nota na qual alertava para "consequências imprevisíveis" devido à tramitação de um pedido para apreensão do celular de Bolsonaro, na apuração sobre interferência do presidente na Polícia Federal.

Essa posição ambígua acabou contribuindo para a desconfiança em diversos meios políticos. Com o desanuviamento da crise, a partir da melhora da popularidade de Bolsonaro durante os meses em que concedeu auxílio emergencial na pandemia e a associação com o centrão, os militares saíram do holofote.

A criticada gestão do general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde os trouxe negativamente para a ribalta de novo, e agora Bolsonaro volta a insinuar que os militares estariam prontos para agir.

O presidente trocou sua ofensiva para barrar vacinas, em especial a Coronavac promovida pelo rival João Doria (PSDB-SP), por críticas ao isolamento social.

Com o colapso nacional do sistema de saúde neste momento agudo da pandemia, governadores estão endurecendo cada vez mais medidas. Pequenas manifestações contra os chefes estaduais e pedindo "intervenção militar com Bolsonaro no poder" reapareceram em diversos pontos do país.

Não por acaso, o presidente está em momento de grande fragilidade. Está em processo de troca de Pazuello pelo médico Marcelo Queiroga, uma transição atabalhoada que só lhe rendeu críticas.

Sua rejeição voltou ao pior patamar desde que assumiu, conforme mostrou pesquisa do Datafolha na semana passada, com especial repúdio à sua condução da crise sanitária. Mas ele mantém uma aprovação alta, de 30%.

Como a Folha ouviu de um dirigente do centrão nesta segunda, ninguém acredita que a inciativa de Bolsonaro de criar um comitê para lidar com a pandemia, passado um ano do seu início, irá dar algum resultado concreto.

Ele vê os esperneios do presidente junto à sua base mais radicalizada como um caminho natural, e brinca que se houvesse "dez pessoas na rua contra o Bolsonaro", o clima para um processo de impeachment no Congresso estaria dado, tal o azedume entre as forças que apoiam o governo e seu hospedeiro.

Nesse ambiente, os militares surgem como referência, e não exatamente positiva. Dois ministros do Supremo conversaram com um importante general da reserva sobre as inclinações das Forças e ouviram que não haveria risco de apoio a qualquer iniciativa autoritária ou inconstitucional.

Segundo ele, o nó para os militares se chama hierarquia, que impossibilita críticas públicas ao governo, não menos pela simbiose que há entre Forças Armadas e a gestão Bolsonaro, por mais que a cúpula da ativa tente evitar.

O maior temor entre esses oficiais céticos em relação ao governo tomou forma na sexta-feira (19), quando Bolsonaro afirmou que poderia tomar "medidas duras" na pandemia, uma semana depois de insistir que tinha apoio do "meu Exército", Força da qual é capitão reformado.

No mundo político, correu a versão segundo a qual Planalto estudava adotar estado de sítio, situação na qual as Forças Armadas têm papel central e na qual alguns direitos constitucionais são suspensos. O rumor foi tão forte que o presidente do Supremo, Luiz Fux, ligou para Bolsonaro para ouvi-lo negar a hipótese.

O mal-estar perpassou o fim de semana, com políticos consultando militares sobre o burburinho. A fala presidencial no domingo só acirrou mais os ânimos, e aos poucos a sensação de sobressalto que marcou 2020 vai ganhando corpo entre esses atores.


Cristina Serra: A carta tardia do PIB

Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami?

Quer dizer que foi preciso um ano de pandemia, quase 300 mil cadáveres, o colapso dos hospitais e um tombo colossal na economia para que parte expressiva do PIB se manifestasse publicamente sobre a catástrofe humanitária que nos põe de joelhos? Tirante honrosas exceções que assinam a carta divulgada neste fim de semana, a maioria permanecera em indiferente pachorra.

São mais de 500 assinaturas; alguns sobrenomes reluzentes, de banqueiros, empresários, ex-ministros, ex-dirigentes do Banco Central e economistas que, até outro dia, clamavam pela urgência das reformas, mas não mostravam a mesma preocupação com a premência de salvar vidas.

Muitos até devem ter achado, como disse o famoso animador de auditório, que Bolsonaro teria uma "chance de ouro de ressignificar a política", seja qual for o sentido disso no dialeto da Faria Lima. Agora, com as UTIs dos hospitais privados lotadas, parecem ter despertado do modo "repouso em berço esplêndido".

O que mudou? Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami? Que não somos bem-vindos em nenhum país porque cevamos um criadouro de variantes agressivas do vírus? Que estamos todos na mesma tormenta, embora milhões a enfrentem agarrados a um pedaço de pau e pouquíssimos em um transatlântico? Simplesmente perceberam que Paulo Guedes não tem força para demolir o Estado, como esperavam ? Ou a soma disso tudo?

Com tal carta, nossa elite mostra como é elástica sua tolerância diante de uma tragédia que atinge principalmente os mais pobres. Ao ler o documento, procurei menção a, quem sabe, aumento de imposto sobre suas imensas fortunas. Nenhum palavra. Apesar de tardia, a carta pode até ajudar a controlar rompantes autoritários de Bolsonaro. Daí a conter o genocídio que nos abate há longa distância. Para isso, é preciso combinar com os mercenários e franco atiradores do centrão. E enquanto você lê esse texto, mais um coração brasileiro parou de bater.


Hélio Schwartsman: Se o vírus tivesse me ouvido...

O corona, porém, não atendeu a meus apelos

Em julho, quando o presidente anunciou que tinha contraído a Covid-19, escrevi a coluna "Por que torço para que Bolsonaro morra". Ganhei uma enxurrada de emails irados e um inquérito com base na LSN. Riscos da profissão.

A título de experimento mental, convido o leitor a adentrar no fantástico mundo dos contrafactuais e imaginar o que teria acontecido caso o vírus tivesse atendido a meu desejo.

Em princípio, nada muito animador. Bolsonaro teria sido substituído pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, que tem ideias parecidas com as do titular e também nutre crenças exóticas (cloroquina) em relação à Covid-19. Mas Mourão, admita-se, vem com uma demão de verniz civilizacional e parece mais disposto a seguir conselhos de especialistas.

De todo modo, as inclinações naturais do general nem são tão relevantes. Ao assumir a vaga de alguém que morrera de Covid-19, Mourão não teria alternativa que não a de declarar guerra ao vírus. Àquela altura, vale destacar, teria sido possível comprar antecipadamente grandes quantidades de vacinas, que talvez tivessem evitado as consequências mais catastróficas desta segunda onda que enfrentamos.

A própria população teria ficado assustada com a morte precoce do presidente e, presume-se, não resistiria a medidas de distanciamento social nos momentos em que elas se mostrassem necessárias.

Em 7 de julho de 2020, o Brasil contabilizava 1.658.589 casos confirmados da doença e 66.741 mortes. Hoje, esses números são 11.998.233 e 294.042 e aumentam rapidamente. Não dá para precisar quantos óbitos teriam sido evitados se Bolsonaro tivesse sucumbido à moléstia, mas não teriam sido poucos.

O vírus, porém, não atendeu a meus apelos. Para quem gosta de ciência e flerta com a teoria dos muitos mundos, resta o consolo de que existe um universo onde o Sars-CoV-2 levou Bolsonaro e, depois disso, o Brasil se tornou um exemplo no combate à epidemia.


François Hollande: Papel da esquerda é tirar populistas do poder democraticamente

Ex-presidente francês afirma discutir com Lula como construir forças políticas capazes de encarnar a alternância

Beatriz Peres, Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - O ex-presidente francês François Hollande, 66, que comandou o país entre 2012 e 2017, considera palpáveis os danos causados pelo populismo que ascendeu em diferentes partes do mundo.

"A eleição de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta amazônica, em um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito duras com os mais pobres e muito complacentes com os mais ricos", diz o socialista. "Sem esquecer a gestão da crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos EUA —quando Donald Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de medidas restritivas."

Em entrevista à Folha, por email, Hollande defende uma reação em bloco, como afirma ter acontecido com a candidatura do democrata Joe Biden na vitória sobre Trump. "Foi por pouco, e isso só foi possível porque o conjunto dos democratas, para além de suas diferenças, juntaram suas forças."

Depois da condenação do ex-presidente Nicolas Sarkozy, o senhor criticou o que chamou de “ataques repetidos contra a Justiça”. Por que considerou necessário defender a Justiça francesa neste momento? 

A separação dos Poderes é o fundamento da democracia. Na França, a Justiça é independente do Executivo. Os magistrados, os juízes e os procuradores conduzem suas investigações e proferem suas sentenças sem intervenção nenhuma do poder político. As decisões podem ser contestadas por todas as vias de recurso, o que Nicolas Sarkozy já fez em seguida à condenação. Por isso não aceitei os ataques vindos da direita e dos apoiadores do ex-presidente que visam desacreditar a autoridade judiciária.

No Brasil, a Justiça também está sendo criticada devido ao processo contra o ex-presidente Lula. É preciso defender a Justiça também no Brasil? 

A Justiça brasileira vai estabelecer ela mesma a verdade e poderá um dia verificar se as acusações contra o ex-presidente Lula tinham fundamento. Mas já parece claro que tudo foi feito no plano político para impedir Lula de se candidatar na última eleição presidencial. Foi isso que justificou minha tomada de posição, com outros chefes de Estado e de governo, desde 2018, para que Lula pudesse, livre, ser candidato à eleição presidencial. Hoje é um novo momento que se abre, e fico feliz de ver Lula recuperar plenamente seu espaço na vida política brasileira.

Nos EUA, a eleição de Joe Biden freou a onda populista de Donald Trump. Mas os movimentos populistas de extrema direita e de ultradireita estão espalhados pela Europa e também pelo Brasil. Qual é o papel da esquerda neste momento? 

Nós já podemos facilmente constatar os danos causados pelos populistas. A eleição de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta amazônica, em um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito duras com os mais pobres e muito complacentes com os mais ricos. Sem esquecer a gestão da crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos —quando Donald Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de medidas restritivas.

A esquerda nos Estados Unidos –porque é assim que podemos considerar os democratas americanos– foi capaz de se unir em torno de Joe Biden, cujo passado e experiência eram testemunhas de seu compromisso e despertaram confiança. Foi assim que Trump pôde ser derrotado. Foi por pouco, e isso só foi possível porque o conjunto dos democratas, para além de suas diferenças, juntaram suas forças. O papel da esquerda, portanto, é fazer de tudo para impedir que os populistas cheguem ao poder e, quando eles chegam, de retirá-los democraticamente propondo ao povo uma solução crível.

Na França, o Partido Socialista está programando um congresso de “refundação”, para definir um novo ciclo e renomear o partido. Do que se trata esse movimento de refundação? 

Em um mundo que evolui rapidamente e diante de desafios enormes como as desigualdades, a democracia e o aquecimento climático, cada geração deve assumir suas responsabilidades. Os partidos progressistas precisam se renovar, se refundar e se repensar, tanto do ponto de vista de sua organização como de seu projeto. Mas sem nunca se esquecer de sua história e sem perder os valores sobre os quais foram fundados. É essa a tarefa atual dos socialistas franceses.

O senhor tem discutido a renovação da esquerda com o ex-presidente Lula? 

Sim, nós concordamos em trocar experiências, em defender as mesmas posições em nível internacional e em construir, em nossos respectivos países, as forças políticas capazes de encarnar a alternância. Trabalharemos com todos que quiserem se juntar a nós para devolver a esperança à política. Nós compartilhamos os valores da liberdade, da democracia e da justiça social.

A França ainda vive o luto de atentados terroristas recentes, incluindo a decapitação do professor Samuel Paty, e os deputados aprovaram um projeto de lei contra os separatismos, que será examinado pelo Senado. As discussões do chamado “islamoesquerdismo” eclipsam o problema real? 

A França ama as polêmicas. Algumas podem ser frutíferas, outras ocultam os problemas reais. Sejamos lúcidos, existem fenômenos de radicalização, de divisão e mesmo de separatismo. E há até teorias que os justificam. Eles precisam ser discutidos e combatidos. Mas não vamos acreditar que eles sejam majoritários na esquerda, pelo contrário. É uma fração muito pequena que mantém esses movimentos para viver em protesto, em exclusão e na recusa de suas responsabilidades. Eu sou socialista e, portanto, universalista e não me satisfaço com os combates parciais. Tudo deve convergir para uma mudança global da sociedade. Quanto ao terrorismo, ele tenta nos assustar e nos dividir, não podemos ceder a ele.

O senhor concorda com a gestão do presidente Emmanuel Macron durante a pandemia

A gestão da pandemia é uma das crises mais difíceis que se poderia conceber, já que o vírus é resistente, a vacinação demora a produzir seus efeitos e uma parcela da população continua vulnerável. A gestão do governo pode ter parecido às vezes hesitante ou contraditória, mas foi assim em todos os países. Ao menos eu reconheço o mérito de Emmanuel Macron, ao contrário de Jair Bolsonaro, de ter admitido que o vírus era perigoso, que poderia matar e que era preciso tomar medidas restritivas, especialmente o confinamento.

O senhor se arrepende de não ter disputado as últimas eleições presidenciais? 

Eu deveria ter demorado mais para anunciar minha escolha, talvez um pouco mais tarde tivesse sido diferente. Eu me arrependo de não ter podido perseguir por mais tempo a política de redução das desigualdades, a priorização da educação e da inserção dos jovens, assim como a luta por uma ecologia social.

O senhor acredita ter um papel na eleição de 2022? Qual? 

Eu não sou mais dirigente do Partido Socialista. Tenho orgulho do que fiz pelo meu país, ainda que reconheça determinadas falhas, mas meu papel é contribuir para o debate de ideias, fazer propostas, expressar minhas convicções quando os pontos essenciais estão em questão e transmitir minha experiência às novas gerações.

*François Hollande, 66, Formado pela École des Hautes Études Commerciales de Paris e pelo Institut d'Études Politiques de Paris (Sciences Po), entrou para o Partido Socialista em 1979. Foi deputado pelo departamento de Corrèze e prefeito da capital, Tulle. Foi o sétimo presidente da quinta República Francesa.