Lava Jato
Alon Feuerwerker: Por que o “novo” envelhece prematuramente. E a hipótese de um Benjamin Button eleitoral
O “novo para 2018” enfrenta, na primavera, um primeiro outono. Seu nome mais vistoso, João Doria, perde substância eleitoral. No front dos políticos, o establishment reagrupa-se contra o protagonismo do Judiciário. E a Lava-Jato segue, só que cada vez mais restrita ao plano operacional: as pessoas continuam sendo presas e processadas, mas o efeito político dilui.
Uma explicação é a progressiva mudança na correlação de forças. Quanto mais inimigos você decide ter, mais aumenta a dificuldade de derrotá-los todos de uma vez só. Por exemplo, desde o movimento da PGR contra o atual presidente da República, a “faxina” perdeu o apoio de quem a via apenas como útil instrumento para remover o governo Dilma Rousseff.
Papel decisivo nessa inversão tem tido a resistência de Michel Temer. Se conseguir travar na Câmara dos Deputados a segunda denúncia do ex-PGR, o mundo da política terá imposto aos adversários uma segunda e talvez decisiva derrota estratégica. Ainda haveria muitas vítimas fatais até o fim da guerra, mas já se saberia quem no fim vai ganhar e quem vai perder.
Nenhuma correlação de forças no universo restrito da política e do jornalismo seria porém suficiente, não estivesse acompanhada de dois fatores econômicos decisivos: a baixa e declinante inflação, com o automático alívio nas contas dos mais pobres, e a política econômica agressivamente liberal, uma antiga reivindicação dos mais ricos.
Daí que o governo Temer viva uma situação aparentemente paradoxal: é o mais mal avaliado desde a redemocratização, e não vê nenhuma mobilização social relevante para mandá-lo para casa. Ajuda nisso também a proximidade da eleição. Pois ela passa a concentrar os planos de quem espera assumir o Palácio do Planalto em 1º de janeiro de 2019.
Mas se a eleição logo ali fosse o fator decisivo, talvez tivéssemos um cenário como no ocaso de José Sarney: um desgaste agudo dos nomes “velhos” e uma busca persistente pelo “novo”. Que acabou sendo Collor, como poderia ter sido Lula ou Brizola. Nunca Ulysses, Aureliano, Covas ou Maluf. A renitente hiperinflação era mesmo um obstáculo difícil de transpor.
2018 não está, por enquanto, com jeito de 1989. A melhora, mesmo lenta, do cenário econômico tira alguma musculatura do tentador discurso de “mudar tudo o que aí está”. O “novo” perde momentum. E há até espaço para que o próprio Temer, quem sabe?, venha a ter mais influência na sucessão do que autorizam extrapolações lineares para o futuro.
Se conseguir travar a segunda denúncia, Temer aumenta muito a chance de chegar na cadeira no dia da eleição. Especialmente se conseguir relançar em algum grau sua agenda e evitar a degeneração vegetativa. A chance é pequena mas não é zero. E governo sempre é governo, nunca é demais lembrar. Ainda mais no Brasil.
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O envelhecimento do “novo” autêntico abre espaço para o “velho” que consiga rejuvenescer no processo. Um Benjamin Button eleitoral. A aversão aos políticos e o medo da instabilidade econômica dão espaço para projetos de “mudança segura”. Pode ser Alckmin. Mas também pode ser Lula, se conseguir concorrer. O que hoje parece improvável.
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A proibição das contribuições empresariais fará da eleição de 2018 um parque de diversões para os milionários, as igrejas e o crime organizado. Foi o caminho que se escolheu ao ceder à lógica de uma “política sem dinheiro”. Coisa aliás tão factível quanto, por exemplo, fazer jornalismo sem dinheiro. O inferno está mesmo lotado de boas intenções. Fica a dica.
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Começou o bombardeio sobre Jair Bolsonaro. É razoável esquadrinhar os candidatos à presidência, em especial os mais fortes. Mas não é disso que se trata. Bolsonaro foi poupado enquanto era politicamente útil. Agora querem descartá-lo. Faz sentido. Ele deixa o eleitorado mais centrista exposto ao assédio da esquerda. Um risco desnecessário.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Rogério Furquim Werneck: A Lava-Jato e as perspectivas da economia
A 12 meses das eleições e enfraquecido, governo já não tem mais condições de assegurar o avanço da agenda de reformas
Quis o destino que, numa mesma semana de setembro, viessem a público o devastador depoimento de Palocci, sobre Lula, e a nova e desgastante denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Temer e dois de seus ministros mais próximos. A coincidência permitiu entrever quão complexos têm sido os efeitos da Lava-Jato e operações similares sobre a formação de expectativas acerca das perspectivas da economia.
A esmagadora maioria dos analistas políticos parece não ter dúvida de que, mais uma vez, o Planalto conseguirá bloquear, na Câmara, a denúncia da PGR contra o presidente. Mas, mesmo sustada, a segunda denúncia terá custado muito caro ao Planalto. Temer vem tendo de lidar com uma bancada governista cada vez mais voraz, empenhada em extrair o que pode de um governo patentemente fragilizado, seja por meio de novos esquemas de pilhagem do Erário, seja pela ampliação do seu controle sobre cargos-chave da administração federal.
Basta ter em mente, por exemplo, o novo e indefensável programa de refinanciamento de dívidas fiscais, cuja aprovação avança à revelia das autoridades fazendárias, ou os pleitos da bancada ruralista quanto a dívidas do Funrural. Ou, ainda, a agressividade com que o centrão vem pressionando o Planalto para que o atual ministro da Secretaria de Governo, responsável pela articulação do Executivo com o Congresso, seja substituído por um dos seus.
Por mais seguro que pareça estar sobre sua capacidade de bloquear a segunda denúncia na Câmara, o Planalto não parece disposto a correr riscos. Inclusive para se precaver contra novas delações. Só na terça-feira feira passada, o presidente Temer recebeu em palácio nada menos que meia centena de deputados federais.
A 12 meses das eleições e enfraquecido como está, o governo já não tem mais condições de assegurar o avanço da agenda de reformas fiscais no Congresso. A reforma da Previdência parece fadada a ser deixada para o próximo mandato presidencial. E o que de melhor se pode esperar, a esta altura, é que as contas públicas não se deteriorem ainda mais, na esteira da fragilização do Planalto.
Visto por este ângulo, haveria razões de sobra para que os mercados financeiros se tornassem mais pessimistas acerca das perspectivas da economia. Mas o que se viu nas últimas semanas foi o oposto. Os mercados ficaram mais otimistas.
É bem verdade que, fora do problemático quadro fiscal, as notícias no front estritamente econômico têm sido muito boas. Basta ter em conta, além da persistência de um ambiente externo favorável, o extraordinário sucesso do Banco Central no combate à inflação, a rápida redução das taxas de juros e a percepção de que a recuperação da economia poderá ser bem mais vigorosa do que se esperava.
Mas tudo indica que, por si sós, essas boas notícias não teriam sido suficientes para sustentar a onda de otimismo das últimas semanas, se a incerteza sobre o desfecho das eleições de 2018 ainda estivesse tão alta como estava há poucos meses.
O que parece ter feito enorme diferença foi a súbita e substancial redução desta incerteza, em decorrência de outro efeito importante do avanço das operações de combate à corrupção. O pessimismo quanto às possibilidades da política fiscal, no que resta do governo Temer, foi amplamente compensado pelo relativo otimismo que adveio da reavaliação das perspectivas da candidatura de Lula à Presidência em 2018, após o devastador testemunho do ex-ministro Antonio Palocci.
A incerteza sobre o desfecho da eleição presidencial continua alta. Ainda há muita água para correr debaixo da ponte. Mas a probabilidade de que, afinal, seja eleito um presidente comprometido com a continuidade do esforço de ajuste fiscal tornou-se bem maior do que parecia ser em meados deste ano. E maior ainda se tornará se a recuperação da economia for de fato tão vigorosa como promete.
É a isso que os mercados agora se agarram, ao arrepio do que ainda sugerem as pesquisas de intenção de voto.
* Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio
Luiz Carlos Azedo: Homem a homem
Temer tem votos suficientes para barrar a segunda denúncia da Lava-Jato na Câmara, mas está correndo risco de ter menos apoio do que na rejeição da primeira
O presidente Michel Temer adotou um sistema de marcação homem a homem para garantir a rejeição da segunda denúncia do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot pela Câmara, na qual é acusado, supostamente, de organização criminosa e obstrução de Justiça, com base na delação premiada do doleiro Lúcio Funaro. Ontem, quase 50 deputados foram recebidos oficialmente por Temer, em seu gabinete, em cerca de 20 audiências, depois de um fim de semana dedicado à discussão de sua estratégia de defesa.
Já não adianta terceirizar as negociações com os deputados da base do governo que negaceiam seu apoio, por diversos motivos, do não cumprimento de compromissos assumidos à ambição de ocupar mais espaços na Esplanada. Pelo Twitter, logo de manhã, Temer classificou a denúncia do ex-procurador Rodrigo Janot de “inepta e sem sentido” e anunciou que conversaria com os parlamentares da base para preservar “a harmonia entre os poderes”. Na verdade, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que foi seu esteio na rejeição da primeira denúncia, acendeu uma luz amarela no Palácio do Planalto ao se queixar da atuação da cúpula do PMDB e se defender das acusações de que está conspirando: disse que não teria o mesmo comportamento do PMDB, que articulou o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff quando Temer era o vice-presidente da República.
Na avaliação do Palácio do Planalto, Temer tem votos suficientes para barrar a segunda denúncia, mas está correndo risco de ter menos apoio do que na rejeição da primeira. O aval da Câmara para que o Supremo Tribunal Federal (STF) investigue o presidente da República depende do apoio de 342 dos 513 deputados, o que é muito difícil de alcançar. Entretanto, Temer não deixa de ser um animal ferido, o que provoca uma espécie de ataque de piranhas na própria base do governo, principalmente dos aliados que querem mais espaço na Esplanada.
A movimentação dos insatisfeitos fragiliza o ministro Antônio Imbassahy (PSDB-BA), da Secretaria de Governo, que teria a responsabilidade de articular a base do governo, mas perdeu autoridade porque o líder do PSDB, Ricardo Trípoli (SP), e praticamente todos os tucanos paulistas são a favor da aceitação da denúncia, que implicaria no afastamento de Temer do cargo por 180 dias. Nesse caso, Rodrigo Maia assumiria a Presidência.
Temer já conversou com uma dezena de deputados da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, responsável pela primeira etapa de análise da denúncia, que consiste na apreciação do parecer a ser elaborado pelo deputado Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), recomendando o envio da acusação para o Supremo ou a suspensão do processo até a conclusão do mandato de Temer. A situação do relator é um capítulo à parte: o PSDB não quer que permaneça na função, mas não pode substituí-lo. Nesse caso, outro partido poderia indicá-lo para a comissão, a pedido do Palácio do Planalto.
A conciliação
O Senado é mesmo a Casa da “conciliação”: adiou para 17 de outubro a apreciação da suspensão do mandato do senador Aécio Neves (PSDB-MG) e, assim, evitou um confronto aberto com o Supremo Tribunal Federal (STF). Votaram a favor do adiamento 50 senadores; contra, 21. Os senadores Jader Barbalho (PMDB-PA) e Renan Calheiros (PMDB-AL) foram os “jacobinos” da sessão, mas não tiveram o apoio que esperavam. O líder do governo, Romero Jucá (PMDB-RR), também defendeu a realização da votação, porém, o líder da bancada do PMDB, Raimundo Lira (PB), consultou 21 dos 23 integrantes da bancada e concluiu que havia uma “maioria consistente” para aguardar o julgamento do STF.
O PSDB tentou sair da saia justa com um pedido de suspensão do afastamento de Aécio ao Supremo, mas o ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato, negou o pedido. Ao líder do PSDB, Paulo Bauer (SC), não restou outra alternativa a não ser defender a votação, mas a bancada acabou isolada. Aécio Neves, além de estar com o mandato suspenso, foi proibido de sair à noite e manter contato com outros investigados pela Operação Lava-Jato. A decisão foi tomada com base no Código de Processo Penal, por três dos cinco juízes da Primeira Turma do STF: Luís Barroso, Rosa Weber e Luís Fux. Marco Aurélio Mello, o relator, e Alexandre de Moraes votaram contra.
A Constituição determina que a prisão de senadores seja autorizada pelo Senado, o que criou um impasse. Para muitos senadores, “quem pode mais, pode menos”: o princípio Constitucional deve prevalecer sobre matéria penal. Mas a Constituição também determina a palavra final sobre matéria constitucional seja do Supremo. A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, marcou para 11 de outubro a sessão do Supremo que apreciará a questão. Ao adiar a decisão sobre o caso para 17 de outubro, o Senado evitou um confronto institucional. A possibilidade de o Supremo rever a decisão da Primeira Turma é grande.
Luiz Carlos Azedo: As lições de Tuchman
Uma decisão do Senado hoje desautorizando a Primeira Turma pode desacreditar o Supremo e talvez até provocar uma reação contrária às expectativas quanto à decisão do plenário da Corte, o que nos levaria ao limiar de uma crise institucional
A escritora norte-americana Barbara Tuchman (1912-1989), historiadora autodidata, ficou famosa com a publicação do livro Canhões de agosto, em 1962, com o qual ganhou o Prêmio Pulitzer de não ficção, ao relatar os antecedentes e o primeiro mês da Primeira Guerra Mundial, desnudando o despreparo e a arrogância dos líderes políticos que protagonizaram o conflito. A carnificina custou 10 milhões de mortos, 30 milhões de feridos, arrasou indústrias e campos agrícolas, gerando prejuízos econômicos e dívidas impagáveis. Um mês de guerra foi o suficiente para desmoralizar e desacreditar governos, entre os quais a autocracia dos Romanov, cuja deposição resultou na Revolução Russa de 1917.
Seu livro mais conhecido, porém, é a A marcha da insensatez, lançado em 1984 nos Estados Unidos e publicado logo no ano seguinte no Brasil, pela Editora José Olympio. Teve grande repercussão por aqui, porque foi um raio de luz num momento decisivo da transição à democracia. Nele, Tuchman traça um paralelo entre momentos decisivos da História, entre os quais a Guerra de Troia, a Reforma Protestante, a Independência dos Estados Unidos e a Guerra do Vietnã, para tipificar o desgoverno provocado pela tirania, pela ambição, pela insensatez e pela decadência. Retrata a loucura política de governantes que adotam políticas contrárias aos seus próprios interesses, mesmo quando as evidências do fracasso se avultam e escolhas acertadas seriam possíveis.
Não faltam exemplos na política brasileira sobre isso, mas parece que estamos novamente num desses momentos em que as lideranças não medem as consequências dos seus atos. O presidente do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE), ao sair do encontro de ontem com a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, anunciou que a sessão marcada para apreciar a decisão da Primeira Turma do STF que decidiu afastar do mandato o senador Aécio Neves (MG), presidente licenciado do PSDB, está mantida para hoje. E que a revogação da decisão está na pauta de votação, mesmo que o recurso impetrado pelo PSDB contra a decisão esteja para ser julgado pelo plenário da Supremo em 11 de outubro.
Desde sexta-feira, nos bastidores do Judiciário, comentava-se que a decisão da Primeira Turma, protagonizada pelos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luís Fux, contra os votos do relator Marco Aurélio Mello e do ministro Alexandre de Moraes, seria revista pela maioria do Supremo. Supostamente, somente o ministro-relator da Lava-Jato, Edson Fachin, da Segunda Turma, estaria solidário com a decisão. Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski seriam a favor de rever as “medidas cautelares”. Caberia ao decano Celso de Mello e à presidente da Corte, Cármen Lúcia, consolidar ou reverter essa maioria. Talvez fosse mais prudente e elegante o Senado esperar o próprio Supremo rever a decisão da Primeira Turma em vez de reiterar o poder de dispor dos mandatos de seus membros. Daria aos demais integrantes da Corte a oportunidade de rever os atos de três de seus pares.
Um velho poema
É muita ingenuidade — para não dizer insensatez — acreditar que a ordem dos fatores não altera seu resultado. Uma decisão do Senado hoje desautorizando a Primeira Turma pode desacreditar o Supremo e talvez até provocar uma reação contrária às expectativas quanto à decisão do plenário da Corte, o que nos levaria ao limiar de uma crise institucional. O aviso veio de um dos ministros vencidos na Primeira Turma: “No dia 11, o Supremo dará a última palavra. Temos que cumprir a Constituição. A última palavra e interpretação constitucional é do STF. A partir do dia 11, qualquer desrespeito a partir da decisão do STF poderá resultar em crise institucional”, admitiu Alexandre de Moraes.
A situação é realmente delicada, ainda mais porque a Câmara inicia a discussão de outro contencioso: a segunda denúncia contra o presidente Michel Temer, que pode ser rejeitada pela base governista. São dois episódios que tensionam a relação entre os poderes da República, ambos em razão das investigações da Operação Lava-Jato. As forças no poder destituíram a presidente Dilma Rousseff em razão dos anseios da sociedade organizada em rede, que não permanece nas ruas, mas continua sendo uma variável a ser levada em conta. Os políticos entrincheirados no governo e os agentes econômicos também não têm os mesmos interesses, ainda que a sobrevivência do patrimonialismo nos processos de modernização, historicamente, faça parte da nossa tradição ibérica.
A crise política somente se resolverá nas eleições de 2018, nas quais vale a advertência de quem retratou a formação do patriarcado brasileiro, Gilberto Freyre, autor de Casa grande & senzala, no velho poema de 1926: “Eu ouço as vozes/eu vejo as cores/eu sinto os passos/ de outro Brasil que vem aí”.
Luiz Carlos Azedo: A imagem da transição
O presidente da República é prisioneiro de uma pauta negativa: a Operação Lava-Jato, na qual o governo está muito enredado
Uma das características da atual conjuntura é o descolamento da economia da imagem do governo Temer. Enquanto o país deixa para trás a recessão, com indicadores econômicos cada vez mais positivos, os índices de aprovação do presidente Michel Temer não dão o menor sinal de recuperação, pelo contrário, se deterioraram ainda mais. Entretanto, é inegável que as medidas adotadas pelo governo reverteram o curso dramático da economia — na administração de Dilma Rousseff, de 2013 a 2016, passamos da estagnação para a recessão, com inflação altíssima e desemprego acima de 10%.
A recessão teve um peso enorme no impeachment de Dilma Rousseff, mas o inverso não está sendo verdadeiro para o governo Temer. A inflação deve ficar abaixo dos 3%, os juros podem cair abaixo dos 7%, mas nada disso rende aplausos populares. Parece que a equipe econômica liderada pelo ministro Henrique Meirelles (Fazenda) faz parte de outro governo. Como a política monetária foi blindada, porém, há que se admitir que esses resultados positivos não seriam possíveis sem as reformas implementadas pelo Palácio do Planalto.
Mudanças na lei de conteúdo nacional, retomada dos leilões do pré-sal, liberalização dos preços dos combustíveis e redução de tarifas de importação de bens de capital jogaram um papel decisivo na construção do novo ambiente econômico e a mudança da taxa de juros cobrada pelo BNDES. A reforma trabalhista, a nova lei da terceirização e o teto constitucional para expansão dos gastos públicos completam o cenário virtuoso, em que pese a meta de deficit fiscal de R$ 159 bilhões e o rombo na Previdência, cuja reforma empacou.
Nada disso, porém, alterou a avaliação do governo. Temer está com 77% de ruim e péssimo, 16% de regular e apenas 3% de bom e ótimo. Em situações como essa, o bode expiatório costuma ser a política de comunicação do governo. Mas o beabá da relação com a mídia e do marketing vem sendo observado: o governo faz campanhas publicitárias frequentes, o presidente mantém uma agenda de aparições públicas diárias e concede frequentes entrevistas. Não consegue, apesar disso, construir uma agenda positiva. Na verdade, o presidente da República é prisioneiro de uma pauta negativa: a Operação Lava-Jato, na qual o governo está muito enredado.
Os aliados de Temer tentaram fazer o feitiço virar contra o feiticeiro, ao articular uma “frente ampla” contra os procuradores e magistrados que atuam na Lava-Jato, principalmente, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot. Mas a estratégia começa a ser esvaziada, porque a nova procuradora-geral, Raquel Dodge, assumiu o cargo com temperança e suavidade. O problema é que Janot saiu de cena, mas as denúncias, não. Os rumos da Operação Lava-Jato dependem do Supremo Tribunal Federal (STF). É briga de cachorro grande.
Temer articula a rejeição da segunda denúncia do ex-procurador-geral pela Câmara e saiu na frente ao conseguir a indicação do veterano deputado Bonifácio de Andrada (PSDB-MG) para relator do processo, um passo importante para antecipar a votação, a qual precisa do apoio de apenas 172 deputados para rejeitá-la. Na primeira denúncia, amealhou 263 votos; espera ter mais apoio agora que a poeira baixou.
Caso Aécio
Uma decisão surpreendente da Primeira Turma do STF consolidou a “frente ampla”: o afastamento do senador Aécio Neves (PSDB-MG) do cargo, entre outras “medidas cautelares”, como a proibição de sair de casa à noite. PMDB, PT e PSDB se uniram em defesa de Aécio, o que reforçou as posições de Temer na Câmara. O problema é que a reação dos políticos gerou um choque entre o Congresso e o Supremo, cujas consequências podem ser mais graves. Na Câmara, a rejeição da denúncia contra Temer faz parte das regras do jogo: a investigação do presidente da República será congelada até o fim do mandato, como na primeira denúncia. A melhora do ambiente econômico ajuda a justificar essa decisão. No Senado, porém, a situação se complicou, porque a rejeição de “medidas cautelares” não está prevista na Constituição.
Os senadores avaliam: “quem pode mais pode menos”, ou seja, se podem revogar a prisão de um dos pares com base na Constituição, por analogia, podem revogar “medidas cautelares” previstas no Código de Processo Penal. Essa exegese, porém, cabe ao Supremo, que vai deliberar sobre o assunto em 11 de outubro. Alguns senadores querem se antecipar e criar um fato consumado, o que pode afrontar o Supremo e provocar uma crise institucional. Não é preciso ser marqueteiro para concluir que essa agenda é péssima para o Palácio do Planalto e aliados. O que puxa para baixo a imagem de Temer é a Lava-Jato.
Luiz Carlos Azedo: Não há anjos na política
O caso Aécio Neves, ao pôr em xeque a relação entre os poderes, é um embate entre a tradição ibérica de nossa política e a tendência americanista da nova magistratura
“Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos”, resumiu um dos fundadores da democracia americana (Madison, O Federalista nº 51), ao se referir aos políticos de um modo geral. A citação é oportuna porque estamos diante de um contencioso entre duas vetustas instituições da União, o Supremo Tribunal Federal e o Senado, ambas herdadas do Império (Constituição de 1824) e não uma criação republicana. Quarto presidente norte-americano, James Madison teve um papel fundamental na elaboração da Constituição e da Declaração de Direitos dos Estados Unidos, com Alexandre Hamilton e John Jay, nos ensaios de O federalista, clássico da ciência política.
Madison dedicou especial atenção à necessidade de controlar os detentores do poder, porque os homens não são governados por anjos, mas por outros homens: “Ao constituir-se um governo — integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens —, a grande dificuldade em que se deve habilitar primeiro o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo”. Para eles, as estruturas governamentais devem funcionar de maneira a evitar que o poder se torne arbitrário e tirânico. “Não se pode negar que o poder é, por natureza, usurpador e que precisa ser eficazmente contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados” (O Federalista, nº 48).
O caso do afastamento do mandato e recolhimento noturno do senador Aécio Neves (PSDB-MG), entre outras medidas cautelares decididas por três dos cinco ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux), transcende tudo o que já houve até agora em termos de “judicialização” da política, inclusive a prisão do então senador Delcídio do Amaral (MS), ex-líder do governo Dilma Rousseff, por obstrução da Justiça. “Estamos diante de uma crise institucional, mas será suplantada porque nossa democracia veio para ficar”, adverte o ministro Marco Aurélio, relator do caso, que votou contra o afastamento, sendo acompanhado apenas pelo ministro Alexandre Moraes.
Ontem, por 43 votos a 8, o Senado evitou o agravamento do impasse, adiando para a próxima semana a votação sobre a decisão do Supremo. Os senadores decidirão se acatam ou derrubam a ordem da Primeira Turma. A votação estava prevista, mas não houve o quórum desejado pelo líder do PSDB, senador Paulo Bauer (SC). Apenas 47 dos 81 senadores estavam presentes. A turma do deixa disso tenta empurrar o caso com a barriga, com a esperança de que o plenário do Supremo reveja a polêmica decisão, que dividiu a Corte. Avaliam que a rejeição pode provocar uma decisão ainda mais drástica do Supremo, elevando a tensão entre os dois poderes.
Americanismo
A famosa teoria da separação dos poderes de Montesquieu se baseava na experiência de “governo misto” da Inglaterra, no qual a realeza, a nobreza e o povo são obrigados a cooperar em regime de liberdade, com a divisão em três funções básicas: a legislativa, a executiva e a judiciária. Nos Estados Unidos, a ideia de um “governo misto” estava descartada pela própria Independência, o que gerou um impasse entre os constituintes, ainda mais porque uma parte da elite política local era aristocrática e escravocrata, como o próprio Madison. O que estava em questão era como garantir a liberdade do povo, refreando as ambições e interesses dos mais poderosos. Na monarquia, as maiores ameaças à liberdade partiam do Executivo; mas nos regimes republicanos, o poder se desequilibrava em favor do Legislativo.
A solução encontrada pelos federalistas foi criar um regime bicameral, no qual o Senado funcionaria como uma espécie de poder moderador das ambições da Câmara. Ao mesmo tempo, reforçou-se o Judiciário, o mais fraco entre os poderes, porque destituído de iniciativa política, garantindo-lhe autonomia e atribuindo à Suprema Corte a interpretação final sobre o significado da Constituição. No Brasil, porém, esse papel de poder moderador somente passou a ser exercido pelo Supremo após a Constituição de 1988. Até então, desde a proclamação da República, foi anulado pelo Executivo ou usurpado pelos militares, com exceção de breves momentos de predomínio do Legislativo, como nas Constituintes de 1945 e de 1987 e nos 17 meses de regime parlamentarista do governo Jango (1961-1962).
O caso Aécio Neves, ao pôr em xeque a relação entre os poderes, é um embate entre a tradição ibérica de nossa política (da qual faz parte o patrimonialismo das oligarquias) e a tendência americanista da nova magistratura, predominante, por exemplo, no modelo de delação premiada (de 80% a 95% dos crimes ocorridos nos Estados Unidos são solucionados pelo plea bargaining, no qual o Ministério Público preside a coleta de provas no inquérito policial e faz a acusação perante a Justiça). É uma verdadeira encruzilhada político-institucional, porque em matéria de interpretação da Constituição o nome já diz: Supremo.
Luiz Carlos Azedo: Homem ao mar
A decisão da Primeira Turma do STF, que afastou Aécio Neves (PSDB-MG) do Senado, provocou uma espécie de efeito Orloff entre os senadores:“Eu sou você amanhã”
O Palácio do Planalto organiza uma operação de salvamento do senador Aécio Neves (PSDB-MG), afastado do mandato por polêmica decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. A cúpula do Senado reagiu à decisão, tomada por três votos a dois, como a tripulação de uma embarcação que tenta salvar um marinheiro que caiu no mar em meio à tempestade. Há três tipos de manobras possíveis, todas precisam guinar o barco para o bordo da queda, fazê-lo voltar ao local do acidente e posicioná-lo à barlavento, de modo a proteger o náufrago das ondas com o próprio casco. É o que o Senado provavelmente fará, com o apoio do Palácio do Planalto, o que aumentará a tensão entre os poderes da República.
PMDB e PT também se mobilizaram para salvar Aécio, mais até do que o próprio PSDB, que está dividido entre os aliados do senador mineiro — presidente afastado da legenda — e os liderados pelo presidente interino, senador Tasso Jereissati (CE). O principal gesto de solidariedade a Aécio veio do presidente Michel Temer, que se reuniu com o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), para articular a rejeição da decisão da Primeira Turma do Supremo pelo plenário da Casa.
Há duas grandes motivações para isso: primeiro, Aécio é o principal aliado de Temer no PSDB e teve um papel fundamental na rejeição da primeira denúncia do então procurador-geral, Rodrigo Janot, contra o presidente da República pela Câmara e, ao retribuir o gesto, com seu apoio, Temer consolida o respaldo da ala governista do PSDB à rejeição da segunda denúncia pela Câmara. Segundo, como a maioria dos senadores do PMDB e do PT está enrolada na Operação Lava-Jato, a decisão da Primeira Turma do STF provocou uma espécie de efeito Orloff (“eu sou você amanhã”) no Senado, pois outros parlamentares podem sofrer o mesmo tipo de punição quando seus processos forem a julgamento.
A decisão da Primeira Turma realmente é polêmica, até mesmo no Supremo. Os ministros do STF Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux votaram a favor do afastamento de Aécio, que também teve que entregar o passaporte, está proibido de viajar para fora do país e não pode sair de casa à noite. Ontem, o ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso, que votou contra o afastamento — como o ministro Alexandre Moraes —, defendeu a tese de que o Senado pode rever a decisão: “Eu sustentei, sem incitar o Senado à rebeldia, na minha decisão, que, como o Senado pode rever uma prisão determinada pelo Supremo, ele pode rever uma medida acauteladora”.
A Constituição determina que, nos casos de prisão em flagrante de senadores, por exemplo, o Senado deve, num prazo de 24 horas, autorizar ou não a manutenção da detenção, mas não prevê uma situação como a de agora, ou seja, o recolhimento domiciliar, que é uma “medida cautelar” prevista no Código Penal. Barroso, que liderou a derrubada do voto de Marco Aurélio, rechaçou a possibilidade de revisão da decisão: “O que a Primeira Turma fez foi restabelecer as medidas cautelares, inclusive a de afastamento que já havia sido estabelecida pelo ministro Fachin, acrescentando uma: que é a do recolhimento domiciliar no período noturno”, disse Barroso.
Manipulação
Aécio reagiu à decisão com uma nota, na qual afirma que a medida foi “proferida por três dos cinco ministros da Primeira Turma do STF como uma condenação sem que processo judicial tenha sido aberto”. Disse que nem sequer foi considerado réu e que não teve direito à defesa. E desqualificou a acusação: “As gravações consideradas como prova pelos três ministros foram feitas de forma planejada a forjar uma situação criminosa. Os novos fatos vindos à tona comprovam a manipulação feita pelos delatores e confirmam que um apartamento da família colocado à venda foi oferecido a Joesley Batista para que o senador custeasse gastos de defesa. Usando dessa oportunidade, o delator ofereceu um empréstimo privado ao senador, sem envolver dinheiro público ou qualquer contrapartida, não incorrendo, assim, em propina ou outra ilicitude”, argumentou.
O líder da bancada do PSDB, Paulo Bauer (SC), já apresentou requerimento para que uma sessão extraordinária seja convocada com objetivo de deliberar sobre a questão. O presidente do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE), porém, aguardava comunicação oficial do STF, o que aconteceu na noite de ontem. “Primeiro, o Senado precisa ser notificado sobre o teor da decisão tomada pela Suprema Corte para saber de que forma vai agir. Se vai ou se não vai agir. Não sei qual o teor da decisão e tenho o hábito de dizer aqui que eu não falo sobre hipótese”, declarou.
Luiz Carlos Azedo: A Primeira Turma
A punição dos políticos e uma suposta limpeza ética, por si só, não seriam a solução dos problemas, pois alguém tem que governar o país e, na democracia, são os partidos e os políticos que aí estão.
Presidente licenciado do PSDB e segundo colocado nas eleições para a Presidência da República em 2014, com 51 milhões de votos (48,36% dos votos válidos), o senador Aécio Neves (MG) foi afastado do mandato pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, por 3 votos a favor e 2 contra, com base em pedido de prisão apresentado pelo Ministério Público Federal, na época em que o procurador-geral ainda era Rodrigo Janot. Os cinco ministros da Primeira Turma, porém, votaram contra o pedido de prisão.A decisão contrasta com a temperança pregada pela nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que ontem falou sobre a Operação Lava-Jato pela primeira vez, em entrevista coletiva.
A votação de certa forma consolida as posições dos ministros Luis Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux em relação à Operação Lava-Jato na Primeira Turma. O ministro Marco Aurélio Mello, relator do processo, havia encaminhado voto contrário à prisão e ao afastamento, sendo acompanhado por Alexandre Moraes. Terceiro a votar, Barroso endossou o relator quanto ao pedido de prisão, mas defendeu o afastamento, sendo seguido por Rosa Weber e Luiz Fux, no mesmo entendimento.
É o segundo afastamento de Aécio do Senado. O primeiro foi em maio, determinado pelo ministro-relator da Operação Lava-Jato, Edson Fachin, da Segunda Turma, que negou, entretanto, o pedido de prisão feito à época. No fim de junho, novo pedido de prisão foi feito por Janot, sendo relator o ministro Marco Aurélio, que não somente negou o pedido de prisão como determinou a volta de Aécio ao Senado. O tucano é acusado de receber dinheiro da J&F (corrupção passiva) e atuar em conjunto com o presidente Michel Temer para impedir as investigações da Lava-Jato (obstrução da Justiça), com base na polêmica delação premiada do empresário Joesley Batista.
A votação reflete as divergências instaladas no plenário do Supremo em relação à Operação Lava-Jato, que terá que apreciar recurso da defesa de Aécio contra esse afastamento. A decisão da Primeira Turma também determina que Aécio entregue seu passaporte, não saia do país e permaneça em recolhimento noturno, ou seja, que fique obrigado a permanecer em sua residência à noite. O ministro Luiz Fux afirmou que a imunidade do parlamentar contra a prisão não serve à proteção para a prática de crimes: “Um dos pilares da Constituição é a moralidade no exercício do mandato.” Marco Aurélio repetiu o argumento usado por ele há três meses de que parlamentares só podem ser presos em flagrante de crimes inafiançáveis, hipótese que não se aplicaria ao caso. “Mandato parlamentar é coisa séria. E não se mexe impunemente em suas prerrogativas”, disse o ministro.
A diferença de entendimentos sintetiza o debate em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) e baliza o futuro das relações entre a Corte e o mundo político, que está se entrincheirando no Congresso para impedir que o Judiciário dê continuidade à Operação Lava-Jato. A começar pela segunda denúncia contra o presidente Michel Temer, que inclui também os dois mais importantes ministros do Palácio do Planalto, Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Secretaria-geral da Presidência). Para o Palácio do Planalto, as investigações põem em risco a recuperação da economia e a necessidade de chegar às eleições de 2018. A ameaça de ruptura institucional foi exumada pelas declarações do comandante do Exército, general Eduardo Villas-Bôas, e do general Hamilton Mourão, secretário de Economia e Finanças da Força, de que o Exército poderia intervir na política em caso de colapso das instituições e caos iminente.
Judicialização
A decisão da Primeira Turma fará recrudescer as críticas ao Judiciário. A narrativa é sob medida para os políticos enrolados na Operação Lava-Jato, que atribuem ao Judiciário uma parcela de responsabilidade pela crise política, em razão de decisões como a de considerar inconstitucional a cláusula de barreira, sendo conivente com a proliferação de partidos. A punição dos políticos e uma suposta limpeza ética, por si só, não seriam a solução dos problemas, pois alguém tem que governar o país e, na democracia, são os partidos e os políticos que aí estão. Esse é o “sistema”.
A “judicialização” da política seria uma das principais causas da crise. O patrimonialismo e o fisiologismo, heranças ibéricas do nosso passado colonial, seriam parte integrante e inescapável do mesmo processo que levou o país à modernização e nos garantiu a democracia. Não se pode, portanto, jogar a criança fora com a água da bacia. Ou seja, não vale a pena pôr em risco a democracia por causa do combate à corrupção, o que seria uma prática udenista, que engrossa o caldo de cultura favorável a uma intervenção militar. Esse é o debate que vamos assistir a partir de agora, quando as lideranças dos maiores partidos do país — o presidente Michel Temer (PMDB), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o senador afastado Aécio Neves (PSDB) — estão no olho do furacão da Lava-Jato, com seus coadjuvantes.
Luiz Carlos Azedo: O time de Dodge
A nomeação de Branquinho foi um discreto recado para o Palácio do Planalto de que não haverá cavalo de pau na Operação Lava-Jato
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, escalou a colega Raquel Branquinho para ser a nova supervisora da equipe de investigadores da Operação Lava-Jato. Sua tocaio, como dizem os gaúchos, comandará uma equipe de procuradores dedicados a essa tarefa, dos quais dois são remanescentes da equipe do ex-procurador-geral Rodrigo Janot: Maria Clara Barros Noleto e Pedro Jorge do Nascimento Costa. Acumula a função de secretária de Função Penal Originária no Supremo Tribunal Federal (STF), órgão que acompanha a Lava-Jato.
A nomeação de Branquinho foi um discreto recado para o Palácio do Planalto de que não haverá cavalo de pau na Operação Lava-Jato. Ou seja, a troca é mais ou menos como substituir o arco pela zarabatana: saem as flechas incendiárias e entram as setas envenenadas. São novos integrantes da equipe os procuradores José Alfredo de Paula Silva, novo coordenador do grupo, Marcelo Ribeiro de Oliveira, Hebert Reis Mesquita, José Ricardo Teixeira Alves e Luana Vargas Macedo. Como Branquinho, José Alfredo atuou na investigação do mensalão; também participou da Operação Zelotes.
O desafio é a transição da investigação da equipe de Janot para a de Dodge. O ex-coordenador da investigação Sérgio Bruno Cabral Fernandes foi escalado por Janot para a equipe de transição. Nos bastidores do Judiciário, a grande questão é a contaminação que possa ter havido nas investigações em decorrência da atuação do ex-procurador Marcello Miller, que deixou o Ministério Público Federal para atuar como advogado prestando serviços à JBS.
Advogados que atuam na Lava-Jato esfregam as mãos a cada relato da participação de Miller nas negociações de delações premiadas, como a de Fernando Baiano, por exemplo. A estratégia das bancas é utilizar o caso Miller para anular o maior número de provas possíveis. O Palácio do Planalto tenta anular as provas da primeira denúncia contra o presidente Michel Temer, que foi rejeitada pela Câmara, e forçar a devolução da segunda para a nova procuradora-geral. Além disso, quer transformar a CPI da JBS instalada na Câmara numa espécie de pelourinho para o ex-procurador Rodrigo Janot.
Existe massa crítica no Congresso para isso, mas também há uma opinião pública vigilante, que pressiona deputados e senadores toda vez que se articulam contra a Lava-Jato. Como esse é um jogo de perde-perde em termos eleitorais, o tempo corre a favor da Lava-Jato.
Pesquisas
Mesmo condenado a nove anos e seis meses de prisão pelo juiz federal Sergio Moro, de Curitiba, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lidera todos os cenários para as eleições de 2018 na pesquisa CNT/MDA divulgada ontem pela Confederação Nacional de Transportes (CNT). Nas três simulações do primeiro turno, oscila entre 32% e 32,7% das intenções de voto. Jair Bolsonaro (PSC-RJ) passou de 11% para mais de 18% nos três cenários. Marina Silva (Rede) aparece em terceiro lugar em todos os cenários.
Ontem, o juiz Vallisney Oliveira, da 10ª Vara Federal de Brasília, aceitou denúncia contra Lula, que virou réu mais uma vez, por corrupção passiva. A situação do PSDB varia de acordo com o nome pesquisado: o senador Aécio Neves (MG) tem o apoio de apenas 3,2% dos eleitores, enquanto o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito paulistano, João Doria, têm 9,4% e 8,7% respectivamente. As intenções de voto no ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT) vão de 4,6% a 5,3%, dependendo do cenário.
Na pesquisa espontânea, Lula lidera com 20,2% das intenções de voto; Jair Bolsonaro tem 10,9%. João Doria vem em terceiro, com 2,4%. Na sequência, Marina Silva tem 1,5%; Geraldo Alckmin e Ciro Gomes, 1,2%; o senador Álvaro Dias (Podemos), 1,0%; o presidente Michel Temer (PMDB), 0,4%; e Aécio Neves, 0,3%. Do total, 37% se disseram indecisos, brancos e nulos somam 21,2% e outros são 2,0%. A pesquisa ouviu 2.002 pessoas e tem margem de erro de 2,2%.
Ou seja, tudo como antes, mas a pesquisa aumenta a pressão em relação à definição de candidatos majoritários. Enquanto o Palácio do Planalto empurra o assunto com a barriga, na base do governo atuam forças centrífugas, que tendem a se reposicionar em razão da reforma política e do fato de que as melhorias na economia não são capitalizadas pelo governo nem melhoram os índices de aprovação de Michel Temer. O estresse político maior é no PSDB, onde Alckmin e Doria se digladiam.
(Coluna de 20 de setembro de 2017)
Murillo de Aragão: Os meios, os fins e os caminhos para cumprir a lei, na Lava Jato
A entrevista dada pelo procurador Ângelo Goulart Villela à “Folha de S.Paulo” nesta semana é muito triste, para dizer o mínimo. Villela revela um modus operandi preocupante em relação às investigações conduzidas pela Procuradoria Geral da República sob a liderança do agora ex-procurador geral Rodrigo Janot. É absolutamente inacreditável que Villela tenha ficado preso durante 76 dias sem ser ouvido.
Na entrevista de Villela, fica claro que, na gestão de Janot, não importavam os meios para se alcançarem os fins. Chega a ser inacreditável que, no afã de impedir que a atual procuradora geral, Raquel Dodge, sua inimiga, fosse escolhida para sucedê-lo, pudesse urdir uma trama para tirar o presidente da República do cargo por meio de denúncias “tabajaras”. É uma grave acusação. O pior é que ela vem acompanhada de outras evidências.
Em junho passado, a revista “IstoÉ” divulgou a transcrição de uma gravação, ocorrida sete dias antes de Ângelo Villela ser preso, em que uma colega sua alertava para a perseguição que Janot impunha a quem apoiasse Raquel Dodge. De acordo com a procuradora, a tática de Janot era apavorar quem está do lado de Dodge. Villela, que fora do grupo de Janot, estava apoiando Dodge. Dias depois, foi preso.
Que a política está apodrecida, todos sabem. Mas o caminho para o saneamento não passa pela transformação de ações que deveriam ser legais e legítimas em fazer justiça a qualquer preço.
Em editorial publicado no dia 10 último, “O Estado de S. Paulo” apontou a “atuação descuidada” de Rodrigo Janot no episódio da JBS. O açodamento em assinar o acordo com a empresa revela que o interesse não era buscar a punição justa, e sim fazer um movimento que pudesse mantê-lo no comando da PGR por meio de um preposto. O foco da atuação do Ministério Público e da Justiça deve ser a busca pelo direito, e não a manipulação das circunstâncias em benefício próprio.
A gestão de Janot bateu recordes em pedidos de abertura de inquérito no Supremo Tribunal Federal: foram 298 em seu primeiro mandato e 361 no segundo, de acordo com levantamento feito pelo site Jota. O que poderia ser um bom sinal pode não ser. Será que houve o devido cuidado e o devido respeito ao “rule of law”? Será que as investigações preliminares não foram conspurcadas por atitudes e práticas ilícitas? Será que Ângelo Villela poderia dar mais detalhes?
Afinal, ele próprio afirma que as delações do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado e do ex-senador Delcídio do Amaral tiveram o mesmo modus operandi e foram todas vazadas antes de sua homologação. Afirma ainda que sabe de coisas piores do que pressão, blefe e estratégia ao longo das investigações. Villela desnuda um pouco do “iceberg Janot” e suas práticas. Ele diz, textualmente: “Já soube de coisas muito piores”. O que será que Villela sabe de pior?
Custa crer que tais informações não sejam objeto de investigação. Também é muito estranho prender Villela e não ouvi-lo por 76 dias. O ativismo judicial é prática corrente nos dias de hoje. Mas, quando extrapola para ilegalidades flagrantes, faz lembrar tempos obscuros, como os anos 60 e 70 no país. A lei deve ser cumprida. O caminho para isso, porém, deve ser reto e justo.
* Murillo de Aragão é cientista político
Merval Pereira: Uma questão de estilo?
A nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, além de ser a primeira mulher a ocupar o cargo, terá de enfrentar a tarefa a que, aparentemente, se dispôs: de substituir o estilo frenético, digamos assim, do procurador Rodrigo Janot por um mais sóbrio, mas que não deixe preocupada a sociedade em relação ao futuro do combate à corrupção no país.
Chamou atenção, por exemplo, o fato de Raquel Dodge não ter tocado na Operação Lava-Jato em seu discurso de posse na Procuradoria-Geral da República, embora tenha reafirmado a disposição de combater a corrupção. Isso quer dizer que ela não pretende, como fazia Janot, e também a força-tarefa de Curitiba, dar protagonismo à Operação Lava-Jato, que não comandará diretamente.
Encarregou um auxiliar de fazê-lo, como se mandasse um recado a seus subordinados: a Procuradoria-Geral da República tem vários outros objetos de trabalho, entre eles a defesa dos direitos humanos das minorias, como os indígenas. Muitos estarão, a essa altura, achando que essa é uma postura que pode levar ao arrefecimento da Lava-Jato, mas só os fatos poderão mostrar qual caminho Raquel Dodge escolheu. Nada no seu passado indica leniência com a corrupção.
Num momento em que no Congresso articula-se mais uma ação contra a Lava-Jato, desta vez mais organizada, com uma CPI supostamente sobre a JBS, mas que, na verdade, quer utilizar-se das trapalhadas da delação premiada de Joesley Batista e companhia para restringir as delações premiadas, a nova procuradorageral vai ter que ser firme na manutenção do objetivo central do combate à corrupção. É difícil que ela mude o rumo das investigações. Pode ser que não dê a prioridade máxima à operação — que já está numa fase de menos investigações e maior dependência do STF, mas isso não pode significar mudança de rumo, só de estilo.
As operações nos estados, especialmente Rio e São Paulo, e em Brasília estão ganhando mais relevância. O próprio Rodrigo Janot já tinha admitido que se podia vislumbrar o final da Lava-Jato. Ele contou, recentemente, que uma deputada italiana, com quem conversou, o aconselhou a estabelecer um fim oficial das investigações, antes que uma “mão externa” o fizesse, por ser inevitável que as reações às investigações em algum momento conseguissem barrá-las com ações políticas.
É o que já está acontecendo, com uma ação orquestrada no Legislativo para frear a Lava-Jato, e no Judiciário, com a tendência a reverter a decisão do Supremo de permitir a prisão de condenados na 2ª instância. A parte mais relevante hoje da Lava-Jato está no STF, dos envolvidos com foro privilegiado, e se espalhou em outros foros por não ter relação com a Petrobras.
Quanto mais as investigações e denúncias chegam perto de parlamentares, mais a reação aumenta. E há ações cíveis contra partidos políticos que estão pendentes, e bancos podem vir a ser chamados a responder por prejuízos decorrentes de falhas dos sistemas de compliance, no Brasil e no exterior.
O ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot acha que a Lava-Jato não pode ser uma investigação permanente, “mesmo porque a sociedade brasileira e o Estado brasileiro não podem ficar reféns de uma investigação eterna”. A força-tarefa da Lava-Jato foi renovada por mais um ano, mas os problemas financeiros prejudicam as investigações, especialmente pela redução de quadros da Polícia Federal envolvidos.
Mas a PF alega que as investigações foram reduzidas em Curitiba e cresceram em outros estados. O mais provável é que a nova procuradora-geral não reveja as delações premiadas já aprovadas pela gestão anterior, mas os critérios serão outros com as novas delações pendentes. Questões administrativas certamente ganharão importância na nova gestão, como a aplicação da regra que ela propôs no Conselho Nacional. Entre outras inovações, a que limita em 10% o número de procuradores que uma unidade do Ministério Público Federal pode ceder para participar de investigações em outra unidade.
Isso atinge o cerne da Lava-Jato, que sempre contou com especialistas do MPF. Há também a ideia de estabelecer 4 anos como período máximo de um procurador permanecer numa missão, o que tiraria da Lava-Jato atores que atuam nela desde o primeiro momento. O grupo perderia seus líderes, e sua memória, como os Deltan Dallagnol e Carlos Fernando Sousa, que demonstram desânimo em certas ocasiões.
Será preciso compreender o que a procuradora-geral entende por “harmonia entre os poderes”, que tanto defendeu em seu discurso de posse diante de uma plateia de denunciados e investigados pela Lava-Jato, inclusive o próprio presidente Michel Temer.
Míriam Leitão: Joesley tenta enganar
O empresário Joesley Batista ainda não entendeu o que fez de errado e o que o levou à prisão. Ele disse na sexta-feira que está preso porque delatou o poder. Joesley está preso por corrupção, por ter comprado políticos para usufruir de vantagens. Se não confessasse, quando o fez, seria preso de qualquer maneira porque estava sendo investigado em cinco operações.
Além disso, ele teve ganhos indevidos até com a delação, o que levou seu irmão Wesley à prisão. Só se explica isso por alguma compulsão de querer levar vantagem em tudo, inclusive na tormenta em que o país entrou após a sua delação. Eles sabiam que o dólar subiria e que as ações iriam cair. E fizeram suas apostas no cassino em que sempre estiveram acostumados a jogar. O Ministério Público e a Polícia Federal calculam que eles ganharam US$ 100 milhões com as operações. Para eles, isso é ninharia, mas está cobrando um alto preço.
Joesley dizia que a hipótese de sua prisão ou do seu irmão iria ser uma tragédia para a empresa, porque sem eles não seria possível administrar a companhia. O mercado financeiro reagiu com alta nas ações quando eles foram presos, derrubando a ideia de serem insubstituíveis.
Eles continuaram ganhando fortunas mesmo no meio dessa confusão. A decisão de vender os ativos é correta porque essa é a forma de tirar a empresa do risco. Mas é curioso pensar na origem dos bens que estão sendo negociados. Recentemente, o grupo fechou negócio para a venda da Eldorado para o grupo indonésio Paper Excelence. Ela foi um investimento feito com pouco capital próprio, e muito empréstimo do BNDES, compra de debêntures pelo banco, e crédito do FI-FGTS. Esse último, sabe-se agora, o grupo conseguiu da forma mais tortuosa. O valor total da empresa no negócio foi de R$ 15 bilhões, mas foi vendida apenas a parte do JBS. A família Batista recebeu o valor inicial de pelo menos R$ 2,2 bilhões. Nada mal para um empreendimento alavancado principalmente com recursos públicos, pelos quais, aliás, ele confessou que pagou propina.
Na semana passada, com Joesley já preso, foi feita uma operação em que a Pilgrim's Pride, uma das maiores processadoras de frango dos Estados Unidos, e do grupo JBS, comprou a operação do grupo na Europa, a Moy Park. Eles compraram a si mesmos para melhorar a sinergia e a estrutura do envidamento. Quando foi comprada, a Pilgrim's Pride foi um ativo adquirido integralmente com o dinheiro do BNDES, conseguido através da venda de debêntures. Não houve capital próprio. E assim eles ficaram ainda mais ricos do que já eram. Mas a ganância desmedida fez os irmãos Batista irem cada vez mais fundo no negócio da corrupção que os levou à prisão.
O grupo está sendo reestruturado e sairá de tudo isso bem menor. Pelo menos, há uma boa chance de que sobreviva a essa vendaval. O economista Fábio Astrauskas, professor do Insper e CEO da consultoria Siegen, especializada em reestruturação de empresas no Brasil, avalia que a resposta da JBS à crise de confiança que se abateu sobre a empresa foi rápida e eficiente. O grupo foi ágil em vender os bons ativos para fazer caixa, e, na visão de Astrauskas, terá condições de seguir o negócio mesmo com o afastamento da famílias Batista do comando da empresa.
— Acho que a JBS teve uma visão muito pragmática, profissional, muito similar ao que aconteceu com o BTG. Hoje, ninguém mais se lembra do banco como sinal de problemas. Acho que pode acontecer o mesmo com a JBS daqui a alguns meses. Estar no segmento de varejo também ajuda. É diferente do que vejo, por exemplo, com as grandes construtoras investigadas na Lava-Jato, que dependem de obras e contratos públicos — afirmou.
A empresa pode ter uma nova chance se a resposta continuar ágil. Em relação aos irmãos Batista, o futuro imediato é mais opaco. Uma coisa já se sabe: a dissimulação não os levará a lugar algum. Frases como “estou pagando por ter delatado o poder” ou “estou preso porque mexi com os donos do poder” não convencem ninguém. Esse tipo de defesa, de se fazer de inocente perseguido por poderosos, não tem qualquer credibilidade, porque o país que eles enganaram durante tanto tempo já não se deixa mais enganar.