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Pedro Fernando Nery: Lula x Bolsonaro - Um guia para não se perder em comparações enganosas

Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais

Já começam as comparações descabidas de indicadores dos governos Lula e Bolsonaro. As comparações enganosas entre candidatos que governaram em períodos diferentes são populares em anos eleitorais, com cada grupo de apoiadores usando da falácia que melhor lhe cabe. Nesta coluna proponho um guia para o leitor não se perder por aí.

Vários indicadores relevantes do Brasil são afetados por tendências de longo prazo. Assim, diferenças entre o governo A e o governo B podem ter menos a ver com qualidades ou defeitos dos governantes e mais com a mera passagem do tempo. Um tipo particularmente popular – e irritante – é a comparação nominal de preços. Ela não faz sentido porque há a tendência de preços crescerem no tempo, e a inflação impede que simplesmente se compare reais em um período com reais muitos anos depois.

Comecemos essa análise sem ajustar valores pela inflação, o que economistas chamariam de valores nominais. Esses valores serão maiores no governo Bolsonaro do que no governo Lula – como era no governo Lula em relação ao governo FHC (objeto preferido de comparação de petistas em eleições passadas). Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais.

Por exemplo, apoiadores de Lula vão gostar de difundir os dados sobre preços de gasolina ou gás, cesta básica ou carne. O tiro sai pela culatra para as variáveis em que valores maiores são positivos. Defensores de Bolsonaro poderão comparar os valores do salário mínimo e do Bolsa Família – nominalmente maiores, até porque foram reajustados para contemplar a inflação.

Mesmo quando se desconta o efeito da inflação, o que chamamos de valores reais, ainda há razão para desconfiança nas comparações. Há um progresso natural em várias políticas públicas, além de uma tendência de aumento do gasto público ao longo dos anos. Dessa forma, a campanha de Bolsonaro poderá apresentar um valor real maior para o salário mínimo (R$ 1.100 x R$ 900) ou para o Bolsa Família/auxílio.

O gasto público como um todo também é maior no governo Bolsonaro – seja em termos absolutos ou seja em relação ao PIB. Isso vale mesmo para antes da pandemia: em Lula em geral esteve abaixo de 17% do PIB, em Bolsonaro sempre acima de 19%. O gasto social (Seguridade) aumentou: R$ 960 bilhões em 2019 x R$ 670 bilhões em 2010. Ao contrário dos estereótipos, o governo Lula apresentava gasto total menor, a dívida era mais baixa e se produziam superávits primários (economia de impostos para abater a dívida). Mesmo antes da pandemia, a projeção era de déficits para todo o “austero” governo Bolsonaro.

Chegamos a um outro tipo de tendência: as demográficas. O envelhecimento da população, que aumenta o gasto com Previdência, explica parte da alta do gasto entre os governos Bolsonaro e Lula (ou entre Lula e FHC, ou até entre Temer e Dilma). A mudança do número de jovens tem impacto ainda no número de homicídios, com tendência de queda (44 mil em 2020, 50 mil em 2010).

Na demografia ainda se observou nesse ínterim o crescimento da população em idade ativa. Por conta dessa tendência, por enquanto ainda é normal haver cada vez mais pessoas trabalhando (população ocupada), o que permite a um governante dizer que criou X milhões de empregos em relação a um antecessor. É possível que, mesmo com a pandemia, ao fim do governo Bolsonaro haja mais empregos em relação ao governo Lula, inclusive com carteira assinada. O mesmo para o PIB, espécie de agregado de trabalhadores.

Há outros avanços na sociedade relacionados ao progresso da ciência e tecnologia, da queda da mortalidade infantil ao aumento de acesso à celular.

Como comparar então governos diferentes? A leitura pode ser melhor usando taxas (para a variação de uma variável, como o salário mínimo, ou para uma proporção, como o desemprego). Para parte do eleitorado taxas são menos interessantes, e é então improvável que campanhas abram mão dos paralelos menos sofisticados.

Nesse tipo de análise, economistas se preocupariam também com a influência de fatores externos (como os preços das commodities que exportamos ou os juros internacionais), que podem ajudar ou atrapalhar um governo e responder por muito do seu êxito ou fracasso (como uma correnteza para um remador).

Há assim, na academia, os estudos que tentam isolar dos resultados econômicos de um país diversas influências, na busca pelo “contrafactual” de um conjunto de políticas (para o responder o que teria acontecido se um governo agisse diferente). Um tipo de análise em voga é o chamado “controle sintético”, em que um país é comparado em um período com um grupo de países semelhantes, para conjecturar o que teria acontecido de qualquer jeito ou o que decorre das ações, por exemplo, da política econômica ou do negacionismo em uma pandemia.

Preços aumentam, nosso país envelheceu, a tecnologia progride. Boa sorte ao leitor: a temporada das comparações impertinentes está começando.

*DOUTOR EM ECONOMIA


Marco Aurélio Nogueira: Pacto pelo futuro

O momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos

É preciso compreender a dificuldade das oposições democráticas de se contraporem ao governo Bolsonaro.

Elas hoje preenchem um espaço amplo, vão da direita à esquerda, passando pelo imenso centro, cada pedaço com suas legítimas pretensões e seus problemas. Nas que se inclinam para o centro, o déficit passa pela ausência de lideranças incontestes, de um programa claro e de uma identidade substantiva.

As esquerdas não estão em melhor condição, embora estejam a comemorar a volta de Lula, que as magnetiza e seduz, agora com o adicional da absolvição conquistada e da incorporação de um papel de injustiçado perseguido político. Roda-se em torno de Lula como se dele emanasse a luz.

O que há de consenso cívico de repúdio e desejo de mudança não se traduz em consenso político e plataforma de atuação. Há ensaios unificadores e um esforço dedicado para que as oposições baixem o tom e conversem olho no olho. Manifestos, debates e proclamações indicam isso com clareza, o que é um alento. Mas não foram dados os passos decisivos, aqueles que fazem uma equipe vencedora. O momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos.

As oposições ainda estão a lamber as feridas da derrota de 2018. São feridas que tardam a cicatrizar, manuseadas nem sempre com habilidade. Enquanto permanecerem abertas, dificultarão aproximações e convergências, com o passado recente cobrando seu preço e embaçando o futuro. Além disso, há elementos que complicaram demais as interações, a começar da pandemia.

A pandemia tem lógica própria, deve ser enfrentada com toda a energia. Está expondo nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, a capacidade de resposta da ciência. Além dos estragos que provoca em termos de vidas e de pressão sobre o sistema sanitário, ela se mistura com os desdobramentos da revolução tecnológica do nosso tempo. A economia está desafiada, assim como o mundo do trabalho. Não há como fazer funcionar o que ficou para trás, em termos de arranjos sistêmicos, padrões organizacionais, práticas e leis. Tudo terá de ser repensado, seja para conter a disseminação da covid, seja para desenhar as políticas que serão necessárias para reforçar a saúde e proteger os desassistidos. Será preciso, além disso, reconfigurar o modo de organizar atividades produtivas, trabalhar, consumir, estudar. Estamos às portas de um começar de novo, tamanhas são as transformações com que temos de lidar.

Assistimos ao processamento de uma espécie de metamorfose, que da vida material atinge todas as esferas existenciais. Em termos políticos, centro-direita, centro-esquerda e esquerdas deveriam suspender temporariamente suas particularidades doutrinárias e ideológicas para promover a formação de um polo democrático encorpado, flexível e plural, que proponha uma política e uma governação com a marca da inovação. O momento pede que os democratas calcem as botinas da humildade e amassem barro no Brasil profundo. Não cabem jogos de cena, reiteração de projetos pessoais e checagens da força relativa de cada um.

Na política, diferenças, disputas e antagonismos não devem ser temidos. Funcionam como motores de organização e esclarecimento, na medida em que dialogam com o conjunto da sociedade e interpelam o imaginário social. Não são, porém, definitivos, compõem-se e se recompõem de múltiplas formas ao longo do tempo, criando novas exigências. Polarizações que remontam ao passado não ajudarão a que se pavimente o futuro. Se todos os democratas vencerem, haverá espaços para antagonismos mais profícuos e substantivos.

Não é fácil encontrar o ponto ótimo a partir do qual possa ocorrer tal convergência. A unidade política não exclui a diversidade, antes se alimenta dela. Constrói-se mediante muitos esforços, tensões e concessões, requerendo retomadas continuadas.

A definição desse pacto político se beneficiará da afirmação, pelos protagonistas, de alguns princípios básicos. Uma sociedade socialmente justa em termos de renda, oportunidades, etnia e gênero. Uma ideia de governo como operação cooperativa, que funcione como um colégio de líderes e especialistas, com um Executivo democratizado. A recuperação dos grandes sistemas públicos, a saúde, a educação, a assistência, o meio ambiente, a cultura, as relações exteriores, a segurança. O reconhecimento de que não deve haver tolerância com a corrupção, seja qual for a forma que assuma. Um reformismo de longo prazo, constante e progressivo, a ser definido por consultas constantes aos cidadãos. Uma ideia sustentável de desenvolvimento, que valorize e respeite o meio ambiente, o trabalho e o consumo consciente.

São pontos genéricos. Mas se forem proclamados firmemente pelos que se dispõem a governar o País, poderão mostrar que a política tem dignidade e mobilizar os cidadãos em prol da recuperação do Estado, com sua institucionalidade e seus deveres, da valorização da República (do bem público) e da reconstrução da solidariedade, que são a cada dia mais indispensáveis.

*Professor titular de teoria política da Unesp


RPD || Juliana Magalhães: Polêmica marca anulação das condenações de Lula

A advogada e consultora legislativa do Senado Juliana Magalhães analisa, em seu artigo, os aspectos processuais da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin no habeas corpus 193.726 PR 

Como já é de conhecimento geral, o ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de habeas corpus impetrado por Luiz Inácio Lula da Silva, declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o julgamento de ações penais (Triplex de Guarujá, sítio de Atibaia, sede do instituto Lula e doações ao mesmo instituto) em desfavor do ex-Presidente, determinando a remessa daqueles autos ao Distrito Federal.   

O ministro declarou a nulidade dos atos decisórios praticados nas ações penais, inclusive os recebimentos das denúncias, devendo o juízo competente decidir acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios. A decisão, contudo, resta por hora em um “limbo jurídico” em razão do julgamento ulterior, pela 2ª Turma do STF, da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para processar as ações mencionadas.  

A decisão do ministro, tal como se tornou comum na comunidade jurídica, causou estranhamento. Não em razão da matéria de fundo, isto é, se, de fato, não há correlação entre os fatos narrados naquelas ações e os diversos episódios de corrupção em desfavor da Petrobrás, cujo mérito não será objeto do artigo. Mas o busílis da questão são as sucessivas manifestações de menoscabo em relação às normas processuais penais pela justiça brasileira, especialmente pelo seu mais importante Tribunal, o STF.  

O Estado Democrático de Direito deve estar baseado no devido processo legal, conquista da civilização moderna que sabe, com razoável previsibilidade, a sequência dos atos processuais e suas consequências. A segurança jurídica é um elemento de importância quase espiritual para as nações, pois o homem toma decisões diuturnas com base no seu resultado futuro dessas decisões.   

Assim, ainda quando estudantes de Direito, aprendemos as noções básicas sobre o direito processual. Uma delas é que há instâncias ordinárias (primeiro grau, o juiz singular; e segundo graus, os Tribunais de Justiça) e extraordinárias (Tribunais Superiores), devendo esses últimos não revolver provas e fatos na seara recursal, mas decidir questões sobre o direito em tese. Para não existir uma eternização dos litígios, a Constituição criou um modelo em que os Tribunais terão amplíssimo âmbito de cognição (efeito devolutivo da apelação), mas as instâncias extraordinárias se limitariam a analisar o amoldamento dos fatos (tal como decididos pelas instâncias inferiores) em relação ao direito.   

Mas, a regra da cognição limitada desses Tribunais foi ignorada pelo Ministro Fachin quando, em sede de habeas corpus, revisitou provas e reapreciou os fatos. Saber se “as condutas atribuídas ao paciente não foram diretamente direcionadas a contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petrobras S/A” é matéria de fato, cuja afirmação ou negação se inseriu no âmbito de cognição das instâncias ordinárias. Revisitar tal tema agora desrespeita a lógica de um sistema processual que deve estar voltado à estabilização de conflitos.   

Do mesmo modo, o Tribunal habitualmente deturpa o papel de cada recurso previsto em Lei, provocando a eternização dos litígios, concentrando em si um poder absoluto e quase sempre monocrático. Veja-se que a declaração de incompetência ocorreu no âmbito de um habeas corpus impetrado contra decisão do STJ nos autos do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.765.139, no ponto em que refutou as alegações de incompetência da 13ª Vara Federal. Cada habeas corpus – e observe-se que HC não é um recurso, mas, um remédio excepcional – impetrado pela defesa do ex-presidente Lula contra uma decisão do STJ, se revela como uma nova possibilidade de o STF modificar integralmente o conteúdo de suas decisões.  

Além disso, o sistema de preclusões processuais – elemento central para o funcionamento racional dos Tribunais – foi ignorado pela decisão, ao não observar que a incompetência relativa deve ser mencionada pela parte em sede de exceção de incompetência e, ao ser decidida pelo Tribunal de segundo grau, se torna tese jurídica rejeitada. Se assim não fosse, a marcha processual estaria sujeita a diversos atos de retorno. 

Por fim, alerta-se que não se tratou aqui de advogar pela inocência ou culpa do ex-Presidente com relação aos fatos julgados pela 13ª Vara Federal de Curitiba. Como dito, o artigo disso não se ocupou. Cremos, contudo, que os processualistas não devem naturalizar episódios de ofensa ao devido processo legal pelo Tribunal Constitucional do país. Vivemos tempos difíceis e nossa democracia não caminha a passos largos, mas, sempre teremos no devido processo uma das mais importantes armas contra o arbítrio.   

*Juliana Magalhães é sócia do escritório Trindade Camara Advogados e consultora legislativa do Senado Federal em direito penal e processo penal. Mestre em direito e políticas públicas. Especialista em direito processual.  

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Breno Altman: Por que o STF está enfrentando a Lava Jato?

Corte tenta se redimir da chancela dada ao que resultou numa anarquia da ordem constitucional promovida pela operação, inclusive com aval do ministro Gilmar Mendes, que hoje lidera as críticas contra seus métodos

Houve um tempo em que a República de Curitiba, com suas regras e procedimentos atípicos, comandada pelo ex-juiz Sergio Moro, recebia a bênção da Corte Suprema. Apesar de um ou outro reparo, o STF parecia avalizar os mecanismos de excepcionalidade que marcavam os processos em curso na 13ª Vara Federal, a sede da Lava Jato. Deslanchada em 2014, a operação viveria sua primavera até o final de 2017. Sob as luzes e aplausos dos principais veículos de comunicação do país, transformados em correias de transmissão do espetáculo exibido a partir do Paraná, a Lava Jato dominava a cena política. Os partidos que compunham a oposição de direita, particularmente PSDB e DEM, entusiasmavam-se com a escalada repressiva contra o Partido dos Trabalhadores e seu líder histórico. Derrotados em quatro eleições presidenciais seguidas, os tucanos apostavam que Moro poderia carimbar seus passaportes de retorno ao comando do Estado.

Forjou-se ambiente de indomável euforia antipetista, semeado por amplos setores da imprensa, a começar pela poderosa Rede Globo, açulando as camadas médias e contagiando as instituições. Sob a bandeira do combate à corrupção, eram corroídas as garantias constitucionais e democráticas. Sequer tratava-se de uma situação nova. A maioria do STF, desde a Ação Penal 470, o chamado “mensalão”, concluída no final de 2012, abdicara da guarda do Estado de Direito, aceitando ou inventando manobras que pudessem solapar o Governo Lula. Alguns dos ministros agiam de forma consciente, talvez acreditando nas denúncias apresentadas pela promotoria. Outros decidiam com a faca no pescoço. Absolver chefes petistas poderia significar um penoso ostracismo.

Somente resistiam algumas vozes isoladas, especialmente o ministro Ricardo Lewandowski. Mesmo a maioria dos indicados durante os mandatos petistas iria aderir à onda das excepcionalidades. O clamor popular fabricado pela mídia de massa, contra um inimigo ao gosto das elites que regem a sociedade, mostrou-se capaz de estimular incontido espírito de manada, cujo ápice ocorreria em 2016, entre a condução coercitiva de Lula e o golpe parlamentar que derrubaria a presidenta Dilma Rousseff.

O ex-juiz Sergio Moro, exatamente nesse período, divulgaria gravações de conversas entre a chefe de Estado e seu antecessor, jogando para a plateia de verde e amarelo. Mais que uma irregularidade, tratava-se de crime escancarado. O STF, no entanto, contentou-se com um muxoxo do ministro Teori Zavascki (1948-2017), criticando a atitude do magistrado curitibano. Seu colega, Gilmar Mendes, agiu no sentido contrário. Com base nos diálogos difundidos, emitiu decisão contrária à nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil, em inédita usurpação de atribuição exclusiva do Poder Executivo.

A subversão e a anarquia da ordem constitucional eram chanceladas, entre outras razões, porque jogavam água no moinho da oposição de direita liderada pelo tucanato. O PSDB inegavelmente era a legenda do coração e o bastião dos interesses da imensa maioria dos empresários e banqueiros, dos integrantes da alta burocracia estatal, dos barões da comunicação e das classes médias. Também eram conhecidos e comprovados os vínculos dessa agremiação com os democratas norte-americanos, que governaram a grande potência ocidental até o início de 2017.

Um novo fenômeno, porém, emergiria da potente mobilização golpista contra Dilma, capaz de levar milhões às ruas por sua derrubada. A teia sobre a qual se desenvolveu esse movimento era formada por grupos disseminados nas redes sociais durante os anos anteriores e que tinham mostrado sua musculatura nas chamadas jornadas de junhoem 2013, tomando da esquerda o comando das ruas e as incendiando contra o Palácio do Planalto.

Esses grupos, embora sem coordenação central e com fortes divergências entre si, eram bastante influenciados pela combinação, em diversos graus, de ideias neoliberais com paradigmas neofascistas. Não se reportavam às velhas legendas de direita, fundadoras da VI República, configurada pela Constituição de 1988. Seu papo era outro, misturando nostalgia da ditadura militar, culto às Forças Armadas e antigos credos anticomunistas, um viés autoritário que também embalava valores racistas, sexistas e homofóbicos.

Tais patotas eram adoradoras da Lava Jato, sua principal arma na guerra contra o PT. A turma de Curitiba foi paulatinamente correspondendo a esse amor, se afastando do bloco que havia comandado o impeachment de Dilma e constituído o Governo Michel Temer. Os setores lavajatistas do sistema de justiça, em expansão para outros Estados, como o Rio de Janeiro, foram se incorporando ao caudal político que desaguaria no bolsonarismo. Esse deslocamento refletia a permanente busca por popularidade e a identidade crescente com o projeto de Estado policial representado pelo ex-capitão.

Os sinais práticos logo se manifestariam, entre 2017 e 2018, com investigações e processos abertos contra cardeais do PSDB e do PMDB, atingindo a Aécio NevesEduardo Cunha e o próprio Temer. Além de fortalecer o ramo político de sua nova preferência, a operação Lava Jato queria exibir provas de neutralidade, esvaziando parcialmente as críticas de perseguição à esquerda e preparando terreno para o bote final, a prisão e a interdição do ex-presidente Lula, fundamentais para a disputa presidencial.

Esse cenário levou a uma lenta, mas essencial mudança no STF, liderada por Gilmar Mendes, talvez o ministro menos preocupado em agradar a opinião pública. Um grupo importante de ministros começou a questionar os métodos e as ilegalidades da operação, tratando de colocar-lhe algum anteparo.

A alteração de forças começou a ter maior nitidez em abril de 2018, quando foi julgado habeas corpus que poderia impedir o encarceramento de Lula. O receio de uma derrota levou o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, a desembainhar espada e ameaçar veladamente com a reação dos quartéis. A faca no pescoço deixava de ter sentido figurado e definia a batalha.

A vitória de Bolsonaro e a nomeação de Moro para a pasta da Justiça acabariam por fortalecer o mal-estar político e jurídico contra a Lava Jato dentro do STF, que passaria a ser defendida, com radicalidade, apenas por um trio de magistrados indicados por Lula e Dilma: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. O apoio de Cármen Lúcia e Rosa Weber, também nomeações petistas, passou a ser incerto. Conquistava espaço a aliança entre Lewandowski, Mendes, Dias Tóffoli e Alexandre de Moraes, muitas vezes acompanhada por Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello.

Os fatos adquiriram outra velocidade em junho de 2019, com os diálogos sigilosos entre os integrantes da força-tarefa e o ex-juiz, revelados pelo site The Intercept e outros veículos. A ala garantistada Corte, junto com a defesa de Lula e a campanha por sua libertação, passava a ter munição de sobra para colocar a operação Lava Jato na berlinda, desarmando sua sustentação na sociedade e no Estado. O mecanismo estava nu, com a mão no bolso.

O tiro de misericórdia, no entanto, seria dado pelo principal beneficiário das arbitrariedades cometidas sob a batuta de Moro. O presidente Jair Bolsonaro, com pouco mais de um ano no governo, via com desgosto e temor a especulação de que seu ministro poderia ser candidato em 2022, enfrentando-o nas urnas em coalizão com a direita tradicional. Tratou de isolá-lo e desestabilizá-lo, até que saísse do governo, em abril de 2020. Para se assegurar da morte política de um perigoso rival, ao mesmo tempo em que tratava de proteger a si próprio e seu clã frente ao sistema judicial, já tinha nomeado Augusto Aras como procurador-geral, em setembro de 2019, com a tarefa de limar o legado da Lava Jato e construir pontes com os garantistas.

Esse giro seria selado em novembro de 2020, com a indicação de Kassio Nunes Marques ao STF, para o lugar de Celso de Mello, retirado por limite de idade. Essa substituição foi primordial, pois consolidava na Segunda Turma do tribunal, encarregada de todos os processos da Lava Jato, uma maioria crítica, formada por Mendes, Lewandowski e o ministro novato, contra Fachin, podendo atrair Carmen Lúcia para um quarteto dominante. Foi o que se viu no julgamento, em 9 de fevereiro, que liberou o acesso da defesa de Lula às conversas entre os procuradores da força-tarefa e o magistrado responsável.

Rompida com a direita tradicional e abandonada pelo bolsonarismo, a Lava Jato recebeu o beijo da morte, ainda que viúvas e órfãos lutem por sobrevida. Seu corpo, fétido, ainda precisa ser enterrado. A anulação das sentenças contra Lula, por suspeição do ex-juiz Sergio Moro, é a grande chance para o STF, redimindo-se, extirpar o “maior escândalo judicial da história humana”, nas palavras de um articulista do New York Times, repetidas pelo ministro Gilmar Mendes, presidente da Segunda Turma do STF, durante a histórica sessão que cravou mais um punhal no coração da República de Curitiba.

Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi.