KEYNESIANISMO
Revista online | A economia brasileira à deriva
José Luis Oreiro, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio de 2022)
Jair Messias Bolsonaro, o atual inquilino do Palácio do Planalto, nunca teve um projeto de país. Na campanha eleitoral de 2018, o mote de sua campanha era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Da boca do atual presidente da República, nunca se ouviu qualquer proposta concreta para acelerar o crescimento econômico e ampliar a criação de renda e de emprego. Pelo contrário, a agenda de Bolsonaro sempre foi uma agenda negativa: conforme ele mesmo expressou para a deputada Janaína Pascoal, o seu legado para a história não seria pelo que ele haveria de construir, mas no que ele haveria de destruir. Sua intenção era destruir tudo aquilo que foi feito no país depois do fim do regime militar: o Sistema Único de Saúde (SUS), as políticas de assistência social (lembram-se de que Bolsonaro chamava o “bolsa família” de “bolsa farelo”?), a autonomia das universidades federais (“antro de esquerdistas e maconheiros”), a garantia dos direitos humanos (“bandido bom é bandido morto”), a liberdade de cada cidadão exercer sua orientação sexual (o “gayzismo”). Em suma, Bolsonaro ansiava que o país retrocedesse no tempo, afastando-se do mundo ocidental moderno e do (sic) globalismo.
Por mais que essa agenda pudesse seduzir uma parcela significativa do eleitorado (entre 15 e 20%), está claro que ela não se prestava para o exercício do governo. Era necessário ter um programa econômico a ser executado em quatro anos de mandato. A saída de Bolsonaro foi terceirizar a agenda econômica para o liberal Paulo Guedes, doutor em economia pela Universidade de Chicago. Guedes era o nome perfeito para uma pessoa com sérias limitações cognitivas como Bolsonaro: Os graves problemas econômicos que o país enfrentava desde o início da grande recessão de 2014 seriam resolvidos de forma mágica pela mão-invisível do mercado. Tudo o que era necessário para o Brasil era um choque de liberalismo: privatizações, redução do tamanho do Estado e, portanto, da carga tributária, abertura comercial, alinhamento estratégico automático com os Estados Unidos. Para Guedes, não importava o fato de que os países desenvolvidos, mesmo antes da pandemia do covid-19, estivessem dando uma guinada keynesiana e desenvolvimentista nas suas políticas macroeconômicas. Aliás, Guedes nunca se importou muito com os fatos. O que lhe interessava era o mundo fantástico que ele havia construído na sua cabeça ao longo de várias décadas e que acreditava ter condições de implantar com um arremedo de Pinochet para chamar de seu.
Apesar da atuação desastrada de Paulo Guedes na sua articulação com a câmara dos deputados, a Emenda Constitucional da Reforma da Previdência foi aprovada no segundo semestre de 2019, garantindo, segundo o ministro da economia, uma redução dos gastos com a previdência social de cerca de R$ 1 trilhão em dez anos. Pela hipótese da contração fiscal expansionista, mais conhecida no Brasil como “fada da confiança”, deveria ocorrer um aumento colossal do investimento privado que colocaria o Brasil na rota do crescimento sustentado. O problema é que os fatos não confirmaram a teoria: em 2019 a economia brasileira cresceu apenas 1,22%, valor inferior à média de 1,55%, obtida durante os dois últimos anos do governo de Michel Temer.
Em 2020, o Brasil, como o resto do mundo, foi atingido em cheio pela pandemia do covid-19. A reação dos países desenvolvidos foi rápida: flexibilização da política fiscal por intermédio de programas de transferência de renda, auxílio às empresas e aumento do investimento público, principalmente na área de saúde, para amortecer o impacto econômico das medidas de distanciamento social necessárias para conter o ritmo de difusão do SARS-COV-2. Não houve nenhuma reação por parte do Poder Executivo. Pelo contrário, o presidente da República atuou no sentido de boicotar as medidas de lockdown adotadas pelos entes subnacionais. Coube ao Congresso Nacional, sob a presidência de Rodrigo Maia, implantar o maior programa de resgate de pessoas da história do Brasil: o auxílio emergencial. Em grande medida, graças a esse programa, que o Ministério da Economia era contra, foi possível garantir a subsistência de 66 milhões de brasileiros e amortecer a contração do PIB em 2020, a qual se limitou a 3,88%, valor muito abaixo do registrado nos países desenvolvidos.
Em 2021 Guedes tentou emplacar uma série de, por assim dizer, reformas: a reforma administrativa e a reforma tributária, apelando mais uma vez para a ideia quixotesca de que, se a economia brasileira ainda não havia retomado a trajetória do crescimento, é porque faltavam reformas a serem feitas. Sem entrar no mérito das propostas do Ministério da Economia, o fato é que os constantes desatinos do presidente da República cobraram um preço elevado: Bolsonaro foi obrigado a ceder a pressões do centrão para evitar um processo de impeachment. Com isso, as reformas de Guedes ficaram para “depois”.
Estamos a poucos meses do pleito presidencial. O fato é que o governo não faz a mais remota ideia de como lidar com a aceleração da inflação, alimentada pela elevação dos preços dos alimentos e dos combustíveis e para reduzir a crescente insegurança alimentar da população. Tudo o que Bolsonaro quer é “segurar as pontas” para não perder a reeleição. O resto ele vê depois como disse para o novo ministro das Minas e Energia. O inacreditável é que as pesquisas de opinião mostram que cerca de 1/3 do eleitorado quer dar a esse cidadão mais quatro anos para terminar sua obra: a destruição do Brasil.
Sobre o autor
*José Luis Oreiro é professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
Leia mais
Revista online | O desafio de um país que trata cultura com descontinuidade política
Revista online | “Resultado das urnas tem de ser defendido com unhas e dentes”
Revista online | Um historiador cordial
Revista online | Por que ainda precisamos do feminismo?
Revista online | Twitter, Musk e a economia da atenção
Revista online | Novidades para o Oscar 2023. Será que agora vai?
Revista online | Conquistas e desafios na luta contra a LGBTfobia no Brasil
Revista online | Os Índios atravessaram a Ponte!
Revista online | O caminho da América Latina é a democracia
Acesse todas as edições (Flip) da Revista Política Democrática online
Acesse todas as edições (PDF) da Revista Política Democrática online
Benito Salomão: O keynesianismo envergonhado de Paulo Guedes
O Brasil da segunda metade da década de 2010 tinha uma agenda econômica clara, interromper a trajetória explosiva da dívida pública e ao menos equilibrar o orçamento primário da União em déficit desde 2014. Inúmeras medidas foram empreendidas neste sentido, porém no meio do caminho, houve uma eleição. O projeto vencedor nas urnas prometeu zerar o déficit primário já no primeiro ano de governo. Justiça seja feita, o déficit não foi zerado, mas houve uma redução em termos reais dos R$136 bilhões em de 2018, para cerca de R$85 bi, em 2019. Não é pouca coisa, no contexto de estagnação da economia e de crescimento compulsório do gasto público obrigatório.
Mas veio a pandemia e com ela a necessidade de ampliar o gasto. Muitos atribuem tal expansão fiscal ao célebre economista britânico John Maynard Keynes que jamais escreveu sobre isto em sua Teoria Geral de 1936. Porém, o governo brasileiro e dentro dele, a equipe econômica, preferiram subestimar a doença por vias de uma coleção de falas infelizes como “com qualquer R$5 bilhões a gente aniquila com o Coronavírus”. Gastaram R$524 bilhões e o país entrou em colapso sanitário.
Até o presente momento, a Pandemia trouxe a óbito cerca de 3,1 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, que deve passar os Estados Unidos em número de mortos nos próximos meses, até o presente momento morreram cerca de 392 mil pessoas. Apenas a título de comparação, a guerra civil na Síria que completou 10 anos no último dia 15/03, fez cerca de 388 mil vítimas segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH). O COVID-19 no Brasil matou mais em pouco mais de 14 meses do que o maior conflito civil do nosso tempo matou em 10 anos.
Trata-se, portanto, de um contexto de guerra, sem escombros, mas com muitas vítimas. E não se faz ajuste fiscal em guerras. Nestes contextos, o orçamento precisa proteger as pessoas. O Brasil não pode ser acusado de não ter gastado durante a pandemia. Segundo o Tesouro, a soma gasta exclusivamente com despesas relacionadas ao combate do COVID-19 em 2020 foi R$524 bilhões, pouco mais de 7% do PIB. Em comparações internacionais o Brasil gastou mais do que países como Israel (6,1% do PIB), Dinamarca (5,1%) e Noruega (4,35%). Mas mesmo com todo esforço fiscal, o país não evitou a hecatombe humanitária que levou a colapso os sistemas público e privado em todo o território nacional.
O problema não é a falta de gasto, mas sim a eficiência do mesmo. Gastou-se muito, porém gastou-se mal. Ao final do processo o país terá um enorme passivo fiscal e um gigantesco trauma humanitário. Por dois anos seguidos, o Estado do Amazonas foi acometido por um enorme caos sanitário. A pergunta é, por que a região norte do país não teve seu acesso limitado de forma preventiva (exceto para a chegada de suprimentos) durante a primeira onda, antes que o caos se instalasse? Uma região de amplo território com pequenas populações demasiadamente espalhadas em localidades de difícil acesso. Não seria muito mais eficiente, em termos sanitários e financeiros, impedir (ou postergar) que o vírus lá chegasse, do que levar atendimento médico e estrutura hospitalar depois que a situação já era grave? Enquanto isso os esforços e recursos seriam direcionados para as periferias dos grandes centros do Sudeste, por onde a doença entrou no país e se mostrou igualmente grave.
Olhando para o orçamento direcionado ao COVID-19 em 2020 no Gráfico 1, o principal item de gasto foi o auxílio emergencial, pago em 9 parcelas que ao final custou R$293 bilhões ao Tesouro. Se o governo tivesse pago por 4 meses, um auxílio de R$1000 mensais o impacto fiscal teria sido de R$256 bilhões. Se isto fosse vinculado às medidas de isolamento social, auxiliando a federação na implementação de um lockdown verdadeiro, com cerca de 2 meses de duração, mais 2 meses para reabertura das economias em etapas, quantas mortes seriam evitadas no auge da primeira onda da doença? Tudo isso sem falar o descaso absoluto da União para com a aquisição de vacinas, dos R$524 bilhões gastos ano passado, apenas R$2.2 bi foram gastos com a compra de imunizantes. Não fosse os esforços do Governo do Estado de São Paulo, a calamidade seria maior.
O descaso com a aquisição de vacinas está causando o prolongamento e ampliação da crise fiscal. Apenas para que se tenha a exata noção, o decreto que instituiu a calamidade pública do Coronavírus durou 288 dias. O custo fiscal diário da pandemia foi superior a R$1,8 bilhões. Com uma segunda onda ainda mais devastadora e possibilidade de uma terceira onda em 2021, o governo vai gastar, principalmente adquirindo vacinas, ou deixar o número de mortes ser a variável de ajuste, junto com a proliferação da pobreza e da fome? Este é o pior cenário possível para as contas públicas, primeiro porque o descontrole da pandemia no tempo vai exigir mais gastos por muito mais tempo, segundo porque isto leva a quarentenas intermitentes que derrubam a arrecadação. Ficaremos com a dívida e com os mortos.
Com isto, o ministro Paulo Guedes faz uma política “Keynesiana” um pouco constrangida, envergonhada e desconectada de objetivos claros. Este é o problema de servir o Governo sendo vinculado à ideologia. Vez ou outra a realidade cobra uma revisão intelectual dos nossos pressupostos. Max Weber previu o duro dilema do homem público que por vezes é posto diante da escolha entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção. Se o país vive uma situação de guerra e o aumento temporário de despesas públicas é uma realidade impositiva, que a convicção seja posta de lado e a responsabilidade seja assumida. Afinal, o que se espera do resultado final do gasto público? O Brasil terá evitado mortes com estes gastos? Terá evitado falências? Terá fortalecido o SUS? E o day after da pandemia? Como o governo está se organizando para quando a pandemia acabar?
*Benito Salomão é economista.
Fonte: