Justiça
Luiz Carlos Azedo: Supremo depoimento
Tudo o que Bolsonaro não quer é ser ouvido presencialmente, isso permitiria aos delegados buscar contradições entre suas declarações e os fatos já apurados. O depoimento foi suspenso
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello suspendeu, ontem, a tramitação do inquérito que apura se o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal. O decano da Corte, ministro Celso de Mello, licenciado por motivos de saúde, havia decidido que Bolsonaro faria um depoimento presencial, sendo inquirido pelos delegados que investigam o caso, mas a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu da decisão, solicitando que o depoimento fosse por escrito, como aconteceu com o ex-presidente Michel Temer. O ministro Marco Aurélio decidiu que caberá ao plenário do STF apreciar a questão.
A decisão mexe com o espírito de corpo da Corte, porque a reversão da decisão de Celso de Mello empana a saída do decano do Supremo. Na sua decisão, Marco Aurélio, que será o novo decano, antecipou seu voto como relator, que faculta ao presidente da República enviar um depoimento por escrito ou, se preferir, escolher o melhor dia para ser ouvido. Tudo o que Bolsonaro não quer é ser ouvido, porque isso permitiria aos delegados buscar contradições entre suas declarações e os fatos já apurados. Caberá ao presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, pôr na pauta do plenário a apreciação do caso. Até lá, o inquérito fica paralisado.
O maior constrangimento do presidente Bolsonaro, acusado pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro de tentar interferir na atuação da Polícia Federal, é o caso Fabrício Queiroz, o ex-assessor parlamentar de seu filho Flávio Bolsonaro (Republicano-RJ), senador eleito pelo Rio de Janeiro, investigado no escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O empresário Paulo Marinho, que participou da coordenação da campanha de Bolsonaro e é o primeiro suplente de Flávio, denunciou à Polícia Federal o vazamento de informações sobre o caso Queiroz e seu envolvimento com as milícias fluminenses, às vésperas da sucessão presidencial.
Celso de Mello, em licença médica até o dia 26 de setembro, havia negado pedido para que as respostas ao depoimento fossem dadas por escrito. Bolsonaro teria que comparecer à Polícia Federal como investigado, porém, com direito a permanecer em silêncio. O decano também decidiu que os advogados de Moro poderiam acompanhar o depoimento. Entendeu que os chefes dos Três Poderes, constitucionalmente, só podem depor por escrito como testemunhas ou vítimas, não quando são investigados ou réus por atos cometidos no exército do mandato.
Essa decisão esticou a corda das tensões entre o Executivo e o Supremo. Entretanto, a liminar de Marco Aurélio desanuviou a situação, ao invocar o precedente do ex-presidente Michel Temer, em decisões dos ministros Edson Fachin, que é o relator da Lava-Jato, e Luís Roberto Barros, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seriam três votos favoráveis ao pleito de Bolsonaro, supõe-se. O ex-presidente da Corte, Dias Toffoli, sempre foi um conciliador, e o ministro Luiz Fux, que acabou de assumir, devem acompanhar Marco Aurélio. Outro que pode atuar para distensionar as relações do Supremo com o presidente da República é o ministro Gilmar Mendes, que já deu liminares favoráveis ao senador Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz. O único constrangimento é a revisão da liminar do decano Celso de Mello, na sua despedida do Supremo.
Posse radioativa
Tudo indica que a cerimônia de posse do ministro Luiz Fux na Presidência do Supremo, de caráter presencial, mesmo com todas as cautelas, foi um fator disseminador da covid-19 na cúpula dos Poderes, embora os organizadores do evento tenham observado o protocolo de segurança sanitária estabelecido pelo Departamento de Saúde do STF. Além do ministro Fux, que contraiu a doença, o procurador-geral da República, Augusto Aras, anunciou que está com o vírus. Antes, já haviam comunicado que se contaminaram a presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria Cristina Peduzzi, e os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luís Felipe Salomão e Antônio Saldanha Palheiro, além do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Todos estavam na posse de Fux, que ofereceu uma espécie de coquetel aos convidados.
Em nota divulgada ontem, o STF recomendou a todos os convidados do evento que fizessem o teste de coronavírus. O mesmo procedimento foi adotado em relação aos servidores do tribunal. O Brasil registrou, ontem, 134 mil mortes e 4, 4 milhões de casos. A média móvel nas últimas duas semanas, porém, continua em queda, com 789 mortes, uma redução de 8%. No mundo, a aceleração do número de casos na Europa, que registrou novos 54 mil contaminados nas últimas 24 horas, provocou um alerta da Organização Mundial de Saúde (OMS), que teme uma segunda onda à medida que, nas cidades, volta-se à vida normal.
Luiz Carlos Azedo: Mais mulheres e negros no pleito
A maior distribuição de recursos do fundo eleitoral para as mulheres e os negros deve aumentar a participação feminina nos espaços de poder e combater o “racismo estrutural”
Não existe tradição política mais forte no Brasil do que as eleições de vereadores. Elas antecederam tudo o que existe institucionalizado em nosso país, a partir da formação da primeira Câmara Municipal, em 1532, na Vi-
la de São Vicente. Vêm de uma tradição medieval portuguesa, que foi fundamental para a consolidação de seu império colo- nial, da conquista de Ceuta (1415) à devolução de Macau à China (1999), ao lado das beneficências e santas casas. No caso de São Vicente, foi a alternativa encontrada por Martim Afonso para sedimentar a presença portuguesa, depois do fracasso de suas expedições à bacia do Prata por terra, na qual desapareceram 70 homens, e por mar. Ele próprio naufragou num baixio, frustrando o objetivo de subir o Rio Paraná e penetrar no continente, como o rei Dom João III ordenara.
Depois que Martim Afonso voltou a Portugal,a vila de São Vicente ficou completamente abandonada por duas décadas. Era um povoado formado por náufragos, degradados e marinheiros, o isolamento fez com que seus moradores adotassem os costumes indígenas e a língua franca tupi-guarani, sem a qual seria impossível o escambo serra acima, em conexão com os caciques Tibiriça, Caiubi e Piquerobi, todos tupi, e os náufragos João Ramalho e Antônio Rodrigues, que comandavam um exército de 20 mil homens pelo sertão adentro, a partir da localidade de Piratininga, às margens do rio Anhembi (Tietê). Tibiriça e os genros transfeririam-se para o campo de São Bento, onde se instalou o Colégio São Paulo, catequizados pelo jesuíta Manoel da Nóbrega, para fundar a maior cidade do país, São Paulo.
Conta-nos Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), que um único ritual das Ordenações do Reino foi preservado na vila de São Vicente: “As autoridades eleitas governaram, distribuíram títulos mal escritos pelos raríssimos alfabetizados, prenderam, multaram e julgaram. Passados os três anos dos mandatos regulares, os vereadores convocaram eleições, os eleitos tomaram posse, aqueles que deixaram o governo voltaram para a condição de simples governados, os novos governantes passaram a exercer a autoridade.” Quase todos analfabetos, genros de índios, renderam-se à autoridade dos governos dos costumes, eleita e provisória, competente na busca do consenso, com a vida doméstica organizada em torno da linhagem feminina. Eis “o milagre da multiplicação das eleições e do governo cuja autoridade derivava da escolha dos governados.”
É dessa tradição que as atuais eleições municipais herdariam o voto uninominal, que a competência de Assis Brasil canalizou para os partidos com a adoção do sistema proporcional. A propósito, há três grandes novidades nas eleições municipais deste ano: a primeira é o fim das coligações proporcionais, que obrigou os partidos a concorrerem com a chapa completa, o que aumentou muito o número de candidatos a prefeito e, principalmente, a vereador; a segunda, a destinação dos 30% dos fundos eleitorais para candidatas mulheres, o que as tornou mais competitivas e estimulou o lançamento de candidaturas majoritárias femininas; a terceira, a recente deci- são do ministro Ricardo Lewandowski, que determinou a distribuição proporcional dos recursos do fundo eleitoral entre candidatos negros e brancos, de ambos os sexos (mérito do movimento negro, da deputada Benedita da Silva, do PT-RJ, e do PSol, que recorreram à justiça).
Fusões e incorporações
A melhor distribuição de recursos do fundo eleitoral para incluir as mulheres e os negros, que já cobram maior fiscalização para evitar o/as laranjas (candidatos inscritos regularmente, mas que não fazem campanha e repassam os recursos do fundo, ilegalmente, para os caciques partidários), deve contribuir para aumentar a participação feminina nos espaços de poder e combater o “racismo estrutural”. O benefício deveria ser estendido ou pleiteado pelos candidatos indígenas, que em muitos municípios são sub-representados e sofrem grande discriminação.
Nas eleições passadas, o tsunami eleitoral que levou Jair Bolsonaro à Presidência elegeu grande número de candidatos militares, policiais e evangélicos, que reproduziram na campanha eleitoral sua narrativa contra a esquerda e disseminaram ideias conservadoras e reacionárias que pautam o atuam governo, em relação à cultura, aos costumes, à educação, ao meio ambiente e à segurança pública. Entretanto, o que pesou mesmo na eleição foi a linha divisória traçada pela Operação Lava-Jato entre a ética na política e a corrupção, o patrimonialismo e o fisiologismo, que foram associados à esquerda de um modo geral.
Muito provavelmente, essa linha divisória da ética se manterá nas eleições municipais deste ano, acrescida do desempenho dos prefeitos durante a pandemia, mas será menos ideológica e mais “fulanizada”. As pesquisas estão mostrando que a oferta de emprego está mais presente nas aspirações dos eleitores do que, por exemplo, a segurança e a educação, que compõem com a saúde, tradicionalmente, a tríade de prioridades da maioria da população. É muito provável que os candidatos majoritários, na maioria dos municípios, procurem estabelecer vínculos políticos com governadores e o presidente Bolsonaro, principalmente nas cidades onde houver segundo turno.
A tendência de fragmentação partidária nas eleições municipais, em decorrência do grande número de candidatos majoritários e proporcionais, porém, é apenas aparente, temporária. Após as eleições, haverá um processo de fusões e incorporações entre os partidos cujos resultados eleitorais revelarem pouca representatividade para ultrapassar a cláusula de barreira em 2022. Segundo estimativas do ex- deputado Saulo Queiroz, uma velha raposa política, estudioso do assunto, com as regras atuais, o espectro partidário deverá se reduzir a sete ou oito partidos. Até mesmo o PSDB, o MDB, o PSD, o PP, o DEM e o PR que, somados, elegeram 3.417 prefeitos nas eleições passadas, se nada fizerem, correm risco de desaparecer.
Luiz Carlos Azedo: Supremo cidadão
Fux criticou os grupos políticos que “não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões” e permitem a transferência de conflitos para o Poder Judiciário
O ministro Luiz Fux assumiu, ontem, a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) com um discurso emocionado, que traduziu sua trajetória de magistrado de carreira que chegou ao topo do Judiciário. Claramente, reposicionou a Corte: manterá distância regulamentar da política propriamente dita e não hesitará na defesa da ordem democrática e dos direitos dos cidadãos. Fux substituiu o ministro Dias Toffoli, cuja atuação à frente do STF foi marcada por intenso protagonismo político; vista em perspectiva, sob seu comando, a Corte atravessou um dos períodos mais turbulentos e tensos de sua história. Entretanto, Toffoli deixou ao seu sucessor um ambiente de mais respeito entre os Poderes, que andaram à beira de uma ruptura institucional, principalmente em razão dos ataques do presidente Jair Bolsonaro ao Supremo. A ministra Rosa Weber é a nova vice-presidente do STF. Coube ao novo decano da Corte, Márcio Aurélio Mello, fazer a saudação dos pares ao novo presidente do Supremo. Aproveitou para alfinetar o presidente Bolsonaro: “Vossa excelência foi eleito com 57 milhões de votos. Mas é presidente de todos os brasileiros”.
No discurso de posse, Fux chorou duas vezes. Não faltaram referências emotivas aos parentes, aos amigos artistas e aos mestres de jiu-jitsu, arte marcial da qual é faixa-preta. Arrancou aplausos dos pares, demais autoridades e convidados ao falar do pedido de seu pai, o advogado Mendel Fux, já falecido, para que não deixasse o Brasil em razão de uma excelente proposta de emprego no exterior e, assim, retribuísse a acolhida recebida pela sua família de refugiados do nazismo. Criado na Andaraí e ex-aluno do Colégio Pedro II, Fux é filho de judeus romenos. Foi enfático ao dizer que “a interpretação da Constituição deve refletir e justapor, sem paixões, os valores que formam a cultura política e a identidade do povo brasileiro. Judicatura requer a consciência de que a autoridade de nós, juízes, repousa na crença de cada cidadão brasileiro de que as decisões judiciais decorrem de um exercício imparcial e despolitizado de alteridade.”
Cinco eixos
Fux definiu os principais eixos de autuação do Supremo sob seu comando: proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; garantia da segurança jurídica conducente à otimização do ambiente de negócios no Brasil; combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos; incentivo ao acesso à justiça digital; e fortalecimento da vocação constitucional do Supremo Tribunal Federal. Destacou, porém, duas questões: primeiro, o combate à corrupção; segundo, o distanciamento do chamado “ativismo político” ou neoconstitucionalismo.
“Como no mito da caverna de Platão, a sociedade brasileira não aceita mais o retrocesso à escuridão e, nessa perspectiva, não admitiremos qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem de dinheiro e da corrupção. Aqueles que apostam na desonestidade como meio de vida não encontrarão em mim qualquer condescendência, tolerância ou mesmo uma criativa exegese do Direito”, declarou o novo presidente do STF. A assunção de Fux fortalece o ministro relator da Lava-Jato, Edson Fachin; em contrapartida, a provável ida do ministro Dias Toffoli para a 2ª Turma do Supremo, na qual tramitam os processos da Lava-Jato, mantém uma maioria “garantista”, formada ainda pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Fachin conta com o apoio da ministra Carmen Lúcia, mas não incondicional.
Por outro lado, Fux criticou os grupos políticos que “não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões” e permitem a “transferência voluntária e prematura de conflitos” para o Poder Judiciário. “A cláusula pétrea de que nenhuma lesão ou ameaça deva escapar à apreciação judicial, erigiu uma zona de conforto para os agentes políticos”, disse. “Essa prática tem exposto o Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, a um protagonismo deletério, corroendo a credibilidade dos tribunais. Essa disfuncionalidade desconhece que o Supremo Tribunal Federal não detém o monopólio das respostas – nem é o legítimo oráculo – para todos os dilemas morais, políticos e econômicos de uma nação”, completou.
Luiz Carlos Azedo: Censura à Lava-Jato
A Lava-Jato continua sendo um vetor do processo político, com grande influência eleitoral. Porém, os integrantes da operação perderam o monopólio do combate à corrupção
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu, ontem, por 9 votos a 1, punir o procurador da República Deltan Dallagnol, um dos protagonistas da Operação Lava-Jato, censurado por mensagens em rede social nas quais ele se posicionou contra a eleição do senador Renan Calheiros (MDB-AL) para a presidência do Senado, em 2019. A vitória de Davi Alcolumbre (DEM-AP), o atual presidente do Senado, foi resultado da insatisfação dos demais partidos com a longa permanência do MDB no comando da Casa, mas a atitude ajudou a narrativa política do grupo que queria o apoio da opinião pública à mudança no comando da Casa.
A censura é a segunda punição prevista no regulamento que rege a atuação dos procuradores –– a primeira é a advertência. Como consequência, atrasa a progressão na carreira e serve de agravante em outros processos no conselho. Os procuradores também podem ser punidos com suspensão, demissão ou cassação da aposentadoria. Havia intenção de alguns integrantes do Conselho no sentido de suspender Dallagnol, mas sua saída da força-tarefa de Curitiba abrandou as pressões e consta que o novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, que tomará posse amanhã, atuou nos bastidores em favor do procurador.
Calheiros alegou interferência do procurador-símbolo da Lava-Jato na disputa do Senado. O mesmo tipo de crítica que se faz ao ex-ministro da Justiça Sergio Moro em relação às eleições de 2018, para favorecer a candidatura de Jair Bolsonaro. A acusação ganhou veracidade quando o ex-juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do tríplex do Guarujá, aceitou o convite para ser ministro do atual governo, talvez o maior erro político que tenha cometido.
A propósito, a condenação de Dallagnol reforça os argumentos da defesa de Lula, que pleiteia a anulação de condenação por Moro, alegando um vício de origem: a parcialidade política do juiz, apesar de a condenação ter sido confirmada pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Por uma rede social, o procurador mostrou que não arriou a bandeira da Lava-Jato: “O Conselho Nacional do MP me censurou, hoje, por ter defendido a causa anticorrupção nas redes sociais, de modo proativo, aguerrido e apartidário. Discordo da decisão, que ainda há de ser revertida”, disse.
Tiroteio
É uma guerra de narrativas, que deve se intensificar nos próximos meses, com repercussão eleitoral. Ao mesmo tempo que vem sofrendo sucessivos reveses nos bastidores do Judiciário, integrantes da Lava-Jato contra-atacam em grande estilo. Na semana passada, procuradores da força-tarefa de São Paulo se demitiram coletivamente, mas antes alvejaram o senador José Serra (PSDB-SP) e o suposto operador de seu caixa dois de campanha, Paulo Vieira de Souza. Antes haviam detonado o ex-governador tucano Geraldo Alckmin, também denunciado.
Ontem, a bola da vez foi o ex-prefeito carioca Eduardo Paes, que lidera as pesquisas de opinião na disputa pela Prefeitura do Rio, alvo de uma operação de busca e apreensão em sua residência, em São Conrado. O mandado foi expedido pelo juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 204ª Zona Eleitoral, que acolheu denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro contra Paes e mais quatro investigados, acusados de corrupção, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. O ex-prefeito se defende atirando: “às vésperas das eleições para a Prefeitura do Rio, Eduardo Paes está indignado que tenha sido alvo de uma ação de busca e apreensão numa tentativa clara de interferência do processo eleitoral — da mesma forma que ocorreu em 2018 nas eleições para o governo do estado”, disse. Paes é o principal adversário do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado do presidente Jair Bolsonaro.
A Lava-Jato continua sendo um vetor do processo político, com grande influência eleitoral. Porém, os integrantes da operação perderam o monopólio do combate à corrupção, que cada vez mais será direcionado pelo novo procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, e a Polícia Federal. O risco de politização dessas ações para favorecer interesses do Palácio do Planalto é real, pois a lógica de quem pretende controlar essas instituições para se defender também serve para atacar os adversários. Nesse aspecto, Fux, o novo protagonista entre os Poderes da República, será o grande artífice do reposicionamento do STF, que passa por alterações na composição de suas turmas.
Com a aposentadoria do ministro Celso de Melo, a 2ª Turma do STF, que julgará o pedido de anulação do processo de Lula, formada também pelos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármem Lúcia e Édson Fachin, o relator da Lava-Jato, terá sua maioria garantista mantida pela chegada do ministro Dias Toffoli, que deixará a presidência da Corte amanhã. Com a saída de Fux, que assumirá o comando do Supremo, a 1ª. Turma, composta ainda pelos ministros Marco Aurélio, Rosa Weber, Luís Barroso e Alexandre de Moraes, terá seu perfil jurídico definido pelo novo ministro a ser indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, que promete escolher alguém “terrivelmente evangélico”.
José Casado: Privilégios e impunidade
Disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta
Judiciário e Ministério Público perderam a bússola em disputas pelo foro privilegiado —mecanismo institucional que, para muitos, simplifica a rota da impunidade para poucos. Tem tribunal estadual anulando decisão do Supremo e procurador em luta contra procuradores, para garantir tratamento especial a políticos suspeitos de crimes comuns.
Há 55 mil agentes públicos nesse cercadinho judicial. Rio, Bahia e Piauí abrigam 11 mil privilegiados. A lista vai do presidente da República a vereador; de senador a reitor de universidade; de juiz a delegado.
Semanas atrás, o Tribunal de Justiça do Rio deu a regalia a um filho do presidente, Flávio Bolsonaro, político notório pelo talento para lucrar muito, várias vezes e rapidamente.
Era deputado estadual quando comprou uma quitinete na Prado Júnior, em Copacabana. Revendeu-a 60 semanas depois com o extraordinário lucro de 292%. A valorização na área havia sido de 11% (índice FipeZap). Fez mais 18 negócios assim na Barra, Botafogo e Laranjeiras.
Personagem do inquérito sobre rachadinhas e lavagem de dinheiro na Assembleia do Rio, o ex-deputado reivindicou no STF o foro privilegiado de senador. O juiz Marco Aurélio Mello rejeitou. Ele apelou ao tribunal estadual, que inovou. Deu-lhe o privilégio e transformou em letra morta a decisão do Supremo.
Procuradores do Rio recorreram contra a inovação da Justiça fluminense. Entrou em campo o procurador-geral, Augusto Aras, como relatou a repórter Bela Megale. Aras acha que o filho do presidente merece ficar longe do juízo de primeira instância. Agora, o procurador-geral batalha para derrotar os procuradores do Rio no Supremo. Quer ver rejeitada a decisão de Mello, que foi baseada na jurisprudência do próprio STF.
Há uma lógica de poder nessa aparente anarquia institucional — a de que alguns são mais iguais que outros. A disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta no serviço público: 80% dos beneficiários estão no Judiciário e no Ministério Público, mostra estudo de João Cavalcante Filho e Frederico Lima, consultores legislativos.
Luiz Carlos Azedo: Verde, amarelo, branco, azul anil
“Crise sanitária, recessão econômica, crise fiscal, desemprego em massa e sinais da volta da inflação nos preços da cesta básica. Entretanto, Bolsonaro está cada vez mais populista”
Tivemos um inédito Dia da Independência sem desfiles militares, por causa da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro desfilou em carro aberto, cercado de crianças, no velho Rolls-Royce presidencial, comprado pelo presidente Getúlio Vargas em 1952, em si uma atração à parte. A Esquadrilha da Fumaça, como sempre, riscou o céu de Brasília. Estamos a dois anos do Bicentenário da Independência. Quem tiver mais certezas do que dúvidas sobre o futuro estará errado. São tempos de mudanças vertiginosas em meio a grandes adversidades.
Olhando para metade do caminho percorrido, a década de 1920, houve um turbilhão de coisas que deixaram de pernas para o ar a chamada República Velha. O mundo saía da maior carnificina até então ocorrida na História, a I Guerra Mundial. Pode-se dizer que tudo o que ocorreu depois, no século passado, de alguma forma, foi marcado pelo conflito. Há 110 anos, havia uma grande inquietação cultural e artística, além da radicalização ideológica na qual se confrontaram o comunismo e o fascismo, como alternativas à social-democracia e ao liberalismo, respectivamente. A II Guerra Mundial foi quase uma consequência inevitável, cujo grande ensaio no teatro europeu foi a Guerra Civil espanhola.
No Brasil, havia uma profunda crise de identidade; as instituições republicanas, que constituíam um sistema federativo e a nossa democracia representativa, eram contestadas. Dizia-se que eram estruturas artificiais, não se coadunavam com a realidade social e cultural do país. A Semana de Arte Moderna questionaria os padrões culturais tradicionais, impostos por uma elite formada por ex-senhores de escravos e seus descendentes, propunha a busca de uma identidade nacional moderna, “digerindo” as novas correntes filosóficas e artísticas europeias para produzir uma cultura nacional autêntica. O tenentismo eclodiria com o heroísmo dos 18 do Forte Copacabana, questionando o coronelismo, as fraudes eleitorais, o sistema político. Na mesma época, surgia o Partido Comunista, formado por intelectuais e operários de origem anarquista, cristãos-novos do marxismo. Eram prenúncios de uma crise que iria desaguar na Revolução de 1930 e no Estado Novo.
Muitas incertezas
Olhando para o futuro, o que nos aguarda nos próximos dois anos? É difícil a resposta, já mergulhamos num turbilhão das incertezas. Qualquer análise precisa partir da constatação de que estamos vivendo uma crise múltipla, cuja origem difere de todas as anteriores, em razão da pandemia da covid-19: contabilizamos até ontem 126 mil óbitos e 4,137 milhões de casos desde o início da pandemia, com uma taxa de 60,5 mortos por 100 mil habitantes. Estado mais rico e mais populoso, com o melhor sistema de saúde, São Paulo registra 855.722 casos e 31.353 mortes, o que explica a profundidade da recessão econômica, com a queda na produção industrial de 17,7% no segundo trimestre, em relação a igual período de 2019. O único setor com resultado positivo foi o agronegócio, que cresceu 1,2% no trimestre passado, por causa da recuperação chinesa e do aumento do consumo de alimentos, cujos preços dispararam.
Ninguém sabe quanto tempo a pandemia permanecerá, pois há sinais de uma segunda onda na Itália e na Espanha, mas há esperança de que quatro das vacinas em desenvolvimento no mundo estejam liberadas para aplicação em massa até o final do ano: a americana, a inglesa, a russa e uma das chinesas. O Brasil corre atrás delas, mas é improvável que possamos imunizar a população em menos de um ano. Enquanto a vacina não vem, é melhor ter juízo e manter o isolamento social; porém, não é o que acontece no Brasil. O mau exemplo vem de cima. O presidente da República naturaliza a pandemia e mantém uma ocupação militar no Ministério da Saúde que entrará para os anais da nossa história sanitária, repetindo o triste papel que tiveram na epidemia de meningite, durante o regime militar.
Crise sanitária, recessão econômica, crise fiscal, desemprego em massa e sinais da volta da inflação nos preços da cesta básica. Entretanto, Bolsonaro está cada vez mais populista, para desespero da equipe econômica, que agora lida com uma anistia fiscal no valor de R$ 1 bilhão para as igrejas evangélicas, que o presidente da República quer sancionar. Ou seja, todos os contribuintes terão de pagar o calote dos pastores na Receita Federal. Na política, Bolsonaro só pensa na eleição; nos bastidores, trabalha para liquidar com a Operação Lava-Jato, moeda de troca para livrar os filhos das investigações sobre o caso Fabrício Queiroz. Com o ministro Luiz Fux na presidência do Supremo (tomará posse na quinta-feira), será muito difícil.
Pasmem! A anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silvia, que ontem fez um pronunciamento nas redes sociais com pompa de estadista e cara de candidato, para emular com o de Bolsonaro em cadeia de radio e tevê, passou a ser vista com bons olhos pelos estrategistas do Palácio do Planalto. Já consideram os petistas fregueses de carteirinha e sonham com uma polarização com o petista Lula para reeleger Bolsonaro, sem risco de ter de enfrentar uma candidatura de centro no segundo turno. Até o Bicentenário da Independência, teremos dois anos emocionantes. Oremos!
Carlos Pereira: A Justiça como arma política
A influência do Judiciário na política é fruto da escolha dos próprios políticos
Têm sido cada vez mais frequentes reclamações e críticas acerca da proeminência do Judiciário brasileiro, especialmente da sua Suprema Corte. Muitos afirmam que esta tem extrapolado a sua atuação, não apenas invadindo a seara de outros Poderes, mas também constrangendo de forma exacerbada a atuação dos políticos. Alegam também que a existência de decisões judiciais em direções opostas sobre temas semelhantes, não só proferidas pelo colegiado, mas especialmente de forma monocrática, tem supostamente acarretado insegurança jurídica.
A crescente influência do Judiciário na política não é um fenômeno brasileiro nem tampouco fruto de voluntarismos unilaterais de juízes ou mesmo de jacobinismos. Na realidade, é produto da escolha dos próprios políticos. Ou seja, o espaço que o Judiciário opera é definido politicamente.
De acordo com Ran Hirschl (The Political Origins of Judicial Empowerment Through Constitucionalization: Lessons from Four Constitutional Revolutions, 2000), essa influência é um fenômeno global. Em países cuja constituição garante direitos fundamentais e atribui ao Judiciário o poder de rever a constitucionalidade de atos de outros Poderes, verificou-se um aumento considerável da influência do Judiciário nas prerrogativas do Legislativo e do Executivo. Diante dos riscos de os interesses minoritários serem esmagados por uma maioria episódica, o empoderamento do Judiciário se tornou um imperativo.
O incremento na judicialização de políticas fez com que o jogo democrático dependesse cada vez mais da posição do Judiciário. A Justiça, na realidade, se transformou em uma espécie de arma política utilizada estrategicamente pelos próprios políticos.
José Maria Maravall (The Rule of Law as a Political Weapon, 2003) propõe três condições para que esse fenômeno ocorra. A primeira quando Executivos constitucionalmente fortes são majoritários no Legislativo ou conseguem formar coalizões. Nesse caso, o Parlamento teria poucas condições de responsabilizar e controlar o governo de plantão, tornando-se menos relevante. O confronto político seria assim transferido para o terreno do Judiciário. Haveria incentivos políticos para que a oposição minoritária embarcasse em uma estratégia de judicialização da política.
A segunda condição se daria quando a oposição aceita a derrota nas eleições na expectativa de se tornar governo no futuro próximo, mas novamente é derrotada nas eleições subsequentes. Mesmo com menores esperanças de se tornar vencedora com as regras do jogo atual, a oposição não parte para saídas autoritárias, mas utiliza o ativismo judicial como instrumento de competição política.
A última condição aconteceria quando o governo de plantão é minoritário e vulnerável no âmbito eleitoral. O governo teria assim incentivos para se valer do ativismo judicial para consolidar seu poder e enfraquecer a oposição. A expectativa do governo de ser vitorioso no futuro sob as atuais condições de competição é inferior à de ganhar após a politização do Judiciário. Evidentemente, essa estratégia depende de o governo encontrar apoio dentro do Judiciário.
No Brasil, as condições institucionais para uma maior interferência do Judiciário na política estão presentes desde a Constituição de 1988. Mas foi com a consolidação e amadurecimento de sua democracia que esse fenômeno ganhou maior intensidade e relevância. Pois, como disse Toqueville, “o poder arbitrário de magistrados em regimes democráticos é ainda maior do que a de seus colegas em regimes despóticos”.
Por maior que seja a insatisfação que a interferência do Judiciário na política gere em parte dos políticos e da sociedade, esse fenômeno tem se mostrado extremamente resiliente ou quase irreversível. Apenas em momentos de crise aberta que exigem refundação, mudanças dessa magnitude conseguem ser implementadas. Mas é preciso lembrar que um enfraquecimento do Judiciário também teria consequências negativas e, portanto, que não existe solução ótima.
Luiz Carlos Azedo: Os donos do poder
“É impressionante como a política de parentela, cujas origens são o mandonismo e o patrimonialismo, se reproduz como modelo, dando origem a novos clãs políticos”
Tomo emprestado o título da coluna da obra já sexagenária de Raymundo Faoro (1925-2013), jurista, cientista político e sociólogo, considerado um dos grandes intérpretes do Brasil, autor de Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro (1958), uma leitura weberiana da nossa realidade. Seu olhar amplo e profundo sobre a nossa formação como nação desnuda as origens e a essência do mandonismo e do patrimonialismo, raízes do autoritarismo brasileiro, associando-o às elites que dominaram o país desde o período colonial, “organizando o poder político de forma análoga ao poder doméstico”. Isso resultou num Estado mais forte do que a sociedade, “em que o poder centrípeto do rei, no período colonial, e do imperador, ao longo do século XIX, ou do Executivo, no período republicano, criou forte aparelho burocrático alicerçado no sentimento de fidelidade pessoal”.
Remeto-me a Faoro em razão do projeto de reforma administrativa encaminhado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso, que não vai atingir os atuais servidores, somente os que ingressarem no serviço público após a aprovação da reforma. Mas, não essencialmente por essa razão, mas, sim, pelo fato de que o chamado “poder instalado” não será atingido pela reforma nem agora nem depois: com o fim do regime único, parlamentares, magistrados (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores), promotores e procuradores e militares, a elite do serviço público, terão regras diferentes dos servidores comuns. O velho barnabé, cujas agruras e revolta Oduvaldo Vianna Filho resumiu na figura do Manguari Pistolão, o anti-herói de Rasga Coração, é que pagará a conta da reforma, quando muito mais poderia ser feito se a austeridade e a transparência valessem realmente para todos.
Ao analisar a relação entre as oligarquias regionais e o poder central, que se reproduziu nos diversos períodos republicanos, Faoro destaca que “o estamento burocrático, fundado no sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, adquiriu o conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título. A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação”. A proposta de reforma parece confirmar o diagnóstico. Alguns acusam Faoro de não reconhecer o papel modernizador de nossa elite burocrática, principalmente nos períodos pombalino, no Segundo Império e no primeiro governo Vargas, períodos que a obra analisa, e que viria a se repedir durante o regime militar. Não foi mero acaso a grande repercussão que teve a reedição da obra nos anos 1970, seu diagnóstico se confirmou no regime militar e ainda nos parece atual.
Famílias poderosas
Na prática, a exclusão do “poder instalado” representa meia aprovação da reforma administrativa pelo Congresso, porque os lobbies mais poderosos contra o fim dos privilégios são corporativos e atuam diretamente junto aos parlamentares. Na verdade, trata-se de uma velha aliança, que se manteve ao longo da história. Com toda a renovação que houve nas eleições de 2018, por exemplo, o número de parlamentares com vínculos familiares com velhas oligarquias do país chega a 172, sendo 138 ligados a clãs políticos com representação em várias esferas de Poder, inclusive no Executivo, no Judiciário e no Ministério Público. Se formos considerar, ainda, outros grupos, como a bancada ruralista, os militares e os pastores evangélicos, o poder de intervenção desses segmentos na votação da reforma administrativa para manter seus privilégios será bastante significativo.
Em alguns estados, os clãs políticos dominam a representação parlamentar completamente, como a Paraíba, com 12 deputados, dez dos quais ligados a famílias políticas tradicionais. No Senado, seus três representantes são ligados a velhas oligarquias regionais. Se formos considerar a composição dos partidos, veremos que o eixo das alianças do presidente Bolsonaro com o Centrão, na Câmara, passa, principalmente, pela chamada “bancada dos parentes”: PP e PSD têm 18 parlamentares com essa característica, cada; MDB, 17; PR, 16; PTB, nove; PRB, oito; SD, seis; PSL, quatro. Sobra para quase todos os partidos, entre os quais se destacam PSDB, 13; DEM e PT, 12; PSB, 11; PDT, nove; PRB, oito; PCdoB, quatro; PROS, três. No Senado, a “bancada dos parentes”caiu de 39 para 24 senadores.
Há clãs políticos que protagonizam a política de seus estados, alguns com grande tradição e projeção nacional. No Maranhão, a família do ex-presidente Sarney; no Ceará, os Ferreira Gomes; no Rio Grande do Norte, os Alves e os Maias; em Goiás, os Caiado e os Bulhões; no Paraná, os Richa; em Alagoas, os Calheiros; na Bahia, os Magalhães; no Pará, os Barbalho; em Pernambuco, os Arraes e Bezerra/Coelho; na Paraíba, os Maranhão, Vital do Rego, Cunha Lima e Ribeiro; no Acre, os Vianna; em Tocantins, os Abreu.
É impressionante como a política de parentela, cujas origens são o mandonismo e o patrimonialismo, se reproduz como modelo de poder familiar, dando origem a novos clãs políticos. O mais novo e poderoso deles é o clã Bolsonaro, que se constituiu antes da chegada ao poder central, numa faixa obscura e sinuosa de relações políticas com setores ligados à segurança pública no Rio de Janeiro, mas que aprendeu a atuar e se reproduzir na convivência com o baixo clero do Congresso, no qual a “bancada dos parentes” atua como peixe dentro d’água. O presidente Jair Bolsonaro trouxe para o centro do poder decisão os filhos Flávio (Republicanos-RJ), senador; Carlos Bolsonaro (Republicanos), vereador carioca; e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), deputado federal. Quem quiser que se iluda, esse novo clã político manda na agenda do país.
Luiz Carlos Azedo: Witzel, o brevíssimo
“O governador teve uma carreira meteórica, acreditou que o caso Queiroz inviabilizaria a reeleição de Bolsonaro e levaria à cassação o senador Flávio Bolsonaro”
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve, ontem, o afastamento de Wilson Witzel do cargo de governador do Rio de Janeiro por ampla maioria, por suspeitas de envolvimento direto em corrupção. O relator do processo, ministro Benedito Gonçalves, que havia decidido pelo afastamento monocraticamente, convenceu a maioria dos pares de que havia tomado a decisão acertada, com o argumento de que existem provas suficientes para justificar o afastamento e que a medida era “menos gravosa” do que a prisão preventiva do governador fluminense, solicitada pelo Ministério Público Federal (MPF).
Dificilmente Witzel voltará a ocupar o cargo, porque seu impeachment na Assembléia Legislativa (Alerj) é uma questão de tempo. O vice-governador Cláudio Castro, de 41 anos, que já exerce o cargo, também é investigado. Filiado ao PSC, é o segundo vice-governador mais novo da história do Rio, atrás, apenas, de Roberto Silveira, eleito com 32 anos de idade, nos anos 1950.
Cantor gospel, começou na política em 2004 como chefe de gabinete do então vereador Márcio Pacheco (PSC), denunciado pelo Ministério Público do Rio por integrar um suposto esquema de rachadinhas na Alerj. Castro tem o apoio de Jair Bolsonaro e de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), investigado no caso Fabrício Queiroz, amigo de seu pai e seu ex-assessor parlamentar. O senador está enrolado no caso das rachadinhas da Assembléia Legislativa. Witzel elegeu-se no rastro eleitoral de Bolsonaro, em 2018, mas rompeu com o presidente e nunca escondeu o desejo de morar no Palácio da Alvorada. Agora, é mais um governador fluminense que pode parar na cadeia.
Não se pode dizer que houve uma mudança de rumo no Rio, porque o sistema de poder que controla a política fluminense continua o mesmo, balizado pelo Palácio do Planalto e pela Prefeitura carioca. Com a consolidação de Cláudio Castro no cargo, um santista sem nenhuma tradição política no estado, o poder da Alerj, que sempre foi muito grande, aumenta ainda mais. Entretanto, o deputado André Ceciliano (PT), que comanda o processo de impeachment de Witzel, também é investigado. Se a cassação de Witzel for aprovada neste ano, pela legislação, teriam que se realizar novas eleições. Nesse caso, sim, haveria um realinhamento de forças políticas no estado. A outra hipótese é uma alteração na correlação de forças em razão das eleições municipais. Marcelo Crivella (Republicanos) concorre à reeleição, mas enfrenta forte oposição: está ameaçado pelo ex-prefeito Eduardo Paes, derrotado por Witzel nas eleições passadas, mas que agora lidera as pesquisas eleitorais na disputa pela Prefeitura do Rio.
Meteoro
O caso Witzel é jogo jogado. O governador teve uma carreira meteórica, acreditou que o caso Queiroz inviabilizaria a reeleição de Bolsonaro e levaria à cassação de mandato de Flávio. Eleito na onda eleitoral provocada pela crise ética, com um discurso de duro combate à criminalidade (a tese do “tiro na cabecinha”), durante a pandemia da covid-19 entrou em confronto aberto com o governo federal. Não contava, porém, com o monitoramento da execução financeira de verbas federais pelos órgãos de controle do Estado, que, hoje, operam com inteligência artificial para cruzamento de dados. Assim, foram detectadas operações fraudulentas na Secretaria Estadual de Saúde. Em delação premiada, o ex-secretário Edmar Santos denunciou Witzel.
Edmar foi preso em julho, durante operação do MP-RJ que investigava fraudes na compra de respiradores. No mesmo dia, os promotores encontraram R$ 8,5 milhões em dinheiro vivo. O ex-secretário fez acordo e denunciou Witzel, o que fez o processo passar à esfera federal, por decisão do STJ. A partir daí, os acontecimentos precipitaram-se. Segundo o governador afastado, teria havido interferência de Bolsonaro, com objetivo de tirá-lo do cargo para influenciar a nomeação do novo procurador-geral do Estado, que deverá ocorrer em novembro. Marcelo Lopes, atual ocupante do cargo, seria aliado de Witzel e é responsável pela investigação do caso Queiroz. O governador nega, veementemente, as acusações e diz que a denúncia do ex-secretário é mentirosa.
Segundo a PGR, Witzel está envolvido no esquema de propina para a contratação emergencial e para liberação de pagamentos às organizações sociais (OSs) que prestam serviços ao governo, especialmente nas áreas de saúde e educação. Há a suspeita de que o governador tenha recebido, por intermédio do escritório de advocacia da mulher, Helena, R$ 554,2 mil em propina. Uma transferência de R$ 74 mil dela para a conta pessoal do governador reforçou as suspeitas. O esquema criminoso foi investigado a partir da apuração de irregularidades na contratação dos hospitais de campanha, respiradores e medicamentos para o enfrentamento da pandemia, logo no seu começo. O afastamento de Witzel também pôs os governadores de oposição com as barbas de molho, porque há muitas investigações sobre suspeitas de irregularidades na compra de respiradores, equipamentos de proteção individual e montagem de hospitais de campanha em outros estados. Ou seja, uma paúra do chamado efeito Orloff: “eu sou você amanhã”.
Luiz Carlos Azedo: Imunização de rebanho
“O Ministério da Saúde não combate a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo assim decidira, o que é uma interpretação falsa”
Parece piada pronta: o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, nomeou para comandar o Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, responsável por todo o programa nacional de vacinas do governo federal, o médico veterinário Maurício Monteiro Cruz, formado no Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro-Oeste, em Goiás, com mestrado em prevenção e controle de doenças em animais pela Faculdade de Agronomia e Veterinária da Universidade de Brasília. Cruz estava lotado na Diretoria de Vigilância Ambiental em Saúde do Governo do Distrito Federal e é especializado no controle da leishmaniose.
Como não lembrar da magistral interpretação de Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, por Jair Rodrigues, um clássico da nossa música popular: “Mas o mundo foi rodando/ Nas patas do meu cavalo/ E nos sonhos que fui sonhando/ As visões se clareando/ As visões se clareando/ Até que um dia acordei/ Então não pude seguir/ Valente lugar-tenente/ De dono de gado e gente/ Porque gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente”. Sem nenhum preconceito, não se pode acusar o general Pazuello de incoerente. Afinal, o ministro interino está operando uma estratégia de “imunização de rebanho” para gerenciar a pandemia da covid-19 no Brasil. Veterinários são especialistas nisso e profissionais de grande importância para a saúde pública. Alguns são grandes sanitaristas.
O Ministério da Saúde não está combatendo a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo Tribunal Federal (STF) assim decidira, o que é uma interpretação falsa, pois a decisão da Corte foi apenas de que caberia aos governadores e prefeitos gerenciar a política de isolamento social. Tecnicamente, a imunização de rebanho não é uma estratégia, é o efeito de proteção que surge em uma população quando uma percentagem alta de pessoas contraiu ou se vacinou contra uma doença. Mesmo quem não foi vacinado nem foi infectado, acaba protegido da doença porque um grande número de pessoas já foi imunizada, constituindo uma barreira humana contra a propagação do vírus.
Estima-se que o índice de 95% de vacinação seja o ideal para que isso ocorra, preservando as pessoas que não podem tomar a vacina, como acontece com o sarampo. Com isso, o vírus acaba desaparecendo. Veterinários, por exemplo, têm grande experiência em vacinação contra a febre aftosa, que ataca os rebanhos. O selo de imunização contra essa doença é fundamental para a exportação de carne bovina. No caso da covid-19, como não se tem vacina ainda, especialistas discutem qual seria a percentagem de contaminados para quem não teve a doença deixe de correr risco de se infectar. Não há respostas ainda, mas alguns pesquisadores estimam o número entre 60% e 80% da população total.
Vacinação
O departamento comandado por Cruz é responsável pela organização do calendário de vacinas do país, as campanhas nacionais e a distribuição dos medicamentos aos estados, assim como por acompanhar a cobertura vacinal. Sua tarefa é, sobretudo, de planejamento e logística, porém, depende da chegada da vacina contra a covid-19. Apesar de o Programa Nacional de Imunizações ser considerado uma referência mundial, desde 2016 a cobertura vacinal no país não tem atingido as metas, nem mesmo nas vacinas infantis obrigatórias. Nenhuma das 10 vacinas obrigatórias para menores de 2 anos atingiu as metas de cobertura em 2019. Entre elas, a poliomielite, que teve cobertura de apenas 82,1% das crianças. Considerada, oficialmente, erradicada no Brasil desde 1994, a doença ainda exige vacinação porque o vírus circula pelo mundo.
Mesmo com as subnotificações, com 120,9 mil mortes — das quais 30 mil em São Paulo — e 3,8 milhões de casos confirmados, o Brasil ainda está muito longe de alcançar a imunização de rebanho. A média móvel de casos dá sinais de que está começando a cair, mas ainda está num patamar muito elevado, que registra uma média móvel, nas últimas duas semanas, de 875 mortes e 36 mil casos por dia. O grande destaque no combate ao novo coronavírus foi a resiliência dos heróis anônimos na linha de frente do enfrentamento à pandemia, muitos dos quais contraíram a doença e morreram, sobretudo profissionais da saúde. O desempenho do Sistema Único de Saúde, com todos os problemas, está sendo fundamental para evitar uma mortalidade muito maior. A ideia de que a pandemia está acabando é muito perigosa; os fatores decisivos para controlá-la ainda são a política de isolamento social e a autoproteção individual.
Luiz Carlos Azedo: A derradeira estação
“A corrupção endêmica no Rio de Janeiro tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem”
Escrevo a coluna com o som na caixa. Chico Buarque canta Estação Derradeira, na qual glamuriza com afeto e poesia as mazelas do Rio de Janeiro: “Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ Cada ribanceira é uma nação”. A imagem de São Sebastião, o santo padroeiro da cidade, é invocada para sintetizar o sofrimento e a esperança, como nas paliçadas ao pé do Morro Cara de Cão, na Urca, na qual Estácio de Sá e os paulistas, com apoio do cacique Araribóia, em 1º de março de 1565, fundaram a cidade para expulsar os calvinistas franceses e seus aliados tamoios. Sobe o som: “São Sebastião crivado/ Nublai minha visão/ Na noite da grande/ Fogueira desvairada/ Quero ver a Mangueira/ Derradeira estação.”
A música não me saía da cabeça desde a notícia do afastamento do governador Wilson Witzel e a prisão de seus aliados por corrupção, entre eles o Pastor Everaldo, presidente do PSC. Não foi repetir o que já se sabe: mais um governo atolado no mangue da corrupção. Entretanto, para quem quiser saber como tudo isso começou, recomendo o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, que retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século XIX, com a chegada de D. João VI e sua Corte. A história foi publicada anonimamente, em folhetim, ou seja, em capítulos semanais, no Correio Mercantil, entre junho de 1852 e julho de 1853. O nome do autor foi revelado apenas na terceira edição em livro, póstuma, em 1863.
Personagens populares são os grandes protagonistas do romance, movidos por duas forças de tensão, a ordem e a desordem, características profundas da sociedade colonial da época, que se mantêm até hoje. O major Vidigal e sua comadre, dona Maria, pertencem ao lado da ordem, porém, nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável. A desordem é representada pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. Entretanto, todos transitam de um pólo para o outro, em momentos de acomodação.
Mas voltemos à crise do Rio de Janeiro, que muitos atribuem à transferência da capital para Brasília e/ou à fusão da antiga Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro. Essa é uma visão nostálgica, embora tenha a ver com a crise estrutural do estado. De fato, a transferência da capital esvaziou política e economicamente a antiga Guanabara. Entretanto, a fusão dos dois estados foi feita exatamente para compensar essas perdas, pois o projeto do presidente Ernesto Geisel, no regime militar, era fazer do Rio de Janeiro a capital do setor produtivo estatal, que rivalizaria com São Paulo, pois concentrava as sedes da maioria das empresas estatais. O colapso do modelo de capitalismo de Estado dos militares, porém, pôs o Rio a perder. Era um erro de conceito, abatido pela crise do petróleo e pela falta de capacidade de financiamento do Estado brasileiro.
Ética da malandragem
Para complicar, a Constituinte da Fusão, em 1975, que acompanhei como repórter do antigo Diário de Notícias, encarregou-se de inchar a máquina do novo estado, que já nasceu envelhecida, efetivando os comissionados e celetistas dos antigos governos dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, e mais os que foram incorporados à intervenção pelo brigadeiro Faria Lima. Sem muita racionalidade na distribuição de responsabilidades entre a administração estadual e a nova prefeitura da capital, o resultado foram mais gastos públicos e ineficiências, além de um passivo previdenciário exponencial e impagável. Essa situação agravou-se após a Constituição de 1988, com a efetivação de mais comissionados na aprovação da nova Constituição estadual.
A última grande frustração do estado foi o governo de Sérgio Cabral, que, inicialmente, parecia a redenção do Rio de Janeiro, por causa da exploração de petróleo e das Olimpíadas, mas se atolou no mar de lama da corrupção. A euforia do pré-sal logo se esvaziou, com a mudança do regime de concessões para partilha, que desorganizou o “cluster” de empresas do setor, devido à suspensão dos leilões de poços de petróleo por sete anos, e o escândalo de corrupção da Petrobras, que colapsou ainda mais a economia fluminense, em meio à recessão do governo Dilma Rousseff.
A corrupção endêmica nos governos do Rio de Janeiro, porém, tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem e da tolerância da elite fluminense com a secular e sistemática captura das políticas públicas por grandes interesses privados, que levam à formação de máfias de empresários e políticos, que drenam os recursos do estado para a constituição de patrimônio, além do compadrio, do fisiologismo e do clientelismo. O consequente apagão administrativo favorece, também, a ocupação de territórios cada vez maiores pelo tráfico de drogas e pelas milícias, protegidos pela banda podre do sistema de segurança pública.
Luiz Carlos Azedo: A modernização autoritária
“Cingapura virou uma referência em desenvolvimento em todos os quadrantes, da Europa à América Latina, da África à Ásia. Muitos sonham com a longevidade do poder de Lee Yew”
Ao contrário do que muitos imaginam, o paradigma do projeto comunista da China não é o velho livro vermelho com as ideias de Mao Zedong, é o pensamento modernizador de Xi Jinping e o modelo de Cingapura, estudado na nova escola de quadros do Partido Comunista chinês. Fundada há 86 anos numa caverna da província de Jiangxi, o complexo da academia hoje ocupa centenas de hectares junto ao Palácio de Verão de Pequim e abriga 1,5 mil alunos. Em 2018, a escola se fundiu com a Academia Chinesa de Governo para incorporar um novo objetivo: “investigar e disseminar o pensamento de Xi sobre o socialismo com caraterísticas chinesas para uma nova era”.
A grande preocupação dos dirigentes chineses continua sendo vencer a desigualdade social na China de hoje, uma contradição com as teses históricas do PCCh. Centenas de milhões de chineses saíram da pobreza nas últimas décadas, mas as grandes fortunas acumuladas na economia de mercado coexistem com salários baixíssimos e condições de vida precárias, em muitas regiões do país. O medo dos comunistas é que o avanço tecnológico e as vertiginosas mudanças possam afastar os jovens do regime. O massacre de Tiananmen, de 1989, e a Revolução Cultural (1966-1976) são temas proibidos nos currículos da escola de quadros, vértice de um sistema com 2,5 mil centros distribuídos por todo o país. Onde Cingapura entra nessa história?
Com seus arranha-céus, jatinhos particulares e carros de luxo, a cidade-estado, apesar de ter apenas 5,6 milhões de habitantes — contra 1,393 bilhão da China —, é o quarto país mais rico do mundo em poder de compra de seus habitantes, superado por Catar, Luxemburgo e Macau. Tornou-se um dos principais centros financeiros do Oriente, com número crescente de milionários e o custo de vida mais alto do mundo. Há 50 anos, porém, era apenas uma ilha pobre e sem recursos naturais, uma ex-colônia britânica que se separou da Malásia em 1965, sob a liderança de Lee Kuan Yew, cofundador do Partido da Ação Popular (PAP, na sigla em inglês), que governa o país desde 1959. Lee foi primeiro-ministro de Cingapura por 31 anos, vencendo sete eleições, até deixar o poder em 1985. Vem daí o paradigma político que interessa aos chineses: o regime de partido dominante, hoje comandado por Lee Hsien Loong, seu filho mais velho.
O sistema legal de Cingapura é baseada em leis herdadas do colonialismo britânico na Índia, sem seus valores liberais. Não existe tribunal de júri, por exemplo. Há castigos físicos e até a pena de morte para homicídios e tráfico de drogas, o que leva à maior taxa de execuções do mundo por habitante. Entretanto, é considerado um dos países menos corruptos do mundo, embora seja um notório paraíso fiscal para lavagem de dinheiro. Não existe ampla liberdade de expressão nem de reunião. Qualquer manifestação com mais de cinco pessoas precisa de autorização policial. Entretanto, o modelo econômico que viabilizou a modernização de Cingapura é estudado em todo mundo, principalmente nos países emergentes.
Corrida mundial
Advogado formado na Universidade de Cambridge, Lee foi uma espécie de déspota esclarecido moderno. Comandou o país durante sua fusão e a subsequente separação da Malásia, com a ambição de construir uma nação meritocrática e multirracial. Elaborou um extenso programa de reformas para tirar Cingapura do “buraco negro da miséria e da degradação” e transformá-la em um país industrializado e moderno, sob um modelo capitalista com controle estatal rígido. Beneficiou-se do fabuloso porto que abrigava a esquadra britânica da Ásia e sua localização estratégica, na rota comercial da China, da Índia e do Sudeste Asiático, além da proteção dos Estados Unidos.
O governo promoveu grandes programas de geração de emprego e a construção de moradias sociais, ao lado de uma política que acompanhava o controle da vida privada e a supressão de liberdades individuais, incluindo a prisão de opositores sem levá-los a julgamento e a aplicação de castigos corporais. Impressiona pelos altos níveis de educação, saúde e competitividade econômica, saltando de uma economia baseada na manufatura tradicional para um centro financeiro e tecnológico, com grandes investimentos estrangeiros, com uma população que fala quatro línguas: malaio, inglês, mandarim e tamil. Suas forças armadas são modernas, seguem o modelo israelense, e consomem 4,5% do orçamento, com bases aéreas na Austrália, Estados Unidos e França.
Cingapura virou uma referência para a modernização autoritária em todos os quadrantes, da Europa à América Latina, da África à Ásia. Muitos governantes sonham com a longevidade do poder de Lee Kuan Yew, como Vladimir Putin, na Rússia, e Tayyip Erdogan, na Turquia, sem falar nos ditadores de antigas repúblicas soviéticas e da África, além dos xeiques árabes. Tornou-se um ponto de referência na corrida mundial para reinventar o Estado, na qual o Ocidente enfrenta os problemas da economia de mercado aliados às disputas próprias dos regimes democráticos. Por isso, é melhor é ficar de olho no que acontece na política brasileira. Historicamente, sempre estivemos numa encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente.