Justiça

Gil Alessi: Governadores preparam carta a Biden para driblar protagonismo negativo de Bolsonaro

Com presidente e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, alvo de críticas pelo aumento do desmatamento no país, chefes dos executivos estaduais querem acesso aos recursos dos EUA

Em meio à lentidão do processo de imunização contra a covid-19 no Brasil, e com o pedido feito por ONGs para que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não negocie “a portas fechadas” questões ambientais com Jair Bolsonaro, governadores brasileiros lançarão nos próximos dias iniciativas nestas duas frentes em busca de protagonismo —e de resultados concretos. Chefes de 23 Executivos estaduais formaram um bloco chamado “Coalizão Governadores Pelo Clima”, que assina uma carta endereçada ao mandatário americano.

O documento será entregue ainda este mês ao embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Na mensagem de três páginas eles divergem de Bolsonaro ao defender o Acordo de Paris —que o presidente já falou em abandonar— e “o cumprimento do Código Florestal para a conservação das florestas e da vegetação nativa” —outro contraste com o Planalto, cujo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defende a flexibilização das leis para “passar a boiada”.

A carta é assinada por governadores de oposição a Bolsonaro, como João Doria (SP), Flávio Dino (MA) e Fátima Bezerra (RN), mas também por simpatizantes do presidente, como Romeu Zema (MG) e Cláudio Castro (RJ). Na mensagem eles se dizem preocupados com a situação e “conscientes da emergência climática global”. Também se colocam como atores capazes de contribuir com a solução caso tenham acesso aos recursos necessários, preenchendo um certo vácuo diplomático deixado pelo Governo Federal. “Nossos Estados possuem fundos e mecanismos criados especialmente para responder à emergência climática, disponíveis para aplicação segura e transparente de recursos internacionais, garantindo resultados rápidos e verificáveis”, diz o texto.

A articulação acontece às vésperas da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, que será realizada de forma virtual em 22 e 23 de abril e para qual o Governo Joe Biden convidou Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral em 2020 Biden chegou a dizer que poderia aplicar sanções contra o Brasil caso o país não controlasse o desmatamento. Depois de eleito, o tom de ameaça foi suavizado apesar dos recordes de devastação da floresta, e o enviado especial do Clima da Casa Branca, John Kerry, chegou a realizar uma videoconferência com o ministro Ricardo Salles e o então chanceler Ernesto Araújo para tratar do tema.

Todo o interesse não é em vão. A proteção dos biomas brasileiros é um negócio que movimenta bilhões de dólares. Desde o início do Governo Bolsonaro diversos fundos europeus ameaçaram suspender repasses destinados à preservação da floresta até que o Brasil mostrasse comprometimento com a redução do desmatamento e das queimadas na Amazônia e também em outros biomas. Noruega e Alemanha, por exemplo, bloquearam no final de 2019 o envio de recursos para o Fundo Amazônia, um dos principais do setor. Até o acordo comercial entre União Europeia e o Mercosul, assinado em junho de 2019, tem sua implementação arrastada à medida em que países como França e Áustria resistem a que ele saia do papel alegando preocupações ambientais.

O anúncio do contato dos governadores com Biden também ocorre uma semana após um grupo com mais de 200 ONGs ligadas a questões ambientais ter enviado ao presidente americano uma carta na qual criticam eventuais negociações “a portas fechadas” feitas entre os dois mandatários sobre a Amazônia sem a inclusão da sociedade civil. “Não é razoável esperar que as soluções para a Amazônia e seus povos venham de negociações feitas a portas fechadas com seu pior inimigo [Bolsonaro]”, afirmam em um trecho da mensagem, que também defende a participação dos Estados e comunidades locais nas tratativas. “Bolsonaro (...) compromete os Acordos de Paris ao retroceder na ambição da meta climática brasileira. Negacionista da pandemia, transformou seu país num berçário de variantes do coronavírus, condenando à morte parte da própria população”, conclui o texto.

Novos focos de atrito entre governadores e Planalto

A iniciativa dos governadores de contactar diretamente Biden tem potencial para provocar ainda mais atrito entre eles e o presidente. Ambas as partes já vivem uma relação bastante conturbada, erodida desde o início da pandemia quando Bolsonaro passou a atacar os executivos estaduais por tentarem controlar a crise sanitária com isolamento e restrições. Posteriormente, acusou os governadores de fazerem uso político da covid-19 e desviar recursos do Governo Federal destinados à Saúde.

Indagado sobre a possibilidade de conflitos com o Planalto, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), um dos signatários da carta, é taxativo: “Não estamos defendendo uma posição política individualista, e sim a posição do Brasil. Ela não foi alterada, apesar de verbalização [de Bolsonaro] no sentido diferente, as regras continuam as mesmas, não houve alteração da Constituição ou no Legislativo e Judiciário com relação à necessidade de proteger o Meio Ambiente”. Segundo ele, a ideia é que “Biden atente ao fato de que a posição no Brasil precisa ser uma posição que envolva os três poderes, e não apenas um”.

A carta dos Governadores pelo Clima não é a única iniciativa destes políticos que pode afrontar Bolsonaro. Nesta sexta-feira integrantes do Fórum Nacional de Governadores irá realizar por videoconferência uma reunião com a secretária-geral adjunta da Organização das Nações Unidas, Amina Mohammed. Na pauta, o pedido por “ajuda humanitária ao Brasil” em função da situação de descontrole da pandemia do novo coronavírus no país. “Queremos a sensibilização da ONU para que a Organização Mundial da Saúde agilize a entrega de vacinas para o Brasil”, afirmou Dias, referindo-se às doses do consórcio capitaneado pela entidade.

O protagonismo dos governadores na pandemia é uma questão crucial para Bolsonaro. Até o momento o Planalto ficou a reboque de iniciativas estaduais quando o assunto é imunização: boa parte das doses aplicadas nos mais de 23 milhões e brasileiros até esta terça-feira foi produzida no Instituto Butantan, em uma iniciativa do Governo paulista. Desde fevereiro outros governadores já iniciaram tratativas com laboratórios estrangeiros em busca de mais vacinas —algumas ainda sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como é o caso do imunizante russo Sputnik V, adquirido por Camilo Santana (CE) e Flávio Dino (MA).


Piauí: Os números chocantes da desigualdade vacinal

Imunização brasileira é lenta e discriminatória. País é o 73º em proporção de vacinados. E regiões pobres, com menos idosos, ficam no fim da fila. Em SP, distritos mais protegidos são 8 vezes mais ricos que os com menos doses aplicadas

 

Por Antonio S. Piltcher, Amanda Gorziza e Renata Buono, na Piauí

A vacinação contra a Covid-19 no Brasil caminha a passos lentos. Em relação à proporção da população vacinada, o país está na 73ª posição do ranking mundial. Alguns locais do Brasil são mais impactados pela falta de vacinas e pela distribuição desigual do imunizante. Na cidade de São Paulo, os distritos mais vacinados têm renda média oito vezes maior e vacinam quatro vezes mais que os distritos menos vacinados. Na cidade do Rio, um morador do Baixo Leblon tem três vezes mais chance de ter recebido a primeira dose da vacina contra Covid que um morador do Vidigal. Municípios com maior proporção de população indígena estão com taxas de vacinação maiores. Na Paraíba, uma cidade de maioria indígena aplicou quinze vezes mais doses que o município vizinho. Para realizar as comparações, foram utilizados os microdados do Open Data SUS, que permitem mapear a imunização dentro dos municípios, pois incluem os primeiros cinco dígitos do CEP de cada pessoa vacinada. Assim, foi possível estimar a proporção de habitantes imunizados em cada bairro. Os números foram compilados pelo Pindograma, site de jornalismo de dados.

O Mato Grosso do Sul é o estado que mais aplicou doses de vacina contra a Covid-19 proporcionalmente à sua população – 18 doses a cada 100 habitantes até 9 de abril. O ideal é que se tenham 200 doses a cada 100 indivíduos, já que são necessárias duas aplicações para a completa imunização. Por outro lado, o Mato Grosso, estado vizinho, aplicou metade das doses – apenas 9 a cada 100 pessoas. Ambos têm proporções semelhantes de idosos em sua população: MS com 13% e MT com 12%.

No Rio Grande do Sul, 14% da população recebeu a primeira dose da vacina contra Covid-19, enquanto o Acre vacinou apenas 8% de seus habitantes até o dia 9 de abril. No entanto, a proporção de gaúchos idosos é de 19%, enquanto a de acrianos é de 8%, ou seja, a população do Acre é majoritariamente jovem. O PIB per capita dos estados também difere: R$ 15 mil no Acre e R$ 37 mil no Rio Grande do Sul.

Dois municípios com porte parecido, Santos e Carapicuíba, no estado de São Paulo, têm níveis distintos de vacinação contra a Covid-19. Em Santos, 13% dos 433 mil habitantes já tomaram a primeira dose da vacina. Já em Carapicuíba, na região metropolitana, apenas 3% dos 403 mil habitantes foram vacinados. Os PIBs per capita dos municípios são bastante desiguais: aproximadamente R$ 52 mil em Santos e R$ 14,4 mil em Carapicuíba.

Na cidade de São Paulo, a vacinação dos distritos mais ricos e mais pobres difere significativamente. Nos cinco locais mais vacinados até 25 de março – Pinheiros, Jardim Paulista, Alto de Pinheiros, Campo Belo e Vila Mariana –, a primeira dose foi aplicada em 17% da população, e a renda média é de R$ 9.230. Já nos cinco menos vacinados – Anhanguera, Parelheiros, Jardim Ângela, Perus e Cidade Tiradentes –, apenas 4% dos habitantes foram vacinados, e a renda média de R$ 1.167.

Até 25 de março, Marcação, na Paraíba, administrou 73 doses de vacina contra Covid-19 a cada 100 habitantes. A vizinha Cuité de Mamanguape distribuiu apenas 5 doses a cada 100 habitantes. Ambas as cidades têm PIB per capita baixo, R$ 10 mil em Cuité de Mamanguape e R$ 9 mil em Marcação, que tem população majoritariamente indígena, o que não é o caso de Cuité.

Na região do Parque Bom Jesus, na periferia de Goiânia, 2% dos moradores foram vacinados até 25 de março. Nessa região, 70% das pessoas se autodeclaram negras. Já no Setor Marista, no centro da cidade, onde menos de 20% da população é preta e parda, foram vacinados 13% dos habitantes com a primeira dose até a mesma data.

A desigualdade na vacinação também está presente dentro da favela. Na cidade do Rio de Janeiro, no CEP 22452, que cobre metade da favela do Vidigal, apenas 4% dos moradores foram vacinados com a primeira dose. A renda média dos habitantes do Vidigal é de R$ 1.789. Já no Baixo Leblon, 13% da população recebeu a primeira dose, e 4%, a segunda dose. A renda média dos moradores do bairro Leblon é de R$ 11.311.

Nota metodológica:  As comparações do Open Data SUS limitam-se a dados de ao menos duas semanas antes da data de publicação do =igualdades e não comparam UFs distintas, pois há atraso na importação das informações das secretarias estaduais de Saúde para a plataforma federal, o que gera distorções para datas mais recentes.

 

Fonte: Dados do Open Data Sus, IBGE, Bacen e Secretarias Estaduais de Saúde via coronavirusbra1/Giscard, compilados pelo Pindograma

 


Luiz Carlos Azedo: Cenário ruim para 2022

Enquanto a pandemia não é controlada, o cenário econômico continua sendo de muitas incertezas e agravamento dos problemas sociais do país, como o desemprego

Com a leitura do requerimento da CPI da Covid-19 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), consolidou-se uma das principais linhas de força da disputa eleitoral de 2022, a crise sanitária. Mesmo que a pandemia venha a ser controlada, suas consequências políticas se farão sentir durante a campanha eleitoral, devido ao agravamento do desemprego, que não se resolverá facilmente, e o presidente Jair Bolsonaro será responsabilizado pela oposição, não somente pelo número muito alto de mortes. Os dois problemas ainda se somarão à disputa em torno da Operação Lava-Jato, mesmo que seus processos sejam concluídos ou arquivados, e à defesa da democracia, uma pauta que Bolsonaro reiteradamente põe na ordem do dia ao atacar o Supremo Tribunal Federal (STF), além de os partidos de oposição e a imprensa.

Não foi à toa que Bolsonaro tentou melar a CPI e orientou seus aliados a ampliarem o escopo das investigações, para chegar a governadores e prefeitos, o que somente é possível, constitucionalmente, seguindo o dinheiro destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS) pelo governo federal. Pacheco, cumprindo determinação do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, apensou o requerimento da CPI apresentado pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE) para investigar a responsabilidade de estados e municípios em más condutas no enfrentamento da pandemia, ao pedido original do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), unificando as duas CPIs requeridas.

Segundo Pacheco, “estão excluídos do âmbito de investigação das comissões parlamentares de inquérito do Poder Legislativo federal as competências legislativas e administrativas asseguradas aos demais entes federados”. A guerra de narrativas entre Bolsonaro e a oposição marcará o funcionamento da comissão, mas são os fatos que determinarão o rumo das investigações.

No dia em que CPI passou a existir de fato, o Brasil registrou 3.808 óbitos por covid em 24 horas e mais 82.186 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Com isso, o número de mortos pela doença chegou a 358.425, e o total de casos aumentou para 13.599.994. Na segunda-feira, foram registrados 1.480 óbitos e 35.785 novos casos. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reconheceu, ontem, que o Brasil tem 1,5 milhão da segunda dose de vacina em atraso. Ou seja, o cobertor está curto: muitas pessoas não estão recebendo o reforço adequado porque o fluxo de produção de vacinas, principalmente na Fiocruz, não acompanhou a escala da imunização pela primeira dose e houve uma opção de reduzir os estoques de segunda dose para aumentar o número de vacinados parcialmente.

Inflação

Enquanto a pandemia não é controlada, o cenário econômico continua sendo de muitas incertezas e agravamento dos problemas sociais do país, que registra uma de suas maiores taxas de desemprego da história, em torno de 14,5% neste ano, ultrapassando a de países como Colômbia, Peru e Sérvia, e caminha na contramão da taxa média global, cuja estimativa é de recuo para 8,7% este ano, ante 9,3% em 2020. Uma das consequências do desemprego é a fome, que atinge seis de cada 10 domicílios brasileiros; no Nordeste, são sete em cada 10 domicílios, segundo pesquisa das universidades federais de Brasília e Minas Gerais, e a Universidade de Berlim.

Ciente do problema, Bolsonaro tenta culpar governadores e prefeitos. A falta de comida na mesa é leve em 32% das casas, moderada em 13% e grave em 15% (nada pra comer). Além disso, a qualidade da alimentação piorou: queda superior a 40% no consumo de carnes e frutas e de 37% no consumo de verduras e legumes. A pesquisa mostra, ainda, que, em 63% dos domicílios, o auxílio emergencial ser- viu para comprar cesta básica. É um cenário perigoso, porque o auxílio emergencial e o Bolsa Família estão sendo insuficientes para resolver o problema alimentar das famílias de baixa renda por causa da inflação dos alimentos. Nos dois primeiros anos do atual governo, o custo da cesta básica subiu 32%.

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Luiz Carlos Azedo: A CPI não sabe como começar

CPIs bem focadas promovem ampla exposição de fatos até então encobertos por silêncio, dissimulações e fraudes. Algumas CPIs fracassaram por má condução

Um velho jargão parlamentar, atribuído a Ulysses Guimarães, sustenta que todos sabem como começa uma comissão parlamentar de inquérito, mas ninguém sabe como termina. A CPI da Covid-19 do Senado, porém, nem sabe ainda como vai começar, embora já esteja no centro das tensões entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, em razão da divulgação de uma gravação da conversa entre o senador Kajuru (Cidadania-GO) e o presidente da República.

Na conversa, o presidente Jair Bolsonaro orienta o parlamentar a protegê-lo e direcionar a investigação contra governadores e prefeitos. De quebra, pede para Kajuru pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a decidir sobre seu pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Quem mais se beneficia dessa confusão é o presidente Bolsonaro. A Executiva do Cidadania, partido envolvido na polêmica, apoia a instalação da CPI e saiu em defesa do senador Alessandro Vieira(SE), mas não endossa que se investigue governadores e prefeitos. Além disso, repudiou a conversa de Kajuru com Bolsonaro e solicitou que o parlamentar deixasse a legenda.

CPIs bem focadas promovem ampla exposição de fatos até então encobertos por silêncio, dissimulações e fraudes. Algumas CPIs fracassaram por má condução, como a do Futebol (2007) e a dos Cartões (2008). Outras foram bem-sucedidas, como as CPIs da Corrupção (1988), do PC Farias (1992), dos Anões do Orçamento (1993), do Judiciário (1989), do Banestado (2003), dos Correios (2005), dos Bingos (2006), dos Sanguessugas (2006), do Apagão Aéreo (2007) e do Cachoeira (2012). Às vezes, são algozes de seus protagonistas.

A CPI do Orçamento acabou cassando os mandatos do presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro (MDB-RS), injustamente, e do líder do MDB, Genebaldo Correia (BA), entre outros. A CPI dos Correios, em 2005, fruto de uma denúncia do presidente do PTB, Roberto Jefferson (RJ), resultou na sua própria cassação, e de outros parlamentares, como o então deputado José Dirceu (PT- SP). Desfecho surpreendente teve a do Judiciário, em 1989. Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), no segundo mandato como presidente do Senado, protagonizou a abertura da CPI, contra a corrupção, o tráfico de influências, a má gestão
e o nepotismo no Judiciário.

Renúncias
Alguns senadores à época, como Marina Silva (PT), Geraldo Melo(PSDB) e Roberto Freire (PPS), temiam o risco de confronto entre os Poderes. Para o ministro Carlos Velloso, então vice-presidente do STF, “uma CPI desse tipo, generalizando acusações contra juízes, simplesmente expõe o Judiciário à execração pública, levando o descrédito às suas decisões”. A própria OAB, que defendia desde a Constituinte a criação de mecanismos de controle externo do Judiciário, repeliu a iniciativa. Para então presidente, Reginaldo de Castro, estaria “se criando no Brasil um tribunal de exceção”.

A CPI não desmoralizou o Judiciário nem provocou abalos institucionais. Apurou denúncias de crimes e corrupção que impactaram a opinião pública, com destaque para a ligação do senador Luiz Estevão (MDB-DF, cujo mandato foi cassado em 2000) com o desvio de R$ 169 milhões das obras de construção do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, onde pontificava a figura do “Juiz Lalau”: Nicolau dos Santos Neto, presidente da Corte, que foi condenado a 26 anos de prisão pelos crimes de peculato, estelionato e corrupção passiva.

ACM emergiu da CPI do Judiciário como paladino do combate à corrupção, porém não conseguiu manter a presidência do Senado em 2001, sendo substituído por Jader Barbalho (MDB). Os dois senadores viviam se digladiando e acabariam envolvidos no escândalo do Painel do Senado. ACM havia revelado a lista de todos que votaram contra e a favor de Luiz Estevão na sessão secreta que resultou na cassação do mandato do ex-senador, em junho de 2000. A crise culminou com as renúncias de Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda, na época líder do governo no Senado.

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Luiz Carlos Azedo: Duas derrotas num só dia

Bolsonaro anunciou um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama

O presidente Jair Bolsonaro sofreu duas derrotas ontem, ambas no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma foi a decisão acachapante do plenário da Corte em favor de governadores e prefeitos que determinarem o fechamento temporário de templos religiosos para combater a propagação da pandemia da covid-19, durante os períodos de rígido distanciamento social, cujo resultado foi 9 a 2. A outra, a liminar do ministro do STF Luís Roberto Barroso a favor do mandado de segurança dos senadores Alessandro Vieira (SE) e Jorge Kajuru (GO), do Cidadania, determinando a imediata instalação da CPI da Covid-19 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que vinha empurrando o assunto com a barriga há 65 dias.

CPIs são uma prerrogativa da oposição, desde que tenham número mínimo de subscrições para instalação, o que é o caso. O que muda com a instalação da CPI é que o presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga e, principalmente, seu antecessor, o general Eduardo Pazuello, passarão a ter muitas dores de cabeça em razão de tudo o que ocorreu durante a pandemia até agora. Na lógica da oposição, a CPI é a banda de música dos pedidos de impeachment. O negacionismo de Bolsonaro tem um histórico de atitudes e medidas contra a política de isolamento social, mas também contra a compra e produção de vacinas, o uso de máscaras etc. É um prato cheio para a responsabilização criminal pelo elevado número de mortes que vem ocorrendo.

Rodrigo Pacheco segurou a instalação da CPI enquanto pôde, pressionado por Bolsonaro e pelo Centrão, mas contrariou os seto- res da oposição, inclusive os que o apoiaram. Com seu estilo conciliador e habilidoso, manobrou demais e acabou provocando mais uma intervenção do Supremo no Congresso. Agora, a oposição tem prerrogativas constitucionais e regimentais para fazer uma devassa no Ministério da Saúde. Como a base do governo é majoritária no Senado, o Palácio do Planalto tentará controlar a CPI, voltando-a contra governadores e prefeitos, mas isso fará com que o cacife dos partidos de Centrão aumentem nas negociações com o presidente da República.

Vacinas
Em sua live semanal, ontem, Bolsonaro voltou a criticar o isolamento social e defendeu “outras medidas” para combater a pandemia do novo coronavírus. Aproveitou para anunciar um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama. “É uma possibilidade. Um outro possível remédio que estará à disposição de todo o Brasil. Esperamos que dê certo”, disse. Também defendeu o exercício físico, que segundo ele, aumenta em oito vezes a velocidade de recuperação da doença.

Enquanto Bolsonaro flerta com o curandeirismo, a covid- 19 continua avançando no Brasil. Registrou 4.249 óbitos e 86.652 novos casos nas últimas 24 horas, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Com isso, o número de mortos pela doença chegou a 345.025, e o total de casos aumentou para 13.279.857. Na quarta-feira, foram registrados 3.829 óbitos e 92.625 novos casos. Ou seja, por falta de vacinas e isolamento social adequado, a escalada da pandemia continua.

Para complicar a situação, há 12 dias o Instituto Butantan não produz novas vacinas por falta de insumos. Ontem, reconheceu que a remessa de matéria-prima da CoronaVac está atrasada, mas anunciou que já foi liberada na China e deverá chegar a São Paulo até 20 de abril. O princípio ativo da vacina era para ter chegado ontem. De acordo com o Butantan, o lote de 3 mil litros de insumos é suficiente para a produção de 5 milhões de doses da vacina. Uma segunda remessa, com mais 3 mil litros, está prevista para chegar até o final do mês. O atraso não vai impactar as entregas previstas ao Ministério da Saúde: 46 milhões até o final de abril. O Butantan já disponibilizou 38,2 milhões de doses ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) e ainda possui cerca de 3,2 milhões de vacinas no controle de qualidade, que devem ser liberadas até o dia 19 de abril.

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Luiz Carlos Azedo: Muito além das igrejas

É surreal a polêmica que ocorre no Supremo, no momento mais dramático da pandemia, que registrou 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos casos nas últimas 24 horas

O julgamento iniciado, ontem, no Supremo Tribunal Federal (STF), com o voto contrário do relator, ministro Gilmar Mendes, à liberação de celebrações religiosas presenciais, como cultos e missas, em razão da pandemia da covid-19, extrapola a crise sanitária e diz respeito à existência de um Estado laico e sua relação com a sociedade no Brasil. A ideia da separação entre a política, o Estado, e a religião, ou seja, as igrejas, não é um assunto tão pacificado como deveria, embora preconizada por Nicolau Maquiavel, em O Príncipe, desde o século XVI.

A discussão na Corte foi provocada por liminar do ministro Kassio Nunes Marques a favor da liberação dos cultos, a pretexto de defender a liberdade religiosa, acolhendo pedido da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos. Sua decisão acabou confrontada por outra liminar, do ministro Gilmar Mendes, em favor do governo de São Paulo, que proibiu as celebrações em razão das medidas de distanciamento social para combater a pandemia.

Há jurisprudência do Supremo reconhecendo as prerrogativas de governadores e prefeitos para agirem dessa forma, mas não há súmula vinculante. A novidade é o entendimento de três aliados do presidente Jair Bolsonaro, com viés “terrivelmente evangélico”: o ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, o mais novo integrante da Corte; o advogado-geral da União, André Mendonça, que citou várias vezes a Bíblia e nenhuma vez a Constituição de 1988 no julgamento; e o procurador-geral da República, Augusto Aras, que também deveria defender o caráter laico do Estado, mas adotou uma linha juridicamente enviesada.

“As pessoas têm o direito de professar sua fé, direitos e garantias são postos em defesa do cidadão contra o Estado e não em favor do Estado contra cidadãos. A ciência salva vidas; a fé também”, argumentou Aras, em defesa da liberação de cerimônias religiosas em todo o país. O procurador-geral da República disputa com o advogado-geral da União a indicação, pelo presidente Jair Bolsonaro, para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello no STF. O decano da Corte se aposentará em 5 de julho.

Essa polêmica é surreal, pois ocorre no momento mais dramático da pandemia, que registrou, nas últimas 24 horas, 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos casos, aumentando o número de óbitos pela doença para 340.776. O total de casos confirmados se aproxima de 13,2 milhões. O Supremo já assegurou autonomia aos estados e municípios para que tomem medidas de combate ao coronavírus, mas a decisão é questionada pelo presidente Bolsonaro.

Duas liberdades
Ao defender sua posição, André Mendonça invocou o filósofo britânico Isaiah Berlin, autor de um clássico do liberalismo do século XX: Dois conceitos de liberdade (Editora Universidade de Brasília). Berlin discute os conceitos de “liberdade positiva”, a ausência de impedimentos à ação do indivíduo, e “liberdade negativa”, a qual estabelece condições para que os indivíduos ajam de modo a atingir seus objetivos.

Berlin sustenta que o indivíduo só é livre na medida em que nenhum outro homem, ou grupo, interfira em suas atividades. O julgamento ocorre na fronteira entre as vidas privada e pública. A ideia de liberdade positiva tangencia o conceito de liberdade civil de Rousseau: “Quanto mais eu obedeço a lei civil, mais livre eu sou, já que ajudo a elaborá-las”. Simplificando, é como se dissesse que, para o próprio bem, o indivíduo não está sendo coagido.

A Constituição de 1988, fortemente influenciada pelo liberalismo radical do deputado Ulysses Guimarães, pautou-se por outro pensador inglês, Stuart Mills, para quem devemos ter “liberdade na busca pelo nosso próprio bem, da forma que melhor nos apetece, desde que isso não interfira na possibilidade de os outros fazerem o mesmo”. O indivíduo pode até ser livre para causar dano a si mesmo, mas não aos outros; dependendo das circunstâncias e dos interesses da maioria, a liberdade pode ter limitações. Esse é o xis da questão na crise sanitária, que Bolsonaro não está levando em conta.

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Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e o mito de Sísifo

Como disse Camus, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata do presidente da República

O consagrado escritor francês Albert Camus foi um existencialista, para quem o homem vive em busca de sua essência, do seu sentido, e encontra um mundo desconexo, ininteligível, guiado por religiões e ideologias políticas. Num de seus ensaios filosóficos, Camus classifica Sísifo, um dos grandes personagens da mitologia grega, como um herói absurdo. “Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo seu ser se empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões desta terra”, resumiu.

Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. “Imaginaram que não haveria punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”, afirma Camus, que publicou O Mito de Sísifo em 1942. Nessa obra, destaca o mundo imerso em irracionalida- des. “Ou não somos livres, e o responsá- vel pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”, questionava.

Àquela época, em plena Segunda Guerra Mundial, o mundo parecia mesmo absurdo: a guerra, a ocupação da França, o triunfo aparente da violência e da injustiça, tudo se opunha ao humanismo e à ideia de civilização. O trabalho de Sísifo, ao empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha, até ela tornar a cair, é uma analogia perfeita com o esforço empreendido por profissionais da saúde, prefeitos e governadores para combater a pandemia do novo coronavírus: a covid-19. Entretanto, esse não é um trabalho inútil e sem esperança, como no caso do mito grego. É uma batalha que acabará sendo ganha, apesar de tudo.

Como disse Camus, porém, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata de um governante, como o presidente Jair Bolsonaro, que combate as medidas de isolamento social e mobiliza seus aliados para sabotar os esforços dramáticos que estão sendo realizados para evitar que a pandemia mantenha sua escalada, que pode chegar a mais de 500 mil mortos em julho, segundo estimativas dos principais centros de estudos epidemiológicos do mundo.

Liminares
A polêmica do momento é a liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Marques, o mais novo da Corte, indicado por Bolsonaro, que autoriza o funcionamento de templos religiosos durante a pandemia, mesmo contrariando as medidas de restrição de circulação de pessoas e aglomerações adotadas por prefeitos e governadores de cidades e estados nos quais a pandemia saiu do controle. Apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) estar entrando em colapso, por falta de leitos, respiradores e insumos para atender tantos infectados graves, o ministro acolheu pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, apresentada em junho do ano passado, para libertar os cultos.

Houve reação entre seus colegas do Supremo. Além das críticas públicas do decano Marco Aurélio Mello, ontem, o ministro do STF Gilmar Mendes, ao negar uma ação do PSD, manteve o decreto do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que restringiu as atividades religiosas de igrejas no estado. Contrariou a decisão de Kassio Marques, que havia liberado celebrações presenciais em todo o país. À tarde, o procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro e cotado para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que está prestes a se aposentar, protocolou no Supremo um pedido para retirar de Gilmar Mendes e transferir para Kassio Marques a ação do PSD contra a proibição de cultos e missas coletivas em São Paulo, porque é relator de uma ação mais antiga: a do PSD é de março deste ano.

O presidente do STF, ministro Luiz Fux, decidiu pôr o assunto em votação amanhã, na reunião plenária da Corte. A decisão de Kassio Marques, a pretexto de garantir a liberdade religiosa, está em contradição com a jurisprudência do Supremo, que atribuiu aos estados e municípios autoridade para fixar medidas restritivas de enfrentamento da pandemia, inclusi- ve, o fechamento de templos e igrejas.

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Luiz Carlos Azedo: É autoritarismo mesmo

Não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes em apuros, que começam a recorrer à força do Estado contra a opinião pública

O professor e historiador Alberto Aggio é um estudioso da política latino-americana, seu livro Um lugar no mundo (Fundação Astrojildo Pereira/ Fondazione Instituto Gramsci) dedica especial atenção à discussão do conceito de populismo. É um crítico tanto de sua “banalização”, como um termo que expressa estilos políticos de caráter depreciável, quanto do seu uso como “teoria explicativa” do desastrado percurso histórico latino- americano rumo à modernidade, “na qual a presença do Estado na vida social e econômica se fixa como seu elemento mais negativo e que necessita ser superado ou destruído”. Na sua avaliação, o populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo, buscava a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, incorporando as massas à cidadania pela via dos direitos sociais. Foi “uma fuga para frente”.

Tratava-se de promover transformações sem rupturas violentas, revolucionárias, como em outros processos de industrialização. Interditou a via clássica de passagem à modernidade, caracterizada pela incorporação dos trabalhadores à democracia liberal. No caso brasileiro, o populismo emergiu após a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas, e ganhou feições democráticas em seu segundo governo, na década de 1950. Caracterizou-se como um Estado de bem-estar social incompleto, com programa nacionalista que estatizava alguns setores da economia e legislação trabalhista e corporativista, que organizou e concedeu direitos sociais aos trabalhadores, mas também lhes retirou a autonomia.

O que isso tem a ver com o governo Bolsonaro? Nada! Por isso mesmo, não tem sentido as preocupações com uma possível “guinada populista” do atual governo. O risco é outro: a transformação de um governo bonapartista, com clara hegemonia de um determinado grupo de militares, num governo autoritário que confronta os demais Poderes e, de certa forma, o regime democrático no qual se instalou e funciona. O presidente Jair Bolsonaro não esconde de ninguém que seu espelho é o regime militar instalado após o golpe de 1964, que fará aniversário no último dia deste mês, cujas comemorações estão sendo preparadas por seus aliados, dentro e fora dos quartéis.

Desastre sanitário
No momento mais dramático da pandemia de covid-19, Bolsonaro insiste em suas teses negacionista, apesar de forçado a substituir o general Eduardo Pazuello no comando do Ministério da Saúde, em razão do seu fracasso. Colocou no cargo o médico cardiologista Marcelo Queiroga, que ainda não substituiu os militares neófitos em saúde pública corresponsáveis pelo desastre sanitário que estamos vivendo. Sua mais recente decisão sobre a pandemia foi entrar com uma ação contra governadores e prefeitos que adotaram o “toque de recolher”, que são medidas de restrição de circulação noturna dos habitantes das cidades nas quais a pandemia está fora de controle, preconizadas por sanitaristas, não se compara a um “estado de sítio”. Bolsonaro sabe que está afrontando o pacto federativo, a autonomia de estados e municípios. Sua intenção é responsabilizar o Supremo pela crise econômica provocada pela pandemia. Prefeitos e governadores também não são responsáveis pelo colapso sanitário e a crise econômica, a grande responsabilidade é do presidente da República, pessoal e indivisível.

Há outros fatos ainda mais graves em relação aos impulsos autoritários de Bolsonaro, como as ações da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério da Justiça e da Polícia Federal com intuito de processar, investigar e prender oposicionistas. O uso político e abusivo desses aparatos de coerção do Estado para intimidar àqueles que criticam seu governo e sua atuação, com base numa anacrônica Lei de Segurança Nacional herdada da ditadura, é muito preocupante. Não, não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes autoritários em apuros, que começam a recorrer à força do Estado para exercer o poder contra a opinião pública, sem considerar os direitos das minorias e a legitimidade do dissenso numa ordem democrática.

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Luiz Carlos Azedo: Cadê as vacinas, Bolsonaro?

As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), que sanitaristas e infectologistas vinham fazendo desde o mês passado, estão se confirmando

A cúpula do governo já se deu conta de que está protagonizando a maior tragédia sanitária da nossa história, ao fracassar no combate à covid-19, com o negacionismo reiterado do presidente Jair Bolsonaro e a incompetência do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Ontem, em solenidade no Palácio do Planalto, bem que Bolsonaro tentou dar um cavalo de pau e mudou o discurso em relação às vacinas, até disse que a senhora sua mãe foi vacinada em São Paulo (com a Coronavac do instituto Butantan, quanta ironia, a vacina do governador João Doria). Somente fez isso porque foi duramente atacado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua atuação como presidente da República durante a pandemia.

As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), advertência que os sanitaristas e infectologistas vinha fazendo desde o mês passado, estão se confirmando. O Brasil registrou nas últimas 24 horas 2.286 mortes por Covid-19 e 79.876 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O número de vítimas fatais da doença no Brasil chegou a 270.65 e o total de casos aumentou para 11,202 milhões. Mesmo assim, Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para conter a propagação da pandemia com o isolamento social, enquanto não há vacinas suficientes para imunizar a população.

“A política do lockdown adotada no passado, o isolamento ou confinamento, visava tão somente dar tempo para que hospitais fossem aparelhados com leitos de UTI e respiradores. O governo federal não poupou esforços, não economizou recursos para atender todos estados e municípios”, disse Bolsonaro. O presidente anunciou que o Brasil já adquiriu 270 milhões de doses de vacinas, a maioria para o primeiro semestre deste ano, mas as vacinas não chegam na frequência que a velocidade de propagação do vírus exige, por causa da incompetência do governo nas negociações. Voltou a defender o “tratamento imediato” com medicamentos não recomendados pelas autoridades de saúde, ao sancionar uma lei que prorroga a suspensão do cumprimento de metas pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS).

Patentes
O general Pazuello, atarantado com a ameaça de que a crise de Manaus se repita simultaneamente em várias capitais do país, também corre atrás do prejuízo. Tenta minimizar seu fracasso e ressalta os esforços dos principais centros de produção de vacinas: “Sem a produção da Fiocruz e do Butantan, nós hoje praticamente não teríamos vacinado ninguém. Essa é a realidade”. Desde janeiro, o país utiliza os imunizantes CoronaVac e Oxford/AstraZeneca.

Ontem, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Genebra (Suíça), porém, o Brasil voltou a se manifestar contra a suspensão dos dispositivos de propriedade intelectual sobre patentes de remédios, vacinas e outros produtos de combate à pandemia da Covid-19. A proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul em outubro de 2020 visa a suspender patentes ligadas a tratamentos e métodos de prevenção para a Covid-19. Na epidemia de AIDS, a quebra de patentes foi fundamental para controlar a doença.

Diante do fracasso, Pazuello pediu ajuda à China, que tanto foi hostilizada pelos filhos do presidente Bolsonaro e integrantes do governo, inclusive o chanceler Ernesto Araújo. Enviou ofício à embaixada da China no Brasil para pedir auxílio para a compra de 30 milhões de doses da vacina da farmacêutica chinesa Sinopharm, que havia sido ofertada pelo governo chinês no ano passado, pois trata-se de um laboratório estatal, mas à época não houve interesse do governo. Pazuello também negocia a compra de outros imunizantes, como o produzido pela Pfizer, único com registro definitivo concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que é outra novela.

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Luiz Carlos Azedo: Como Getúlio e Perón

O PT mantém sua hegemonia nos movimentos sociais e elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, mesmo com Haddad perdendo a eleição e Lula na cadeia

Livre das condenações, que foram anuladas pelo ministro Édson Fachin, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está em vias de se lançar mais uma vez à disputa pela Presidência da República, o que faz desde 1989. Não concorreu em 2010, porque a Constituição não permite um terceiro mandato sucessivo, e em 2014, na reeleição de Dilma Rousseff, o que talvez seja o seu maior arrependimento, pois a petista não terminaria o mandato. Ao longo desse período, construiu um partido político que se envolveu em escândalos de corrupção, como o “mensalão” e o “petrolão”, mas revela grande resiliência. O PT mantém sua hegemonia nos movimentos sociais e elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, mesmo com Fernando Haddad perdendo a eleição para o presidente Jair Bolsonaro. Lula estava na cadeia, não pode concorrer.

Desde a sua criação, em 1982, durante a reforma partidária protagonizada pelo presidente João Figueiredo, são quase quarenta anos de trajetória política, com o partido ocupando um espaço na sociedade brasileira que antes do golpe militar de 1964 fora dividido entre o PTB, o PCB e PSB. O PT reuniu sindicalistas, estudantes, militantes de comunidades eclesiais de base e ex-militantes de extrema-esquerda que participaram da luta armada contra o regime militar. Sua composição, ao longo dos anos, se alterou profundamente, mas a legenda continua sob comando da geração que fundou o partido.

A volta de Lula à cena eleitoral lembra o regresso à política do ex-presidente Getúlio Vargas, nas eleições de 1950, pela legenda do PTB, com apoio do PSD. O segundo governo Vargas se iniciou em 1951, com uma mudança de rumos na economia: em vez da abertura ao capital estrangeiro, uma política nacionalista, com forte intervenção do Estado na economia, marcada pela criação da Petrobras. Também criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), com o objetivo de garantir os investimentos necessários aos projetos econômicos.

A pressão popular levou Getúlio Vargas a nomear como ministro do trabalho João Goulart, o Jango, um político ligado aos meios sindicais. A principal medida tomada por Vargas no âmbito trabalhista foi o aumento de 100% do salário-mínimo, em 1954. A medida gerou oposição dos setores empresariais e de militares, liderada pelo coronel Bizarria Mamede, da Escola Superior de Guerra (ESG). O resultado da pressão foi a demissão de Jango, que mais tarde viria a ser presidente da República deposto em 1964.

O principal porta-voz da insatisfação era o jornalista Carlos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), que sofreu um atentado em 5 de agosto de 1954. Lacerda foi ferido na perna, mas seu guarda-costas, Rubens Florentino Vaz, major da Força Aérea, foi morto. As suspeitas envolviam o chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, o que levou os opositores a apontarem o presidente da República como mandante do atentado. A UDN e alguns setores do exército pressionavam pela saída de Vargas do poder. Sua opção foi o suicídio, realizado na manhã de 24 de agosto de 1954, com um tiro no coração. A notícia da morte do presidente, junto à publicação de sua carta testamento, encontrada ao lado do corpo, causou uma intensa comoção nacional. Seu legado político-eleitoral foi o trabalhismo.

Na Argentina

A volta de Lula também se parece com a do ex-ditador Juan Domingo Perón ao poder, em 1973, nos braços do povo, defendendo a industrialização, o controle das exportações, o Estado forte, a saúde e a educação públicas, os subsídios sociais, a neutralidade internacional e a integração política e comercial sul-americana. O peronismo é um movimento popular, democrático e nacionalista, formado por milhares de trabalhadores. É força política mais resiliente da Argentina, sobrevivendo à ditadura militar argentina (1976-1983), que depôs a então presidenta da República María Estela Martínez de Perón, que sucedera marido após ele falecer, em 1974.

O peronismo votou ao poder com Carlos Menem, que fez um governo ultra-liberal por dois mandatos, de 1989 a 1995, mas lançou a Argentina num mar de escândalos e grande recessão. Mesmo assim, a partir de 2003, por 12 anos, os Kirchnner (Néstor e a sua esposa Cristina Fernández) governaram a Argentina. O peronismo perdeu as eleições em 2015 para o neoliberal Macri, por conta de uma série de erros políticos, mas recuperou o poder através de Alberto Fernández, no fim do ano 2019. O atual presidente pouco tem a ver com os Kirchnner. Faz um governo de centro-esquerda pragmática. O Partido Justicialista é formado por peronistas de direita e de esquerda.

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Luiz Carlos Azedo: Lula livre para 2022

O fantasma petista assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia

Como dizia o maestro Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin surpreendeu o mundo político e até seus colegas de Corte ao anular todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa “interpretação técnica” do princípio do “juiz natural”. Tomou por base a jurisprudência do próprio Supremo, contra a qual se opusera quando a maioria dos ministros decidiu desmembrar os processos da Odebrecht, OAS e JBS do caso da Petrobras, remetendo-os para Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo, decisão que esvaziou a força-tarefa de Curitiba e sua própria relatoria no escândalo da Lava-Jato.

A decisão foi cirúrgica: acabou com a inelegibilidade de Lula e frustrou as expectativas de punição do ex-ministro Sérgio Moro e dos integrantes da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, cuja suspeição foi arguida pela defesa de Lula. No mundo jurídicos e nos meios políticos, a aposta era de que somente a condenação de Lula no processo do triplex de Guarujá seria anulada, por suspeição de Moro, enquanto a condenação no caso do sítio de Atibaia seria mantida, no aguardado julgamento da suspeição pela Segunda Turma do Supremo. Presidente dessa Turma, desculpem-me o trocadilho, o ministro Gilmar Mendes ficou com o voto na mão.

Para o presidente Jair Bolsonaro, seus aliados e boa parte da oposição não petista, a anulação do processo do triplex de Guarujá e a suspeição dos protagonistas da Lava-Jato seriam o cenário ideal: Lula fora da eleição e Moro desmoralizado. Fachin pôs tudo de pernas para o ar, porque liberou Lula para concorrer à Presidência da República e manteve o ex-ministro Sérgio Moro no jogo de 2022, protegendo ainda os procuradores da Lava-Jato, a investigação da qual é o relator no Supremo e que estava à beira da extinção.

Outros réus poderiam pedir anulação de seus respectivos processos, pois é disso que se trata, principalmente para os advogados que atuam na Lava-Jato e sempre questionaram os métodos heterodoxos de Moro e dos procuradores de Curitiba. Na prática, a decisão de Fachin pode garantir a presença de Lula na eleição porque uma condenação em segunda instância, no Tribunal Regional Federal de Brasília, uma Corte garantista, leva em média 6 anos; além disso, como Lula tem mais de 70 anos, o caso já estará prescrito, pois os fatos ocorreram há quase dez anos e a prescrição cai de 16 para oito anos.

Tensão institucional
No plano imediato, o principal foco de tensão é dentro do Supremo, que voltará a se dividir profundamente. Em recente decisão sobre os processos criminais, a Corte estabeleceu que nenhuma decisão monocrática pode ser reformada por outro ministro ou pelas Turmas, no caso dos processos criminais, somente pelo plenário da Corte. O Ministério Público Federal (MPF) já anunciou que recorrerá da decisão, e não será surpresa se a defesa de Lula insistir na suspeição de Moro e dos procuradores, sendo acolhida pelo ministro Gilmar Mendes, na reunião de hoje da Segunda Turma.

O segundo foco é o Congresso, principalmente a Câmara, cujo presidente, Arthur Lira lidera as articulações para acabar com a Lava-Jato. O Centrão e maioria das bancadas do PT e do PSDB apostavam na suspeição de Moro. O terceiro, o Palácio do Planalto, muito mais interessado no fim da Lava-Jato e na inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A retórica de Bolsonaro sobre a decisão mira o desgaste do Supremo junto aos militares e uma parte da opinião pública. A candidatura de Lula já está precificada. No esquema binário da narrativa bolsonarista, a esquerda é o inimigo principal. O fantasma de Lula assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia e outras questões nas quais confronta os grandes consensos. Com Lula livre, o discurso golpista de Bolsonaro ganha uma dimensão eleitoral antecipada, com sua cantilena contra a urna eletrônica. Ou seja, quer ganhar no voto ou no grito.

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Luiz Carlos Azedo: A política como negócio

O senador Flávio Bolsonaro acaba de comprar uma casa no Setor de Mansões Dom Bosco, um dos mais valorizados da capital, no valor de R$ 5,7 milhões

Max Weber, em sua antológica palestra A política como vocação, divide os políticos em duas categorias: os que vivem para a política e os que vivem da política. No primeiro caso, estão aqueles que veem a política como bem comum; no segundo, como negócio. As duas espécies se digladiam na democracia, faz parte do jogo na ordem capitalista. Mas no Brasil é diferente: todos dizem defender o bem comum, ninguém assume que está na política para defender interesses empresariais. Como temos um pé no Oriente, em razão de nossas raízes ibéricas, muitos estão na política para formar patrimônio.

Parece o caso do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que acaba de comprar uma casa no Setor de Mansões Dom Bosco, um dos mais valorizados da capital, no valor de R$ 5,7 milhões. O imóvel tem área total de 2,4 mil metros quadrados. O registro em cartório da aquisição do imóvel revela que houve o pagamento de R$ 2,87 milhões à vista, além do valor da parcela do financiamento, entre R$ 18,7 mil e R$ 21,5 mil. Para justificar a operação, o filho primogênito do presidente Jair Bolsonaro disse que vendeu um apartamento na Barra da Tijuca (RJ) e a franquia de sua loja de chocolates para dar a entrada no imóvel na capital federal.

Um blogueiro gozador, rapidamente, fez as contas, comparando o valor do imóvel com a quantidade de Nhá Benta (merengue coberto por chocolate), equivalentes aos R$ 6 milhões: 182.370 caixas de 90 gramas, de acordo com os preços da loja virtual da Kopenhagen. O financiamento obtido no Banco de Brasília (BRB) para aquisição do imóvel foi bem camarada. Pelas regras do sistema financeiro habitacional, a prestação não pode ultrapassar 30% da renda bruta. Do valor total do imóvel, R$ 3,1 milhões foram financiados, em 360 parcelas, a uma taxa de juros de balcão efetivos de 4,85% ao ano. No cartório em Brazlândia, onde foi registrada a operação de compra e venda, consta que Flávio Bolsonaro tem renda de R$ 28,3 mil e sua esposa, R$ 8,6 mil.

A notícia da compra do imóvel pegou de surpresa os aliados do presidente Jair Bolsonaro, pois o senador tem direito a apartamento funcional. Logo, repercutiu nas redes sociais, porque o imóvel havia sido anunciado por corretores e havia abundância de imagens em vídeo da mansão na internet (https://youtu.be/TrzNkaBgYE4). Recentemente, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por 4 votos a 1, havia anulado a quebra de sigilo das contas do senador, que é investigado no escândalo das “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, supostamente, por ter movimentado cerca de R$ 2,3 milhões. De acordo com a denúncia do Ministério Público, o dinheiro teria sido lavado com aplicação em uma loja de chocolates no Rio, da qual o senador era sócio, e em imóveis.

Preconceitos

Para o senso comum, as pessoas ricas poderiam se dedicar inteiramente à política de forma genuína, pois não teriam interesses econômicos nela. As pessoas que vivem da política seriam aquelas que veem na política sua profissão. Essa é uma visão preconceituosa, que não é bem o que Max Weber quis dizer, porque dá margem à ideia de que pessoas ricas estariam mais habilitadas a entrar na política, pois não roubariam, enquanto uma pessoa pobre não poderia fazer o mesmo, pois veria na política um meio de garantir sua vida financeira.

O que Weber quis dizer é que políticos que vivem para a política atuam em defesa do bem comum, não importa se são ricos ou pobres. A remuneração de um parlamentar existe exatamente para permitir que um assalariado possa exercer seu mandato sem pôr em risco a sobrevivência de sua família. De igual maneira, há pessoas que entram na política não porque vão ganhar um alto salário como deputado, por exemplo, mas, sim, porque esse cargo lhe permitirá participar da cúpula do poder, com a possibilidade de tomar decisões que favoreçam um grupo específico ao qual pertence ou ao qual deva favores, o que é legítimo na democracia. Mas também há inúmeros casos de homens ricos que estão na política para fazer seus próprios negócios e que se notabilizaram como políticos corruptos.

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