Juliana Sayuri
Juliana Sayuri: Legado de Stálin volta a inflamar debates na esquerda
Enquanto uma ala defende méritos do líder soviético, outra vê a negação de seus crimes como terraplanismo
O clichê, inspirado na célebre frase de abertura do “Manifesto Comunista” (1848), tem razão de ser: Josef Stálin (1878-1953), que faria aniversário na quarta (18), volta a ter seu legado discutido e reabilitado nas redes sociais, tanto no Brasil como em outros países.
Nos dias 26 e 27 de novembro, a editora NovaCultura.Info, da URC (União Reconstrução Comunista), promoveu o evento “140 anos do camarada Josef Stálin” na FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), a fim de celebrar o aniversário do revolucionário comunista —cerca de 70 pessoas participaram da atividade.
Nascido em Gori, na Geórgia, Josef Vissarionovitch Djugashvíli adotou o famoso pseudônimo em 1913 —em russo, “Stálin” remete a “feito de aço”. Após a morte de Vladimir Lênin (1870-1924), ele governou a URSS de meados da década de 1920 até a sua morte, 33 anos depois.
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Nascido em Gori, na Geórgia, Josef Vissarionovitch Djugashvíli adotou o famoso pseudônimo em 1913 - Reprodução
O selo Edições Nova Cultura, da URC, vem se dedicando a resgatar a história do líder soviético, com a publicação de livros como “Anarquismo ou Socialismo?” e “Sobre os Fundamentos do Leninismo”, de sua autoria. Segundo Lucas Medina, 32, da NovaCultura.Info, a última tentativa de editar livros de Stálin no Brasil foi interrompida na década de 1950. Após edições esparsas, nada expressivo foi às livrarias desde a década de 1980.
“Stálin foi importantíssimo para os povos progressistas do mundo que lutam pela sua libertação, pois cumpriu um papel fundamental na construção do socialismo na URSS, a primeira experiência da história. Deu o exemplo a todos os povos de que a construção de uma nova sociedade não era somente um sonho, um ideal, mas uma possibilidade concreta, que se seguiu pela árdua luta na Ásia, África e América Latina. Por isso reivindicamos Stálin, como herança da luta pelo socialismo, que ainda é o destino da humanidade para o qual devemos trabalhar diariamente”, diz Medina.
O recente revival levanta discussões acaloradas, pois essa visão positiva do líder bolchevique está longe de ser consensual.
Organizações como o Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo) criticaram a celebração do aniversário.
“Stálin entrou para a história com a vergonhosa marca de ser um dos maiores assassinos de revolucionários na história mundial. [...] Por tudo isso, expressamos nosso repúdio à homenagem a Stálin, que não é um ‘camarada’ de nenhum trabalhador que lute por justiça, mas um criminoso coveiro de revoluções que contribuiu imensamente para adiar a tão necessária revolução social mundial”, diz a nota.
Historiadores organizaram outro evento, no dia 29 de novembro, pró-marxismo e crítico ao stalinismo, também na FFLCH-USP. Participaram docentes como Daniela Mussi, Henrique Carneiro, Osvaldo Coggiola, Ruy Braga e Sean Purdy.
“O stalinismo é parte do marxismo, na mesma medida que se considere um câncer como parte de um organismo”, definiu Carneiro no Facebook. A discussão, diz Purdy à Folha, é atual pois “uma parcela pequena, mas desproporcionalmente influente, de jovens militantes da esquerda” está desenterrando o stalinismo como alternativa política.
Purdy, 53, protagonizou outro episódio em que o espectro stalinista foi invocado. A edição de estreia da revista socialista Jacobin Brasil, publicada pela Autonomia Literária em meados de novembro, incluiu um artigo do historiador pernambucano Jones Manoel, militante do PCB.
“Um enorme equívoco publicar um stalinista orgulhoso na Jacobin Brasil”, criticou Purdy no Twitter. Álvaro Bianchi, diretor do Instituto de Filosofia em Ciências Humanas da Unicamp, que também escreveu um artigo na primeira edição da revista, tuitou: “Deveriam ter avisado antes [que Jones também estaria no expediente]”.
Embora os comentários tenham se resumido a poucos caracteres, o caso tomou outra dimensão na internet. Enquanto uns acirraram o tom contra Jones (acusando-o de “neo-stalinista” por já ter ponderado, por exemplo, que “qualquer menção a Stálin que não seja a mais apressada condenação é lida como adesão ao totalitarismo”, em artigo na revista Opera), outros trataram as críticas a Jones como censura e acusaram os acadêmicos de elitismo e racismo.
Procurado pela reportagem, Bianchi não quis comentar o caso. Purdy, por sua vez, declarou: “Não vejo como uma crítica à linha editorial de uma revista possa ser considerada censura. Critiquei a inclusão de um artigo de um autor, que acredito defender concepções de orientação stalinista, ou talvez seja melhor dizer neostalinista”.
Canadense radicado no Brasil há 20 anos, marxista e militante do PSOL, Purdy considera o stalinismo como uma “política de terror” na URSS.
“É uma mancha na tradição marxista e socialista. O marxismo é um método crítico que estuda o capitalismo para superá-lo através de uma revolução feita pela classe trabalhadora e da construção de uma sociedade socialista. Democracia e socialismo são conceitos indissociáveis na tradição marxista e do socialismo revolucionário. Não há socialismo sem democracia e vice-versa”, argumenta o historiador.
A esquerda rachou nas redes sociais: de um lado, martelou-se que, em pleno 2019, não dá pra defender Stálin; de outro, interpretou-se que o caso não diz respeito ao stalinismo, mas à liberdade de expressão. “O que foi feito é algo desleal: uma acusação ‘ad hominem’. Jones não poderia ser publicado por ser stalinista!”, criticou Gilberto Maringoni, 61, professor de relações internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC) no Facebook.
“O debate acalorado e aberto faz parte da história da esquerda, muito mais do que no âmbito da direita, que exibe um viés autoritário vários degraus acima. A internet acrescentou a tais debates o imediatismo e deselitizou a participação. Muito mais gente entra na conversa, com graus variados de conhecimentos. Ao mesmo tempo em que há debates em alto nível —o que não significa em baixa voltagem—, há a algaravia das redes. A acusação de ‘stalinismo’ não busca o diálogo. Busca o estigma e o fim da conversa”, diz Maringoni à reportagem.
Jones, 29, já perdeu as contas de quantas vezes foi tratado como “stalinista” ou “neostalinista”, um rótulo que, segundo ele, seria um tipo de chave mágica para fechar o debate. “Depois da morte de Stálin e do fim da URSS [1991], não faz sentido falar em stalinismo nos dias atuais. De tal sorte que o rótulo é injusto, porque se considera stalinismo toda leitura discordante do balanço histórico [predominante] do século 20”, diz.
A socióloga Marilia Moschkovich, 33, que faz parte do conselho editorial da Jacobin Brasil, interpretou as tensões dentro da esquerda como uma disputa por legitimidade entre acadêmicos marxistas de currículos “Lattes estrelados” e jovens intelectuais influentes na internet, todos de esquerda. Um gap de gerações.
“Se antes intelectuais da esquerda marxista se concentravam nas universidades, professores concursados e de carreira consolidada, o que acontece agora é diferente: jovens acadêmicos, marxistas ou não, nos deparamos com uma mudança de estrutura dessa carreira, que se tornou muito mais competitiva, mais custosa, mais difícil. Essa precarização é um fator importante para intelectuais como Jones Manoel, Sabrina Fernandes e eu, inclusive, para produzir conteúdo para internet, como alternativa para exercer o trabalho intelectual”, analisa.
Além da diferença geracional, a discussão ilustra a disputa entre diferentes correntes marxistas.
Para Jones, nas universidades predominava um certo prestígio para trotskistas formados nas décadas de 1980 e 90. Entretanto, segundo o diagnóstico do historiador, a influência trotskista agora está em declínio, enquanto se desenvolve uma vertente do marxismo produzida fora das estruturas universitárias.
“Organizações marxistas fora da chave trotskista vêm crescendo, enquanto organizações trotskistas vêm minguando. Então, esse frisson, a histeria sobre esse suposto revival de Stálin é uma tática de disputa política”, diz Jones, que condena uma visão dualista que considere “Trótski como a essência de todo o bem e Stálin como a encarnação de todo o mal”.
Leon Trótski (1879-1940) foi um intelectual marxista e um dos líderes da Revolução Russa de 1917, que depois culminaria na URSS. Preterido na disputa para assumir o Kremlin após a morte de Lênin, foi expulso da URSS e exilou-se na Europa e depois no México, onde foi assassinado por ordem de Stálin.
“O lugar que Stálin ocupa na história mede-se pelo tamanho da vitória soviética sobre os invasores nazifascistas e ao êxito dos planos quinquenais que fizeram da URSS a segunda potência mundial. Até o início da Guerra Fria, ele era tratado com respeito e confiança pelos círculos dirigentes dos Estados Unidos. Depois, foi tratado como um ditador sanguinário. Nenhum desses retratos falados é ‘o’ verdadeiro; todos devem ser problematizados”, diz o historiador João Quartim de Moraes, 78, professor da Unicamp e autor de “História do Marxismo no Brasil”.
No entanto, de acordo com Quartim, intelectual integrante do PC do B, a satanização do soviético leva a falsas equivalências, que nivelam comunismo a nazismo (e Stálin a Hitler) como “regimes totalitários”.
Em meio às discussões recentes, o PCB emitiu nota no dia 21 de novembro, posicionando-se contra revisões históricas para reabilitar o stalinismo. Na linha de Quartim, o partido ponderou: “Contudo, não aceitamos que a crítica a esse período guarde qualquer relação e identidade com a narrativa anticomunista que hoje busca colocar o comunismo no mesmo patamar do nazismo, em termos de crimes de lesa-humanidade, para justificar a proibição da existência de partidos comunistas.”
“Stálin foi um dos principais dirigentes do movimento comunista durante mais de 30 anos. É parte da história”, diz Jones. “Enquanto comunista e historiador, tenho diversas críticas, tenho balanços negativos à sua liderança e também tenho avaliações positivas, como a derrota do nazifascismo, o fim da fome,
combate ao racismo, combate ao colonialismo, desenvolvimento científico, desenvolvimento cultural. [Mas] não há onda stalinista no Brasil. É um delírio.”
O cientista político Luis Felipe Miguel, 52, professor da UnB (Universidade de Brasília), discorda. “Há um revival global do stalinismo, que está chegando ao Brasil agora. Aparece em alguns grupos políticos organizados, mas sobretudo na internet. Por dois motivos principais: um brutal desconhecimento histórico e o avanço da extrema direita”, analisa, referindo-se a um contexto maior, e não ao episódio da Jacobin Brasil.
O desconhecimento histórico levaria a idealizações e à recusa de fatos —por exemplo, o assassinato de opositores e a existência dos gulags, os campos de prisioneiros soviéticos.
“É como o terraplanismo, numa versão à esquerda: todos os historiadores estão a serviço da CIA, todos os documentos são forjados, não existe como desafiar a crença com qualquer evidência. Isso permite que o stalinismo seja entendido como destemido, como o ‘braço forte contra o fascismo’ —e, portanto, apareça como resposta ao avanço da extrema direita”, critica.
Para Miguel, é possível estar à esquerda e recusar o stalinismo ao mesmo tempo. “Não só é possível, é necessário. A sociedade que Marx sonhava era marcada sobretudo pela máxima liberdade de todos os seus integrantes. É necessário enfatizar que o stalinismo é uma distorção do ideal comunista. E que o melhor projeto da esquerda anticapitalista deve ser radicalmente democrático.”
*Juliana Sayuri é jornalista e historiadora, autora de “Diplô: Paris – Porto Alegre” (2016) e “Paris – Buenos Aires” (2018).