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RPD || Julia Braga: Inflação de commoditites e dólar
País precisa reavaliar estratégias dos setores de energia e alimentos para superar a crise econômica, política e institucional
O aumento do preço das commodities afeta o mundo inteiro, levando a um quadro de inflação global. No Brasil, a inflação é maior que em outros países. Como explicar essa inflação mais alta que a média global?
O preço da energia para a combustão ou energia elétrica disparou esse ano. São causas desse fenômeno: a demanda do mundo digital da era pandêmica por energia elétrica, um conjunto de fatores climáticos, assim como a rápida transição energética na China, com a troca do carvão pelo gás natural para a geração de energia elétrica. A crise hídrica no Brasil, por sua vez, fez requereu o uso mais intensivo de termelétricas, incluindo aquelas movidas a gás natural.
Como uma commodity é custo de outra commodity, o choque energético eleva os custos em toda a cadeia produtiva, incluindo a produção de alimentos. Em 2020, o preço das commodities agrícolas (grãos e carnes) subiu intensamente (28%), devido à política de segurança alimentar na China, que demandou mais grãos e carnes após a gripe suína de 2019. Em 2021, já acumulam alta similar (28% de janeiro a agosto), devido tanto a problemas climáticos (cada vez mais frequentes e intensos), como ao aumento dos custos de produção.
O Brasil é um importador de insumos e bens intermediários até mesmo para a produção de alimentos, com dependência externa de máquinas e fertilizantes. Os preços dos produtos importados e exportados no Brasil, em dólares, têm grande correlação histórica com a dinâmica dos preços das commodities. Ocorre que esses preços, cotados em dólares, foram majorados pela variação cambial.
O câmbio afeta não só os preços dos bens importados, mas também os do que exportamos. Isso porque ao produtor não interessa vender no mercado interno por um preço inferior ao que poderia ganhar exportando. Para bens homogêneos e transacionáveis com o resto do mundo, vale a lei do preço único nos diversos mercados locais. Assim como ocorre com a regra da paridade internacional da Petrobrás, o exportador converte para o real o preço em dólar praticado nos mercados internacionais. Isto é, o Brasil é tomador do preço que vigora internacionalmente.
O Banco Central mede o impacto conjunto da inflação de commodities e da variação cambial com o índice IC-br. De janeiro de 2020 a agosto de 2021 esse índice acumula alta de 71%, mesma magnitude de 2002, quando a inflação saiu da meta. A decomposição indica que praticamente metade dessa variação é devida ao aumento do preço das commodities (34%), e outra metade, à desvalorização cambial (28%). Isso significa que a variação cambial praticamente duplicou o choque de custos advindo dos preços em dólares das commodities. O que surpreende é a autoridade monetária não ter dado a devida atenção a esse índice.
O aumento da taxa de juros tem o efeito de valorizar ou pelo menos frear a desvalorização cambial. Como mostra a história do Regime de Metas de Inflação, o Banco Central acaba conseguindo trazer a inflação para a meta, mesmo ultrapassando o ano calendário. Mas há um elemento adicional que atrapalha o canal de transmissão da política monetária. Keynes chamava de incerteza forte: quando fica difícil atribuir probabilidade a diferentes cenários. O investidor precisa atribuir probabilidades para calcular risco e expectativa de rentabilidade.
O Brasil acumula uma crise de natureza econômica, política e institucional há mais de 5 anos. Mesmo as empresas brasileiras, diante de tanta incerteza, optam por não internalizar a receita das exportações, deixando esse volume de dólares no exterior, sem impacto no mercado de câmbio. Cabe ao Estado dar previsibilidade aos agentes econômicos. Para isso, não basta anunciar uma meta de inflação, que pode ser descumprida sem ônus ao presidente do banco. É preciso ter planejamento econômico.
A crise também mostra a necessidade de reavaliação das estratégias relativas aos setores energético e de alimentos. Uma prioridade deve ser o incentivo à agricultura familiar, que perdeu parcela significativa no orçamento público desde 2015, devido às regras fiscais de contenção de gastos públicos. Também é necessário debater uma regra de repasse da Petrobrás que permita suavizar, ao menos em algum grau, a forte intensidade das oscilações do preço internacional e da variação cambial (uma das mais voláteis do mundo) ao preço na bomba. Uma sugestão é um programa de recompra de ações dos acionistas minoritários, deixando a Petrobrás com mais poder para interferir no preço. Assim, os investidores não seriam prejudicados e, ao mesmo tempo, o Estado ganharia maior controle de sua política energética.
Essas políticas de caráter estrutural acabam facilitando o canal de transmissão da política monetária. Em contrapartida, como tem sido demandado de bancos centrais no mundo todo, o Banco Central do Brasil pode ter papel mais amplo de atuação em diversas áreas, facilitando o financiamento para o cumprimento de metas ambientais e sociais e as estratégias definidas no planejamento econômico.
Julia Braga é professora associada da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretora da Associação Keynesiana Brasileira