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Revista online | O racismo estrutural e a eleição de candidatos negros
Ivair Augusto Alves dos Santos*, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)
Uma questão perseguiu o movimento negro e o Sistema Eleitoral Brasileiro durante todo o século XX e o início do século XXI: o que impede os negros de se elegerem na mesma frequência que no caso das candidaturas brancas?
Sou paulistano, e as primeiras eleições que tenho na memória que remontam aos anos da década de 1970, onde tínhamos dois candidatos negros Adalberto Camargo e Theodosina Ribeiro e um prefeito negro da cidade de Santos, que foi cassado antes de assumir a prefeitura: Esmeraldo Tarquínio.
Adalberto Camargo era filiado ao antigo MDB (partido de oposição ao regime militar). Fez sua estreia na política ao disputar as eleições estaduais tendo um projeto surpreendente: eleger pessoas negras para os cargos de vereador e deputado estadual, o que lhe rendeu 17.566 votos, emplacando assim o primeiro de seus quatro mandatos na Câmara dos Deputados e tornando-se o primeiro candidato negro a eleger-se deputado federal em São Paulo. Reelegeu-se em 1970 (quando recebeu votos em 574 dos 576 municípios paulistas),1974 e 1978, sempre pela legenda emedebista.
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Theodosina foi a primeira vereadora negra da Câmara Municipal de São Paulo pelo MDB e obtendo a segunda maior votação, a primeira mulher negra a ocupar uma vaga de deputada estadual na Assembleia Legislativa (Alesp), em 1974, também pelo MDB.
Lembro-me como a conheci. A primeira vez foi durante as eleições de 1970. A p rofessora Theodosina distribuindo os “santinhos”, cédulas com nome e número da candidata, durante nos bailes blacks, que aconteciam em algumas regiões da capital.
Já Esmeraldo Tarquínio, despachante aduaneiro, advogado e jornalista, integrante do antigo MDB, foi eleito prefeito de Santos em 1968, com 45.210 votos (39,8% dos votos válidos), mas não assumiu o cargo. Foi cassado pelo regime militar pouco mais de um mês antes da posse. Conseguiu adquirir seus direitos políticos e participou das eleições de 1982 como candidato a deputado estadual, vindo a falecer meses antes da eleição, depois de uma campanha que seria vitoriosa.
Essas três figuras preenchiam o imaginário da população negra e o que significava participar do processo eleitoral, naqueles idos anos de 1970. Um regime bipartidário (ARENA e MDB) onde os negros em sua maioria se filiavam ao MDB, partido da oposição.
Confira, abaixo, galeria de fotos:
Ao final do século XX, no estado de São Paulo, eles inspiraram o surgimento de muitos candidatos negros.
Com a redemocratização do regime e o surgimento de novos partidos proliferaram candidaturas negras. Todavia, o resultado esperado não se confirmou e nenhuma candidatura negra foi eleita.
Ainda na década de 1970, o movimento negro se reorganizou e combateu o mito da “democracia racial” e conquistou espaços importantes com a institucionalização de políticas públicas para a população negra.
Em São Paulo foi constituído o primeiro órgão dedicado a formular políticas de promoção da igualdade racial: o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, em 1983.
Uma importante vitória ainda que os resultados eleitorais da participação negra estivessem muito aquém da sua representatividade populacional.
A persistente desigualdade racial que estrutura a sociedade de classes no país não explica completamente o desempenho dos candidatos brancos e negros nas eleições. É preciso ir além. As desigualdades externas do sistema político conjugadas às internas são determinantes para a explicação da sub-representação negra na política.
Na verdade, importa tanto a distribuição desigual fora do contexto das eleições, como a forma com que os recursos são distribuídos entre candidatos negros e não negros. (Campos & Machado: 2020)
A experiência de trabalhar em muitas campanhas de candidatos negros que não conseguiram se eleger marcou a história dos militantes do movimento negro nas últimas décadas. Uma das respostas indicadas recorrentes é a falta de recursos financeiros para realização de uma campanha, combinada com uma frágil organização para participar das eleições.
Os candidatos negros, na sua maioria de classe média baixa, com sucesso profissional ancorado no serviço público se apresentavam nos partidos políticos para uma disputa de legenda. Os candidatos negros para conquistar uma legenda sempre dependeram das lideranças partidárias brancas.
Essa dependência das lideranças partidárias nos partidos definia a garantia de se conseguir o direito de participar das eleições como candidatos, como as composições políticas e o acesso a recursos para desenvolver a campanha.
As articulações no interior de um partido subordinam-se ao capital social do candidato: suas relações pessoais, familiares e profissionais na sociedade.
Os partidos políticos maiores tendem a dar mais espaço para elites políticas brancas. Do outro lado, partidos menores e marginais na disputa tendem a ter maior equilíbrio racial dentre os seus indicados, onde grande parte dos candidatos são negros, mas com poucas chances de se elegerem. (Machado & Campos: 2020)
Como lembram Machado & Campos (2020), os candidatos negros detêm menos recursos sociais eleitoralmente valiosos, como origem em ocupações abastadas, do que seus concorrentes brancos. Os candidatos negros vêm das classes mais baixas de nossa hierarquia socioeconômicas.
Ainda segundo esses autores, há uma espécie de círculo vicioso, no qual o baixo financiamento da campanha de candidatos negros se dá justamente pelo fato de serem negros. Isso tem um efeito negativo nas chances de obter recursos financeiros para custear as campanhas.
Havia poucos empresários negros que poderiam investir em candidatos negros, e aqueles que ajudavam o faziam porque acreditavam na necessidade de ter representantes negros. Outros hesitavam, pois acreditavam que só esforço individual possibilitaria que os negros ascendessem socialmente. As alternativas para angariar apoio financeiro eram reduzidas.
Mesmo hoje as regras, formais e informais, do sistema político-eleitoral brasileiro fomentam a manutenção no poder dos grupos hegemônicos. A distribuição de recursos acaba por perpetuar as desigualdades de raça e gênero.
Apesar de um gigantesco esforço em arregimentar pessoas, a consecução de uma legenda nos partidos políticos e a busca de votos em uma campanha com recursos escassos têm trazido resultados pouco animadores. O racismo estrutural ajudaria explicar esse fato social e político?
Vejamos o que vem a ser racismo estrutural, na definição encontrada nos relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU).
Segundo os estudos da cientista Isis Aparecida Conceição (2020), os esforços de definição da categoria e ferramenta racismo estrutural, que estão identificados e utilizados em relatórios da ONU, têm sido no sentido de apresentá-lo como:
“Sistema no qual políticas públicas, práticas institucionais, representações culturais e outras normas funcionam de várias formas, frequentemente reforçando maneiras de perpetuação de desigualdade de um grupo. Identifica dimensões de nossa história e cultura que permitiram a formação de privilégios associados com “branquidade” e as desvantagens associadas com “cor” permanecerem e adaptarem-se com o decorrer do tempo. O racismo estrutural não é algo que algumas poucas pessoas ou instituições decidem praticar. Diversamente, tem sido uma característica dos sistemas sociais, econômicos e políticos em que todos nós existimos.
Racismo estrutural é a normalizada e legitimada ampla gama de políticas, práticas e atitudes que rotineiramente produzem cumulativos e crônicos resultados adversos para as pessoas não brancas, especialmente pessoas negras – é o principal fator propulsor das desigualdades raciais nos Estados Unidos contemporaneamente. Racismo estrutural é a prática coletiva que existe em ambientes de trabalho e na sociedade de forma mais ampla manifestando-se na forma de atitudes, comportamentos, ações e processos”. (Conceição, Isis: 2020)
• Garantir às candidaturas negras o percentual dos recursos financeiros e do tempo em rádio e TV destinados às candidaturas femininas no montante de 50%, dada a distribuição demográfica brasileira;
• O estabelecimento de reserva de candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos termos da cota de gênero prevista na Lei nº 9.504/1997;
• Determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando-se a estes no mínimo 30% do total do FEFC e;
• Assegurar tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão proporcional às candidaturas de pessoas negras, respeitando se o mínimo de 30%.
Em 2020, em importante decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre os obstáculos à presença negra no parlamento, motivada pela consulta nº. 0600306-47.2019.6.00.00006 ao TSE, formulada pela entidade negra Educafro e a deputada federal, negra e ativista dos direitos humanos Benedita da Silva. A consulta questionou a possibilidade de:
O TSE analisou os quesitos formulados pela Educafro e decidiu, em 25 de agosto de 2020, que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (conhecido como Fundo Eleitoral) e a alocação do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deviam ser proporcionais ao total de candidaturas negras que o partido apresentar para a disputa eleitoral. Essa decisão passou a valer nas eleições municipais do mesmo ano, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). Um reconhecimento da existência do racismo estrutural no sistema eleitoral brasileiro.
Ao encerrar a análise da consulta, o relator e então presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, ressaltou que foi um momento muito importante na história do Tribunal e do país. “Há momentos na vida em que cada um precisa escolher em que lado da história deseja estar. Hoje, afirmamos que estamos do lado dos que combatem o racismo e que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores”, afirmou.
Segundo o presidente, ao endossar esse tipo de ação afirmativa, a Justiça Eleitoral está reparando injustiças históricas trazidas pela escravidão, assegurando a igualdade de oportunidade aos que começam a corrida para a vida em grande desvantagem, possibilitando que tenhamos negros em posições públicas de destaque e servindo de inspiração e de motivação para os jovens que com eles se identificam.
“O racismo no Brasil não é fruto apenas de comportamentos individuais pervertidos; é um fenômeno estrutural, institucional e sistêmico. E há toda uma geração, hoje, disposta a enfrentá-lo”, destacou Luís Roberto Barroso.
Num encontro entre o então presidente do TSE e dirigentes partidários ocorrido em 22 de setembro de 2020, alguns dirigentes partidários foram críticos à decisão do TSE. Os mais incisivos contra a adoção imediata da cota, para as eleições municipais de 2020, e contra decisões das cortes superiores que legislam no lugar do Congresso, foram os presidentes do PSB, Carlos Siqueira, do Cidadania, Roberto Freire, e o senador Marcelo Alencar (PI), que representava o MDB, além de Ciro Nogueira, presidente do PP no encontro.
Além de dizer ser inexequível a adoção das cotas eleitorais raciais já em 2020, Castro criticou ainda as decisões do Tribunal de determinaram, em anos anteriores, a cota de 30% para as mulheres, afirmando que, com isso, dirigentes partidários vêm sendo acusados de lançar candidaturas laranjas porque não conseguem achar mulheres que queiram se candidatar e que obtenham votos.
"Se formos aplicar agora essa cota para os negros, vai ser um transtorno muito grande. Isso é absolutamente inexequível, vai ser uma dor de cabeça monstruosa para os dirigentes partidários", disse Castro, lembrando que os critérios de divisão das verbas eleitorais públicas já foram definidos pelos partidos.
Siqueira e Freire criticaram o que classificaram como "tutela" do TSE sobre os partidos. "A maioria dos países sequer tem Tribunal [eleitoral], que dirá tutela sobre os partidos", disse Siqueira, acrescentando que "essa fúria legiferante dos tribunais precisa ser contida".
O presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), por sua vez, disse que há uma angústia muito grande dos partidos sobre a aplicação da cota financeira de negros e citou brechas na decisão que levam dirigentes partidários à indecisão. “Isso tem nos trazido preocupação muito grande de como colocar em prática”. argumentou.
Em resposta direta a Siqueira, o ministro Barroso defendeu as decisões dos tribunais superiores em defesa de minorias. "Esse é um debate mundial, que é essa fronteira que separa a interpretação constitucional das decisões políticas", disse Barroso.
E prosseguiu com a resposta: "A posição que o senhor defende, talvez o senhor se sinta um pouco constrangido de saber, é a posição do partido Republicano nos Estados Unidos, a de que por interpretação constitucional você não possa proteger as minorias".
O ministro Luís Roberto Barroso lembrou ainda que “quando se trata de defender negros, mulheres, transgêneros, não podemos depender do processo político majoritário”. “Se dependermos da maioria para defender a minoria, teremos a manutenção do status quo. É preciso empurrar a história, avançar”,
E finalizou: "A escravidão foi abolida em 1888 e até hoje nós temos uma sub-representação das pessoas negras em todos os segmentos da vida pública e privada. Então, eu perguntaria ao senhor quanto tempo mais nós temos que esperar que as maiores tenham a deferência de incluir os negros?”, indagou Barroso.
A decisão do TSE foi uma grande vitória do movimento negro, mas as manifestações dos representantes partidários, naquele momento já indicava que seria muito difícil conseguir a adesão dos partidos.
Povos quilombolas: invisibilidade, resistência e luta por direitos
O debate de cotas no país tem no mínimo 40 anos, mas os partidos só se deram contas quando foram cobradas. A desculpa recorrente é a dificuldade de implementação. O desfecho desse processo nas eleições municipais de 2020: os partidos não cumpriram a decisão do TSE, que não previa punição.
A maioria dos partidos descumpriu até as regras eleitorais sobre o repasse de recursos destinados ao financiamento das campanhas de candidatos negros e mulheres.
Em 30 de março de 2022, a Câmara aprovou uma medida que anistiava os partidos políticos que não cumpriram as determinações do TSE. Pelo texto, não seriam aplicadas sanções “de qualquer natureza”, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do Fundo Partidário, aos partidos que não cumpriram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos de sexo e raça nas eleições passadas”.
A anistia para o descumprimento de regras no passado representou um grave desrespeito aos direitos conquistados pelos negros e mulheres. O racismo estrutural se manifesta nessa medida, que visava somente resguardar os interesses das direções partidárias, majoritariamente masculinas e brancas, que desrespeitaram as regras de financiamento partidário e de campanha para a promoção de negros e mulheres na política institucional brasileira.
A baixa representatividade de pessoas negras eleitas nas casas legislativas do país dificulta a representação dos interesses, das lutas, das demandas e das vivências da população negra. O sistema interno e externo caminha para manutenção da hegemonia branca nos partidos políticos.
O episódio da deliberação do TSE e como reagiram os deputados mostra a força da branquitude e de como o racismo estrutural faz parte das instituições políticas para manter os negros afastados do poder. Ao lado, precisamos destacar que as entidades do movimento negro, como a Educafro, têm ampliado o e diversificado as estratégias de luta, acionando as mais altas instâncias do poder Judiciário na defesa dos direitos da população negra.
A luta por direitos tem sido intensificada pelo movimento negro, nos últimos anos, com conquistas no campo das ações afirmativas, fazendo avançar a participação democrática da população negra.
O que indica a necessidade de discutir, aprofundar e articular alianças com partidos políticos com objetivo da promoção das ações afirmativas no sistema político brasileiro para construirmos um país democrático e antirracista.
Referências bibliográficas
BRAGON, Ranier & Teixeira, Matheus. Em reunião do TSE, presidentes de partidos criticam cota para negros já em 2020. São Paulo – Folha de São Paulo, 23 de setembro de 2020. Acesso disponível : https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/em-reuniao-do-tse-presidentes-de-partidos-criticam-cota-para-negros-ja-em-2020.shtml
CONCEIÇÃO, Isis Aparecida- Pandemia de COVID19 e o Racismo Estrutural: uma análise em direitos humanos. In: Gênero, Etnia Sexualidade Mecanismo de prevenção a violência- Prudente, Eunice; Mortorelli, Adriana e Torres, Vivian (org.)-São Paulo, Sp: LiberArs , 2020 pp. 497-506
MACHADO, Carlos & Campos, Luiz Augusto. Raça e eleições no Brasil- Porto Alegre,Rs: Zouk, 2020
THEODORO, Mário – A sociedade desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil- 1ª edição- Rio de Janeiro Zahar, 2022
Portal do TSE. -TSE promove encontro com representantes de partidos sobre cuidados sanitários nas Eleições 2020. Publicado no site do TSE : https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2020/Setembro/tse-promove-encontro-com-representantes-de-partidos-sobre-cuidados-sanitarios-nas-eleicoes-2020?SearchableText=cotas%20para%20negros
Porta do TSE - Divisão do Fundo Eleitoral e do tempo de TV deve ser proporcional ao total de candidatos negros, decide TSE Publicado no site do TSE. Acesso disponível: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2020/Agosto/tse-distribuicao-fefc-candidatos-negros
Sobre o autor
** Ivair Augusto Alves dos Santos é professor e cientista político.
* Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de julho/2022 (45ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Paulo Fábio Dantas Neto: Hora de colocar o guizo no bozo
Desmoralização de Bolsonaro é muito funda e cada palavra sua vale hoje ainda menos do que o pouco que já valia
Quem torcer para Bolsonaro desdizer o que assinou não vai ter muita emoção. Esse é o tipo de torcida desnecessária, porque é certo que o fará. Ele fará qualquer coisa para reduzir os danos na sua base, que esse recuo causará. Mas podemos pedir a estraga-prazeres de plantão que nos deixem celebrar esse momento de alívio, depois de tanta tensão.
E há motivos para celebrar, não importa o que Bolsonaro diga. A desmoralização é muito funda e cada palavra sua vale hoje ainda menos do que o pouco que já valia. A diferença agora é que não mais somente os seus recuos serão fake - como já eram, aos olhos céticos de todos nós, que lhe somos avessos. Seus ímpetos de avanço tenderão, doravante, a também ser considerados assim, pelo quarto do eleitorado que até agora o vem apoiando. O ex-presidente da República Michel Temer viajou a Brasília, reencarnou no papel e amarrou no pescoço da fera esse guizo, que deve fazer barulho nas próximas rodadas de pesquisas.
Em 2015, um ano antes do impeachment de Dilma, escrevi um artigo cujo título foi "O fator Temer". O destino infausto que evasivas e malabarismos demagógicos de políticos pequenos deram à pinguela que ele tentou levantar não me deixava a expectativa, que tenho hoje, de daqui a pouco poder escrever outro artigo com o mesmo título, remetido ao contexto atual.
Sim, dizem que vingança é prato que se come frio. Acrescento que se come sem dizer que está gostoso, não apenas para não tripudiar de quem chacoalha. Não precisa fazer isso para que outros políticos bem centrados possam cooperar entre si para concluírem a missão. Também não se deve ostentar o sabor para não atiçar demais a inveja de pigmeus políticos que também estão no palco, ou na plateia. Esses seguirão xingando Bolsonaro em lives, entrevistas, tribunas, ou bastidores. Mas, em vez de pautá-lo, como ocorreu quando ele foi levado a se retratar no dia 9/09 do que havia dito no dia 7, continuarão a ser pautados por ele.
Política é como unha. Ainda bem.*Cientista Político e professor da UFBa.
Alon Feuerwerker: O encapsulamento, o armistício e o cessar-fogo
As melhores pesquisas, as que costumam errar menos, mostram o mesmo fenômeno
lon Feuerwerker / Blog do Noblat / Metrópoles
Um certo encapsulamento de Jair Bolsonaro, uma convergência de seu piso e teto eleitorais, girando em torno de 25% a 30%. O presidente mantém a fatia de mercado que o alavancou ao segundo turno em 2018, mas mostra dificuldade de fechar a fatura, se a eleição fosse hoje.
Outro dado relevante é que cerca de 20% do eleitorado, nos cruzamentos, dizem preferir um candidato que não seja nem Bolsonaro e nem Luiz Inácio Lula da Silva. Quando são apresentadas as alternativas, naturalmente esse número cai, pois todo nome carrega com ele alguma rejeição. E nenhum da “terceira via” passa muito dos 10%.
Mas é razoável supor que se houvesse um único nome relevante “terceirista” (como em 2010 e 2014) ele teria boa probabilidade de abrir a corrida, daqui a pouco menos de um ano, com uns 15%. O que o colocaria, mantidos grosso modo os números de hoje, no espelho retrovisor do capitão.
E aí criar-se-ia uma condição já vista em eleições. Se Bolsonaro se mostrasse consistentemente debilitado no mano a mano com Lula, um pedaço do mercado eleitoral do presidente poderia achar mais importante derrotar o petista do que reeleger o capitão.
E Bolsonaro poderia ser objeto de um ataque especulativo que transferisse alguns pontinhos vitais dele para o nome “de centro”, que seria alavancado ao segundo turno com a missão de derrotar o PT.
Há alguma especulação, claro, nisso tudo, mas o cenário e as possibilidades numéricas explicam em boa medida os movimentos dos protagonistas. Especialmente no embate mais selvagem do momento: para definir quem carregará a espada do antilulismo em 2022.
Nada disso chega a ser novidade, mas é nesse contexto que precisam ser olhados os movimentos da agitada semana que fecha.
A muito expressiva, mas não decisiva, mobilização do Sete de Setembro não deu a Bolsonaro o impulso para o xeque. Mas criou um equilíbrio de forças propício ao que se seguiu: um cessar-fogo, um armistício.
Para projetar a duração do armistício, a correlação de forças tem mais importância do que as convicções. Sobre estas, aliás, é saudável partir da premissa de que cada jogador, se puder, prefere ganhar o jogo por W.O. Expurgar os adversários da disputa.
A estabilidade do atual cessar-fogo depende, em última instância, da confiança que dois dos três jogadores principais, o bolsonarismo e o centrismo, depositam na própria força eleitoral. O primeiro tem a liderança, ainda que baqueada, da máquina estatal. O segundo tem a hegemonia absoluta nos mecanismos de formação e controle da opinião pública (que não se confunde com a opinião popular).
Sobre Jair Bolsonaro, ele estará mais aderente ao armistício quanto mais estiver confiante de que tem boas chances de virar o jogo e buscar a reeleição. E isso nunca deve ser subestimado, pois desde que a reeleição foi permitida todos os presidentes se reelegeram.
P.S: A respeito das frentes, e o tema vale um texto à parte, é sempre prudente buscar fortalecer-se no processo frentista, porque pode acontecer mais cedo ou mais tarde que o amigo de hoje vire o inimigo de amanhã. E é bom estar preparado.
Alon Feuerwerker – jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/o-encapsulamento-o-armisticio-e-o-cessar-fogo-por-alon-feuerwerker
Baixa adesão e pluralidade política marcam protestos contra Bolsonaro
Manifestantes foram às ruas em diversas capitais neste domingo (12/09), em defesa da democracia e pelo impeachment do presidente da República
Fernanda Fernandes / Correio Braziliense
As manifestações contra o governo e pelo impeachment do presidente da República, Jair Bolsonaro, marcaram o dia de hoje (12/09) em pelo menos 15 capitais do país. Os atos convocados pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e pelo Vem Pra Rua (VPR), contaram com apoio de partidos de diferentes espectros políticos. O protesto que a princípio pedia “Nem Bolsonaro, nem Lula”, foi modificado para “Fora, Bolsonaro”, após os discursos antidemocráticos do presidente no último 7 de setembro.
No Rio de Janeiro e em Belo Horizonte os protestos começaram pela manhã e se estenderam até as 13h. Paralelamente, em Brasília, ainda ocorriam manifestações pró-Bolsonaro, com baixa adesão. À tarde, manifestantes da oposição se reuniram na Esplanada dos Ministérios, na capital federal, e na Avenida Paulista, em São Paulo. Com número de participantes bastante inferior ao visto em 7 de setembro, a diversidade ideológica entre os participantes, que protestaram pacificamente, chamou a atenção.
Mauro Vinícius da Silva, membro do Comitê Regional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e secretário geral da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), afirmou ao Correio que a unificação das bandeiras contra o atual governo é uma pauta antiga do PCdoB. “Há bastante tempo a gente defende que apenas uma frente ampla, que una não só a esquerda mas todos os democratas e patriotas, é capaz de derrotar o Bolsonaro e o fascismo”, afirmou o bancário e sociólogo, durante o ato em Brasília.
A unificação pode ser confirmada nos atos deste domingo (12/09), onde a pluralidade política foi constatada nas bandeiras e faixas de protestos. As cores do Brasil e o vermelho se misturaram entre os cartazes e camisetas com frases em defesa da democracia e contra Bolsonaro. Muitos optaram pelas vestimentas brancas, como forma de mostrar imparcialidade.
Uma dessas pessoas foi Rodrigo Galletti, servidor público, de 45 anos, que participou dos protestos de forma apartidária. “Estou focado no Fora, Bolsonaro”, disse. “O país de Bolsonaro é um país armado, misógino e preconceituoso, baseado em um cristianismo distorcido. Não é o país que quero para mim, nem no presente, nem no futuro”. Sobre a escolha da cor branca, completou: “Tomaram posse da nossa bandeira e das nossas cores”.
Segundo Silva, o partido tem esperanças de ver um movimento muito maior no dia 2 de outubro. “Não houve da parte do PT, Psol ou do Fora Bolsonaro nenhum ataque. A gente quer que todos estejam juntos no dia 2 de outubro, não para fazer campanha eleitoral, mas para garantir que as eleições de 2022 aconteçam e sejam válidas”, disse o militante do PCdoB.
O protesto de outubro citado por ele foi convocado pelo PT que, ao contrário do PDT, o PCdoB e PSB, se recusou a participar das mobilizações deste domingo, atitude também tomada pelo PsoL. Vale destacar que os dois grupos organizadores dos eventos de hoje, encabeçaram os protestos que levaram à derrubada da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) do poder, em 2016.
Para o presidente regional do Cidadania/DF, Chico Andrade, o movimento unificado contra o presidente Bolsonaro ainda ganhará força nas ruas e no Congresso. Andrade lamentou a ausência dos dois grandes partidos de esquerda. “Foi uma pena terem se negado, a gente teria botado muito mais gente na rua. (...) (A manifestação) representa o sentimento de 70% da população. Ou todo mundo se une ou briga por mais dois anos, e ele vai tentar golpe mais uma vez”, alerta o representante do Cidadania.
São Paulo
Na avenida paulista, segundo informações do jornal Valor Econômico, os manifestantes não chegaram a ocupar metade de um quarteirão. O governador de São Paulo, João Doria, esteve presente. Ao relembrar o movimento “Diretas Já”, Dória inflamou os participantes afirmando que, hoje, existem muito mais recursos para uma mobilização nesta esfera. “Não tínhamos em 1984 as redes sociais, não tínhamos a internet, mas tínhamos coração. É isso que vai nos mover”, disse.
Rio de Janeiro
Terra Natal de Bolsonaro, a diversidade também tomou conta das ruas do Rio de Janeiro, na Orla de Copacabana. O ato foi puxado por grupos que fizeram campanha para o presidente em 2018 e, decepcionados com sua gestão, hoje buscam pelo impeachment. Também no Rio, as bandeiras do MBL e do VPR se misturaram às das centrais sindicais, partidos e grupos de esquerda como o PDT, UNE (União Nacional dos Estudantes) e a CTB.
Até o momento, nenhuma Polícia Militar dos estados ou organizadores divulgaram a estimativa de público.
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/09/4949096-baixa-adesao-e-pluralidade-politica-marcam-protestos-contra-bolsonaro.html
Pedro Dória: Lições para aprender após a tentativa de golpe de Estado
Nada do que estamos vivendo ocorreria se aprendêssemos algo com o passado
Pedro Dória / O Estado de S. Paulo
Esta coluna tem tema — o impacto das transformações digitais no mundo. Mas esta não é uma semana qualquer. Na terça-feira, logo um 7 de Setembro, o presidente Jair Bolsonaro juntou uma pequena multidão na avenida Paulista e ameaçou violar o artigo 85 da Constituição. É aquele que obriga alguém em seu cargo a cumprir decisões judiciais sob a pena de impeachment. Durante aquele dia, a PM do Distrito Federal resistiu a sete ofensivas contra o Palácio do Supremo. Foi uma tentativa de golpe de Estado, que se frustraria, o que não faz disso menos grave. Dois dias depois, na quinta, perante um impeachment posto no radar, Bolsonaro se acovardou. Tenta recuar do desastre com uma carta escrita pelo ex-presidente Michel Temer. Peço licença, pois, aos leitores habituais da coluna para vestir só nesta semana meu outro chapéu profissional — o do jornalista que escreve sobre história. Porque nada do que estamos vivendo ocorreria se aprendêssemos algo com o passado.
A primeira lição: existe um germe militar autoritário na cultura política brasileira. Sempre que o País se desorganiza, um grupo grande o suficiente de brasileiros bate à porta dos quartéis. Por algum motivo, acreditamos que os militares representam ordem, disciplina e competência. Foi assim em 1889, quando Deodoro pôs abaixo o Império. Também foi assim em 1937, quando Getúlio se apoiou em dois marechais para cercar o Congresso e encerrar o período da melhor Constituição que tivemos até 1988. A eleição de Eurico Gaspar Dutra foi isso. Ia sendo assim em 1954, quando o mesmo Getúlio — agora na outra ponta — meteu um tiro no peito evitando um golpe. Em 1964. E, em 2018, perante o caos deixado pela instabilidade da década de 10, com a eleição de Bolsonaro.
Nunca dá certo. Os governos militares foram uniformemente incompetentes, ineptos, desordeiros, corruptos e desorganizados. A única promessa que militares cumprem no poder é que, ora, autoritários eles são mesmo. Por que não aprendemos que é um desastre? É um mistério. Mas o resultado é sempre o mesmo.
A segunda lição é uma que a centro-esquerda não consegue aprender. É incapaz de pactuar com o Centro democrático. Para a Esquerda brasileira, é como se o Centro não existisse. Tudo para além é a ‘Direita’. Com a Direita fisiológica tem conversa — Getúlio fez muito disso. A Centro-Esquerda então transforma sua vertente radical em massa de manobra. Jango fez muito disso. Pactuar com o Centro? Nunca. Sequer reconhecer a existência de tal coisa. É assim que Fernando Henrique Cardoso passou sua presidência sendo chamado de fascista.
Se tivesse havido um diálogo cordial e democrático em cima da extensa interseção de objetivos de Centro-Esquerda e Centro, a história da Nova República teria sido outra.
Mas este Centro, do qual fazem parte os Liberais, também tem culpa no cartório. Mesmo alguns de nossos melhores Liberais, dentro os mais convictos democratas como Ruy Barbosa e Afonso Arinos, sempre existe esta ilusão do atalho autoritário. Uma ditadura curta vai promover reformas tão difíceis de realizar na Democracia. Um autoritário de pulso firme fará o que é preciso para o Brasil entrar nos trilhos.
Como pode um Liberal apoiar um autoritário? Está entre nossas jabuticabas brasileiras. Sempre dá errado.
A mais cruel das lições é outra. Assim como a Frente Ampla que juntou Carlos Lacerda, João Goulart e Juscelino Kubitschek demorou três anos de ditadura para enfim sair, os democratas são incapazes de caminhar juntos perante uma ameaça à democracia. A gente não aprende.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://link.estadao.com.br/noticias/geral,licoes-para-aprender-apos-a-tentativa-de-golpe-de-estado,70003835960
Vera Magalhães: Nota de recuo vale por uma de R$ 3
A pretexto de fazer um favor ao país, Temer presta um desserviço histórico
Vera Magalhães / O Globo
Vale tanto quanto uma cédula de R$ 3 a nota em que Jair Bolsonaro usa o marqueteiro de Michel Temer como ghost-writer para ajoelhar no milho diante do Supremo Tribunal Federal e fingir um arrependimento que não tem das ameaças de golpe que sinceramente proferiu no 7 de Setembro.
Quem fingir que acredita no propósito de se moderar, de obedecer aos desígnios do Judiciário e de zelar pela independência e harmonia dos Poderes feito por Temer é cínico, burro ou ingênuo. Ou um mix dos três.
Cínico será o alívio do mercado, dos ministros e dos deputados da base aliada.
O primeiro grupo tratará de tentar recuperar os prejuízos dos últimos dias.
Os integrantes do primeiro escalão buscarão para o espelho, para o travesseiro e para os filhos uma justificativa plausível para continuar servindo a um governo que busca uma ruptura institucional.
E os nobres parlamentares da base aliada encontrarão a desculpa necessária para continuar mamando nas tetas do Orçamento até exauri-las, sem precisar fingir que estão pensando a sério em abrir um processo de impeachment.
Ingênuo será o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), se, com base nessa encenação tosca, deixar de devolver a Medida Provisória que susta parte do Marco Civil da Internet ou se receber os caminhoneiros que fazem chantagem com o país com uma paralisação que foi convocada e insuflada por Bolsonaro em pessoa.
Também figura no rol dos ingênuos, desta vez com uma dose de vaidade por ser lembrado e chamado em casa, Michel Temer, ao associar sua já questionada passagem pela Presidência (que deixou com recordes de rejeição) à indefensável e incorrigível gestão de seu sucessor.
Ademais, a pretexto de fazer um favor ao país, Temer presta um desserviço histórico. Porque ajuda a escamotear o real propósito de Bolsonaro de solapar a democracia e dinamitar as instituições aos poucos todos os dias.
Hoje, o presidente se finge de cordeiro, pede desculpas e faz um ato de contrição. E o faz porque é, além de golpista e inepto para o cargo, atavicamente covarde e se pela de medo da deposição e da prisão — dele e dos filhos. Só por isso. O país que se exploda. É nesse avião que Temer aceitou embarcar.
O último grupo a acreditar na nota de R$ 3 de Bolsotemer é o dos burros, integrado pela ala mais bovina dos bolsominions. Os comentaristas a soldo, pseudojornalistas, blogueiros golpistas arrancaram os poucos cabelos que têm e arreganharam as gengivas inflamadas para xingar o mito de todos os nomes feios que conhecem.
Já lançam Tarcísio Gomes de Freitas, o ex-técnico transformado em minion pelo chefe, para lhe suceder na eleição de 2022!
De tão desarvorados, se esquecem de relaxar e lembrar que amanhã mesmo Bolsonaro já estará de volta ao script de protoditador de anteontem, mandando às favas a máxima temerista de que verba volant, scripta manent (calma, Centrão, a verba que voa é a palavra, a do orçamento secreto fica).
Que os que estavam vigilantes e preocupados no dia 8 sigam assim e não desviem de seu papel constitucional de conter um presidente disposto a lhes sentar o relho e empastelar as eleições.
Os inquéritos de Alexandre de Moraes têm de seguir, a MP do Marco Civil tem de voltar para o Planalto com selo de endereço não encontrado, as investigações do TSE sobre as mentiras de Bolsonaro quanto ao pleito não podem parar, a CPI tem de concluir seu relatório com imputação dos inúmeros e hediondos crimes cometidos pelo presidente e pelo sumido general Pazuello, e a indicação de André Mendonça ao STF tem de ser rejeitada, porque quem o indicou quer fechar o Supremo.
Essa é a pauta de resistência possível e viável, uma vez que o impeachment, conforme escrevi aqui, não sairá.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/nota-de-recuo-de-bolsonaro-vale-tanto-quanto-uma-de-r-3.html
Luiz Carlos Azedo: As nuvens do Planalto
O que Bolsonaro fala não se escreve. Agora, com a sua Mensagem à Nação, na qual se compromete a respeitar a Constituição de 1988, veremos se cumpre o que escreve
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Ex-banqueiro, ex-deputado, ex-governador de Minas Gerais e então ministro das Relações Exteriores na época da publicação do Ato Institucional no 5, em 13 de dezembro de 1968, Magalhães Pinto eram um político conservador, que apoiou o golpe de 1964, como a maioria dos caciques da antiga União Democrática Nacional (UDN). Para ele, a política era como uma nuvem: “Você olha e ela está de um jeito; olha de novo e ela já mudou”.
Signatário do histórico Manifesto dos Mineiros, lançado por setores liberais contra o Estado Novo (1937-1945), em outubro de 1943, mesmo assim Magalhães Pinto subscreveu o AI-5 na “esperança” de que o decreto tivesse vigência de seis ou oito meses, diria em entrevista, 16 anos depois. O regime militar só acabou em 1985, com a eleição de Tancredo Neves, seu adversário histórico do antigo PSD. O tempo fora suficiente para volatilizar seu projeto de chegar à Presidência da República, frustração que também ocorreu com outros políticos golpistas, como o ex-governador carioca Carlos Lacerda, que teve o mandato cassado pelos militares.
As nuvens da política no Planalto são caprichosas e traiçoeiras. Nessa época do ano, em que a seca castiga o Distrito Federal, elas aparecem e desaparecem ao sabor do vento. As chuvas, com raios e trovões, são uma raridade, mas eventualmente ocorrem. Na terça-feira, Dia da Independência, Brasília amanheceu sob um ameaçador cumulonimbus, uma formação semelhante àquelas “Nuvens Negras” que intitularam o editorial do antigo Correio da Manhã, a senha para a marcha das tropas do general Mourão Filho, de Juiz de Fora para o Rio de janeiro, em 31 de março de 1964, o estopim da destituição do presidente João Goulart.
Existem nuvens em camadas e nuvens convectivas. Nuvens em camadas aparecem altas no céu, são as mais comuns nessa época do ano em Brasília. As nuvens convectivas estão mais próximas da superfície da Terra. Em 1802, o inglês Luke Howard criou quatro categorias de nuvens usadas até hoje: cumulus, stratus, nimbus e cirrus. O nome cumulus vem do latim e significa “pilha” ou “montão. Nimbus é a palavra para “nuvem” em latim. Nuvens nimbus são produtoras de precipitação. A categoria nimbus é frequentemente combinada com outras categorias para indicar condições de tempestade.
Na gíria dos morros e subúrbios cariocas, “CB” significa “sangue bom”. Na meteorologia, porém, a sigla significa cumuloninbus, um terror para pilotos e navegantes. São nuvens que podem ocorrer a qualquer momento, durante todo o ano. Na aviação, limitam o espaço aéreo, pois o voo dentro delas é de extremo risco — também afetam pousos e decolagem. No mar, nos rios e nos lagos, podem causar naufrágios. Provocam turbulência, granizo, formação de gelo, saraiva (granizos lançados para fora da nuvem, em ar claro), relâmpagos e, por vezes, tornados. Há registros de ventos de 100 milhas/hora e tempestades de 8 mil toneladas de água por minuto, que duram não muito mais do que meia-hora. Seus raios podem chegar a 100 milhões de volts.
Dissipação
Terça e quarta-feira, parecia que um CB levaria a Constituição de 1988 ao naufrágio e calcinaria os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas era uma daquelas nuvens da nossa política. No auge da tensão entre os manifestantes que ocupam a Esplanada e os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), as tropas do Comando Militar do Planalto, chefiadas pelo general de divisão Rui Yutaka Matsuda, estavam de prontidão, para garantia da lei e da ordem, se assim fosse necessário. Não estavam aquarteladas para dar um golpe de Estado, mas, sim, proteger o STF, se fossem requisitadas pelo presidente da Corte, Luiz Fux. Por muito pouco, o presidente Jair Bolsonaro não cometeu um grave crime de sedição ao incitar os caminhoneiros contra o Supremo, o contrário do que deveria fazer como. “comandante supremo” das Forças Armadas.
Enquanto as multidões que mobilizara urravam, Bolsonaro se isolava politicamente. Na quar- ta-feira, as reações do presidente do STF, Luiz Fux, e dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), refletiram essa situação. Ontem, os bloqueios de rodovias pelos caminhoneiros que apoiam Bolsonaro e querem fechar o Supremo, e as reações do mercado financeiro, com ações em queda e dólar em alta, reve- lavam que o presidente ainda estava dentro cumulonimbus, enquanto os políticos e a magistratura o contornavam.
O antológico e duro discurso do ministro do STF Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), durante a sessão da Corte, deixou muito claro que os ministros do Supremo não se acovardariam. Coube ao ex-presidente Michel Temer, como se fosse um velho controlador de voo, convencer o presidente a mudar de rota, enquanto as nuvens se dissipavam. O que Bolsonaro fala não se escreve. Agora, com a sua Mensagem à Nação, na qual se compromete a respeitar os demais Poderes e a Constituição de 1988, veremos se cumpre o que escreve.
Jurista vê crime de responsabilidade em ameaças de Bolsonaro no 7/9
As ameaças, ainda que não efetivas, podem ser enquadradas pela lei, conforme especialista
O jurista Marco Marrafon, ouvido pelo Olhar Direto ontem (8), afirmou que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) cometeu crime de responsabilidade ao afrontar princípios constitucionais como ao dizer que não vai cumprir decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Em sua fala, Bolsonaro também atacou o sistema eleitoral brasileiro, outros integrantes do STF e governadores e prefeitos que tomaram medidas de combate ao coronavírus.
“O discurso em si já foi muito grave. Ela aponta para um caminho que atenta contra a democracia e contra as instituições, em especial o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal federal (STF)”, salientou Marrafon.
Alexandre de Moraes é responsável pelo inquérito que investiga o financiamento e organização de atos contra as instituições e a democracia e pelo qual já determinou prisões de aliados do presidente e de militantes. Bolsonaro é alvo de cinco inquéritos no Supremo e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Moraes vai ser presidente do TSE no próximo ano.
As ameaças, ainda que não efetivas, podem ser enquadradas pela lei, conforme especialista. “Isso em si já configura crime de responsabilidade previsto no artigo sexto, número seis, da lei de crime de responsabilidade, que diz o seguinte. ‘São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário e dos Poderes Constitucionais dos Estados: usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício’”, salientou Marrafon.
Conforme o jurista, se Bolsonaro deixar o campo das ameaças e cumprir sua promessa de não acatar decisões, o crime de responsabilidade será ainda mais evidente. “Se houver ainda mais o efetivo descumprimento de qualquer decisão judicial, aí a situação se torna mais grave, se torna então bastante caracterizado o crime de responsabilidade. Também está previsto na lei que não cumprir decisões judiciais é crime de responsabilidade do presidente da República”, finalizou.
*Marco Marrafon é advogado constitucionalista, doutor em Direito do Estado e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Fonte: Olhar Jurídico
https://olharjuridico.com.br/noticias/exibir.asp?id=47164¬icia=jurista-ve-crime-de-responsabilidade-em-ameacas-feitas-por-bolsonaro-no-7-de-setembro
Luiz Carlos Azedo: A crise não viaja
Bolsonaro está em guerra com o Judiciário, que pretende subjugar. Primeiro, nomeando aliados; segundo, pelo confronto com o Supremo, que pretende intimidar
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Toda vez que o presidente José Sarney viajava para o exterior, o então senador Fernando Henrique Cardoso dizia, maledicente: “A crise viajou”. Mais tarde, viria a exercer dois mandatos na Presidência, passando também por seus dissabores. Hoje, os ex-presidentes têm bom relacionamento, mas jamais se tornaram amigos. O presidente Jair Bolsonaro, porém, viaja muito pouco para o exterior. Ninguém o convida para compromissos bilaterais, e sua ida aos foros internacionais são puro desgaste, pela péssima imagem que tem no exterior. Com ele, a crise não viaja.
Políticas interna e externa não são assimétricas; quando isso ocorre, pode terminar muito mal, como no caso do governo de Jânio Quadros, cujo cavalo de pau no Itamaraty, ao condecorar Che Guevara em plena Guerra Fria, deixou-o em rota de colisão com os aliados, principalmente Carlos Lacerda, então governador da antiga Guanabara. Essa crise resultou na sua inopinada renúncia. A longo prazo, os eixos duradouros da política externa são as relações comerciais e a identidade nacional, muito mais do que a momentânea orientação política de governo. Hoje, a divisão internacional do trabalho nos reserva papel estratégico como produtor agrícola e de minérios e faz da China nosso principal parceiro comercial; em contrapartida, do ponto de vista identitário, o americanismo se amalgama à herança cultura ibérica, o que nos afasta do velho nacionalismo latino-americano.
Entretanto, politicamente, vivemos um ponto fora da curva no governo Bolsonaro. O presidente da República atua para nos colocar no eixo de países cujos governantes foram eleitos em pleitos manipulados, seja pelas regras do jogo, seja pelo controle dos meios de comunicação e/ou pela intimidação da oposição. Como o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, que ao assumir não tinha uma estratégia, Bolsonaro se movimenta exclusivamente para continuar no poder, com a diferença de que o líder russo sempre manteve alta popularidade, enquanto a sua derrete. Controle das Forças Armadas, dos serviços de segurança, do Ministério Público, do Judiciário; aliança com oligarcas amigos e
com a Igreja Ortodoxa Russa garantem a longa permanência de Putin no poder.
Controlar o Judiciário é uma via de passagem para o autoritarismo. Na Hungria de János Áder, no poder desde 2012, juízes foram forçados a renunciar, e o regime fez 1.284 nomeações políticas. Os que sobraram perderam autonomia. Aqueles que permaneceram em suas funções tiveram sua autonomia confrontada. Na Turquia, 4,5 mil juízes foram presos e espoliados, nos últimos cinco anos, pelo governo de Tayyip Erdogan. Centenas continuam presos.
O atual presidente da Polônia, Andrzej Duda, do Partido Lei e Justiça, para se reeleger, gastou 40 milhões de euros com uma rede de fake news contra o Judiciário, com apoio do Ministério da Justiça e do Ministério Público. Essas denúncias são do presidente da Associação Europeia de Juízes, José Igreja Matos, desembargador na cidade do Porto, em palestra virtual para magistrados brasileiros, segundo nos relata a jornalista Maria Cristina Fernandes, em sua coluna de ontem, no Valor Econômico.
Supremo
Esse é o eixo de extrema-direita ao qual pertence Bolsonaro, depois da derrota do ex-presidente Donald Trump, nos Estados Unidos, e do ex-primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, em Israel. Com nenhum desses países, inclusive a Rússia, o Brasil tem relações comerciais robustas para sustentar essa política externa. Mas o que importa é o modelo. Bolsonaro está em guerra com o Judiciário, que pretende subjugar.
Primeiro, nomeando aliados para cargos estratégicos, como o procurador-geral da República, Augusto Aras, que pretende reconduzir, e o ex-advogado-geral da União e pastor evangélico André Luiz de Almeida Mendonça, indicado para a vaga do ex-ministro Marco Aurélio Mello no Supremo Tribunal Federal (STF). Ambos serão sabatinados no Senado, que pode homologar ou não seus nomes. É do jogo.
Segundo, pelo confronto com o STF, que pretende intimidar com a ameaça de um golpe de Estado. Não é do jogo. A cassação de Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal pelo regime militar, que provocou a renúncia dos ministros Antônio Carlos Lafayette de Andrada e Antônio Gonçalves de Oliveira, é um trauma no Supremo até hoje. Em 1971, o ministro Adaucto Lúcio Cardoso abandonou o plenário ao ser o único contrário à lei da censura prévia, editada pelo governo Médici. A regra permitia que censores ocupassem as redações dos jornais e vetassem a publicação de textos. Votou contra e renunciou ao cargo.
Correio Braziliense: ‘A ficha do brasileiro demorou a cair’, diz Marco Aurélio Mello
Por Ana Dubeux
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello enxerga uma espécie de delay coletivo do Brasil em relação à pandemia. “Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia… Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões”, diz, nesta entrevista.
Defensor do isolamento, ele acredita que a pandemia alerta sobre a necessidade de restabelecer valores caros à vida em sociedade. E preocupa-se: “A ficha do brasileiro demorou muito a cair. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva — a militar — para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante”.
Após mais de três décadas como ministro do STF e 42 anos de magistratura, Marco Aurélio está na antessala da aposentadoria, marcada para julho próximo. Mas avisa: “Não morrerei de tédio”. Não morre, nem nunca deixou ninguém morrer, é fato.
Ministro que nunca se furtou a declarações fortes e posicionamentos, ele afirma não ter arrependimentos e se declara um “estivador do direito”, referindo-se à carga de processos que hoje um ministro acumula. “Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes”. Pretende se dedicar agora à vida acadêmica.
Ser ministro do Supremo durante mais de 30 anos cansa? Do que se arrepende? Do que se orgulha?
Orgulho-me do Supremo que encontrei em 1990, quando, na gestão do ministro Néri da Silveira, tomei posse. Havia integrado o Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Regional do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho. Sempre decidi segundo ciência e consciência possuídas. Daí não haver qualquer arrependimento. Magistratura é opção de vida, e é preciso atuar sempre buscando o melhor, procurando conciliar o trinômio lei, direito e justiça, visando a entrega da prestação jurisdicional a tempo e modo. Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes. Atuo em colegiado julgador há 42 anos e completarei, em 13 de junho próximo, 31 no Supremo, com o sentimento do dever cívico cumprido. Continuarei na área acadêmica, na presidência do Instituto UniCeub de Altos Estudos. Estejam certos: não morrerei de tédio. O crescimento é infindável.
O senhor foi professor na Universidade de Brasília e no Ceub. Que lembranças tem desse contato com novas gerações?
A melhor lembrança possível, e sigo no mundo acadêmico. Estive ontem na Universidade de Brasília, continuo no UniCeub e palestrei diversas vezes nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. O contato com as novas gerações é enriquecedor, no que se percebe mentes abertas.
Quais mudanças o senhor destacaria na Justiça brasileira desde 1990, quando foi escolhido para o Supremo?
Houve o aprimoramento da atuação da Justiça. O que ocorre, no Brasil, é que não se caminha, por exemplo, para solucionar conflito de interesse na mesa de negociações. O País conta com lei moderníssima sobre arbitragem, mas dificilmente se tem descompasso solucionado mediante a atuação de árbitros. O brasileiro somente acredita em uma solução, a solução ditada pelo Estado-juiz. Então, há a judicialização em massa, que acaba emperrando a máquina judiciária.
As demandas da sociedade ampliaram a necessidade de o Judiciário modernizar-se, principalmente diante da pandemia. Como o STF pode contribuir no esforço para reduzir os impactos sociais da covid-19?
O Supremo somente atua mediante provocação, buscando, no âmbito de competência inimaginável, muito grande, conciliar celeridade e conteúdo. O Tribunal, não me canso de repetir, é o guarda maior da Constituição Federal. A segurança jurídica pressupõe a observância irrestrita, por todos, do arcabouço normativo.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
É preciso haver avanço cultural. De qualquer forma, a pandemia implicou alerta quanto à necessidade de preservar valores caros à convivência. A sociedade sairá mais fortalecida dessa quadra.
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?
Em primeiro lugar, julgo, integrando o Supremo, destinos e não papéis. Sempre busco – sei que é utopia – a perfeição. Não há tensão propriamente dita. Sou um juiz à antiga, trazendo processos para a residência. Vou ao Tribunal apenas nos dias de sessão. Aliás, ia ao Tribunal, porque, agora, quando se tem reunião de integrantes, ocorre mediante videoconferência. Como julgador, cuido muito da parte humanística. Por isso tenho sempre aberto um romance. Estou lendo obra de Hilary Mantel, sobre a Inglaterra da época de Henrique VIII, O Espelho e a Luz. Admiro muito essa escritora.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Tenho presente, há mais de um ano, que a vacina maior é a revelada pelo isolamento. Então o mantenho, desde março de 2020, e vou tocando a vida, buscando deixar, no gabinete, o menor resíduo possível para o sucessor, considerada a aposentadoria que se avizinha, em 5 de julho do corrente ano.
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
Os homens públicos devem ter os olhos voltados ao bem-estar social. No caso do Brasil, precisa haver atenção ímpar com os menos afortunados, proporcionando-se educação, saúde e segurança pública.
O momento exige resiliência e ativismo solidário. Engajou-se pessoalmente em alguma atividade coletiva a distância?
Exige dedicação e a busca do resgate desse predicado que é a solidariedade. Não me sobra tempo para estar engajado em outra atividade, além da acadêmica e judicante. Costumo dizer que hoje não sou, ante a carga de processos, um operador do Direito, mas sim um estivador.
Que ensinamento este momento nos deixa?
O relativo à necessidade de respeito à natureza. Em pleno século XXI, o homem veio a perceber, com essa pandemia, a fragilidade e que deve cuidar da mãe terra.
O senhor vive em Brasília há mais de 30 anos, como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Aqui cheguei, em 1981. A ficha do brasileiro demorou muito a cair quanto ao momento vivenciado, quanto aos efeitos da pandemia. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva – a militar – para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante. A conscientização passa, de qualquer forma, por uma mudança na percepção da vida gregária, da vida em sociedade.
Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia, os efeitos que poderia causar. Sempre é tempo de tomar decisões visando o melhor, considerados os brasileiros. Sim, os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões. Observa-se o que ocorreu em outros países, como a Inglaterra, em que medidas foram adotadas.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário, para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos, é possível?
É possível desde que haja, como disse, conscientização, sobretudo dos homens públicos, e que não prevaleçam interesses isolados, momentâneos e que não levam ao bem-estar geral.
Fonte:
Correio Braziliense
Michel Misse e Paulo Baía: Jacarezinho – O ativismo nada jurídico dos delegados e a República
Ainda no Brasil atual, como no passado, a pergunta que deveria ecoar em todos os ouvidos dos brasileiros é a seguinte: Quanto vale a vida de um cidadão brasileiro para o Estado? E para um delegado de polícia que o representa em suas atribuições? A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, por seus responsáveis, os delegados de polícia, está aí a afrontar a vida, as leis e a decisão do STF, como puderam constatar os moradores da favela do Jacarezinho, mais uma vez, no último dia 6 de maio. Se não, vejamos.
No Brasil Império, o chefe de polícia era, por lei, um juiz. Na falta de juízes para atender a esse imenso continente que é o Brasil, criou-se, como figura provisória, um representante do juiz, por delegação, para os municípios onde não havia juiz para chefiar a polícia. Foi com essa delegação que surgiu o original cargo de delegado de polícia.
Na República, ele continuou a ser o responsável pelo inquérito policial, cabendo aos comissários distritais a chefia de investigações e diligências cotidianas. Mais tarde, em função de sua responsabilidade jurídica no inquérito policial, determinou a lei que, em concurso público para o cargo, os candidatos a delegados de polícia deveriam ser bacharéis em direito, aprovados pela OAB.
Tudo isso, evidentemente, para garantir responsabilidade jurídica pelos procedimentos de investigação e esclarecimento dos crimes e de diligências ou operações para a incriminação dos suspeitos. Policiais bacharéis garantiriam as normas constitucionais e do processo penal.
Ao contrário de ser formado por instituições garantidoras do seu pleno funcionamento, responsáveis por torná-lo eficiente, público, e ordenador para que a Constituição que o rege seja cumprida, o que mais uma vez verificamos é uma contrafação do poder público pela violência unilateral de seus agentes, com a ideia fixa de que só pela violência ilegal é possível enfrentar bandos urbanos de pequenos traficantes armados, moradores de favelas.
É o que se tem visto no Rio de Janeiro há décadas, sem que haja qualquer avanço significativo nessa área que não seja também de tipo ilegal. Como a responsabilidade pode ser apurada, nesses casos?
Quanto vale a vida de um cidadão brasileiro para as nossas polícias e para os nossos delegados inquisidores da polícia judiciária, que até outubro de 1988 tinham o poder de decretar prisões preventivas sem limite de prazo? Talvez tenhamos que ir mais longe ao elaborar a questão.
De que material a nossa coisa pública foi e é constituída? As polícias – nós sabemos bem –, são antigas donas do açoite a escravizados, seus descendentes e pobres de maneira ampla. No Brasil contemporâneo, com sua permanente desigualdade e hierarquização social, temos facções lutando contra facções, sejam elas políticas, criminosas ou de negociantes pelos butins dos ilícitos.
Enredados nessas guerras intestinas, deixamos de olhar para a questão central – qual é a nação que desejamos construir como um projeto de República? Qual a República que se sustenta tendo como prática a violência sistemática e as sucessivas e inócuas matanças feitas pelos agentes públicos em nome do combate ao crime? A que conceito de ordem pública a mentalidade policial reinante está submetida?
Planejamento
O delegado Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, que atuou na Operação do Jacarezinho no último dia 6/5, onde 28 brasileiros morreram, disse em entrevista coletiva que houve um planejamento de inteligência da polícia judiciária, mas que o conhecimento do território das favelas não funciona mais nas operações policiais, não diminui a letalidade, e criticou o que ele denomina de ativismo judicial contra a ação policial.
Oliveira sustentou que a operação, a mais violenta do Rio de Janeiro, não visava executar o povo favelado. Defendeu a atuação policial pois moradores das favelas estão sob o domínio do tráfico, e que em cada operação a polícia tem o intuito de salvar os moradores trabalhadores, reféns dos criminosos traficantes.
Agem com um sebastianismo militarizado, desejando libertar o povo da opressão dos traficantes. Para tanto, se morrerem brasileiros pelo caminho não há importância, faz parte da limpeza urbana de libertação, depreende-se do discurso oficial da instituição policial.
Tanto a Polícia Civil quanto o Ministério Público dizem que a operação, nomeada como “Exceptis” para ciência do eminente ministro Edson Fachin, teve como objetivo cumprir os 21 mandados de prisão expedidos pela Justiça a partir de investigações da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Estavam lutando contra o aliciamento de menores, homicídios, sumiço de corpos, roubos e “atos terroristas” contra trens da Supervia.
A resposta veio como justificativa para atender a decisão do STF, que permite operações nas favelas cariocas somente em casos excepcionais, por conta da pandemia. E receberam apoio da Associação de Delegados de Polícia, formada por todos esses bacharéis que juraram respeitar os direitos civis da população. A justificativa é que quase todas as vítimas da operação tinham alguma ficha, alguma anotação ou alguma passagem pela polícia.
Ora, presumidos bacharéis, essa justificativa para matar é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Com argumentos desse tipo, podemos concluir que os brasileiros devem respeitar as instituições de Estado, que estão fazendo o seu trabalho de caçar bandidos. Afinal, matar os brasileiros já se tornou hábito, tradição, e faz parte da política e projeto de constituição de uma nação de brasileiros. Só resta saber quantos brasileiros ainda existirão para formar tal projeto.
- Michel Misse e Paulo Baía são sociólogos, doutores em sociologia e professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Fonte:
Metrópoles
Claudia Safatle: Delfim vê Lula como próximo presidente
“Sem a dúvida, dado o quadro, votaria nele de novo”, diz ex-ministro
Delfim Netto foi um dos primeiros deputados a declarar apoio à candidatura de Lula em 2002, sob o argumento de que seria importante eleger o candidato do PT, pois ele faria uma administração ruinosa, e o partido não mais voltaria ao poder. “Eu me enganei”, disse o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento a esta coluna, ontem.
“O senhor votaria nele novamente?”
“Diante do quadro que está aí, não tenho a menor dúvida”, respondeu Delfim, que completa 93 anos no dia 1º de maio.
Depois da decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou todo o processo do petista em Curitiba, “não tem pecha de ladrão que pegue mais nele [Lula]”. O ex-ministro e ex-deputado considera que a ação de Fachin “zerou o jogo” e muito provavelmente Lula, em um confronto com Jair Bolsonaro, será o próximo presidente do Brasil.
Depois de passar 580 dias na prisão e ser solto em novembro de 2019, agora Lula foi recolocado como possível candidato à Presidência da República pelo STF. Na quarta-feira ele fez um longo pronunciamento seguido de entrevista que, para Delfim, revelou “um orador brilhante”, com uma ideia clara sobre o país que queremos: “democrático, vigoroso e mais igualitário”.
A exposição que fez no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo mostra que Lula “amadureceu dramaticamente e, talvez, para mais ninguém esse longo tempo na prisão tenha sido tão produtivo”. Ambos, Delfim Netto e Lula, têm uma relação de profunda amizade. “Fiquei feliz ao vê-lo em plena forma”, comentou o ex-ministro.
Se eventualmente Lula vier a ser eleito presidente da República em 2022, ele viria carregado de mágoas ou não as tem mais? A essa pergunta Delfim responde:
“Esse negócio de não ter mágoas é tudo mentira. Acho que não há ninguém que não tenha mágoas, mas há pessoas que são capazes de agir mesmo não usando as mágoas, e ele é um desses”.
E o mercado, como se comportaria? A Faria Lima esboçaria alguma reação? Delfim acredita que não haveria qualquer reação contrária. Afinal, não houve desde então presidente que mais protegeu o mercado financeiro e teve boa relação com os empresários.
Duas características de Lula impressionam Delfim. “Ele tem uma técnica de reunir as pessoas e provocá-las. Eu assisti à reunião dele com Guido Mantega [ministro da Fazenda] e Henrique Meirelles [então presidente do Banco Central] em que ele provocava os dois e depois arbitrava. E a esquerda que Lula representa nada mais é do que uma preocupação com a questão social. “Em uma reunião patrocinada pelo PT em São Paulo, em que se discutia o socialismo, Lula levantou-se e falou: ‘Esse negócio de igualdade é ótimo, mas sem uma hierarquia nada funciona”, relatou o ex-ministro.
Fontes oficiais avaliam que foi até bom Lula ser recolocado na disputa eleitoral, pois assim os bolsonaristas no governo ficam “mais espertos”. As duras críticas feitas por Lula ao governo ajudaram a forjar o Bolsonaro das últimas horas, um mandatário que passou a usar máscaras e parece estar empenhado em arranjar vacinas para imunizar a população, em lugar de afrontar os protocolos que evitam a contaminação por covid-19 e negligenciar a compra de vacinas, patrocinando medicamentos sem qualquer comprovação científica.
Mais medidas
Aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Emergencial, o governo ainda deve aguardar a aprovação do Orçamento da União para este ano antes de anunciar novas medidas de combate aos efeitos da pandemia. A pasta da Economia estuda, junto com outras áreas do governo, medidas de oferta de crédito para empresas, nos moldes da lei que reduziu a jornada de trabalho e os salários, dentre outras. A ideia é usar menos recursos do Tesouro Nacional e aumentar a participação do setor financeiro.
Mesmo não tendo saído exatamente como o governo queria, a PEC Emergencial pode ser vista como um “divisor de águas” para Jair Bolsonaro, na visão de fontes qualificadas que temiam uma nova vitória das corporações, desta vez da polícia, na questão dos reajustes salariais. Afinal, Bolsonaro pressionou, em vão, por mudanças para garantir a progressão e o aumento dos salários dos policiais.
“Era o rigor no gasto público e o compromisso de dispor de vacinas para imunizar a população ou um mergulho no populismo”, disse uma fonte oficial.
A proposta viabiliza a retomada do pagamento do auxílio emergencial e estabelece gatilhos a serem acionados em caso de descumprimento do teto de gastos públicos. O texto flexibiliza regras fiscais para financiar o benefício e prevê um limite para gastos fora do teto de R$ 44 bilhões.
Pelos cálculos da área técnica do governo, seriam três grupos beneficiários do auxílio: pai solteiro receberia R$ 150; o casal receberia R$ 250, e mãe solteira, R$ 350 por mais quatro meses, até o fim do primeiro semestre. Os valores podem ser ligeiramente diferentes desde que a média ponderada seja equivalente à um benefício médio de R$ 250.
A área econômica avalia que no fim do primeiro semestre o país terá vacinado boa parte da população, e o segundo semestre seria o da tão esperada retomada do crescimento.