Juan Arias
Juan Arias: General da ativa com medo de declarar na CPI humilha o Exército
Nada mais humilhante para um militar da ativa ―e ainda mais para um general três estrelas como Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde― do que revelar medo e covardia. E o pior é que essa imagem de medo pode acabar afetando a imagem positiva que a instituição militar vinha tendo até agora. Ver um general como Pazuello incapaz de enfrentar uma CPI de peito aberto tem que humilhar até os simples soldados, que devem se sentir desconcertados.
Já pouco importa o que o general ex-ministro diga ou silencie. Seu comportamento de medo que o levou a se refugiar em um habeas corpus preventivo no Supremo para permanecer mudo ante as perguntas dos senadores já é uma demonstração de confissão de culpa.
Se, como já havia confessado Pazuello, ele se limitou a cumprir ordens do presidente Bolsonaro, considerado naquele momento seu superior hierárquico, bastava, como fizeram os ministros anteriores, pedir demissão e voltar ao Exército. Atribuir a atitude do general à sua personalidade difícil parece estranho para quem deveria dar exemplo, não apenas de uma pessoa que não teme a verdade, mas que também tem orgulho de aceitar que errou.
Ainda não sabemos como acabará a novela do general que pediu que permanecesse calado no Senado. Nem mesmo se ela acabará sendo escrita em sua testa por sua atitude de medo, a maior desonra para um militar ―ainda mais da sua categoria.
O general, hoje preso em sua narrativa nebulosa de comportamento, teria apenas uma forma de resgatar sua dignidade humilhada. Seria, ao chegar ao Senado, aceitar todas as perguntas que pudessem ser feitas, respondendo com lealdade militar, embora para isto precisasse revelar verdades durante seu período à frente do Ministério da Saúde, correspondente ao maior número de mortos por covid-19, mesmo que elas pudessem comprometer gravemente a imagem do presidente. Uma imagem já mais do que desgastada de um chefe de Estado que acaba de ser visto, internacionalmente, como um dos que pior geriram a pandemia entre os 14 líderes políticos mais importantes do mundo.
Bolsonaro e sua procissão de seguidores fanáticos com instintos de morte passarão, e o Brasil recuperará sua normalidade democrática depois do hiato tenebroso ao qual foi arrastado por um capitão frustrado do Exército. Ele sairá de cena, como indicam as últimas pesquisas, enquanto a instituição das Forças Armadas continuará sendo vital na defesa dos valores democráticos e da Constituição, como foi nos últimos 20 anos com Governos de diferentes tendências políticas.PUBLICIDADE
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O Brasil só pode desejar que a hierarquia do Exército ajude seu general, hoje questionado, a demonstrar que o medo não existe no dicionário militar. A responsabilidade de um desastre ou de uma conduta ditada pelo medo do general na CPI poderia acabar prejudicando gravemente a credibilidade do Exército. O resultado da conduta do ex-ministro em sua convocação à CPI poderá ter consequências inesperadas para o futuro deste país, hoje visto como um fracasso mundial de governo. Não por acaso, faltando 18 meses para as eleições presidenciais, a imprensa mundial continua atenta e preocupada com seu possível resultado e temendo que o bolsonarismo destruidor possa continuar no poder, o que traria problemas não só no cenário já turbulento da América Latina, mas no mundo. De fato, o Brasil é visto como um elemento-chave não apenas na economia, como potência mundial que é, mas também no cenário de descrédito da democracia, com o crescimento dos movimentos negacionistas e nazifascistas nos cinco continentes.
O Brasil ―mais especificamente, a CPI da Pandemia― poderia levar à saída de Bolsonaro do Governo, que revolucionaria as eleições do próximo ano. O país vive momentos difíceis, que poderiam ter repercussões negativas para várias gerações. Sabemos como as guerras tradicionais começam, mas não como terminam. O mesmo acontece com as crises políticas. E não é nenhum segredo que no Brasil, governado hoje por um presidente considerado o pior e mais imprevisível de sua história, a responsabilidade do Exército seja crucial, pois do seu apoio ou não ao capitão com vocação de ditador poderá depender o futuro deste país.
Nem vale a desculpa para os militares do medo do comunismo, já que hoje qualquer cidadão minimamente informado sabe que nem o PT nem Lula representaram, nem representam hoje, o comunismo. Basta lembrar as boas relações de Lula em seus Governos com o mundo empresarial e os bancos, que nunca ganharam tanto quanto com ele. Sem contar suas relações estreitas com os partidos conservadores e de direita, que chegaram a preocupar o grupo mais progressista e sindicalista do partido.
O temor da volta de Lula, hoje mais conservador que ontem, não deveria justificar a defesa e o apoio ao capitão agora rechaçado pela maioria da população, que apoia um impeachment do presidente. O Exército pode hoje apoiar candidatos conservadores de direita, que podem governar tranquilos, sem o perigo de uma involução do Brasil para uma aventura como a venezuelana pela ânsia patológica de Bolsonaro, que já deu provas irrefutáveis de incapacidade profissional e psíquica para governar o quinto maior país do mundo.
O Exército brasileiro está em uma encruzilhada histórica, da qual depende sua credibilidade. Seu comportamento diante da tão esperada conduta do general Pazuello na CPI da Pandemia poderá arrastar as Forças Armadas para uma grave crise no já obscuro panorama político e econômico deste país.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Fonte:
El País
Juan Arias: Fracasso da CPI da Pandemia seria o triunfo de Bolsonaro para a reeleição
O presidente Jair Bolsonaro parece hoje mais nervoso e agressivo do que nunca. Voltou a ameaçar com um golpe e até pôs a ABIN em ação para investigar governadores e prefeitos. Alguns senadores, certamente afeiçoados a ele, já começaram a vazar que a CPI da Pandemia não vai dar em nada, como tantas vezes aconteceu. Se isso for verdade, será um triunfo para Bolsonaro e uma vergonha para o Brasil e o mundo. Seria seu passaporte para a reeleição no próximo ano.
E ele e suas tropas de choque entenderam que desta vez não se trata de uma CPI qualquer que investiga algum caso de corrupção política. É muito mais. Desta vez se trata de investigar e julgar um presidente que transformou o país em um cemitério com sua política de negar a epidemia, zombar da vacina e fazer pouco caso das recomendações da ciência e da medicina que teriam evitado milhares de mortes.
Nunca, de fato, uma catástrofe natural deixou pelo caminho tantos órfãos e tantas famílias desfeitas para sempre. Não. Desta vez não se trata de mais uma CPI daquelas que costumam acabar em pizza, mas de indagar com seriedade sobre os milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas sem a política negacionista do presidente.
E não se trata de vítimas de uma guerra. É muito pior. É uma matança produzida não só por um vírus invisível, mas pela cegueira de um presidente que insistiu em negar a gravidade da epidemia em favor de seus interesses pessoais. Não sei se os brasileiros estão cientes de que a epidemia não é fruto de uma fatalidade do destino, mas também da frieza e do gosto pela morte perpetrados pelo chefe do Estado e que acabaram manchando a imagem do Brasil no exterior.
Por tudo isso, se desta vez os políticos que têm nas mãos milhares de provas do desprezo do chefe de Estado pelas vítimas da pandemia não deixam de lado seus habituais compromissos partidários e a sua minúscula política que costuma dominá-los, passarão à posteridade como cúmplices de um massacre.
Tudo tem um limite, até mesmo na política, quando se trata de salvar a vida das pessoas. Zombar da morte nesta ocasião é tornar-se cúmplice de um genocídio e rir da dor de uma nação inteira.
Salvar o presidente investigado como responsável por um massacre representaria o maior descrédito político da história moderna do país, pois, por mais desacreditada que a política esteja, que tenda a olhar mais para o seu umbigo do que para o bem-estar das pessoas e a defesa da vida, há momentos históricos que exigem receitas amargas e coragem para castigar a iniquidade.
A CPI já começou mal depois da vergonhosa ausência das senadoras na comissão, já que as mulheres vêm sendo não só as maiores vítimas, mas as que sobreviverem arcarão com o maior fardo da tragédia.
Se os políticos do Senado, a quem não faltarão provas da conduta assassina daqueles que deveriam zelar pela vida das pessoas, terminarem dando vitória ao responsável por tantas mortes e permitirem que seja reeleito, eles vão acabar com seus nomes gravados em pedra para vergonha das gerações futuras.
Será que os senadores não veem que o presidente não sentiu em um só momento, não teve um impulso do coração de ir visitar um hospital onde morrem pessoas asfixiadas por falta de oxigênio, nem sequer é capaz de aceitar a responsabilidade de se mostrar solidário com a população que lhe deu o voto para que zelasse por seu destino e não para que a transformasse em um rebanho que o segue cegamente em seus instintos de morte?
Se os senadores da CPI não tomarem consciência de sua responsabilidade pelo presidente que já é aceita pela maioria da nação, terão humilhado e traído um país inteiro.
As sombras desses milhares de mortos e daqueles que ainda se poderia evitar, afastando do poder quem desafia os que continuam apostando na vida, vão acabar perturbando para sempre os sonhos dos senadores da CPI.
O Brasil não precisa de um presidente que dê armas às pessoas e destrua seu rico patrimônio ambiental, mas, sim, que tenha como prioridade a defesa da vida. Precisa de um presidente sensível à dor dos mais expostos ao perigo e que seja capaz de vencer a guerra do ódio e da mentira, hoje tão perigosos quanto um novo vírus letal.
O Brasil necessita urgentemente de um presidente que saiba abrir novos horizontes de esperança para um povo que já carrega sobre os ombros tanta morte e tanta pobreza e injustiça por causa da degradação dos políticos que trabalham mais em proveito próprio e de suas famílias do que para criar possibilidades de uma vida melhor. E isso para um povo ao qual sobram riquezas para que todos pudessem desfrutar uma vida digna. Necessita de um líder que impeça que ainda existam milhões de famílias que passam fome enquanto são testemunhas do desperdício dos políticos que tantas vezes parecem cegos e mudos diante do martírio a que um país está sendo submetido.
Os políticos, deixando o presidente livre, se encontrariam mais do que nunca em um terrível dilema que poderia levar a uma tragédia ainda maior do que a que o país já está vivendo. A CPI do Senado, que acaba de começar a investigar os possíveis crimes perpetrados durante a guerra contra a pandemia, nem sequer precisaria de meses de trabalho, pois desta vez há um consenso nacional de que o presidente é realmente o responsável pela tragédia e deu motivos mais do que suficientes para que seja exonerado de seu cargo. As provas estão à luz do sol e todos as conhecem.
Se a CPI acabar, como alguns senadores já prognosticam, salvando um presidente que aos olhos do mundo se tornou indigno e perigoso para dirigir o país, estaríamos diante de uma das pantomimas mais trágicas, e o mundo da política e da justiça acabará ainda mais humilhado e desacreditado do que já está.
O Brasil que hoje sofre, por ora, em silêncio, uma tragédia que em boa parte teria sido possível evitar, amanhã poderá se rebelar contra políticos incapazes de estar à altura de seu destino.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Fonte:
Juan Arias: As palavras macabras de Paulo Guedes sobre o SUS
Escrevo esta coluna no momento dramático em que o Brasil contabiliza 400.000 mortos vítimas da covid-19. É uma triste efeméride que poderia ter sido evitada em boa parte sem a atitude de desprezo pela vida demonstrada pelo presidente Jair Bolsonaro e sua postura de bloquear a vacina. A isso se soma agora a macabra afirmação feita dias atrás por seu ministro da Economia, Paulo Guedes, de que o sistema público de saúde (SUS) está quebrado porque as pessoas querem viver muito, “até os 100 anos”.
No mesmo dia em que se inaugurou a CPI do Senado para investigar possíveis crimes na tragédia da covid-19, Guedes fez graves declarações sobre o sistema público de saúde, considerado, apesar de suas falhas, um dos mais avançados do mundo. É uma glória do Brasil que nem sequer os ricos Estados Unidos conseguiram implantar, apesar das tentativas do ex-presidente Obama.
Guedes, em seu discurso do último dia 27, afirmou, sem saber que estava sendo gravado, que o atual SUS e o Estado estão quebrados. Com essa afirmação, enviou ao mesmo tempo uma mensagem subliminar aos empresários da saúde de que o futuro do setor no Brasil terá que passar às mãos dos particulares, favorecendo assim a indústria dos planos de saúde. E os milhões de pobres que jamais poderão pagar um plano ou se tratar num hospital privado? Aí chega a parte mais desumana. Segundo o ministro, a culpa do descalabro do sistema publico de saúde não seria do Estado, e sim das pessoas que pretendem viver demais. É uma afirmação que atribui a culpa do descalabro sanitário ao desejo das pessoas de viverem o máximo que puderem.
Talvez não tenha sido casual que o ministro tenha criticado as pessoas por quererem viver muito quando a CPI do Senado investiga a conduta do presidente durante a pandemia, a qual lhe valeu a crítica de estar provocando um genocídio nacional com seu negacionismo e sua rejeição à vacina.
Não podemos nos esquecer de que uma das primeiras declarações do capitão sobre a pandemia foi que “todos nós vamos morrer”, e que afinal os que mais se contaminam e morrem são os idosos e os doentes crônicos, já que os atletas como ele e os fortes resistem melhor.
Foi então quando ele revelou que o que mais lhe preocupava na pandemia era o problema econômico. Por isso, que morressem idosos e doentes importava menos, já que eles não são parte da força de trabalho. Seriam uns parasitas que consomem sem produzir.
Essa desumanidade de Bolsonaro, que parece elogiar a morte dos inúteis e improdutivos, casa perfeitamente com a fria e cruel afirmação de seu ministro da economia, que estigmatiza o desejo das pessoas de continuarem vivendo, o que poderia pôr em perigo o deus do liberalismo, para o qual as pessoas servem apenas enquanto são capazes de produzir. Do contrário, melhor que reprimam seus instintos de quererem continuar vivendo, já que representam um peso para a economia. Um bom tema para a CPI da covid-19 investigar é a responsabilidade de quem deixou a epidemia correr solta, vista como uma espécie de limpeza étnica para eliminar as vidas que o capitalismo cruel considera inúteis e até perigosas para o sistema.
Pena que as 400.000 vitimas mortais da pandemia não possam ressuscitar de suas tumbas para deporem nas investigações da CPI. Certamente os resultados do inquérito seriam muito diferentes do que será pelos rasteiros jogos políticos que essas CPIs costumam abrigar.
As palavras macabras de Guedes de que o sistema de saúde não funciona bem porque as pessoas se empenham em viver “até cem anos” leva a crer que o melhor seria criar uma eutanásia geral para os que já viveram bastante e não podem produzir, para não quebrar a economia.
Comprova-se uma vez mais que a filosofia do bolsonarismo está estreitamente ligada até metaforicamente à morte, e não à vida. Algo que se revela cada vez mais claramente na linguagem, na gestualidade imitando as armas, nos símbolos nazistas, no amor pela guerra e a violência, em seu desprezo pelos fracos que não mereceriam viver e por seus sentimentos de vingança, junto com uma escondida covardia e medo da vida.
Freud nos ensinou, inspirando-se na mitologia grega, que as duas colunas que sustentam o mundo são Eros e Tânatos, ou seja, o amor pela vida e a reprodução, e os sentimentos de morte. E que, no final, sempre prevaleceu no mundo o amor pela vida sobre a morte, já que do contrário o mundo não existiria. O esforço por continuar vivendo apesar de todas as dificuldades que a vida acarreta acaba sendo maior que o instinto de morte e de destruição. Por isso a humanidade continuou viva, apesar das grandes catástrofes, das guerras mundiais e das epidemias. O instinto de querer continuar vivendo acaba sempre por vencer. O bolsonarismo, pelo contrário, parece apostar no Tânatos freudiano, na morte, na negatividade, na violência e na destruição.
É lamentável, no momento em que o Brasil aparece tristemente como o epicentro da pandemia no mundo, que o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Casa Civil, revele que se vacinou “escondido”, certamente por medo da reação do seu chefe, o capitão Bolsonaro. O general, ao revelar que se vacinou escondido, acabou confessando: “Sim, me vacinei, não tenho vergonha, porque como todo ser humano eu quero viver”.
O jornalista João Batista Natali, da Folha do S. Paulo, depois de ter passado 21 dias em coma induzido por causa da covid-19, contou em seu jornal a dor causada por ter estado morto durante todo esse tempo. E termina seu relato com um grito: “Que linda é a vida!”. Tomara que seu grito de homenagem à vida tenha chegado aos ouvidos do ministro que critica quem deseja viver demais.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Fonte:
El País
Juan Arias: Por que Lula prefere que Bolsonaro chegue politicamente vivo às eleições?
Para entender esta estranha postura do petista, é preciso levar em conta que se trata de um estrategista que sabe observar a situação política em longo prazo
Muita gente acha estranho que Lula veja com desagrado a abertura da CPI da covid-19, que poderia acabar com uma condenação de Bolsonaro, e a abertura de um processo de impeachment presidencial no Congresso.
Lula não diz isso abertamente, mas é o que dá a entender através de seus assessores mais íntimos. Jacques Wagner, por exemplo, um dos caciques do PT a quem Lula mais escuta, causou surpresa ao se manifestar no Senado contra a abertura da CPI da Covid. Da mesma forma, Lula não demonstra nenhum interesse em que o Congresso abra um processo que possa resultar na destituição do capitão.
Para entender esta estranha postura de Lula, é preciso levar em conta que se trata de um estrategista que sabe observar a situação política em longo prazo. Nisso poucos ganham.
Assim, de olho na candidatura presidencial em 2022, ele considera, conforme confidenciou a alguns amigos que mais o frequentam, que definitivamente o melhor adversário para um duelo político tão crucial para ele seria Bolsonaro, mais do que qualquer outro.
Por isso prefere que o presidente não caia antes das eleições. Lula sabe que sua maior vitória, inclusive em nível internacional, seria destronar o genocida que arrastou o Brasil para o inferno. Para Lula, ganhar de qualquer outro candidato não teria a mesma força simbólica que derrotar o psicopata que está transformando o país um cemitério com seu negacionismo e com seu hábito de inclusive zombar da pandemia.
Lula sabe que, se Bolsonaro for impedido de disputar as eleições, a única alternativa à disposição do bolsonarismo seria seu vice, o general Hamilton Mourão, um militar duro, mas que tem um maior gabarito intelectual e uma maior capacidade de diálogo político.
Lula sabe que muitos direitistas que não votariam mais em Bolsonaro poderiam fechar com seu vice. Isso incluiria muita gente no mercado e no mundo das finanças que está desiludida com Bolsonaro e, embora em condições normais nunca votasse na esquerda, poderia optar por Lula se ele tiver um vice oriundo do mundo que domina a economia, como foi o caso do empresário José Alencar em seus mandatos anteriores (2003-2011).
Ao mesmo tempo, até os militares hoje em dia estão no mínimo perplexos com o capitão, que acabou desprestigiando a instituição com suas loucuras e seu afã de apresentar as forças armadas como “seu Exército”. Com Mourão, os militares poderiam ter um candidato mais confiável.
Lula sabe disso e por esse motivo prefere enfrentar Bolsonaro, que certamente, se não cair antes disso, chegará muito debilitado às eleições. Quanto aos militares, Lula já está tateando para abrir um diálogo com os quartéis. Pensou inclusive na hipótese de escolher um militar como vice.
Para Lula, seria paradoxalmente mais fácil derrotar Bolsonaro do que um candidato conservador que tivesse o apoio das elites econômicas, que começam a abandonar o presidente, mas ao mesmo tempo estão contra a bipolaridade entre esquerda e direita.
Para muitos, continua valendo o lema “nem Lula nem Bolsonaro”, mas, tendo que escolher entre um deles, afinal poderiam acabar apostando em um Lula que se apresente mais como centrista do que como representante da velha esquerda. Foi o que confirmou pessoalmente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao admitir que, se tivesse hoje que decidir entre Bolsonaro e Lula, votaria no petista, seu histórico adversário.
Na situação do ex-presidente FHC estão muitos que também hoje prefeririam votar em Lula a não no capitão, cada dia mais desprestigiado. Lula sabe que, hoje, quem desperta maior rejeição da direita democrática é Bolsonaro. Por isso seu instinto o leva a preferir desafiar o capitão ferido politicamente a qualquer outro candidato.
Para Lula na verdade seria melhor duelar com um Bolsonaro desmoralizado dentro e fora do país do que com um candidato do centro, que poderia ser o preferido daqueles que hoje rejeitam tanto as cavernas direitistas do bolsonarismo-raiz como a velha e desgastada esquerda. Por isso Lula já está flertando com o centro e até com a direita com a qual já governou.
Lula tem um olfato político que acaba desorientando até seus colaboradores mais próximos. 2022 já está às portas, e poderemos ver se ele tem ou razão em querer que Bolsonaro chegue ferido às eleições, mas politicamente vivo.
Juan Arias: Os três gols seguidos em Bolsonaro podem prever sua derrota final
Até os que continuavam apoiando-o porque o viam como o grande inimigo da esquerda começaram a se distanciar dele principalmente após a desastrosa gestão da pandemia com seu negacionismo exasperado
Os que convivem com o presidente Jair Bolsonaro afirmam que nunca o viram tão irritado como nestes dias. Talvez porque tenha sofrido três gols seguidos que podem prever sua derrota definitiva.
Até os que continuavam apoiando-o porque o viam como o grande inimigo da esquerda começaram a se distanciar dele principalmente após a desastrosa gestão da pandemia com seu negacionismo exasperado que fez com o que o Brasil seja visto hoje no exterior como o maior perigo sanitário do mundo.
O capitão viu de repente seu governo vazado três vezes. Primeiro quando o Exército fez com que ele soubesse com a renúncia dos três chefes das Forças Armadas que não está disposto a entrar em política e deu a entender que não é “seu Exército” como ele cacareja a cada dia.
O Supremo que ele achava ter dominado marcou dois gols seguidos em Bolsonaro. Primeiro derrubando por 9 votos contra 2 sua pretensão de que as Igrejas se mantivessem abertas ao culto apesar do agravamento da pandemia. Os magistrados se mantiveram firmes em que são os governadores e prefeitos que, segundo a gravidade do momento, poderão ou não impedir o culto presencial nos templos.
O outro gol do Supremo foi marcado pelo juiz Barroso obrigando o Senado a dar sinal verde à abertura de uma CPI para analisar as responsabilidades do Presidente e de seu Governo na gestão da pandemia que levou o país à catástrofe que está sofrendo com o horror de que em muitas cidades os mortos já superam os nascimentos. No Senado já existiam os votos suficientes para dar andamento à CPI, mas o presidente da Casa se fazia de desentendido e continuava sem abrir a comissão de inquérito sobre os possíveis crimes de Bolsonaro que zomba do que ele chamou de uma simples “gripezinha”. Enfurecido, o Presidente ameaçou o Supremo e o Senado em usar a “bomba atômica” contra eles. Ameaça que deixa a descoberto sua fragilidade e o poder que achava ter sobre as instituições.
Essas três derrotas às que é preciso somar o fato de ter sido obrigado a demitir seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considerado o coração ideológico do Governo, seguidor fiel de Donald Trump e que estava fazendo com que o Brasil brigasse com meio mundo, indicam que as placas tectônicas de seu poder estão se movimentando e podem causar um terremoto político.
É importante que o amante das ditaduras comece a ver seu poder se quebrar porque com seus desmandos e ataques contínuos à democracia está fazendo com que o Brasil perca as esperanças. E já sabemos o que costuma acontecer quando um povo perde as esperanças nos que o governam.
De fato, com Bolsonaro o Brasil do futuro ficou muito para trás, o do Deus é brasileiro, o do milagre econômico, o país desejado pelos europeus que queriam vir trabalhar aqui, o Brasil respeitado em todos os foros internacionais, o de sua invejada diplomacia exterior. Tudo isso parece de repente ter se desfeito como uma bolha de sabão dando lugar a um pessimismo nacional.
Hoje predominam as fake news que envenenam a sociedade e a desorientam levada pelo ódio em vez da convivência pacífica. Onde se esconderam envergonhadas a esperança e a alegria de viver? Hoje até a música popular se tornou mais violenta.
De tanto falar de armas, de militares, de golpes de Estado, de genocídios e de sentirem-se abandonados em meio à matança da pandemia os brasileiros se veem a cada dia mais abandonados à sua sorte.
Enquanto os mortos se amontoam e já faltam cemitérios, soam macabras as zombarias, as ironias e até as imitações grosseiras de alguém que morre asfixiado por falta de oxigênio por parte de quem detém o poder da nação e deveria mostrar solidariedade e compaixão com tanta dor.
Dá a sensação de uma grande confusão que desorienta as pessoas que já não sabem em quem confiar com as instituições do Estado também até ontem desorientadas e incapazes de se unir contra o perigo comum de quem só pensa em conseguir o poder absoluto para impor um sombrio golpe ditatorial.
É surpreendente ver, por exemplo, os grandes empresários aplaudindo o candidato a ditador que arrastou o país a uma das maiores crises econômicas da história com milhões que ou passam fome, ou estão sem trabalho e que quase não conseguem viver com dignidade com o que ganham.
Estão cegas essas elites financeiras que não veem as lágrimas de milhões de brasileiros que levantam todas as manhãs sem saber se poderão dar de comer aos seus filhos? Esses empresários que manejam as finanças do país não veem que o Brasil está desmoronando e que a cada dia se sente mais inseguro sem saber que futuro seus filhos esperam?
Essas elites da política e do dinheiro não veem que o Brasil amanhece a cada manhã com os grandes veículos de comunicação mundiais anunciando a queda e desmoralização de um país que deveria e poderia ser o coração do continente?
Não, o Brasil não precisa para ser governado e para recuperar sua esperança hoje quebrada de mais messias e redentores, e sim de estadistas capazes de organizar o país em relação à sua dignidade, sem saqueá-lo vergonhosamente para que eles e suas famílias enriqueçam condenando um país rico material e espiritualmente à pobreza e ao desalento.
A única esperança é que a sociedade procure sua unidade e o antídoto para se defender contra os vírus políticos mais mortais do que os da pandemia porque envenenam não só o presente, e sim também o futuro da nação.
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A palavra de ordem dos brasileiros hoje deveria ser a da resistência aos que se divertem e lucram saqueando não só seus recursos, como suas liberdades até de expressão e, principalmente, a esperança de sair do pesadelo que os aflige mais unidos e com orgulho do que realmente representa este país no mundo.
O que espera, por exemplo, o Congresso para dar seguimento aos aproximadamente cem pedidos de impeachment contra o Presidente por parte da sociedade? O Congresso não é a voz e a expressão dos anseios da sociedade?
É desmoralizador ver essa voz da sociedade sufocada pelos interesses puramente pessoais dos que a governam. O que podem pensar os milhões sem casa e morando em pardieiros como animais vendo um senador jovem, filho do Presidente, investigado por corrupção, comprar uma mansão de seis milhões no coração aristocrático de Brasília?
Quando o poder que deveria pensar em como melhorar a vida das pessoas aparece preocupado somente em acumular privilégios e benefícios, a democracia se quebra envergonhada e humilhada.
O Brasil sofreu como tragédia os 21 anos de ditadura militar e agora parece viver como farsa a democracia. Só que às vezes a farsa dos aprendizes a ditadores pode ser mais grave do que a realidade.
O Brasil precisa com urgência de verdadeiros líderes capazes de devolver a esperança perdida a 220 milhões de pessoas submersas hoje no medo e na desilusão. A história é sempre mãe da sabedoria. O que o Brasil vive hoje pode lembrar quando há mais de 2.000 anos Cícero, senador romano, jurista, político e escritor enfrentou o conspirador Catilina que pretendia tomar o poder absoluto, com suas famosas palavras que atravessaram os séculos: “Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? Por quanto tempo tua loucura zombará de nós? A que extremo chegou tua audácia desenfreada? Não percebeu que seus planos foram descobertos?”. O conspirador Catilina acabou fugindo de Roma com suas hostes fanáticas e derrotado.
Sim, o Brasil precisa de um novo Cícero capaz de repetir ao conspirador que só sonha em conquistar o poder absoluto zombando da Constituição e da democracia: até quando continuará abusando de nossa paciência?
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Juan Arias: Alguém acha que se Bolsonaro perder as eleições contra Lula irá passar a faixa pacificamente?
A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, é capaz de atropelar liberdades e voltar a acariciar seu sonho de uma nova ditadura militar
A possível foto do capitão Bolsonaro passando pacificamente a faixa presidencial ao ex-presidente Lula percorreria o mundo. E é isso que o presidente tentará evitar. Já recém-eleito em 2018 começou imediatamente a colocar em dúvida a legitimidade das urnas e exigiu o voto impresso. Chegou a dizer que se os votos não fossem manipulados ele teria vencido no primeiro turno e que tinha provas disso, mas nunca as apresentou. E desde então deixou claro que se perder o próximo pleito e ainda mais agora com a possibilidade de que Lula seja o vitorioso, não aceitará pacificamente os resultados.
Não por acaso, desde que surgiu de surpresa a possibilidade de que Lula possa disputar as eleições, Bolsonaro tem afirmado que só ele pode impor o estado de sítio no país. Falou novamente da possibilidade de um golpe, de que ele conta com “seu Exército”.
Bolsonaro nunca apareceu tão nervoso e agressivo ao mesmo tempo em que se apresentou de repente como o defensor da vacina, enquanto abre uma guerra contra os governadores aos que acusa de ser os responsáveis pela tragédia da pandemia por permitirem medidas restritivas para tentar conter o drama da covid-19 cada vez mais perigosa e agressiva.
A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, o presidente é capaz de atropelar todas as liberdades e de voltar a acariciar seu sonho de implantar uma nova ditadura militar. Não é por acaso que a cada dia seu Governo aparece mais militarizado e que no boletim do Clube Militar do Rio de Janeiro tenha se defendido que a maioria dos brasileiros “tem saudade da ditadura”. Algo que todas as pesquisas nacionais desmentem mostrando que 70% dos brasileiros são favoráveis à democracia.
Bolsonaro voltou esses dias à cínica filosofia de que “a liberdade é mais importante do que a vida”. Só que ele falar de liberdade soa a sarcasmo. Pelo contrário, para ele o conceito de liberdade não existe. A primeira vez que ele falou de liberdade significou liberdade para infringir as leis restritivas contra o avanço da pandemia. Bolsonaro não entende de filosofia e não sabe o que é um silogismo e um sofismo. Seu forte não é o raciocínio e a reflexão e sim a impulsividade das armas e a exaltação da violência em todas as suas vertentes.
Quando o presidente defende que a liberdade vale mais do que a vida não está fazendo uma reflexão filosófica. Está só pensando na liberdade que suas hostes negacionistas pedem para desobedecer às normas impostas pela ciência e a medicina em meio à maior tragédia sanitária da história do Brasil.
Bolsonaro tem pavor de perder votos de suas hostes se apoiar as medidas necessárias não só para prevenir o contágio pessoal, como também para impedir o dos outros. Chega a defender que é melhor morrer e expor os outros à morte do que impedir as pessoas de burlar essas normas ao bel-prazer. Sua única obsessão é a de poder perder as eleições e por isso despreza a vida dos outros para salvar seu poder.
Bolsonaro falar da liberdade mesmo à custa de colocar em perigo a própria vida é risível e soa mais à fraude. Se há hoje no Brasil um político que despreza a liberdade é o presidente cujo vocabulário está repleto de palavras como golpe, ditadura, guerra contra a liberdade de expressão e perseguição dos direitos humanos. De guerra contra a liberdade das pessoas de escolher suas preferências sexuais e de negar que os diferentes tenham direito à sua liberdade de sê-lo.
A palavra liberdade na boca do negacionista e genocida já nasce podre e corrompida.
A única forma de liberdade para ele é justamente a de perseguir as liberdades que forjam uma sociedade verdadeiramente democrática onde não existe valor maior do que a vida.
O presidente alardeia o uso de Deus para seus planos de poder e para ganhar os votos da grande massa dos evangélicos. Ele, que gostaria de trocar a Constituição pela Bíblia, deveria se lembrar que nos textos sagrados Jesus define a si mesmo como “o caminho, a verdade e a vida” (João, 14,16).
Bolsonaro despreza exatamente esses três conceitos. Em vez de ser o caminho, ou seja, o guia de uma sociedade justa e livre, é o motor da confusão e do desgoverno. Em vez de ser o representante no país da verdade é o semeador da mentira, cultor da nova moda das fake news. E em vez de ser o defensor da vida chama de covardes os que se protegem do vírus e fazem sacrifícios para continuar vivos.
Não existe no presidente que está conduzindo o país a uma catástrofe um só instinto de vida. Seu abecedário é o da morte e da destruição como revela sua paixão pelas armas, expressão da morte e da violência. Que Bolsonaro coloque um falso conceito de liberdade como mais importante do que a vida é a melhor constatação do que já havia confessado: “Eu não nasci para ser presidente. Minha profissão é matar”.
Bolsonaro poderá um dia ser levado aos tribunais internacionais acusado de não ter impedido com sua negação da pandemia e seu desprezo pela vacina encher os cemitérios de mortos. A única verdadeira liberdade que ele pratica é a de abandonar o país a sua própria sorte para não perder o poder.
O certo e cada vez mais indiscutível é que o Brasil, desde o fim da ditadura e volta à democracia, nunca esteve tão perto de uma nova tragédia política. A espada de Dâmocles de um novo golpe militar não é algo hipotético e sim algo bem próximo. E ainda mais com a chegada inesperada de Lula e a deterioração cada dia maior das instituições que deveriam velar pelos valores democráticos como o Congresso e o Supremo onde está ocorrendo uma verdadeira guerra campal entre os magistrados que deveriam colocar todos os seus esforços na defesa da democracia ameaçada.
Por sua vez, os militares que se comprometeram abertamente com o Governo Bolsonaro e suas loucuras antidemocráticas dificilmente aceitarão aparecer como derrotados. E certamente não permitirão perder essa guerra.
As grandes tragédias dos países começam por ser consideradas como catastrofistas e acabam sempre se realizando quando já não há mais tempo de detê-las.
Cuidado Brasil!
Quem mandou matar Marielle?
No último dia 14 de março, completaram-se três anos do atroz assassinato da jovem ativista negra vinda da favela, Marielle Franco, e sobre sua tumba continua ameaçador o silêncio sobre quem foram os mandantes de sua morte. Escrevi em outra coluna que Marielle morta poderia acabar sendo mais perigosa do que viva. Talvez seja necessário uma mudança no Governo de morte de Bolsonaro para que por fim saibamos com certeza quem matou a jovem e por quê. E então o Brasil poderá, por fim, fazer justiça da bárbara execução.
Para isso será preciso que chegue um presidente não comprometido com o submundo das milícias do Rio e que chegue um Governo realmente democrático que descubra o mistério de sua morte e, por fim, faça justiça levando aos tribunais os culpados hoje escondidos nos porões sombrios do poder.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Juan Arias: Brasil mergulhado na barbárie
Deixar um país inteiro à deriva, não por falta de recursos, mas de liderança, é um crime que também recai sobre as autoridades incapazes de intervir
O Brasil começa a ser um campo onde parece ter se instalado um regime bárbaro com atos de terrorismo perpetrados contra aqueles que defendem as medidas de lockdown contra a pandemia que ameaça afundar o país na maior crise de saúde de sua história. Dois atos de terror e violência levados a cabo nos últimos dias contra dois jornalistas por fanáticos de Jair Bolsonaro levantaram o alarme de que os seguidores do presidente, que os qualifica de “meu exército”, estão dispostos a incendiar o país para impedir as medidas restritivas exigidas pela ciência e pela medicina como única arma junto com a vacina para tentar deter o rastro de mortes cada dia maior que horroriza o país. Nesta quinta-feira, o presidente deu mais um incentivo a eles: em nova transmissão ao vivo, disse ter acionado o Supremo Tribunal Federal contra as medidas para conter a circulação.
O último ato de terror aconteceu na cidade de Olímpia, no interior de São Paulo, contra José Antonio Arantes, editor do jornal local que quase morreu junto com a mulher e a neta de sete anos enquanto dormiam. Atearam fogo na casa durante a madrugada e se não fossem os dois cachorros que os despertaram com o quarto já cheio de fumaça e fogo, toda a família teria morrido. “Mais quinze minutos e teríamos todos morrido sufocados pelo fogo”, disse o jornalista, que acrescentou: “Estou há 40 anos na profissão, comecei minha carreira já no final da ditadura. Não vou abrir mão de lutar pelo meu povo e contra qualquer tipo de terrorismo e pensamento político que visem tirar a liberdade e suprimir os direitos de minha população”.
Outro jornalista, do O Estado de Minas há 20 anos, foi agredido durante uma manifestação de bolsonaristas com pontapés e pancadas na cabeça dadas com um capacete de motociclista aos gritos de “Comunista! Não vamos deixar!”. O jornalista comentou: “A ferida está na alma. Saber que temos um líder no país que incentiva a violência”. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) escreveu que “o extremismo e a intolerância contra jornalistas atingem toda a sociedade”.
É sabido que os grandes incêndios que devastam florestas inteiras às vezes começam com uma ponta de cigarro acesa. O mesmo acontece na política. Muitas das grandes tragédias da humanidade às vezes começaram com um único tiro de pistola e acabaram manchando de sangue países inteiros.
O Brasil está numa situação grave e perigosa que, se não for contida a tempo, pode arrastar o país para as cenas dantescas vistas no final do Governo Trump. As instituições do Estado responsáveis pela defesa dos direitos sancionados na sociedade não podem fechar os olhos nem pensar que Bolsonaro ainda pode mudar, defender os valores da liberdade e acalmar suas hostes violentas. Em mais de dois anos de Governo já deu provas suficientes de que sua personalidade negacionista, destrutiva e violenta não vai mudar.
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Como vários psiquiatras já indicaram, sua personalidade pertence a pessoas com traços de patologia impossíveis de curar. Em sua coluna de ontem no jornal Folha de S. Paulo, intitulada Jair Messias e o ‘pai dos psicopatas’, Guido Palomba cita o psiquiatra alemão Kurt Schneider, que em seu último livro tenta decifrar os transtornos de personalidade em tempos de tensão.
Juan Arias: Estadistas e políticos de fibra não temem críticas de jornalistas. Só os medíocres e inseguros
Conto dois episódios emblemáticos de quando fui correspondente na Itália e no Vaticano. Jamais uma autoridade importante reclamou comigo sobre o que eu escrevia
Meus longos anos como jornalista me ensinaram que os verdadeiros estadistas e os políticos seguros de si não temem as críticas nem as perguntas mais ásperas dos jornalistas. Só os medíocres e inseguros. Os presidentes dos países importantes e das democracias sólidas sabem que as críticas dos veículos de comunicação fazem parte do jogo democrático.
Hoje, aqueles que dirigem as grandes democracias jamais se permitirão deixar de responder, em uma entrevista pessoal ou coletiva, a uma pergunta de um jornalista, por mais dura que seja, ou abandonar a entrevista. E muito menos insultar ou ameaçar o jornalista. Só o ex-presidente americano Donald Trump fazia isso, e por isso era considerado como um desequilibrado mental e acabou perdendo as eleições.
Aos jovens jornalistas brasileiros e aos estudantes de jornalismo que às vezes me perguntam sobre minhas experiências jornalísticas ao redor do mundo, dedico esta coluna para contar dois episódios emblemáticos de quando fui correspondente na Itália e no pequeno e poderoso Estado do Vaticano.
Os políticos italianos que eu criticava em meus artigos, em vez de se queixar ao meu jornal, enviavam-me um motorista com um cartão manuscrito me agradecendo. Em meus 18 anos de correspondente, jamais um político importante reclamou comigo sobre as críticas que eu lhe fazia.
Quando o ministro de Relações Exteriores da Itália era Giulio Andreotti, um dos políticos mais influentes do país, sete vezes primeiro-ministro, uma figura emblemática, a Espanha estava para entrar na então Comunidade Europeia. Para isso, era fundamental o voto da Itália. Certa manhã, o embaixador espanhol na Itália me ligou para dizer que tinha recebido uma queixa da embaixada italiana em Madri por meus artigos duros sobre a máfia siciliana. Disse que um funcionário da embaixada tinha feito um dossiê de seis meses de meus artigos e que estavam muito irritados. E acrescentou com clássico sabor mafioso: “É importante que saibam que a Espanha quer entrar na Comunidade e que precisa do voto da Itália”.
Avisado, o então diretor do EL PAÍS, Juan Luis Cebrián, que tinha sido também o idealizador do jornal, pediu ao embaixador espanhol em Roma o nome e sobrenome do funcionário da embaixada italiana em Madri que se permitiu fazer um dossiê mafioso sobre um de seus correspondentes.
Dois dias depois, recebi um telefonema do secretário de Andreotti me informando que no dia seguinte, às nove da manhã, o ministro me daria a entrevista que eu havia solicitado. Na verdade, eu nunca tinha pedido aquela entrevista e entendi que era uma forma elegante e diplomática de o ministro me chamar para falar comigo. Andreotti, como ministro de Relações Exteriores, era fundamental para apoiar a entrada da Espanha na Comunidade.
Cheguei para a entrevista certo de que se tratava de falar sobre as críticas da embaixada italiana em Madri a respeito de meus artigos. Pelo contrário, ele me recebeu todo cordial e antes que eu lhe fizesse qualquer pergunta, foi ele que me fez uma, desconcertante: “Você sabe onde o Papa [que era então o polonês João Paulo II] escreve seus discursos?”. Respondi que imaginava que era em seu escritório.
Ele respondeu que não, que os escrevia de joelhos em uma mesinha de sua capela particular onde celebrava missa. Intrigado, perguntei como ele sabia. Respondeu que o Papa o convidava muitas vezes a assistir à sua missa. “Não me importo que seja muito cedo, porque sou madrugador. O pior é quando me convida para jantar, porque costuma acabar muito tarde. Prefiro quando o Papa me convida para passear durante o dia com ele nos jardins do Vaticano.”
Eu o escutava atônito, porque estava me dando uma notícia totalmente desconhecida para a imprensa e que, se publicada, seria destaque mundial, já que revelava uma intimidade incomum com o papa Wojtyla, ainda mais se tratando de um político polêmico pelas acusações de fazer parte da máfia.
Em seguida, olhando para a parede, mostrou-me um quadro e me perguntou se conhecia o autor. Eu disse que não, e ele me respondeu: “É do pintor que em Manila, na viagem de Paulo VI às Filipinas, atentou contra o Papa com um objeto contundente na chegada ao aeroporto, ferindo-o no abdome”. Não foi um ferimento grave, mas causou uma comoção mundial.
Depois, soube-se que se tratava de um pintor excêntrico que, naquela ocasião, tinha uma exposição de seus quadros no hotel em que se hospedaria toda a comitiva papal e queria se tornar conhecido mundialmente. Lembro muito bem porque eu acompanhava o Papa no avião com um grupo de correspondentes de todo o mundo e fui testemunha do pseudoatentado.
O que não se entendia era como aquele quadro do homem que atacara o Papa tinha acabado no gabinete do ministro Andreotti. Será que o Papa tinha lhe dado o quadro de presente? Enquanto isso, nenhuma palavra sobre as críticas às minhas crônicas. O político importante do qual se chegou a dizer que era filho de Pio XII porque, ainda jovem, ganhou um cargo importante no Vaticano, concluiu nosso encontro com um último gesto emblemático. Antes de entrar na política, Andreotti foi jornalista. Tinha em sua mesa tinha um exemplar de um de seus livros, que me deu, e com isso se despediu após ter me dado uma notícia exclusiva. Quando saí, abri o livro e estava escrito: “Ao meu colega jornalista Juan Arias, com o afeto de Andreotti”.
Enviei o artigo sobre aquele encontro ao diretor do jornal, que, incrédulo, publicou-o imediatamente. Quando o embaixador da Itália em Madri abriu o EL PAÍS de manhã, ficou atônito. Entendeu muito bem que era uma mensagem cifrada para ele, para que não tentasse criticar novamente meus artigos. E a Espanha entrou na Comunidade Europeia com o voto da Itália. Assim são os verdadeiros estadistas.
Até os Papas e o Vaticano sempre respeitaram os jornalistas e aceitaram suas críticas sem fazer ameaças nem insultos. Fui testemunha disso quando o diretor do EL PAÍS em seus primeiros anos sofreu duros ataques da Igreja espanhola da época, que ainda era franquista, porque o novo jornal defendia o direito ao aborto, os direitos humanos, a liberdade de imprensa e o direito às diferenças. Era um jornal liberal, como os novos que estavam nascendo dos escombros da ditadura.
Um dia, o diretor me chamou a Roma e me pediu algo muito difícil: queria ter uma entrevista pessoal com o então substituto da Secretaria de Estado do Vaticano, o espanhol Martínez Somalo. Era a terceira autoridade do Vaticano, uma espécie de ministro do Interior, e despachava várias vezes ao dia com o Papa. Sem saber como fazer, recorri ao embaixador da Espanha na Santa Sé, que era agnóstico, e perguntei se por acaso ele poderia tentar, mas eu achava impossível porque o substituto do Vaticano nunca havia recebido nenhum diretor de jornal e, além disso, Cebrián tinha acabado de se divorciar.
Poucos dias depois, quando eu estava em um hotel de Florença fazendo uma reportagem, o telefone do quarto tocou: era o próprio substituto do Vaticano, que me conhecia das viagens com o Papa. “Juan, você me pede algo muito difícil, mas vou receber seu diretor”, disse ele. “Diga-lhe que venha em primeiro de maio, quando o Papa estará muito ocupado e terei mais tempo para ele.” E impôs como condição que eu acompanhasse o diretor.
Cebrián chegou a Roma na noite anterior e, às nove da manhã, atravessamos os portões do Vaticano e nos dirigimos, depois de entregar vários documentos, ao pequeno escritório do monsenhor Somalo, ao lado do gabinete do Papa.
Cebrián lhe explicou durante uma hora as dificuldades do EL PAÍS e dos novos jornais que estavam surgindo depois da morte do ditador Franco devido à sua posição de veículos abertos à defesa das liberdades que haviam sido pisoteadas durante a ditadura. Somalo lhe perguntou se quem atacava os jornais eram os militares. “Não, monsenhor, quem nos atrapalha é a Igreja, que sempre esteve do lado da ditadura e de Franco.”
Surpreso, Somalo lhe disse: “Aqui no Vaticano respeitamos a liberdade total de expressão e a imprensa livre”. E, referindo-se a mim, explicou por que quis que eu o acompanhasse ao encontro. “Seu correspondente aqui é testemunha de que nunca recebeu do Vaticano um telefonema de protesto por seus artigos”, afirmou. “E não me dirá, diretor, que não escreveu coisas muito duras sobre nós.” Eu tinha escrito sobre as dúvidas que existiam de que João Paulo I, que morreu misteriosamente 33 dias depois de sua eleição, pudesse ter sido assassinado. Eu lhe respondi que era verdade que o Vaticano nunca tinha se queixado de meus artigos e sempre me deu um lugar no avião do Papa para acompanhá-lo em suas viagens pelo mundo. E, entre brincadeira e a sério, acrescentei: “Mas também é verdade, e vocês sabem disso, que sei de coisas que nunca publiquei nem publicarei”. Rindo, o monsenhor Somalo disse a Cebrián em tom carinhoso: “Como seu correspondente é mau!”. Cebrián voltou para Madri e a verdade é que a Igreja deixou o jornal em paz.
Só as figuras políticas inseguras e medíocres, sem personalidade, permitem-se atacar e até insultar e ameaçar os jornais e os jornalistas.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Juan Arias: A macabra e psiquiátrica paixão de Bolsonaro pela pólvora
Talvez o mais grave dessa loucura do presidente seja o silêncio até agora das instituições do Estado frente aos novos decretos para aumentar o número de armas particulares
Se algo caracteriza a idiossincrasia de Bolsonaro é sua paixão pelas armas, por tudo o que cheira à pólvora. Além do tiro ao alvo ser um dos seus esportes preferidos, sua ânsia por armar até os dentes os brasileiros revela seguramente um distúrbio psiquiátrico que não sei se tem nome científico. Dizer que “o povo está vibrando” de felicidade por poder possuir tantas armas revela mais, talvez, sua obsessão macabra pela violência.
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Nos comentários à reportagem de Carla Jiménez e Regiane Oliveira sobre os novos decretos do Presidente que amplia de 4 a 6 o número de armas que uma pessoa pode possuir legalmente e os caçadores, até 40, foram muito significativos. “Menos armas e mais emprego”, “menos armas e mais educação”, “menos armas e mais vacinas”. Outros chegaram a fazer hipóteses que nessa pressa de Bolsonaro em armar a população pode significar que o que deseja é criar sua própria milícia para que o defenda no caso de tentarem retirá-lo do poder ou perca as próximas eleições, criando um clima violento no país de guerra civil.
É uma hipótese bem possível, mas acho que essa paixão desmedida por tudo o que cheira à pólvora e a tudo relacionado às armas de fogo pode fazer parte de sua personalidade de morte e destruição, de negacionismo e de mania de perseguição. E até de medo. Ele confessou que dorme com uma arma ao lado de sua cama, como se em sua residência presidencial não existisse segurança suficiente para defendê-lo. Esse amor pelas armas e pela violência pode explicar sua frieza às mortes da pandemia. Não sabemos como são os sonhos de Bolsonaro além de que dorme muito pouco porque sofre de insônia, mas certamente são povoados de armas e mortes.
Essa sua paixão desmedida por disparar armas de fogo fez com que em sua viagem oficial a Israel pedisse para realizar uma exibição de tiro ao alvo. E essa paixão pelas armas é evidente vendo suas fotografias imitando com as mãos o gesto de disparar. Três fotos são particularmente eloquentes e aterradoras a esse respeito: a dele e seus três filhos políticos juntos imitando disparar um fuzil e com os quatro sorrindo de orelha a orelha. A do hospital após a operação depois do atentado durante a campanha eleitoral ainda envolto em mistério. A foto o apresenta ainda se recuperando imitando com suas mãos o disparo de um fuzil. E a mais aterrorizante talvez seja a que o mostra com uma menina de cinco anos em seus braços enquanto a ensina a fazer o gesto de disparar um revólver com suas mãozinhas inocentes.
Bolsonaro querer agora que os brasileiros possam se tornar o país mais armado do mundo com até 600 armas para cada cem habitantes é uma aberração em um Brasil já martirizado com mais de 40.000 homicídios por ano. Não porque seja um país mais violento do que os outros e sim porque sofre uma carência crônica de segurança do Estado incapaz de defendê-lo.
Em um país em que as pessoas podem, se desejarem, ter até seis armas em sua casa é se esquecer que isso só é possível para os que podem se permitir esse luxo. Enquanto os de sempre ficarão mais expostos à violência, que costumam ser os negros, os jovens e as mulheres pobres assim como os habitantes das periferias que já são alvo a cada dia de cenas de morte e terror dos policiais e dos traficantes de drogas.
E talvez o mais grave dessa loucura do Presidente por sua paixão pelas armas e a violência seja o silêncio até agora das instituições do Estado frente aos novos decretos para aumentar o número de armas particulares. O STF, o Congresso e o Senado ficarão de mãos cruzadas? Não vão parar esses instintos de morte e violência de um Presidente que pode contribuir para aumentar ainda mais o rio de sangue inocente que corre pelas ruas do país?
Há silêncios que podem acabar sendo mortais. E o silêncio, quando não a cumplicidade das instituições do Estado com os instintos de morte do Presidente, podem acabar em uma tragédia nacional.
Juan Arias: 'Divide e reina', a estratégia diabólica de Bolsonaro
O presidente conseguiu criar cizânia e balbúrdia em todas as instituições. No Congresso e no Supremo, passou da ameaça de fechá-los a dividi-los entre si, acabando por politizá-los ainda mais
A estratégia do “divide e reina” remonta ao Império Romano e a frase é atribuída ao imperador Júlio César. Foi também usada pelo cristianismo e atribuída a Satanás, o rei da discórdia e da divisão. Também foi adaptada às guerras e guerrilhas modernas e até mesmo às democracias, para ganhar eleições. Trata-se de criar confusão para confundir e dividir a sociedade enquanto o déspota se fortalece.
Essa tem sido a tática de Bolsonaro, tanto na campanha eleitoral como agora no Governo. Se Satanás é visto como o rei da mentira, Bolsonaro é o melhor expoente das fake news, da mentira sistemática para confundir e desconcertar a população.
Bolsonaro confundiu a sociedade e a dividiu com suas ambiguidades na gestão da pandemia, primeiro minimizando-a, depois aconselhando medicamentos que a ciência e a medicina consideram ineficazes e até perigosos.
Dividiu novamente a sociedade sobre a importância da vacina, criando uma corrente contra ela. Com isso, adiou a aquisição do imunizante, politizando-o. Fomos um dos últimos países a iniciar o processo de vacinação, a única possibilidade de combater a propagação da covid-19 e suas variantes cada vez mais contagiosas. E assim ele dividiu a sociedade.
Mentiu descaradamente, jogando por terra todas as promessas feitas durante a campanha eleitoral contra a velha política e contra a corrupção que agora está exposta em sua própria família. Ele se tornou assim o maior cruzado na guerra para encerrar a luta pela moralidade político-empresarial.
E talvez sua estratégia de dividir para reinar tenha ficado mais clara nas eleições para a presidência da Câmara e do Senado. Bolsonaro conseguiu impor seus candidatos, mas à custa de dividir e pôr em confronto os partidos, que saíram desgastados da batalha.
Foi uma jogada que fortaleceu seu poder ao mesmo tempo em que frustrou a possibilidade de criar uma frente ampla que poderia derrotá-lo nas eleições presidenciais. Sua tática deu bons resultados para ele, pois os partidos saíram da luta enfraquecidos e estão como baratas tontas tentando, por enquanto em vão, recolher os escombros da batalha perdida.
E ainda tem mais. Bolsonaro também conseguiu criar cizânia e balbúrdia em todas as outras instituições, que parecem cada dia mais divididas e confusas. No Congresso, no Supremo Tribunal Federal e na Justiça, passou da ameaça de fechá-los a dividi-los entre si, acabando por politizá-los ainda mais.
Tem sido sua tática diabólica ir contaminando as instituições e a sociedade, aproveitando-se disso para escapar das dezenas de pedidos de impeachment contra si que dormem no Congresso.
Enquanto as forças democráticas não entenderem a política de Bolsonaro de dividir para reinar, acabarão se devorando ao passo que o déspota e golpista vai ficando mais robusto, dando de presente bilhões em dinheiro público para comprá-las e tê-las a seus pés.
Será necessário ver como a sua política de colocar uns contra os outros no melhor estilo de sua política negacionista e de desorientar a sociedade terá consequências na recuperação econômica de um país que ele próprio disse que está quebrado e onde as intrigas políticas criadas pelo presidente aumentam cada vez mais a pobreza e até a miséria.
Isso faz com que a imagem do Brasil esteja no seu pior momento em décadas, segundo revelou um estudo realizado pela Curado Consultoria Associados, especializada em gestão de imagem, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo. O estudo analisou as informações sobre o Brasil que saíram nas sete publicações consideradas os mais influentes do mundo: The New York Times e The Washington Post. dos Estados Unidos, The Guardian e The Economist da Inglaterra, Le Monde da França, Der Spiegel, da Alemanha e El País global, da Espanha.
O resultado do levantamento é devastador. Dos 1.179 textos publicados ao longo de 2020, 92% foram negativos, e isso significa que o Brasil vive uma “crise de reputação”. O estudo destaca que o Governo Bolsonaro tem sido “incompetente e vulnerável”.
O que mais contribuiu para a criação dessa imagem negativa foi, segundo a referida pesquisa, a forma desastrosa com que Bolsonaro conduziu a crise da pandemia, sua política suicida de destruição da Amazônia, a crise econômica que tornou ainda mais aguda a já grave desigualdade social no país e uma política externa desastrosa.
A imagem positiva de que o Brasil desfrutou durante décadas no mundo não excluía suas feridas ainda abertas, como o racismo, a violência e a pobreza. O que acontecia é que o Brasil sempre soube projetar o melhor do país, seus valores mais ancestrais e sua parte lúdica. E não só futebol e Carnaval, mas também sua multicultura, a música popular, com a particularidade do samba e da bossa nova, cujos grandes artistas conquistaram o mundo. E com isso tudo, o caráter acolhedor do brasileiro com os estrangeiros.
Ainda hoje em São Paulo, a maior cidade da América Latina, convivem em paz pessoas de mais de 100 nacionalidades. Lembro-me de que nas viagens que fiz pelo mundo, na companhia de correspondentes de vários países, os mais bem recebidos sempre eram os brasileiros. Recordo-me da expressão de simpatia com que eram recebidos: “Ah, brasileiros!”
Não há dúvida de que muito da imagem de simpatia de que o Brasil desfrutava se devia à sua magnífica política de relações exteriores. Seus ministros sempre foram figuras de grande prestígio e preparo intelectual, e enviavam pelo mundo como embaixadores pessoas de grande empatia e capazes de vender os aspectos mais positivos do país.
De fato, a diplomacia brasileira sempre foi considerada uma das melhores do mundo.
E agora? Passamos para o outro extremo com um ministro de Relações Exteriores que sempre cria problemas com os outros países e que esteve à ponto de azedar gravemente as relações com as grandes potências mundiais, ao mesmo tempo em que fazia de Trump seu ídolo pessoal. E quando o então presidente dos Estados Unidos perdeu as eleições, o Brasil foi o último país do G20 a parabenizar o vencedor Joe Biden, enquanto Bolsonaro continuava a defender que Trump havia vencido as eleições.
Tudo isso e mais a desastrosa política para a educação e o desprezo pela cultura, humilhando artistas e intelectuais, criaram no exterior uma política de rejeição do Brasil que pode ter custos muito sérios, afastando os empresários estrangeiros de investir no país.
E é sabido que quando um país começa a ser visto no exterior em contínua crise política e de valores, precisará de muitos anos para recuperar sua face positiva e atraente.
Tudo isso vai destruindo internacionalmente a imagem positiva do país do futuro de que o Brasil desfrutava.
Nada na política está separado da prosperidade econômica e das relações positivas com as outras nações. O resultado é sempre a perda não só de prestígio, mas também de credibilidade internacional que não pode deixar de afetar sua política econômica, empobrecendo ainda mais o país.
Hoje, em um mundo globalizado e conectado a todo instante, não cabem mais nem as muralhas da China nem os muros entre o México e os Estados Unidos nem a ressurreição das fronteiras europeias.
O mundo está mudando com tal velocidade que tentar se fechar em sua casca como o Governo fascista de Bolsonaro tenta fazer é ficar fora da história.
Até os conceitos de tempo e espaço estão mudando no mundo. Dentro de pouco tempo será possível viajar do Brasil para a Europa ou EUA em 20 minutos. Um empresário de São Paulo poderá tomar o café da manhã em casa, ir a Londres dar uma palestra e voltar para almoçar com a família. E não se trata de ficção científica, mas de uma realidade que já está em experimentação.
Por tudo isso, pretender que o Brasil, quinto maior país do mundo, permaneça fechado, envenenando suas relações com o restante do planeta em prol de uma política petrificada e empobrecida, é querer voltar às cavernas.
Para recuperar o prestígio perdido, o Brasil merece algo mais do que essa política destrutiva e negacionista.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Juan Arias: O desafio arrogante de Bolsonaro, que acredita ser blindado por Deus
Bolsonaro, em vez de concentrar todas as suas energias em tirar da crise um país que “está quebrado”, como ele diz com sadismo, tenta apenas se blindar no poder para se reeleger
A dor dos asfixiados em Manaus por falta de oxigênio, uma verdadeira tragédia nacional, despertou o “Fora, Bolsonaro!” e fez os panelaços de protesto soarem mais fortes do que nunca. Voltou a surgir assim a possibilidade de um impeachment para arrancar Bolsonaro do poder. Minhas colegas Giovanna Oliveira, Carla Jiménez e Flavia Marreiro nos contaram muito bem em seus textos neste jornal.
Sem dúvida é um primeiro passo para a saída do presidente, que demonstrou, como sempre, sua frieza e indiferença perante a morte. Um presidente que nem se dignou a ir ao lugar da tragédia para confortar as famílias que estão vendo seus entes queridos morrer por asfixia ―a pior das mortes, segundo os médicos.
E no entanto Bolsonaro, que se revelou incapaz de governar um país com a envergadura e a complexidade do Brasil, em vez de concentrar todas as suas energias em tirar da crise um país que “está quebrado”, como ele diz com sadismo, tenta apenas se blindar no poder para se reeleger.
Uma blindagem em várias esferas. A mais arrogante é quando ele afirma: “Só Deus me tira daqui.” E, se por acaso Deus se esquecer dele, buscará outras blindagens mais humanas. Primeiro a dos militares, cuja presença ele garantiu no Governo e em todas as instituições do Estado. É verdade que muitos deles já começam a manifestar um mal-estar em relação ao chefe. E é verdade que não permitiriam que ele tentasse um golpe. Mas esses militares são um escudo para Bolsonaro, pois é a primeira vez na democracia que um presidente lhes dá tanto protagonismo dentro do Governo.
Até mesmo seu vice, o general Mourão, o mais crítico dos militares do Planalto, acaba de excluir a possibilidade de um impeachment ao presidente. Mais do que isso: Mourão avisou que nas próximas eleições Bolsonaro não terá um oponente capaz de vencê-lo nas urnas.
Os militares poderiam ter saído antes do Governo, quando começaram a ver a forma como o presidente tratava até mesmo os generais, além de sua incapacidade de governar. Alguns deixaram o cargo, mas agora é tarde demais. Abandonar o Governo significaria uma confissão de derrota, algo que nunca farão.
Outra blindagem do presidente, talvez ainda mais forte que a do Exército, é a da corporação das polícias militares ―as quais ele está cobrindo de privilégios. Com a polícia, Bolsonaro garante também o apoio das milícias― com quem nutre uma relação umbilical e familiar. Quem assassinou Marielle?
Não só isso. Bolsonaro se sente blindado pelas elites empresariais, que continuam mantendo a miragem do falso apoio do mandatário a uma economia liberal. Isso apesar de que, em seus dois anos de exercício, ele deu provas contundentes do contrário. Essas elites empresariais, juntamente com as classes altas, continuam defendendo o presidente com medo de que a esquerda volte ao poder.
Existe ainda a blindagem, talvez a mais forte, da tomada de poder da Câmara e do Senado, onde, salvo surpresa, Bolsonaro conseguirá impor seus candidatos à presidência. O homem que havia chegado para acabar com a velha política tornou-se o paradoxo de ser seu maior defensor.
Para o Congresso, é uma festa o fato de que Bolsonaro, que havia prometido uma luta implacável contra a corrupção, tenha se transformado no maior inimigo dos que querem continuar apostando na luta contra o saque do dinheiro do Estado por políticos que buscam manter suas campanhas milionárias e enriquecer suas famílias. Bolsonaro tem interesses espúrios em defesa da sua, envolvida também em supostos crimes de corrupção. Com um procurador-geral da República ajoelhado aos seus pés e um STF que parece amedrontado, Bolsonaro se sente blindado.
Some-se a isso o fato de que o presidente, apesar de ter perdido pelo caminho muitos dos que nele votaram e hoje se sentem traídos, ainda conta com 30% de fidelíssimos seguidores, justamente os mais fanáticos e violentos, capazes de se organizar e até de lutar com armas para defender o mito, como ocorreu com Trump nos Estados Unidos. Ao contrário da oposição, que hoje parece incapaz de organizar um protesto nacional.
Por fim, Bolsonaro conta hoje com uma blindagem especial: a da grande massa de evangélicos e seus pastores. É um escudo seguro e forte porque é feito em nome de Deus. Bolsonaro se viu blindado ante um país com mais de 80% de fiéis quando criou seu lema “Deus acima de todos”.
Com todas essas proteções, poder-se-ia dizer que o presidente negacionista e insensível diante da morte pode continuar tranquilo, governando ou desgovernando, e que terá uma reeleição garantida. Mas na política, assim como na vida, nada é imutável e as surpresas são sempre possíveis. Acabamos de ver isso com Trump, o ídolo e amigo de toda a família Bolsonaro, que com sua derrota e sua possível inabilitação política deixou órfão e nu não apenas o mandatário brasileiro, mas também sua política exterior, comandada por um ministro que afirmou, logo após chegar ao Itamaraty, que “Trump e Bolsonaro foram escolhidos por Deus para salvar o Ocidente”.
Diz o ditado que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Quem sabe esse Deus, apoderado no Brasil por todos os poderes fáticos, que o roubaram dos pobres e desfavorecidos, ainda dê uma surpresa.
Se Bolsonaro se escudar em Deus para tentar se manter no poder, é possível que acabe sendo abandonado por esse Deus, ao qual tenta monopolizar e instrumentalizar para seus objetivos espúrios. Se esse Deus reverenciado por Bolsonaro existisse, seria preciso buscá-lo hoje, mais que no centro do poder, no leito dos que estão morrendo asfixiados nos hospitais de Manaus por falta de oxigênio que o Governo lhes negou.
Dito em linguagem laica: talvez para o capitão belicista, que conhece e ama as armas como poucos, o tiro saia pela culatra. Ou, como afirmou a escritora e acadêmica Ana Maria Machado em sua coluna de O Globo: “Chega uma hora em que os pés de barro não sustentam mais ídolos, mitos e mentiras.”
*Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Juan Arias: 'O Brasil está quebrado e eu não posso fazer nada'. A sibilina e ameaçadora afirmação de Bolsonaro
A arrogância do presidente já é proverbial. Seus erros e sua incapacidade de comandar o país são sempre culpa dos que “não o deixam governar”
Ao voltar de suas férias de pesca, Jair Bolsonaro fez uma das mais graves afirmações desde que chegou à presidência. Dirigindo-se aos seus seguidores mais fiéis, confessou que “o Brasil está quebrado” e que ele “não pode fazer nada”. E ainda acrescentou, desafiador: “Vão ter que me aguentar até 2022”. E o pior é que os seus e o mercado continuam a apoiá-lo. A maior vítima será a grande massa de desempregados e pobres, sobre os quais, como sempre, cairá a crise.
Não creio que haja um único chefe de Estado no mundo que seja capaz de confessar que o seu país está quebrado e que não pode fazer nada sem renunciar no dia seguinte. A arrogância de Bolsonaro já é proverbial. Seus erros e sua incapacidade de administrar são sempre os que “não o deixam governar”.
No entanto, há algo mais grave e sibilino em sua afirmação quando diz que o país está quebrado e que não o deixam fazer o que quer. Com isso está dando a entender que é impossível governar com as atuais instituições democráticas. Seria a difícil, mas indispensável, pluralidade de instituições que o arrastaria à tentação de querer viver sem elas.
E é esse equilíbrio de diálogo nem sempre fácil entre as diferentes instituições com seus freios e contrapesos, mas que são a base indispensável dos regimes democráticos, o que Bolsonaro não pode suportar.
É claro que o sonho não confessado de Bolsonaro é poder ter o Congresso e a Justiça amarrados a seus pés à moda de Vladimir Putin e Nicolás Maduro.
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De fato, desde que chegou ao poder vem flertando com um golpe contra o Congresso e o STF. Para ele, todo o jogo democrático é um estorvo.
E o mais grave é que os poderes fáticos não se mexem para retirá-lo do cargo,quando não o bajulam para arrancar cargos e privilégios. Daí que o capitão reformado do Exército se sinta forte e se permita todo tipo de provocações sem que haja uma oposição capaz de parar seus coices contra os valores democráticos e civilizatórios.
A arrogância de dizer que ninguém o tirará do poder é típica dos caudilhos populistas e arrogantes. Diante das declarações de Bolsonaro de que este país está à deriva e que não pode fazer nada, seria necessário perguntar o que os militares continuam fazendo apoiando o aprendiz de ditador. O Exército sempre apareceu nas pesquisas junto com a Igreja como uma das instituições mais valorizadas pela opinião pública.
A Igreja já está perdendo o crédito por ter se jogado nos braços do novo mito e caudilho. E os militares que permanecem no Governo podem acabar sujando toda a instituição.
O que esperam então os militares para abandonar o Governo quando o presidente se declara impotente para governar? A menos que se trate de não perder os privilégios do cargo, o que seria mesquinho em uma instituição da envergadura e da importância do Exército.
E o poder econômico está vendo que o Bolsonaro é incapaz até mesmo de entender o que é a força da economia e sua importância para o bem-estar do país. E seu famoso Posto Ipiranga, o ministro da Economia, hoje é apenas uma marionete nas mãos do mito. Como são, no final, até os generais que estão no Governo.
Às vezes, ver como Bolsonaro trata os generais ministros faz pensar que o capitão reformado do Exército por suas aventuras com o terrorismo hoje está se vingando ao tratar os militares de seu Governo como simples coroinhas.
Sem dúvida, as graves declarações de Bolsonaro de que o Brasil é um país quebrado não animarão os empresários estrangeiros a investir aqui, prejudicando ainda mais a já frágil economia que cria cada vez mais desempregados abandonados à própria sorte enquanto a inflação galopante atinge ainda mais a massa de pobres que é a maioria do país.
Todos nós entramos em 2021 com a esperança de que fosse um ano melhor.
As declarações de Bolsonaro e seu boicote contínuo à vacina enquanto cresce a nova onda de covid-19 estão começando a balançar nossas esperanças.
Fica a incógnita de se as outras instituições do Estado estão cientes de que a presença de Bolsonaro é um dos maiores perigos para a democracia desde a ditadura. Há poucos dias, o presidente alertou seus seguidores que não aceitaria o resultado das eleições se fossem usadas urnas eletrônicas novamente. Nesse caso, disse-lhes “pode esquecer a eleição”, dando a entender que se perdesse não aceitaria o resultado.
Já houve analistas políticos que levantaram a hipótese de que a nova paixão de Bolsonaro pela corporação policial e os contínuos mimos que lhes está fazendo é para tê-los ao seu lado se perder as eleições e tentar dar um golpe autoritário. Bolsonaro sabe hoje que para isso dificilmente poderia contar com a cúpula do Exército, do qual se espera que não terá apoio explícito na campanha eleitoral. É mais fácil esse apoio vir da polícia e das milícias que sempre lhe foram favoráveis e com quem ele, seus filhos e toda sua família sempre tiveram relações misteriosas que ainda não foram decifradas.
Bolsonaro é claramente um despreparado culturalmente e incapaz de governar com as regras democráticas, mas conhece como poucos os subsolos e as cloacas dos poderes mafiosos. O Brasil é muito importante aqui e no xadrez mundial para continuar sendo governado por um presidente que não deixa um só dia de brincar com seus sonhos de ditador.
Todo o resto, até que o país esteja quebrado lhe importa menos. E o pior é que não tem pudor em confessar.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.