José Vicente Pimentel
RPD || José Vicente Pimentel: A reeleição contaminada
Pesquisas eleitorais detectam certo cansaço da opinião pública com Trump e dão ao democrata Joe Biden folgada vantagem na corrida presidencial. Pandemia e o assassínio de George Floyd por policiais em Minneapolis estão entre os fatores principais
Donald Trump elegeu-se presidente dos Estados Unidos sem nenhuma experiência em administração pública, algumas convicções e ego enorme. Entende que o papel do governo é providenciar estímulos fiscais e financeiros às empresas, com um mínimo de regulamentação ambiental, científica, educacional e social. Por isso, impôs-se a missão de destruir o legado de Barack Obama. Desse ponto em diante, o mercado se encarregaria de recolocar a América em primeiro lugar.
Vale notar que o mote “America first” já foi usado por políticos democratas e republicanos. Philip Roth, no livro-cult “Complô contra a América”, imagina como Charles Lindbergh teria conduzido o país ao fascismo, se tivesse vencido a eleição contra Franklin D. Roosevelt, em 1940. Na vida real, Lindbergh era, além de aviador, o porta-voz do America First Committee, grupo de pressão com caráter francamente protofascista.
Sem muitas ideias, mas com a autoconferida aura de negociador emérito, Trump interferiu fundo no Departamento de Estado. Reincorporou o personagem do programa “O Aprendiz”, que viveu na TV, e despediu funcionários até do terceiro escalão. Censurado por enfrentar negociações difíceis com a OTAN com reduzidíssima assessoria diplomática, deu de ombros: “o único que importa sou eu”.
Voluntarista, embora sem objetivos claros, investiu contra a ONU e o arcabouço multilateral criado em 1945, sem propor nada capaz de aperfeiçoá-lo ou substituí-lo. Radicalizou a diplomacia presidencial, permitindo que sua antipatia por Emmanuel Macron, Angela Merkel e Justin Trudeau interferisse nos negócios de Estado. Por outro lado, cortejou Kim Jong-um, não se sabe bem para que, pois o norte-coreano não desistiu do programa nuclear nem diminuiu as arestas com a Coréia do Sul.
A Rússia é um capítulo à parte. Trump nutre admiração explícita por Vladimir Putin e está sempre pronto a relevar as transgressões do russo, mesmo quando as denúncias são de que estaria concedendo incentivos pecuniários para que militantes talibãs assassinassem soldados americanos no Afeganistão. Sua atitude não contribui para diminuir a desconfiança de que dinheiro russo teria financiado os negócios imobiliários da família Trump em Dubai e no SoHo. Os rumores talvez desparecessem se Trump tornasse público seu imposto de renda, o que ele se recusa a fazer.
Com a China se dá o embate maior. Não está claro quem está ganhando o jogo. O que se verifica são os prejuízos que todos os países sofrem, em decorrência da guerra comercial. A incerteza nas relações entre Washington e Pequim deixa o mundo sem meios de planejar o futuro. Para agravar a incerteza, as revelações de John Bolton, ex-diretor de Segurança Nacional, em livro recém-publicado, segundo as quais o presidente seria, nas negociações com Xi Jinping, mais “suave” do que diz de público, são constrangedoras e geram mais dúvidas sobre os objetivos americanos.
A atual Casa Branca não abre as portas a intelectuais e cientistas, como já foi de praxe. Trump se declara cético quanto a vacinas. Diz que o aquecimento global é uma invenção dos chineses para brecar o crescimento das empresas americanas. Marginalizou cientistas e pesquisadores. O historiador Douglas Brinkley declarou em audiência na Câmara Federal que “Donald Trump é o presidente mais anticiência e antiecologia que jamais tivemos”.
Enquanto a economia apresentou bons resultados, Trump surfou na onda. Mesmo o processo de impeachment na Câmara não teve consequências mais danosas, pois a maioria republicana no Senado o blindou. Então, surgiu o Covid-19.
Desde então, Trump parece desnorteado. Primeiro, negou a gravidade da pandemia; depois, fez-se curandeiro e receitou tratamentos, que os médicos logo desaprovaram; previu que a doença iria magicamente embora e o coronavírus, três meses depois, continua ali, firme. Delegou o comando das ações aos governadores e o de Nova York, Andrew Cuomo, dá lições diárias de como um líder deve se comportar numa crise; conclamou os estados a flexibilizarem a quarentena e os que o seguiram têm agora que fechar outra vez. Trump não visita hospitais, não tem gestos de empatia para com os doentes. Parece mesmo convencido de que o vírus é chinês e foi criado para avacalhar-lhe a economia.
É quando advém o assassínio de George Floyd por policiais, em Minneapolis. O vídeo da barbárie repercute e motiva manifestações antirracistas em todo o território americano. Trump não condena os policiais e, sim, os manifestantes, que estariam a serviço de uma organização terrorista, o que não se comprova, porém reacende a polêmica sobre a insensibilidade, o racismo e até o protofascismo do presidente.
Recentes pesquisas detectam certo cansaço da opinião pública com Trump e dão ao candidato democrata Joe Biden folgada vantagem na corrida presidencial. Faltam 4 meses para as eleições, e o poder do presidente em exercício é imenso, sem dúvida. Mas, se Biden mantiver os democratas unidos, controlando os radicais, pode ganhar também o eleitorado do centro. Nesse caso, a vitória será consagradora. Ou seja, quem colocou todas as fichas na reeleição do republicano se prepare para uma provável desilusão.
*José Vicente Pimentel é embaixador.
Política Democrática || José Vicente Pimentel: O plano de Trump para o Oriente Médio
Esquema anunciado pelo presidente norte-americano em 28 de janeiro último, após três anos de mandato e a dez meses das eleições presidenciais de 2020, decepcionou os que esperavam alguma sutileza política ou criatividade diplomática
A questão da Palestina está na agenda internacional desde o Acordo de Sykes-Picaut de 1916. O primeiro plano de paz foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947. Desde então, é comum ver os presidentes americanos envolverem-se diretamente nos problemas do Oriente Médio. As guerras de 1948, 1967 e 1973 entre árabes e israelenses, vencidas sempre por estes últimos, aumentaram a pressão para que os EUA se engajassem nas negociações de paz, por serem o único honest broker que as partes reconheciam como capaz de negociar soluções pacíficas para os conflitos.
A resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), aprovada após a Guerra dos Seis Dias, e reafirmada pela resolução 338, adotada após a Guerra do Yom Kipur, tornou-se um marco nas negociações. O texto preconiza a “retirada das forças armadas de Israel dos territórios ocupados durante o recente conflito”. Mas a delimitação desses territórios é foco até hoje de disputas. Para os palestinos, seriam suas a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, além de Jerusalém Oriental. Israel contesta os limites entre a Jordânia e a Cisjordânia e quer uma Jerusalém unificada sob seu controle. Há outros itens espinhosos, como a retirada israelense do sul do Líbano, os territórios ocupados e os assentamentos neles erguidos por Israel.
Esses temas permaneceram na pauta ao longo dos anos, gerando belos momentos diplomáticos, como os Acordos de Camp David, impulsionados por Jimmy Carter; os três pontos reconhecidos por Yasser Arafat em seus encontros com Ronald Reagan (reconhecimento de Israel, aceitação da resolução 242 e renúncia ao terrorismo); a primeira Conferência Internacional de Madri, organizada por George Bush pai, em 1991, que ensejou o histórico aperto de mão entre Arafat e Yizhak Rabin, e os Acordos de Oslo, impulsionados, em 1995, por Bill Clinton. Esses esforços criaram muita expectativa, a que se seguia desalento diante das intifadas de 1987 e 2000, bem como dos sucessivos assentamentos israelenses em territórios ocupados. Mas assim como a medicina não pode se abater ante a reincidência de um câncer, a diplomacia precisa encontrar nos insucessos motivação para renovar energias, buscar saídas e evitar o mal maior de uma ampliação do teatro de guerra. Nesse contexto, aguardava-se a contribuição de Donald Trump, aquele que ganhou as eleições autodeclarando-se “o grande negociador”.
O esquema anunciado por Trump em 28 de janeiro último, após três anos de mandato e a dez meses das eleições presidenciais de 2020, foi uma decepção para os que esperavam alguma sutileza política ou criatividade diplomática. O plano favorece Israel em todos os temas em disputa. Mediações anteriores haviam feito progressos na negociação de medidas para assegurar segurança na fronteira da Jordânia, a fim de que terroristas não atravessassem a Cisjordânia e ingressassem em território israelense. Trump resolveu a parada presenteando Israel com todo o Vale do Jordão. Dessa maneira, Jericó se transformaria num enclave, cercada por Israel por todos os lados. Os palestinos manteriam apenas 30% da Cisjordânia.
Por sua vez, a soberania sobre Jerusalém Oriental foi integralmente entregue a Israel, que passaria a ter inclusive direitos sobre o Monte do Templo, ou Haram al-Sharif, e sobre a mesquita de al-Aqsa. Como compensação, os árabes receberiam um centro turístico ao norte de Jerusalém e acesso, controlado por Israel, aos lugares santos.
O resto segue o padrão desequilibrado de um diktat, negociado pelo genro de Trump apenas com diplomatas israelenses, sem participação da Palestina. O caráter impositivo ficou patente na cerimônia de anúncio do plano, feita em conjunto por Trump e Benjamin Netanyahu, com a notória ausência de palestinos. Por isso, não causou surpresa que tenha sido de pronto rejeitado pela Liga Árabe e pelas principais Chancelarias mundo afora.
O Governo Bolsonaro preferiu distanciar-se da maioria e manter a tendência de alinhamento integral a Donald Trump, assim modificando mais uma posição tradicional da diplomacia brasileira. Vale lembrar, por exemplo, que o governo Geisel se posicionou a favor da retirada das tropas israelenses dos territórios árabes ocupados em seguida à guerra de 1967 e reconheceu o direito do povo palestino à autodeterminação e à independência. Militava em favor dessa postura equilibrada a importância concedida, desde os tempos do Barão do Rio Branco, à diplomacia multilateral; o reconhecimento de que o Oriente Médio é uma região importante para a manutenção da paz e para a estabilidade da economia mundiais e, ainda, em manifestação de respeito pela notável contribuição que as comunidades árabe e judaica deram e precisam continuar dando à harmonia da sociedade e ao progresso econômico do Brasil.