José Serra
José Serra: As tentações do azar
Lobby da jogatina insiste no retorno dos cassinos e congêneres. E com baixa tributação
Não obstante seus seguidos revezes ao longo do tempo, os defensores da “legalização” do jogo têm redobrado a ofensiva para trazer essa prática de volta ao País. Só no ano passado fizeram duas tentativas, por sorte frustradas. Uma, em março, mediante o Projeto de Lei 186, que foi derrotado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. A outra, em agosto, quando o relator da Lei Geral do Turismo na Câmara de Deputados rejeitou emenda que autorizava “jogos de fortuna em bingos, jogos online e em resorts integrados”.
Mas o lobby da jogatina é insistente e contra-ataca de novo: acaba de apresentar o PLS 530, de 2019, que prevê o retorno dos cassinos e congêneres. Neste mesmo ano até o presidente da República, Jair Bolsonaro, acenou com a possibilidade dessa volta. É um jogo sem fim.
Mas esse lobby tem sido rejeitado por uma ampla coalização contrária, que inclui, entre outros setores, parlamentares representativos das diversas confissões religiosas. Por isso mesmo foi surpreendente a atitude do prefeito do Rio, o evangélico Marcelo Crivella, de apoiar um megaprojeto de cassino no Porto Maravilha. Atitude preocupante, que pode enfraquecer a ainda sólida maioria contrária ao jogo, caso convença membros da bancada ligada às diferentes igrejas a participarem dessa empreitada funesta.
Parece-me compreensível a aflição do prefeito do Rio – que, pessoalmente, é contra o jogo e outros vícios – com o tamanho dos desafios administrativos que herdou. Um deles, o projeto do Porto Maravilha, tem-se mostrado especialmente inviável, típico rebento que é da megalomania associada à vinda da Copa do Mundo e da Olimpíada. Seus arautos garantiam que os eventos trariam a redenção da economia fluminense e do País.
A tese era tão irrealista – e suas consequências, tão frustrantes – que nem é preciso nos alongarmos. Os caríssimos elefantes brancos que foram erigidos para receber os eventos trazem hoje ônus significativos para as cidades e os Estados que os hospedaram. Para exemplificar, o Estádio Mané Garrincha, além do custo absurdo de R$ 2 bilhões para sua construção, dá prejuízo anual de R$ 8 milhões.
É irrealismo supor que um cassino poderia resolver os problemas do Porto Maravilha. É a mesma ilusão que anima os jogadores compulsivos: a cada derrota, dobra-se a aposta, ampliando a ruína. Mas o lobby do azar tenta habilmente usar o drama econômico-social carioca para empurrar goela abaixo do País algum projeto que, autorizando cassinos no Rio, permita introduzir o jogo no resto do Brasil. E não só cassinos, mas caça-níqueis e bingos, que, espalhados pelas esquinas, dificultariam ainda mais a vida num país que enfrenta o desemprego de 12 milhões de pessoas. Alguém duvida que, uma vez aprovado o jogo no Rio de Janeiro, o governo cederia às pressões dos demais Estados para criar mais casas de jogo?
Diga-se de passagem que, diferentemente do que se apregoa, a sustentabilidade financeira dos cassinos depende crucialmente de haver poucos deles em cada país. E isso vale até mesmo para a maior economia do mundo, a americana.
Como ilustra o exemplo de Atlantic City – cenário de sucessivas falências de casas de jogo –, todas as tentativas de expandir o mercado para além de Las Vegas oscilaram entre a decepção e o fracasso espetacular. E não se pense que por incapacidade empresarial. Naquela cidade sucumbiram casas de jogo projetadas por Donald Trump e pelo venerável banco de investimentos Morgan & Stanley. Para ter uma ideia do desastre basta observar a queda no faturamento dos cassinos de Atlantic City de 2006 a 2017: de US$ 5 bilhões para US$ 3 bilhões.
Já mencionei em outros artigos nesta página o engano fabricado pelos ideólogos da jogatina quando afirmam que essas atividades são boas porque geram empregos e fomentam indiretamente a atividade econômica. Trata-se de um keynesianismo de quintal, que supõe que as pessoas tenham recursos financeiros ociosos entesourados embaixo do colchão e à custa deles frequentariam as salas de apostas. O que fariam, na verdade, seria deixar de consumir e/ou de investir para jogar. Não haverá ganho líquido em termos de atividade econômica e receita de impostos, ao contrário.
Além disso, a competição dos caça-níqueis e bingos seria letal para as ações governamentais com recursos das loterias da Caixa. Praticamente metade dos R$ 14 bilhões das loterias é carreada para programas de educação, segurança, esporte e cultura. No projeto do lobby do jogo a tributação seria de 10% da receita bruta. Isso num país cujo carga tributária da gasolina é de 48%. Só nos falta esta: patrocinar o vício com alíquotas favorecidas!
Mas o grande dano dos cassinos é provocado pela desagregação familiar. Os promotores da jogatina costumam afirmar que o jogo já existe de fato no Brasil, apontando para as loterias da Caixa Econômica. Mas as duas modalidades são infinitamente distintas. Não é possível comparar os efeitos psicológicos – e familiares – das quase inocentes loterias da Caixa, e seus sorteios espaçados no tempo, com os dos jogos de frequência ininterrupta – às vezes de segundos – oferecidos pelos cassinos e jogos online. A antropóloga Natasha Schüll, do MIT, concluiu que esses jogos de frequência ininterrupta produzem um estado de transe psíquico no qual a vítima é presa por horas ou até dias. Quando seca o dinheiro, segue-se imenso abalo emocional e a tentativa desesperada de “recuperar as perdas”. A família do viciado vai sofrer, impotente, a pobreza e a decadência.
É preciso resistir ao discurso melífluo dos lobistas do jogo e às tentações do azar. Lembro uma passagem de profundo conteúdo moral do Novo Testamento: Jesus, no deserto, é tentado por 40 dias. A resistência de Cristo, narrada por Mateus, Lucas e Marcos, simboliza o compromisso inquebrantável dos cristãos com a ideia de que a salvação – individual ou coletiva – não se encontra em atalhos fantasiosos.
O bem do Rio de Janeiro e do Brasil não será alcançado pela “porta larga” do vício, mas por meio da “porta estreita e do caminho apertado” do trabalho e da perseverança.
*Senador (PSDB-SP)
José Serra: Menos arroubos, mais diplomacia
O Brasil não tem história nem poderio para se tornar parte de uma polícia global
A deterioração da situação política na Venezuela, com todos os seus corolários – recrudescimento da repressão pelo ditador Nicolás Maduro, emigração em massa e conflitos entre Forças Armadas e civis venezuelanos, a um passo da nossa fronteira –, arrasta o Brasil (e a Colômbia) para focos de tensão crescente. Como já escrevi neste espaço, o conflito interno na Venezuela é uma circunstância que o Brasil não escolheu, mas que, cada vez mais, nos impõe dilemas especialmente difíceis, que devem ser tratados com muita cautela e pragmatismo.
Os desdobramentos mais recentes – como a tentativa de atravessar a fronteira no Brasil e na Colômbia com caminhões de ajuda humanitária – deslocam perigosamente nosso papel no conflito da esfera tipicamente diplomática para a antessala de uma ação propriamente militar. Na semana passada o governo de Maduro posicionou tanques próximo à nossa fronteira, dando sequência a um imbróglio preocupante.
Quando se sai do campo da diplomacia e se entra, ainda que tenuemente, na esfera bélica, as opções de recuo diminuem e a tendência a uma escalada temerária não pode nunca ser descartada. Em face da reação das Forças Armadas venezuelanas, ainda leais a Maduro, a entrada da ajuda humanitária fracassou. Esperava-se que a possibilidade dessa ajuda e o previsível rechaço de Maduro abrissem uma fenda na lealdade militar ao chefe venezuelano. Mas houve relativamente poucas deserções, a grande maioria de patentes baixas e médias. Os desertores cruzaram a fronteira com a Colômbia e alguns foram resgatados pela Polícia Federal brasileira. A manobra não deu certo – pareceu longe de ameaçar a estabilidade dos vínculos entre o governo e o Exército.
O que se poderia fazer a partir daí? Aumentar a pressão político-diplomática e, usando aparato bélico, impor a passagem de comboios com alimentos e remédios? Ou desistir da operação até que um virtual abalo do apoio dos militares a Maduro levasse à derrocada do seu regime? Ao que tudo indica, ficaremos na segunda opção. O que não deixará de ser um prudente recuo, bem-vindo, diga-se. Mas não melhor do que se estivéssemos cuidadosamente explorando outras opções de ação.
A lição que fica do episódio é que blefes não costumam produzir bons resultados nas relações internacionais, ainda mais se o adversário encurralado tem tudo a perder se não resistir. Por mais que Maduro e o chavismo tenham levado seu país à ruína, a sociedade venezuelana está ainda dividida. Essa divisão tem raízes históricas, especialmente pelo desprezo das elites, no passado, pela situação da grande maioria marginalizada. O apelo ideológico do “socialismo” chavista ainda sensibiliza boa parte dos venezuelanos. Embora essa parcela seja cada vez mais minoritária, ela permanece forte o suficiente para alimentar a instabilidade política mesmo depois de uma eventual queda de Maduro.
Outro fator complicador – e uma das grandes dificuldades para o desfecho pacífico de tiranias como a venezuelana – é o crescente envolvimento de autoridades, civis e militares, nas ações do regime ameaçado. Para elas, resistir à mudança é evitar a punição futura. Essa circunstância mostra quão essencial passa a ser a criação de salvaguardas e anistias para os possíveis derrotados, a fim de que o custo da transição não seja uma guerra civil aberta.
Nesse aspecto, o “presidente” interino Juan Guaidó – assim reconhecido por boa parte da comunidade internacional, incluindo o governo brasileiro – tem tido comportamento exemplar, exercendo uma inteligente política de atração de possíveis dissidentes do regime com ofertas de reconciliação.
Em vista dos enormes riscos que envolvem o Brasil, parece óbvio que qualquer atitude que possa desencadear uma escalada bélica deve ser rejeitada. Isso não significa, evidentemente, adotar uma postura passiva ou condescendente com Maduro e seu grupo. Há a possibilidade, por exemplo, de aumentar pressões externas mediante a suspensão de linhas de comércio com a Venezuela. Esse fechamento teria efeitos econômico-sociais adversos no país vizinho, mas seria uma opção menos dolorosa do que a de expor as pessoas a um conflito bélico em que o Brasil se envolvesse e cujos desdobramentos negativos seriam imponderáveis.
Tenhamos claro que a própria deterioração econômico-social da Venezuela levará, mais dia, menos dia, à ruptura dos militares com o regime de Maduro A hiperinflação abateu-se definitivamente sobre o país e a produção de petróleo, a única atividade econômica capaz de gerar divisas externas, está entrando em colapso. A inflação em fins de 2018 atingiu incríveis 80.000% ao ano, segundo estimativa do professor Steve Hanke, da Johns Hopkins University. Nos últimos cinco anos, a produção de petróleo na Venezuela caiu pela metade – de 3 milhões de barris diários para apenas 1,5 milhão! E cairá ainda mais, à medida que as sanções econômicas já impostas tornem mais precária a manutenção da infraestrutura produtiva. O PIB venezuelano vem declinando a taxas inéditas – uma verdadeira hecatombe econômica. Desde 2013 caiu 70%, medido em dólares. Somente em 2018 a queda foi de 18%!
Não há saída feliz possível para Maduro. E não deixa de ser exasperante assistir ao sofrimento dos venezuelanos prolongar-se no tempo. Infelizmente, nem tudo é possível em política, menos ainda em política internacional, em que o terreno é sempre mais movediço e imprevisível.
A declaração do Grupo de Lima – que reuniu nesta semana representantes de 13 Estados latino-americanos e o Canadá – foi correta. O tom do documento manteve a pressão diplomática, mas claramente afastou as veleidades bélicas que alguns setores parecem cultivar. O Brasil não tem história nem poderio para se tornar parte de uma polícia global. Devemos tomar posição, sim, mas sempre nos limites da diplomacia. Nosso histórico de autocontenção é um grande ativo, uma sábia tradição que não devemos abandonar.
*SENADOR (PSDB-SP), FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
José Serra: Menos juros, mais desenvolvimento
Mudança para melhor exige compromisso efetivo com as reformas estruturais da economia
Não é novidade afirmar que elevados níveis de juros dificultam ou, no melhor dos casos, não facilitam o desenvolvimento econômico e social em nosso país e em qualquer outra parte do mundo. Juros altos como os brasileiros desestimulam o investimento produtivo e tornam a dívida pública excessivamente custosa em termos fiscais. Para se ter uma ideia, apenas em 2018 a despesa dos juros para a sociedade (setor público consolidado) ficou na casa dos R$ 380 bilhões - 5,5% do nosso PIB.
Para a maioria dos analistas econômicos, a mudança para melhor dessa situação exige compromisso efetivo com as reformas econômicas estruturais da economia brasileira. Os objetivos principais seriam, no limite, o reequilíbrio da dívida como proporção do PIB e a ampliação de um quadro de previsibilidade e confiança dos agentes econômicos no governo e no Congresso.
Precisamos de um tripé de reformas, feitas com calma, lucidez e firmeza. Leve-se em conta que a política econômica depende da qualificação dos seus executores e de expectativas favoráveis da sociedade e dos agentes econômicos. O que as pessoas acham e pensam - e não apenas suas decisões a posteriori - afetam o quadro econômico antes que os fatos se concretizem.
A mera apreensão quanto a uma determinada conjuntura ou decisão pode levar a taxa de câmbio, a inflação ou os juros a um quadro de movimentos bruscos, prejudiciais à economia. Quando o mercado prevê tempos nebulosos e incertos, esses riscos são precificados nos diferentes ativos financeiros, a exemplo dos títulos da dívida pública, exigindo pagamento de juros mais elevados pelo governo. Este, por sua vez, aceita pagar taxas mais altas nos títulos que emite para financiar o déficit público. Quando as nuvens se dissipam e o horizonte fica mais claro, se dá o oposto: fica mais fácil e barato financiar as políticas públicas.
Os juros brasileiros já foram bem mais altos em relação aos padrões atuais. A chamada taxa Selic, o juro básico da economia, está em 6,5% ao ano. Antes das quedas recentemente promovidas com maestria pelo Banco Central (BC), a Selic estava em 14,25% ao ano.
Tomando a expectativa dos agentes econômicos para os juros 12 meses à frente e descontando a inflação esperada para esse mesmo período, os juros reais brasileiros estão hoje em 2,3%. No ranking mundial estamos na sétima colocação, conforme dados da Infinity Asset Managment e do portal MoneYou. Perdemos apenas para Turquia, Argentina, México, Rússia, Indonésia e Índia.
O fato é que a taxa de juros depende das condições macroeconômicas do País. Juros elevados são consequência de déficit e dívida elevados, dentre outros fatores. E há mais questões em jogo, como o difícil tópico das operações compromissadas, uma espécie de dívida pública sob responsabilidade do BC.
O peso do crédito público também explica uma parte do problema, porque os juros subsidiados podem afetar o custo do crédito total, uma vez que a política monetária tem menor poder na presença de dinheiro carimbado. Não custa lembrar que a política monetária nada mais é do que a atuação do BC que procura tornar o dinheiro mais caro ou mais barato, mais ou menos disponível, aumentando ou contraindo os recursos em circulação na economia e, assim, atingindo este ou aquele nível de inflação.
O déficit público nominal (ou agregado, como prefiro chamar) encerrou 2018 em 7,1% do PIB e os pagamentos de juros sobre a dívida pública corresponderam a 5,5% do PIB. O restante (menos de 2 pontos de porcentagem do PIB) equivale ao déficit chamado primário. Para a dívida pública parar de crescer, considerando que já atingiu nível muito próximo de 80% do PIB, a Instituição Fiscal Independente do Senado calcula que seria necessário um superávit primário de 1,7% do PIB anual. Em dinheiro, estamos falando de mais de três centenas de bilhões de reais de esforço.
Outras ações precisam ser tomadas, como, por exemplo, enfrentar a excessiva concentração bancária, fator explicativo de parte dos juros elevados na ponta, como se diz. Para além da Selic, os juros que o brasileiro enfrenta são siderais. Vejam-se alguns exemplos: cartão de crédito, 56,9% e cheque especial a 312,6% anuais, além de crédito pessoal de 41,7% ao ano. Alguém vai nos dizer que esses juros descomunais são fruto apenas de indisciplina fiscal ou incompetência das autoridades monetárias?
Quem dá conta de enfrentar a fatura política e econômica dos juros ao consumidor? Registre-se que o Banco Central já avançou em algumas medidas importantes na área. O impedimento de que as pessoas fiquem por mais de um mês no chamado crédito rotativo do cartão de crédito derrubou a taxa de juros significativamente em relação a 2016, quando ultrapassava os 110% anuais.
É hora de o Congresso aprofundar as discussões e aprovar as reformas da Previdência, tributária e política. De aprofundar as discussões sobre os efeitos fiscais da política monetária. A reforma da Previdência ajudará a reequilibrar as contas primárias do governo federal, enquanto a tributária dará mais racionalidade ao sistema e reduzirá os custos das empresas para recolhimento de impostos, melhorando o ambiente de negócios. A reforma política, por sua vez, nos moldes do meu projeto para instituir o voto distrital, aumentaria a representatividade e favoreceria a governabilidade, reduzindo o custo econômico e político de decisões importantes para o País.
Esse conjunto de mudanças ajudaria a destravar o crescimento econômico, impondo nova dinâmica ao mercado de trabalho e aos setores produtivos. Os custos financeiros declinariam como causa e consequência desse cenário mais benigno. Retomaríamos um novo ciclo de desenvolvimento, com expansão do bem-estar social e redução das desigualdades sociais. Começaríamos, assim, a absorver de maneira justa e solidária a bilionária fatura dos juros e de desperdício no Brasil.
José Serra: Tiro no pé
Para combater a violência é preciso firmeza, mas também inteligência
O problema da (in)segurança pública encabeça a lista de preocupações dos brasileiros. O clima generalizado de temor só varia em grau – da apreensão ao pânico –, a depender do local de residência, da condição socioeconômica, do gênero e da idade das pessoas.
A violência é mais forte exatamente contra a parcela dos mais pobres, tanto pelos crimes diretos de que ela é vítima quanto pela subjugação das áreas mais carentes de nossas cidades ao crime organizado, via tráfico e milícias. É, obviamente, uma situação intolerável e deve ser uma das prioridades de qualquer governo, não apenas dos estaduais, mas especialmente o da União, na medida em que os tentáculos do crime organizado alcançaram todas as regiões do País, como o comprovam os brutais ataques no Ceará.
Nesse cenário, a racionalidade sai prejudicada, o pânico toma o lugar da análise, não se captam com precisão as relações de causa e efeito e se torna mais difícil atentar para o fato óbvio de que a violência é um fenômeno cujas causas são múltiplas e complexas. É quase natural partir para soluções simplistas, mas que poderão mostrar-se ineficazes ou até contraproducentes.
Embora a violência esteja em níveis elevadíssimos e a situação pareça ter saído de controle em vários episódios, os indicadores de criminalidade variam significativamente, no tempo e entre regiões e Estados. Isso demonstra que as diferentes políticas de segurança têm variados graus de eficácia. Experiências mais positivas devem servir de alternativa, com as devidas correções e adaptações.
No Estado de São Paulo, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes caiu abaixo de 10 em 2016, enquanto a média nacional superou 30. Não cito esse dado como autoelogio ou elogio ao meu partido, mas apenas para dizer que é possível, com políticas consistentes, duras e continuadas, combater a criminalidade e reduzir severamente o poder das facções criminosas. Por outro lado, há que se precaver de falsas soluções, como a opção por expandir a posse de armas.
Essa proposta, embora atenue a sensação de medo e crie a falsa sensação de aumento da segurança, trará o efeito contrário: mais violência e mais mortes. E, o que é pior, tendo como as maiores vítimas a nossa população mais jovem, especialmente os homens de 15 a 19 anos de idade. Nesse grupo, os homicídios representam 56% das mortes.
O principal argumento para a liberação da posse de armas é que assim a vítima potencial se pode defender e evitar a violência. Mas os fatos desmentem essa crença. Nos Estados Unidos, o país mais armado do mundo, apenas 2,9% dos confrontos acabam com a morte do criminoso em reações de legítima defesa, segundo dados do FBI compilados pela ONG Centro de Políticas de Violência. Os demais 97,1% dos homicídios por arma de fogo são perpetrados pelo criminoso.
E não se contam aí os suicídios, que são um desfecho quase inexorável quando a tentativa é com arma de fogo. No Brasil, 2.898 jovens entre 15 e 29 anos se suicidaram em 2014. O maior acesso a armas certamente aumentaria esse número. Numa pesquisa realizada por equipe da Universidade Johns Hopkins, observou-se que a taxa de suicídios em áreas rurais foi 35% superior à das áreas urbanas, diferença atribuível a diferentes taxas de posse de arma de fogo.
Um fator que limita a eficácia da facilitação da posse de armas é o custo: um revólver custa pelo menos R$ 2.500. Um cidadão da periferia – as áreas de maior risco – não envolvido com atividades ilícitas não terá acesso a armas por absoluta insuficiência de renda, pois poucos poderão gastar quase três salários mínimos para adquirir uma arma de fogo.
Outro argumento a favor da liberalização das armas é que não se quer liberar o porte – a pessoa andar armada nas ruas –, mas apenas a posse, que é ter o direito de ter uma arma em casa, para se defender de eventual assalto. Como os dados dos Estados Unidos já demonstraram, a possibilidade de uma legítima defesa bem-sucedida é muito baixa nesses casos.
O criminoso, em geral, conta com o efeito surpresa, que lhe garante superioridade mesmo contra uma vítima armada. Esse é um fato pouco comentado, mas que explica a baixa eficácia de se armar o cidadão comum. Mesmo policiais treinados, de folga ou em serviço, eventualmente não são capazes de se defender exatamente pelo inesperado do ataque criminoso ou pelo ataque de outro criminoso que, à distância, esteja a postos para revidar contra a vítima.
Além disso, até pelo temor da violência, muitos dos que tiverem apenas a posse de arma se decidirão por portá-la nas ruas. O raciocínio é de que o risco de ser flagrado é compensado pela possibilidade de reagir a um ataque. Mais armas nas ruas. Fatalmente aumentará o arsenal dos criminosos, uma vez que terão mais armas à disposição para subtrair de suas vítimas. Muitas das armas em poder de criminosos foram obtidas por roubo ou furto em residências.
Mas quero deixar claro: não se trata de pontificar sobre o cidadão que teme por si e por sua família sem agir concretamente para reduzir a violência. Penso que várias providências devem ser rapidamente tomadas para coibir o crime. Devem ser esforços de neutralização do poder de fogo dos criminosos, mas também um endurecimento das leis penais. Eu mesmo propus modificação no Estatuto da Criança e do Adolescente com vista a expandir, nos casos de crimes contra a vida, o período de internação. As penas são muito abrandadas e reduzidas na etapa de execução, o que deve ser revisto pelo Congresso.
Por fim, deve-se aumentar o investimento no sistema prisional, que é hoje o grande centro de organização do crime. Para combater a violência é preciso firmeza, mas também inteligência. Não precisamos de soluções fáceis, precisamos de soluções verdadeiras e duradouras.
*José Serra é senador (PSDB-SP)
José Serra: Terra à vista
Um quadro ainda distante do desejado, mas há uma melhora gradual em curso
A conjuntura econômica brasileira será um fator positivo para o governo federal em 2019. Dois fatores que tradicionalmente criam obstáculos para um bom desempenho nessa área estarão ausentes. Primeiro, não há preços reprimidos – por exemplo, em tarifas – que produziriam pressões inflacionárias. Segundo, o cenário cambial é favorável, com reservas abundantes e déficits pequenos na conta corrente do balanço de pagamentos. Terceiro, a taxa de juros é a mais baixa dos últimos anos e não há pressões para reajustá-la. Os riscos concentram-se na política monetária dos Estados Unidos e, internamente, no desequilíbrio das contas públicas.
A queda do produto interno bruto (PIB) entre 2015 e 2016 foi impressionante: 6,7% no acumulado entre 2015 e 2016 – o pior biênio dos últimos 120 anos! Em 2017 avançamos 1,1% e em 2018, projeta-se alta ao redor de 1,5%, ainda distante do nível pré-crise, mas a trajetória é claramente de recuperação. O desemprego está diminuindo, em setembro ficou na casa dos 12%, embora acima da média dos últimos 20 anos (9,5%).
Note-se que a criação de vagas se concentra no mercado informal e na área do “trabalho por conta própria”. É a realidade do pai de família que perde o emprego formal e entra no comércio de rua ou vai ser motorista de aplicativo. Um quadro ainda distante do desejado e que demandará políticas públicas e decisões de política econômica adequadas. Mesmo assim, é preciso olhar a metade cheia do copo: há uma melhora gradual em curso.
A ociosidade na economia – representada por máquinas e equipamentos parados, plantas industriais com baixa utilização e pessoas desempregadas – é bastante elevada. O nível de utilização da capacidade instalada está em 75,7%, bem abaixo da média dos últimos 20 anos (superior a 80%), o que contribuiu para uma inflação persistentemente baixa e juros menores, e poderá permitir pelo menos 2,5% de crescimento do PIB no ano que vem sem necessidade de investimentos. Numa primeira fase, basta reativar os fatores que estão parados.
A inflação acumulada em 12 meses ficou, em novembro, pelo IPCA, em 4,6%. Nela, a parte relativa a serviços, normalmente mais resistente a diminuir, está em 3%, nível historicamente baixo. A inflação de preços livres está em apenas 2,8%! Não fosse o impacto de quase 10% dos reajustes de preços administrados – afetados pelas altas de combustíveis e do dólar –, o impulso da inflação seria ainda menor. Tanto é assim que para o ano que vem o próprio mercado prevê uma inflação ao redor de 4%.
Isso é sinal de que o Banco Central (BC) acertou ao reduzir os juros, desde outubro de 2016, de 14,25% para 6,5% ao ano. Em termos reais, subtraindo a inflação esperada dos juros de 12 meses à frente, a taxa de juros é hoje de cerca de 3%. Nunca foram tão baixas. Esse será um fator muito relevante para a retomada do crescimento em médio prazo.
Isso tudo quer dizer que a economia poderá crescer sem pressionar a inflação e, mais ainda, sem precisar de muitos recursos para grandes empreendimentos públicos e privados no momento inicial. O hiato do produto, que é o termômetro dos economistas para medir a temperatura da economia, está hoje abaixo de zero, na casa de menos 6,5%!
Nas contas externas, a perspectiva é também “estimulante”. O déficit em transações correntes – balanço das transações feitas por residentes no País com o resto do mundo, incluindo a balança comercial – está em US$ 11,3 bilhão no acumulado de janeiro a outubro de 2018. Por outro lado, os investimentos diretos no País totalizaram US$ 67,5 bilhões no mesmo período (seis vezes mais). Além disso, nossas reservas internacionais seguem em US$ 380 bilhões, nível bastante confortável.
O componente externo, que já foi o ponto crítico das crises econômicas nacionais em outras épocas, hoje colabora para amenizar as debilidades internas. Mais recentemente, em 2014, o déficit em transações correntes havia superado US$ 100 bilhões, com investimentos externos entrando no País em montante insuficiente para cobrir o buraco. Hoje o quadro é bem outro.
Há, sem dúvida, riscos à retomada do crescimento no ano que vem. Primeiro, a política de juros dos EUA. Se pesarem a mão por lá, isso produzirá reflexos sobre nosso balanço externo e poderá exigir respostas do BC via juros internos para evitar uma desvalorização repentina do real em relação ao dólar ocasionada por saídas de dólares do Brasil, o que geraria inflação por aqui. Isso poderia turvar um pouco o cenário de curto prazo, impondo restrições à retomada de cerca de 2,5% prevista para a economia brasileira em 2019.
Segundo risco está na relativa desordem na agenda das contas públicas. Ainda não está claro qual será o plano do novo governo nesse aspecto, que é essencial para a recuperação da credibilidade e a confiança dos agentes econômicos. A dívida pública está em 77% do PIB e seguirá aumentando até 2023, ao menos segundo estimativas da Instituição Fiscal Independente. O teto de gastos, isoladamente, não é suficiente para dar conta do recado. As receitas públicas ainda não se recuperaram do baque sofrido pela crise econômica e a contenção de despesas até agora se concentrou nos investimentos e nos subsídios. Os gastos com pessoal e Previdência continuam aumentando a pleno vapor. Diante disso, a nova equipe econômica dá apenas sinalizações genéricas ou cogita de ideias impraticáveis – ainda que teoricamente válidas –, como a do chamado orçamento “base zero”.
A combinação de inflação e juros baixos, contas externas controladas e ociosidade elevada, causada pela lentidão da economia doméstica, dará fôlego ao novo governo para garantir crescimento relevante no ano que vem. É possível aproveitar esse período para acelerar a agenda de reformas estruturais e pôr mais ordem nas finanças do Estado, garantindo as bases para uma recuperação sustentada da renda e do emprego.
*José Serra é senador (PSDB-SP)
José Serra: Um bom conselho
A implantação do CGF deveria merecer o apoio das principais forças políticas do Congresso
Estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 2016, analisou a gestão fiscal e as instituições existentes em 16 países, incluindo o Brasil. Uma das conclusões da pesquisa deveria entrar na agenda do Congresso: a inexistência de um conselho para monitorar as contas públicas das três esferas de governo compromete a performance da política fiscal brasileira.
A crise fiscal no Brasil, sobretudo nos Estados, é alarmante. Segundo o Banco Mundial, tudo o mais constante, cerca de dez Estados estarão insolventes em 2021, se prevalecer o ritmo lento de recuperação econômica. A aritmética é simples: em 2017, as despesas incomprimíveis, determinadas por lei, passam de 100% das receitas líquidas em cinco Estados e de 90% em quase todos os governos estaduais!
Ironicamente, apesar de boa parte das receitas e despesas públicas no Brasil ser gerida pelos governos subnacionais - nesse critério, somos um dos países mais descentralizados do mundo -, a OCDE não classifica a Federação brasileira como descentralizada.
Nossos governos estaduais e municipais, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos e no Canadá, não gozam de autonomia completa para conduzir sua política fiscal: não criam regras próprias; não podem emitir títulos; não podem alterar bases de cálculo de tributos; e não têm discricionariedade para administrar suas despesas. No Brasil é o governo central que estabelece as regras do jogo. A Constituição federal, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o Código Tributário Nacional e a Lei Geral dos orçamentos públicos são normas de competência exclusiva da União.
No campo tributário, é a lei federal que estabelece os fatos geradores e as bases de cálculo dos impostos federais, estaduais e municipais. Em relação às despesas, é a norma federal que define quanto Estados e municípios podem gastar com educação e saúde. É, também, lei federal que proíbe Estados e municípios a emitirem títulos de dívida e regula as condições para demais operações de crédito. Por último, é a Constituição federal que cria o regime jurídico dos servidores das três esferas de governo, as regras da previdência do setor público e a vinculação da remuneração das carreiras da elite do Judiciário. Trata-se, enfim, de um líder federativo semelhante ao alemão.
Aqui surge uma questão fundamental. As inúmeras regras fiscais e orçamentárias previstas nas normas federais que valem para todos os entes não têm sido suficientes para evitar o atual colapso das contas públicas. Como foi possível enveredarmos por um caminho tão repleto de medidas fiscais mal chamadas “criativas”? Para citar alguns exemplos: transações realizadas fora do Orçamento, contabilização de despesas para contornar regras fiscais, aumento de despesas obrigatórias desacompanhadas das previsões de impacto fiscal e a concessão de incentivos tributários sem a correspondente compensação fiscal.
No artigo As Leis da Inércia, publicado nesta página no dia 28/6/2018, traçamos o seguinte diagnóstico: “Uma curiosa contradição marca nossas dificuldades fiscais: à medida que crescem o déficit e a dívida pública, aumenta o estoque de normas que, idealmente, deveriam facilitar o controle tanto do déficit quanto da dívida. Somos pródigos na edição de regras de controle fiscal. Mas elas são inconsistentes”. Vale, portanto, repetir a conclusão do estudo da OCDE: falta no País um órgão para monitorar a política fiscal adotada pela União, por Estados e municípios.
A boa notícia é que já existe previsão legal para a implantação deste órgão. Trata-se do Conselho de Gestão Fiscal (CGF), previsto pela LRF. O conselho teria como objetivo harmonizar e padronizar os procedimentos e as práticas da gestão fixadas na LRF. Mais ainda, o novo órgão se dedicaria ao monitoramento da política fiscal adotada pelos governos federal, estadual e municipal dentro de uma base conceitual uniforme. Teria, até, a responsabilidade de divulgar as estatísticas fiscais em base padronizada, de modo a revelar os governos com melhores e piores indicadores fiscais.
No longo prazo, essa transparência ampla poderia ser o embrião de um sistema em que a solvência dos governos estaduais e municipais seria diretamente acompanhada pelo mercado. Os mais organizados passariam a ter acesso até mesmo ao mercado de capitais.
Diga-se que o Banco Mundial defende esse tipo de regime fiscal. Uma referência institucional a respeito é o Conselho de Estabilidade estabelecido em 2010 na Alemanha como parte das reformas implementadas depois da crise financeira internacional de 2008. O conselho é um órgão conjunto da Federação alemã e dos Estados federados, consagrado no Artigo 109 da Carta alemã. Foi criado para reforçar o quadro institucional e garantir a sustentabilidade dos orçamentos públicos do governo e dos Estados federados.
É importante, também, demarcar a fronteira institucional do CGF em relação à Instituição Fiscal Independente (IFI) criada no Senado Federal. A IFI tem como objetivo gerar análises independentes no âmbito da política fiscal. Seu papel é avaliar os parâmetros e cenários macroeconômicos que embasam o Orçamento no âmbito do governo federal. Funciona como um cão que late, mas não morde. Tais instituições na literatura internacional são conhecidas como whatchdog da política fiscal. Mas o CGF tem papel completamente distinto: seria um órgão com representação intergovernamental, dedicado à função de normatizar, harmonizar e padronizar as regras fiscais e orçamentárias no âmbito da Federação.
Nesse sentido, o Conselho de Gestão Fiscal seria o coração da responsabilidade fiscal na Federação brasileira. Permitiria evitar artifícios contábeis e fiscais que comprometem a credibilidade da política fiscal adotada nos três níveis de governo. Entre as reformas a serem implementadas no País para promover a estabilidade, a implantação do CGF deveria merecer o apoio das principais forças políticas do Congresso.
*José Serra é senador (PSDB-SP)
José Serra: Aditivos fatais
Eles são usados pela indústria do tabaco para mascarar os efeitos da nicotina
O tabagismo mata cerca de 6 milhões de pessoas por ano e custa quase meio trilhão de dólares à economia mundial. Por sorte no Brasil, a partir do governo Fernando Henrique, foram implantadas políticas públicas eficazes para derrubar o consumo de tabaco. Os resultados sobressaem no cenário internacional: o porcentual de fumantes na população adulta caiu de 35% em 1989 para algo em torno de 10% atualmente.
Não obstante os resultados positivos, a iniciação dos jovens brasileiros no tabagismo ainda é preocupante. Isso reforça a importância de mantermos ativa a agenda contra o cigarro, agora proibindo o uso de aditivos destinados a tornar o hábito de fumar mais cativante para os adolescentes.
É preciso difundir a ideia de que o cigarro é um dos maiores fatores de perda de qualidade de vida das pessoas. Muitos avaliam que o hábito de fumar afeta só o sistema respiratório - o tabagismo está por trás de 90% dos casos de câncer de pulmão -, mas seus males vão além: há mais de 50 doenças associadas ao fumo, sendo o interior da boca uma das áreas mais atingidas.
Quem convive com o fumante paga o pato. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, cerca de 2 bilhões de pessoas são vítimas do fumo passivo no mundo. Deste total, 700 milhões de crianças sofrem com a maior incidência de bronquite, pneumonia e infecções de ouvido.
Com a promulgação da Constituição federal há três décadas, o Brasil deu seu primeiro passo na adoção de medidas de controle do tabaco. Em razão do parágrafo 4.º do artigo 220, a propaganda comercial de cigarro passou a estar sujeita a restrições da lei, devendo conter, sempre que possível, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. Mas, como disse acima, o passo decisivo foi dado durante o governo FHC. Quando ministro da Saúde, no ano 2000, auxiliei o presidente a aprovar no Congresso a Lei n.º 10.167, que coibiu a propaganda de produtos fumígenos. Mais ainda, com base em evidências científicas implementamos também outras medidas que foram além dessa grande restrição.
Para começar, passou a ser proibido o fumo no interior de aeronaves e ônibus. Hoje parece esdrúxulo imaginar uma pessoa fumando num avião. Também foi proibida a propaganda de qualquer produto ligado ao tabaco, exceto em cartazes e painéis na parte interna dos locais de venda.
Interditamos ainda a associação do cigarro a qualquer prática esportiva. Vale lembrar as cenas surreais da propaganda da marca Hollywood produzida em 1982, em que jovens fumavam e praticavam windsurf. Ao final, vinha a seguinte mensagem: “Hollywood, o sucesso!”.
Graças às medidas adotadas, podemos esperar que no futuro os atuais cigarros aditivados com sabores de menta, cravo, cereja ou baunilha sejam considerados bizarros. Hoje, de acordo com estudos da Fundação Oswaldo Cruz, 56% dos jovens brasileiros preferem os cigarros com sabor. Não é por menos que a indústria do fumo comemorou o aumento de 1.900% nos registros de cigarro com sabores vendidos no Brasil entre 2012 e 2016.
A adição de sabores e aromas aos cigarros foi uma clara resposta da indústria às iniciativas governamentais antitabagistas. Os aditivos reduzem o amargor e a aspereza do fumo, facilitando o alastramento do vício. Dados os aditivos, se o consumidor se acostuma com o desconforto inicial da fumaça, corre o risco de ficar viciado na droga pelo resto da vida e submetido aos danos causados à saúde.
Com o objetivo de enfrentar essa nova estratégia da indústria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editou uma resolução em 2012 para proibir o uso de aditivos de sabor e aroma aos produtos fumígenos, impedindo até a importação de produtos que contenham tais substâncias. Apesar de seus efeitos positivos, essa norma tem sido reiteradamente questionada na Justiça pela indústria do tabaco.
Foi assim que a Confederação Nacional da Indústria (CNI) ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade contra a resolução da Anvisa que proíbe aroma e sabor em cigarros. Segundo a discutível tese da CNI, a regulamentação da Anvisa só poderia ocorrer em situações concretas e em casos de risco à saúde, excepcionalmente, mas não em caráter genérico e abstrato.
Em fevereiro deste ano o Supremo Tribunal Federal reuniu-se para julgar o mérito da ação, mas a votação acabou empatada - um dos ministros declarou sua suspeição para o julgamento. Assim, não foi alcançado o quórum mínimo de seis votos para declarar a invalidade da norma. Julgaram a ação improcedente, mas sem eficácia vinculante e efeitos erga omnes (para todos).
Como não pudemos proibir os aditivos pela via administrativa e judicial, optamos então por restringir o uso de aromas e perfumes em cigarros mediante lei específica. Por isso apresentei no Senado, em 2015, o Projeto de Lei n.º 769, a fim de ampliar as medidas antitabaco no Brasil, entre elas a implantação dos maços “genéricos” e a proibição dos aditivos de sabor aos cigarros.
É preciso ter claro e difundir a verdade: os aditivos fatais são usados pela indústria para mascarar os efeitos da nicotina. Vários estudos indicam que os adolescentes são especialmente vulneráveis a esses efeitos e têm maior probabilidade que os adultos de desenvolver dependência do tabaco.
A luta antitabagista no Brasil tem conquistado cada vez mais o apoio da população. Um bom indicador a esse respeito foi o que se verificou com a medida que proíbe o fumo em recintos públicos fechados. Inicialmente adotada pelo governo de São Paulo, seu sucesso foi tão grande que se alastrou em poucos meses por todos os Estados, até virar lei federal.
Last but not least: a queda do consumo de cigarros no Brasil não teve impacto proporcional na queda da produção de tabaco, pois cerca de 80% dela é destinada à exportação. Esse tem sido um dado importante para diminuir a resistência às medidas restritivas sobre o fumo dos parlamentares ligados às zonas produtoras.
* José Serra é senador (PSDB-SP)
José Serra: Constituição na crise dos 30
Precisamos reagir contra as sinalizações de mudanças constitucionais radicais
Há 30 anos, completados semana passada, foi promulgada a atual Constituição, que Ulysses Guimarães batizou de “cidadã”. O texto resultou dos trabalhos da Constituinte eleita em 1986, da qual participei ativamente, mediante a apresentação de ao menos duas centenas de emendas, 60% delas aprovadas. Além disso, fui relator dos capítulos sobre orçamento, tributação e finanças.
Desde então sempre me alinhei à tese de que a maior virtude da Carta de 1988 é sua vocação garantidora de direitos. De fato, ela expressou o repúdio ao período autoritário (1964-1985) - repleto de pressões golpistas e agressões aos direitos individuais. A nova Carta consagrou esses direitos e a liberdade de opinião, manifestação e organização. Também criminalizou o racismo, aboliu o banimento e a pena de morte, afirmou a liberdade religiosa, o repúdio à tortura e aos tratamentos desumanos ou degradantes. Tudo condensado no artigo 5.º, formado por 78 dispositivos.
Além disso, outros avanços foram a concepção do SUS e a criação (de minha autoria) de um fundo que reuniu as contribuições do PIS-Pasep para tornar viável o seguro-desemprego e financiar investimentos. Importantes também foram os capítulos sobre finanças públicas e controle externo do Executivo e do Legislativo. Ampliaram-se as atribuições do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. Aumentou também a abrangência do orçamento fiscal, que absorveu as rubricas de seguridade social e investimentos das estatais.
Do outro lado da balança estão os “defeitos” da Constituição de 1988, que vão da prolixidade ao seu caráter programático, abrigando minudências típicas de lei ordinária e estabelecendo não apenas as regras do jogo da sociedade, mas também os resultados das partidas.
Isso se deu, em parte, porque a convocação da Constituinte foi uma bandeira da oposição ao regime militar desde meados dos anos 70. Para a sociedade, ela aparecia como a grande saída para a volta da democracia e para o avanço do bem-estar material. Esperava-se que os problemas econômico-sociais fossem resolvidos pela Constituição.
Essa “responsabilidade” redentora da nova Carta acabou sendo ampliada pelo Congresso já em 1987, quando começou a Constituinte, precisamente depois do colapso do Plano Cruzado, que representou a primeira grande (e fracassada) tentativa de derrubar a superinflação. Esse colapso comprometeu o apoio político do governo presidido por José Sarney, que assumira o comando do Poder Executivo com a morte de Tancredo Neves, no início de 1985. O PMDB era o maior partido de sustentação do governo.
Naquela conjuntura conturbada, a maioria dos constituintes procurou responder à insatisfação social mediante a aprovação de dispositivos constitucionais detalhistas e cada vez mais generosos do ponto de vista social, federativo e regional. Assim, da arena da Constituinte brotou um texto prolixo e influenciado pelas contingências econômicas e políticas do momento. No critério de tamanho, somente as Constituições da Índia e da Nigéria são mais prolixas do que a nossa.
O corporativismo no interior da administração pública foi extremamente reforçado. Por exemplo, concedeu-se a estabilidade aos servidores públicos não concursados que estavam empregados havia mais de cinco anos da data de promulgação da Carta. Abriu-se também o caminho para as isonomias salariais no setor público, um poderoso e perverso mecanismo de geração de despesas permanentes.
Em relação ao federalismo, o fato mais notável foi a acentuada redistribuição de receitas a favor de Estados e municípios, desacompanhada, no entanto, da transferência de encargos da União. Recente estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) concluiu que o sistema federativo brasileiro é um dos mais incoerentes do mundo: descentralização de receitas para os governos subnacionais e centralização de encargos para o governo central.
Diante desse histórico, cabe hoje perguntarmos o que fazer. Começo assinalando o que não se deve fazer: sou contra a convocação de uma nova Constituinte eleita pela população, que abriria caminho para instabilidade política e econômica sem igual. Não há por que imaginar que uma nova Constituinte faria tudo certo. Ao contrário.
Do mesmo modo, não me parece pertinente a instalação de um poder constituinte ao estilo Hugo Chávez ou na tradição do famoso AI-5. Isso representaria um golpe de Estado, desrespeitando frontalmente a atual Constituição, cujo artigo 60 é bastante claro: mudanças constitucionais podem ser propostas no processo parlamentar, com aprovação de 3/5 nas duas Casas, desde que não modifiquem a forma federativa de Estado, o voto secreto, direto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
Combatendo o bom combate e respeitando as regras do jogo, tive a oportunidade de ser autor de 17 propostas de emenda constitucional, que resultaram em três importantes e históricas mudanças da nossa Lei Maior. A primeira possibilitou alterar as datas da revisão constitucional. A segunda revogou o bizarro dispositivo que fixava o teto de 12% para as taxas de juros reais da economia. A terceira - aprovada no ano passado - instituiu um novo regime para tornar viável a quitação das dívidas de precatórios pelos governos estaduais e municipais.
Mas a Constituição federal inegavelmente atravessa uma crise existencial. Precisamos reagir contra as atuais sinalizações de mudanças constitucionais radicais - emitidas por representações dos partidos que disputam o segundo turno para presidente -, tendo sempre conosco as palavras de Ulysses Guimarães: “A grande força da democracia é confessar-se falível de imperfeição e impureza, o que não acontece com os sistemas totalitários”.
* José Serra é senador (PSDB-SP)
José Serra: Um sistema eleitoral corrosivo
Substituí-lo é condição essencial para assegurar a estabilidade da nossa democracia
A praticamente três semanas do primeiro turno das eleições, convivemos com episódios que desbordam as fronteiras admitidas na disputa política civilizada. É necessário identificar as causas estruturais dessa radicalização das forças que têm uma visão puramente instrumental – e, por isso, distorcida – da democracia.
Uma das causas – para mim, a principal – é a óbvia inadequação do nosso sistema eleitoral. Por muito tempo o debate sobre a inconveniência (ou não) do voto proporcional tal como o praticamos foi relegado à condição de devaneio intelectual ante os desafios, sempre urgentes, das nossas tumultuadas conjunturas. Acontece que o enfraquecimento da democracia – decorrente daquele sistema – começa a cobrar alto preço, empurrando-nos cada vez mais rumo ao imponderável.
A justificada impaciência dos eleitores com a política deve-se à dificuldade de se formarem maiorias aptas a levar à frente um programa verdadeiramente popular, que conduza ao crescimento sustentável, com emprego e distribuição de renda, e refreie os apetites setoriais e corporativistas que colonizaram o Estado brasileiro. Mais ainda, nos últimos anos tivemos o recrudescimento da violência – que se alastra sob um Estado mastodôntico e inerte. Esse componente, em especial, favorece a guinada de parte do eleitorado para o salvacionismo.
As recentes mudanças feitas na legislação eleitoral – encurtamento das campanhas, fim das doações empresariais e vedação (a partir de 2020) de coligações partidárias – podem ser consideradas positivas, mas de forma alguma serão suficientes. O decisivo é mudarmos a essência do atual sistema eleitoral, baseado no voto proporcional, na direção do voto distrital.
No Estado de São Paulo, por exemplo, os candidatos a deputado disputam o voto de 33 milhões de eleitores, distribuídos em quase 250 mil km2. Na Bahia, são 10 milhões, espalhados em quase 570 mil km2. Sim, a maioria das campanhas tende a se concentrar em determinadas áreas, mas nunca a ponto de abandonar o restante do território dos Estados, que são trabalhados pelos chamados cabos eleitorais.
Esse sistema exige elevados gastos de campanha e, ao mesmo tempo, não requer e não cria laços fortes entre eleitores e eleitos. É um sistema que enfraquece a representatividade democrática. Mais ainda, a partir destas eleições, vigente a quase exclusividade do financiamento público, os defeitos do sistema proporcional se agravarão, pois os candidatos à reeleição têm muito mais força para abocanhar parte maior do dinheiro disponível.
Em suma, trata-se de um sistema eleitoral pouquíssimo sujeito à renovação, que exige enormes gastos de campanha, não cria laços entre eleitores e eleitos, estimula a proliferação de novos partidos e perpetua as mesmas práticas e ideias que a população rejeita. Mais de dois terços das pessoas não se lembram em quem votaram para deputado! O eleitor não se vê representado nesse sistema, o que insufla o espírito bonapartista que hoje vai arrebanhando parcelas crescentes do eleitorado.
Mas há saída para esse impasse: a adoção do sistema distrital misto no lugar do proporcional puro. Os Estados seriam divididos em distritos, onde os eleitores votariam nos candidatos locais, que apresentariam plataformas ligadas a programas de governo: ações no âmbito do distrito, dos Estados e do País. As campanhas seriam muito mais baratas.
O eleitor teria direito a dois votos: um no candidato distrital e outro no partido de sua preferência. Cada partido apresentaria uma lista ordenada de candidatos a deputado e obteria número de cadeiras equivalente ao seu desempenho proporcional, garantidas as vagas dos eleitos nos distritos. Essa mudança contribuiria para implantarmos um sistema político vibrante, que garantisse vez e voz a minorias relevantes, mas sem deixar de levar adiante um programa que atendesse à maioria da população.
Hoje, as eleições saturam o eleitor com candidatos que se amontoam aos milhares na TV e no rádio. Configura-se um ambiente em que é impossível o debate programático verdadeiro, sobrando apenas espaço para as técnicas do marketing. É preciso que a “classe política” acorde para a urgência de reformarmos profundamente o sistema eleitoral. Se, por omissão e culpa dessa classe, nada for feito, o sistema proporcional será cada vez mais foco de instabilidade e crises.
A principal barreira para a aprovação da grande mudança reside, evidentemente, no próprio Congresso, mais precisamente na Câmara dos Deputados. O Senado, diga-se de passagem, já aprovou um projeto de lei complementar (de minha autoria) que prevê a mudança e o remeteu à Câmara, onde aguarda a deliberação.
A resistência de muitos deputados se explica pelo receio de, no contexto de mudanças de regras, não se reelegerem. Trata-se de um sentimento previsível. A reeleição, quando formalmente permitida, é sagrada na vida pública – para vereadores, deputados estaduais e deputados federais. Apenas estes últimos votam na mudança ou não do sistema eleitoral, mas recebem pressões não apenas dos seus cabos eleitorais, são bastante sensíveis à opinião dos vereadores e dos deputados estaduais que têm sido seus aliados nas sucessivas eleições.
Estou convencido de que essa resistência poderá, contudo, ser vencida se as mudanças forem aprovadas bem antes das próximas eleições – quatro anos, se possível –, dando tempo para os deputados se prepararem para as novas regras. Mais decisiva será a pressão da opinião pública, a começar pela mídia.
Melhor seria, se viável, votarmos a mudança ainda neste ano, entre a eleição e o final da legislatura, pois os deputados que não se reelegerem tenderão a votar a favor, vislumbrando a chance de voltarem à Câmara nas eleições seguintes, mediante novas regras de votação.
Substituir o atual sistema eleitoral corrosivo é, de fato, a condição essencial para assegurarmos a estabilidade da nossa democracia.
*José Serra é senador (PSDB-SP)
José Serra: Soluções fáceis e erradas
Acabar simplesmente com os subsídios é mais uma crença equivocada no tudo ou nada
O momento, todos sabem, é de austeridade. Cada centavo economizado faz diferença, seja pelo valor moral, diante de 13 milhões de desempregados, seja pelo ambiente de lassidão fiscal.
As despesas públicas ultrapassaram a capacidade de geração de receitas, o que pressionou a dívida pública. Nesse contexto, cabem várias recomendações, das quais ressaltarei duas: combater excessos e redefinir prioridades. Um dos candidatos favoritos à revisão são os subsídios, mas seria um grave erro, a esse pretexto, abandonar políticas de desenvolvimento. Seria vestir o santo do ajuste fiscal desvestindo o do crescimento. Vamos aos dados.
As despesas primárias, que excluem os juros sobre a dívida, cresceram 6% ao ano acima da inflação nas últimas duas décadas e o PIB, 2,5% ao ano. Como as receitas dependem do PIB, foi questão de tempo para que esse descompasso fizesse crescer a dívida. De 2013 para cá, a dívida pública saltou de 53% para 77% do PIB, tornando-se difícil de estabilizar, em face dos juros siderais e do PIB no chão. Esse diagnóstico tem de estar muito claro para os políticos, os economistas, a opinião pública e a sociedade em geral. O ajuste fiscal é imperativo.
Nesse ambiente, a discussão sobre os subsídios ganhou corpo. O Estado deve ou não ter políticas de desenvolvimento, estimulando setores, mantendo um banco de fomento como o BNDES e financiando programas setoriais e regionais?
O subsídio é uma despesa para viabilizar ou estimular determinada atividade econômica. Dentre outras possibilidades, ele pode ser concedido pela fixação de taxas de juros abaixo do custo de mercado. Se o mercado de crédito fosse concorrencial, no Brasil, os juros tenderiam a ser mais baixos que os atuais.
No Brasil, meia dúzia de bancos comandam a quase totalidade das operações de crédito. A margem de lucro elevada é o sinal mais evidente desse poder de mercado. Questões regulatórias e outras barreiras limitam a competição, a despeito do empenho com que o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, vem agindo para mudar esse quadro. Mesmo o mais liberal dos economistas concordará, então, que algum subsídio é justificável nesse ambiente.
Alguns projetos que apresentam as chamadas externalidades positivas e têm maduração de longo prazo são também candidatos a subsídios. Quando uma estrada é construída, além do seu valor intrínseco, ela produz efeitos secundários muito positivos sobre outros mercados, estimulando a produção. Novos investimentos privados se tornam viáveis.
Nestes e em outros casos é recomendável que se adotem subsídios. É essencial, por exemplo, o papel do BNDES (ou do Banco do Nordeste) em ofertar crédito subsidiado para a iniciativa privada quando se tratar de bons projetos na área de infraestrutura logística, social e urbana. O custo do subsídio é superado pelos benefícios diretos e indiretos que ela propicia, situação em que o subsídio é justificado.
É verdade que as escolhas políticas, como não deve deixar de ser, obedecem à influência dos vários setores da sociedade. Mas o controle da situação fiscal não pode ser negligenciado. Do contrário, não há crescimento nem distribuição de renda. O que precisa ser combatido são os interesses não republicanos e a ineficiência. Enfiar R$ 500 bilhões nos bancos públicos para fazer investimentos ineficientes foi pouco inteligente.
Já propus neste espaço a criação de um sistema nacional de consolidação e controle de subsídios no Brasil. Estudo recente do Ministério da Fazenda mostrou que somente os subsídios da União foram de 1,3% do PIB em 2017, quase o triplo do valor gasto com o PAC naquele ano. Qual o resultado desses subsídios para a sociedade?
Há casos e casos. Cortar linearmente, com tantos instrumentos disponíveis de avaliação de gastos, é o pior a fazer. Cortar, sim, mas com critérios de mérito.
Houve, nos últimos anos, uma demonização do subsídio. A apressada adoção da Taxa de Longo Prazo (TLP), concebida para replicar os juros de mercado, no lugar da TJLP, tem minado o BNDES. O BNB, como noticiou o Estadão, tem suprido parte da demanda, mas a verdade é que falta planejamento de longo prazo a orientar a política de subsídios. Para ter claro, os desembolsos do BNDES caíram de R$ 88,3 bilhões, no final de 2016, para R$ 70,8 bilhões, em 2017. No primeiro semestre de 2018, foram desembolsados R$ 27,8 bilhões, quase R$ 3 bilhões a menos do que no primeiro semestre de 2017. Sim, era preciso extinguir a política de se endividar para anabolizar o BNDES. O problema é que se atacou também a fonte constitucional do banco – os 40% do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), único recurso fixado para a finalidade essencial de expandir o investimento. Emprestar mais de R$ 190 bilhões ao ano, como no auge da política de injeção de dívida no BNDES, não era correto; como tampouco seria acabar com o banco.
Os países praticam políticas de incentivo baseadas em critérios técnicos e políticos. No nosso caso, parte da intelligentsia recomenda abrir mão desses instrumentos de política econômica. Devemos buscar condições de competitividade, inserção internacional e, sobretudo, ampliação das exportações de maior valor agregado. Para isso, simplesmente extinguir a política de subsídios é um tremendo tiro no pé. A recente crise dos caminhoneiros foi resolvida, em boa medida, com a assunção de um subsídio de R$ 9,5 bilhões, segundo cálculos do próprio governo. Se tivesse prevalecido o fanatismo ortodoxo, certamente estaríamos hoje mergulhados numa crise sem precedentes.
Precisamos de uma política que combine austeridade e inventividade, indispensável a um projeto de país. Não há solução única para a questão do desequilíbrio das contas públicas. Acabar simplesmente com os subsídios é mais uma crença equivocada no tudo ou nada, no agora ou nunca. Os desafios são complexos e, como tais, exigirão soluções sofisticadas e bem executadas.
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*Senador (PSDB-SP)
José Serra: Ajuste fiscal: quantidade e qualidade
Felizmente, começa a ser levado em conta o enfoque qualitativo dos gastos e da tributação
As propostas de enfrentamento dos problemas fiscais brasileiros têm se centrado nos aspectos quantitativos da questão. Nessa perspectiva, a essência das medidas a serem tomadas enfatiza a redução das despesas, seja dos gastos diretos, seja dos chamados “gastos tributários”, que envolvem isenções e subsídios bancados direta ou indiretamente pelo Tesouro. Sem mencionar também o aumento ou a diminuição de receitas – por exemplo, a redução da PIS/Cofins no diesel ou a elevação do IOF, feitas recentemente.
Esse enfoque é natural e até correto, mas, em geral, são deixadas de lado questões referentes à qualidade dos gastos e da tributação. Felizmente, essa perspectiva começa a ser levada em conta. Não foi por menos que a nova Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que vai balizar a elaboração do Orçamento de 2019, recentemente aprovada pelo Congresso Nacional, traz um avanço importante nessa direção. O próximo presidente da República deverá enviar ao Congresso, até março do próximo ano, um plano de revisão de despesas e receitas para vigorar durante os quatro anos de seu mandato. Tal medida, nada trivial, abrirá caminho para a prática, adotada por diversas economias avançadas, conhecida como Spending Reviews, pela qual programas governamentais são continuamente revisados segundo avaliações de custo e benefício. O objetivo é economizar sem prejuízo da prestação de serviços pelo Estado.
Dada a importância de implantar no País a avaliação sistemática dos programas orçamentários, entendo que sua regulamentação deveria fazer parte de uma legislação mais estável – como leis complementares. Isso porque, pela Constituição, as leis de diretrizes orçamentárias são anuais e ordinárias e, assim, suscetíveis de alterações relativamente fáceis de fazer. Em leis ordinárias, o Poder Executivo consegue sem grande esforço mudar ou anular dispositivos restritivos ou que considere inconvenientes.
Independentemente das ponderações sobre onde hospedar a revisão periódica de gastos, acredito que o texto inserido na LDO, relatado pelo senador Dalirio Beber, está tecnicamente interessante. A revisão poderá alcançar benefícios de natureza financeira, tributária ou creditícia e, para ser efetiva, deverá trazer as correspondentes proposições legislativas acompanhadas das estimativas de impacto.
Especificamente no que tange às receitas, as proposições legislativas têm de dar lugar a medidas que reduzam renúncias fiscais e/ou aumentem a arrecadação, bem como estabelecer prazos para cada benefício tributário concedido, juntamente com um cronograma para reduzir o montante do volume fiscal renunciado a um limite de 2% do PIB. Cabe, aqui, lembrar que o gasto tributário – como também são chamados os benefícios fiscais tributários – representa hoje 4% do PIB, ou 8 vezes o que o governo federal gastou com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no ano passado, isto é, 0,5% do PIB!
Avaliações de impacto dos programas orçamentários e das políticas creditícia e tributária podem respaldar revisões na legislação vigente – seja para aperfeiçoar determinado programa governamental, seja para encerrar o que não deve receber muita prioridade. Não dá mais para vivermos sob políticas públicas tortamente elaboradas, megalomaníacas ou não, baseadas em pura e temerária intuição.
Na experiência internacional, os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotam distintos modelos de revisão de despesas e receitas. Mas alguns princípios fundamentais são comuns. Existem as revisões que se concentram em ganhos de eficiência em áreas específicas do orçamento e também aquelas de cunho estratégico, voltadas para a readequação da oferta de determinado bem ou serviço. Neste caso se utilizam critérios para identificar gastos ineficazes ou de baixa prioridade.
As avaliações são elaboradas a partir de técnicas específicas para medir os custos e os resultados alcançados com uma política pública. O plano de revisão de despesas e receitas, por sua vez, serve para organizar e encadear medidas de economia orçamentária, seja com melhoria na eficiência das políticas objeto de ajuste ou no seu simples encerramento, nos casos mais extremos. São ações necessariamente complementares.
É preciso reconhecer que a União vem avançando neste processo de avaliação, ainda que lentamente. Em 2016, por exemplo, foi criado o Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP) para fortalecer a governança e melhorar a efetividade dos principais programas governamentais. Importa sublinhar, também, estudos recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) voltados para avaliar políticas públicas. Destaco aquele que mensura o impacto da desoneração da folha de pagamentos sobre o emprego, implementada a partir de 2012. Segundo esse estudo, não há evidências de melhorias no nível de emprego decorrentes dessa política. Temos, assim, um exemplo de política a merecer urgente revisão, ou eliminação.
O próximo presidente da República terá o enorme desafio de fazer acontecer um ajuste fiscal para valer nas contas públicas do governo federal, mas não pode paralisar o Estado, pois o País precisa investir mais, especialmente em infraestrutura. Nada seria mais irracional do que os usuais cortes lineares de despesas ou aumentos erráticos de impostos.
O plano de revisão de despesas e receitas previsto na LDO aprovada neste ano para orientar a lei orçamentária de 2019 poderá ser o instrumento para que se comece a promover, para valer, a conexão entre as avaliações e as revisões das políticas públicas em nosso país. Por que não, se tantas outras nações conseguiram promover essa conexão?
O que acham disso os atuais candidatos a presidente?
*Jose Serra é senador (PSDB-SP)
José Serra: Aquecimento global, ebulição local
Urge enfrentar o desequilíbrio fiscal, a criminalidade e o desemprego estrutural
Em 1989, com o artigo O fim da História, Francis Fukuyama ganhou notoriedade e entrou para a imensa galeria dos futurólogos equivocados. Extinto o socialismo real na Rússia e na Europa do leste, o autor acreditava que as democracias liberais se tornariam a forma inexorável de governo no mundo. Tudo seria uma questão de tempo. Passados 30 anos, sabemos que a profecia falhou.
Fukuyama, entretanto, não era um sonhador solitário. Na verdade, os chamados neoconservadores nos Estados Unidos foram influentes nos três governos Bush. Os Estados Unidos teriam a “missão histórica” de levar a democracia a todos os cantos do mundo.
Porém essa missão “civilizatória”, agora se sabe, também provocou fragmentação e abriu espaço para novos radicalismos. Sem que se tenha tornado uma idílica aldeia global, parte do mundo é varrido pela força centrífuga do nacionalismo ressurgente, que fragiliza alianças - como a União Europeia -, desaloja governos e partidos tradicionais e ameaça tornar o populismo uma força hegemônica.
Independentemente do ativo papel norte-americano, outras forças tectônicas da geopolítica atuaram para moldar um mundo que não se ajusta às previsões de Fukuyama, uma delas o espetacular crescimento chinês, resultante da ação de um Estado gerencial, burocrático e distante do modelo ocidental.
De fato, o crescimento chinês - a partir das reformas pragmáticas de Deng Xiaoping - é um elemento fundamental da nova ordem que se está plasmando. Nesses 40 anos a China cresceu a 10% ao ano e 800 milhões de pessoas escaparam da linha de pobreza. O que começou como um processo de desenvolvimento baseado em exportações têxteis de baixo valor alçou a China à segunda posição na economia mundial. Um dado impressionante sobre o investimento: a China tem hoje 25 mil km de ferrovias de alta velocidade.
O vertiginoso crescimento chinês vem reduzindo o preço dos bens industrializados, o que beneficia o consumidor ocidental, mas leva esse mesmo consumidor a enfrentar um mercado de trabalho que se encolhe e se deteriora. O governo Trump e sua guerra comercial são em boa parte consequência desse deslocamento.
O avanço da tecnologia da informação é outra força tectônica que vai reconfigurando o mundo. A intensificação da automação compromete ainda mais o emprego - agora também o de alta qualificação. A população da Europa Ocidental parece acordar para um pesadelo: seus países não são mais o misto de opulência e igualitarismo de algumas décadas atrás. O desemprego elevado pressiona as finanças públicas.
Os sonhos de consumo e de uma seguridade social sólida e eterna são substituídos por políticas de austeridade que, por sua vez, parecem incapazes de garantir nova fase de crescimento equitativo.
A mesma tecnologia de informação que reconfigura e reduz o mercado de trabalho amplia o poder das redes sociais como fator político. Diminui a influência da imprensa tradicional e o espaço para o diálogo ponderado. Cresce a algaravia dos discursos inflamados, extremos e, em geral, baseados em dados e informações falsos ou distorcidos, as chamadas fake news.
Finalmente, o fluxo migratório - impulsionado também pela fragmentação de vários Estados nacionais - começa a se tornar tema decisivo nas eleições dos países desenvolvidos. O que antes provocou o surgimento de movimentos xenófobos minoritários alçou esses mesmos movimentos à condição de protagonistas. O avanço do populismo nacionalista na Itália levou à formação de um novo governo que não só cresce em popularidade com suas primeiras medidas anti-imigração como parece estar enfraquecendo a coalização de governo alemã. Angela Merkel, conservadora e compassiva, é pressionada a endurecer o tratamento da questão migratória por seus parceiros de Gabinete, sob pena de derrocada de seu governo.
No Brasil, por certo, todos esses movimentos e rupturas repercutem e nos influenciam. Temos desemprego estrutural e a mesma irresignação com a política tradicional nos atinge. As redes sociais amplificam o justo descontentamento. Como nos países centrais, a política tradicional não tem sido capaz de dar respostas e confiança à população. É um ambiente carregado, em que sinais de anomia pipocam aqui e ali.
Vivemos um tempo de urgências. Em várias frentes. Temos de constituir rapidamente uma maioria política capaz de enfrentar as três graves ameaças que nos rondam: o desequilíbrio fiscal - basicamente previdenciário -, a criminalidade e o desemprego estrutural.
Esses problemas se entrelaçam e se reforçam. O desequilíbrio fiscal exige uma crescente canga tributária - não é erro de ortografia - sobre as empresas que não gozam de privilégios e poder de mercado; a canga tributária não reverte em serviços eficientes para a população, inibe o investimento e impede nossos jovens de entrar no mercado de trabalho; o desemprego estrutural força ainda mais os déficits públicos, que, por sua vez, pressionam os juros e, por esse canal, comprometem o investimento. A ineficiência do Estado facilita a expansão do crime organizado - e do desorganizado. A população assusta-se, torna-se mais cética sobre as instituições democráticas e abre campo para o radicalismo. O potencial desestabilizador do radicalismo piora as expectativas e, por decorrência, também a situação fiscal.
Na esfera política, o sistema proporcional é um zumbi que arrasta consigo o presidencialismo de coalizão. Temos de adotar o voto distrital misto para dar novo fôlego à representatividade democrática e insuflar vida na política, mesmo que seja a partir das eleições de 2022.
Mas não podemos deter-nos nessa mudança. É hora de as lideranças enfrentarem a nossa questão fiscal, sob pena de o aquecimento global se transformar aqui em caldeirão fervente.
* José Serra é senador (PSDB-SP)