José Serra

José Serra: Patentes e saúde

É preciso equilibrar o acesso universal a medicamentos e o estímulo à pesquisa

O Congresso vem discutindo alguns aperfeiçoamentos na legislação brasileira sobre direitos e obrigações relativos à propriedade industrial – condensados na Lei de Propriedade Industrial (LPI). O debate envolve dispositivos que comprometem a sustentabilidade econômica das políticas de aquisição de medicamentos estratégicos do Ministério da Saúde. Um deles é o parágrafo único do artigo 40 da LPI, que permite a concessão de patentes no Brasil por um prazo de vigência superior ao que é estabelecido em outros países e nos acordos internacionais sobre direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio (Trips).

A questão central dessa agenda é encontrar a equação que garanta um certo equilíbrio entre o acesso universal e sustentável aos medicamentos e a necessidade de estimular a pesquisa por meio da concessão de patentes. No caso do setor farmacêutico, sem dúvida, a concessão de uma patente precisa levar em conta diferentes aspectos da saúde da população.

Para começar, a demanda por remédios não se reduz (ou muito pouco) diante do aumento dos preços – é relativamente inelástica, como dizem os economistas. Em muitos casos, perde-se a saúde ou a própria vida pela falta de acesso a determinado medicamento. Há grande assimetria de informações entre consumidores e produtores na saúde: aqueles dependem destes para obter prescrição sobre o tipo e frequência de uso dos medicamentos.

Os economistas mais ligados à corrente liberal, com o austríaco Friedrich Hayek à frente, postularam sempre que patentes tendem a criar ineficientes monopólios. Num mundo de escassez material, o mercado livre otimizaria a alocação de recursos com potenciais ganhos de eficiência. Ao garantirem direitos de patentes, os governos incentivam monopólios, que são contraditórios com os princípios de mercado, provocando ineficiência econômica nos setores protegidos.

Seria aceitável a supressão temporária da livre concorrência para estimular inovações, desde que as normas que regem a concessão de patentes sejam contornadas por certos requisitos. Os padrões mínimos de proteção administrativa e judicial da propriedade industrial estão definidos no acordo Trips, que consolidou entendimentos obtidos nas rodadas de negociação da Organização Mundial do Comércio (OMC), iniciadas em 1986 no Uruguai, e aceitos pelas delegações de países em desenvolvimento lideradas por Brasil e Índia.

É preciso levar em conta, porém, que a legislação brasileira extrapola em alguns aspectos as normas estabelecidas no Trips, a despeito de o Brasil tê-lo ratificado com a edição do Decreto Legislativo n.º 30, em 1994. De acordo com os termos acordados na OMC, o prazo máximo de uma patente deveria ser 20 anos. O artigo 40 da nossa lei sobre propriedade industrial também estabelece esse prazo máximo. No entanto, e aqui começa o problema, o parágrafo único desse mesmo artigo criou um período mínimo de vigência das patentes de dez anos que começa a contar a partir da concessão da patente pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi).

Esse parágrafo único virou a regra. O caput, a exceção. Quando o processo de concessão de uma determinada patente demora mais de dez anos para ser concluído pelo Inpi, o período de 20 anos, previsto no Acordo Trips, é extrapolado. Isso se verifica em 92% dos casos. Por isso mesmo a exceção tendeu quase sempre a virar regra.

Um prazo maior de vigência das patentes fortalece efeitos anticompetitivos e lucros extraordinários para a indústria farmacêutica, sem contrapartida justa para a sociedade. O alargamento dos direitos de propriedade industrial impede o lançamento de medicamentos genéricos, em favor da população, que precisa de remédios confiáveis a preços acessíveis. Tive uma experiência intensa nessa matéria quando no Ministério da Saúde.

Recente pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro analisou os custos potenciais para o Sistema Único de Saúde (SUS) associados às patentes de medicamentos que tiveram vigência maior que 20 anos. A partir de uma avaliação detalhada das compras de nove medicamentos de 2014 a 2018 pelo Ministério da Saúde, o estudo aponta que o governo desperdiçou no período R$ 3,8 bilhões, adquirindo produtos patenteados com preços mais elevados que os praticados no mercado.

Representantes da indústria poderiam até argumentar que a demora na conclusão dos processos de pedido de patentes justificaria prazo superior a 20 anos. Mas essa tese é duvidosa, uma vez que o pedido registrado já garante de certa forma a exclusividade na exploração comercial do produto a ser desenvolvido. Basta observar que nossa legislação assegura ao titular da patente o direito de receber indenização pela exploração indevida de seu objeto em relação à exploração realizada entre a data da publicação do pedido e a da concessão da patente.

Sem dúvida, não é esse prazo adicional que garantirá maior divulgação de conhecimento nem introdução de mais produtos inovadores, em especial na nossa indústria farmacêutica, que representa o sexto maior mercado do mundo. A revogação do prazo adicional de patentes previsto na LPI certamente não faria o inventor estrangeiro desistir de patentear produtos farmacêuticos num dos maiores mercados do planeta – até porque o Brasil tem baixa participação nos depósitos de patentes solicitadas ao Inpi.

O Congresso tem consumido boa parte do tempo avaliando medidas para a retomada do crescimento econômico e de ajuste fiscal. Sem dúvida, a sociedade apoia essas tentativas. No entanto, continua demandando também medicamentos essenciais para a saúde e o bem-estar social. Essa demanda de remédios tende a aumentar ainda mais se as estatísticas que fundamentaram a reforma da Previdência comprovando o envelhecimento da população estiverem corretas. Nesse sentido, patentes e saúde pública também devem ocupar parte prioritária da agenda do Poder Legislativo.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Tributação em números

Do ponto de vista federativo, as ‘reformas’ alardeadas representam um retrocesso

A reforma tributária tem sido apregoada como o principal instrumento para reequilibrar o chamado pacto federativo. Consta que seu principal objetivo é promover a descentralização de receitas da União para Estados e municípios. Mas as evidências disponíveis mostram que do ponto de vista tributário o Brasil é o país federativo mais descentralizado do mundo! Essa posição, boa ou ruim, foi consequência direta do pacto social e político que esteve por trás da Assembleia Nacional Constituinte de 1988.

Os números são inquestionáveis. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Estados e municípios brasileiros se apropriam de 56,4% da arrecadação interna de impostos. Em média, essa participação é de 30,9% nos países federados situados em nossa faixa de renda e de 49,5% entre os mais ricos.

A esses dados poderíamos acrescentar: mais de 53% dos impostos federais no Brasil retornam aos Estados e municípios em benefícios previdenciários e assistenciais, abono salarial ou seguro-desemprego. Ou seja, outros 23% da arrecadação total se somam aos recursos destinados diretamente a essas esferas da Federação, o que produz uma descentralização de 79,5% das receitas totais. A maior do mundo!

Diante dos números disponíveis, torna-se difícil acreditar que estejamos sofrendo um agudo desequilíbrio no pacto federativo, ao contrário do que tem sido sempre alardeado. De fato, o pacto prevalecente representa uma conquista da sociedade brasileira que precisa ser preservada.

Isso exige múltiplos esforços. Na Federação brasileira ainda proliferam casos de dependência e irresponsabilidade fiscal. Nosso país continua desigual e tem sofrido alguma piora em indicadores relevantes, como o índice de concentração de renda.

Note-se que uma descentralização adicional de receitas sem condicionantes adequados pode criar ineficiências que corrompem a qualidade do gasto público e a própria autonomia dos entes federativos. Alguns indicadores a esse respeito são a baixa arrecadação municipal nas bases do IPTU e do ISS e a ociosidade de recursos destinados a projetos específicos, inclusive de emendas parlamentares.

Ou seja, alguns Estados e municípios parecem estar abdicando de exercer bem a competência de tributar e de executar investimentos, ambos fundamentais para sua plena autonomia. Ao contrário, estão dando prioridade a gastos correntes custeados majoritariamente pelas transferências que recebem da União, ampliando a dependência desses recursos.

Essa dependência crescente se inscreve no contexto de uma elevada irresponsabilidade fiscal, que veio à tona com a grave recessão, evidenciada por folhas de pagamento inchadas e má qualidade dos serviços públicos. Tal cenário criou um ambiente político-institucional propício ao socorro de Estados e municípios pela União, sobretudo em momentos de queda de arrecadação e das respectivas transferências. E vai se criando um círculo vicioso de dependência e indulgência em relação à irresponsabilidade fiscal.

O aumento das desigualdades também preocupa. Após longa recessão, o Brasil superou a África do Sul como o mais desigual dos países que abrigam as 20 maiores economias, de acordo com o índice de Gini. Nosso sistema tributário reforça esse quadro em razão de sua alta regressividade.

As pessoas mais pobres são as que gastam a maior parte da renda em impostos elevados que incidem em alimentos, energia elétrica, gás, medicamentos, telefonia e transporte.

Já as “reformas” propostas, em vez de enfrentarem a regressividade, fazem o oposto: aumentam a carga tributária sobre alimentos e serviços básicos, que afetam a todos. Há quem diga que esse aumento é mais relevante sobre a classe média, consumidora de serviços, mas esquecem que os serviços são a principal fonte de renda para as classes mais pobres e regiões menos desenvolvidas, que sofrerão desproporcionalmente com a queda da demanda e, logo, da renda.

Do ponto de vista federativo, as “reformas” alardeadas também representam retrocesso. Por concepção, impedem que os entes federativos promovam políticas de desenvolvimento ou de estímulo a seus mercados via tributos, minando sua autonomia para concorrer e se autodeterminar preconizada na Carta.

Essa visão míope, de defender o aumento da produtividade apenas do ponto de vista de cadeias produtivas, desconsidera a enorme ociosidade presente na economia, especialmente humana, e o amplo potencial de desenvolvimento regional.

Sob a ótica da otimização econômica, seria muito mais eficiente ocupar o capital humano e desenvolver o potencial das regiões, multiplicando as externalidades positivas e difusas, do que concentrar-se em otimizar localmente cadeias produtivas já estabelecidas.

Reconhecendo esse desequilíbrio regional e social, que seria mantido e até estimulado, as “reformas” encarregam o Congresso de promover as ações políticas “mitigadoras”, em especial a ampliação das já robustas transferências e equalizações regionais.

Ora, isso fomentaria as ineficiências e a irresponsabilidade fiscal nos federativos, além de ampliar a dependência destes com a União, perpetuando o círculo vicioso. Estaríamos reforçando os traços do colonialismo centenário, em que a União manteria e ampliaria o status quo, representado por regiões desenvolvidas e subdesenvolvidas, todos inseridos numa espiral de dependência e irresponsabilidade fiscal que seguiria deteriorando toda a Federação.

E as regiões subdesenvolvidas se manteriam dependentes de equalizações definidas na arena política do Congresso, mas sem poderem – ou mesmo quererem – concorrer e produzir plenamente. Assim, privaríamos essas localidades da autonomia e dos incentivos necessários para se desenvolverem, no esplendor de produzirem o próprio sustento e se libertarem.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra || Semipresidencialismo – nem rima nem solução

Longe de dar maior efetividade, esse sistema magnificaria nossos muitos conflitos

A sociedade brasileira tem intensificado sua participação política nos últimos anos. Somos agora o país do futebol, do carnaval e, pouco a pouco, da política! As redes sociais, claro, impulsionaram essa efervescência, mas não explicam tudo.

Outro vetor que impulsiona essa tendência tem sido a impaciência do eleitor com a baixa capacidade decisória de nossa política. As pessoas estão exasperadas com a lentidão das instituições em (não) responder às suas demandas. Não se trata de uma tendência exclusiva do Brasil, mas, por aqui, a imensidão dos problemas não nos dá o luxo de esperar.

Francis Fukuyama - se me permitem a ousadia de citá-lo depois da baboseira do seu “fim da História” - propõe uma interessante perspectiva para analisar essa tendência: as democracias liberais - especialmente os Estados Unidos - teriam escorregado para o terreno pantanoso da “vetocracia”, situação em que os vários atores relevantes da política são fortes para barrar propostas controversas ou polarizadoras, mas incapazes, mesmo em amplas coalizões, de tocar programas de seu interesse. Tudo é paralisia, nada de vulto acontece.

É evidente que tal situação não pode perdurar. A acumulação de impasses acabará impondo algum tipo de saída. A radicalização que se percebe na política em nível mundial - muitas vezes interpretada como uma escalada populista - parece responder a essa frustração com a paralisia decisória das instituições democráticas. O Brasil não está fora desse grande movimento.

Nesse cenário, muitos interpretam que a disfuncionalidade política no Brasil está radicada em nosso sistema de governo, o presidencialismo, que não seria capaz de formar maiorias aptas a tocar as reformas essenciais para que voltemos a crescer com redistribuição de renda.

O presidencialismo não funcionaria - segue o raciocínio - porque é chamado a realizar a quadratura política do círculo. A formação de maiorias indispensáveis para tocar programas de governo requer um nível de concessões tão amplo que, paradoxalmente, uma vez formada, a maioria parlamentar já está desidratada programaticamente. Essas negociações para formação de “bases parlamentares” não são bem vistas pela população. Tudo se passa como se o objetivo fosse unicamente repartir os espaços de poder no Estado, para saciar grupos de interesse. Certa ou errada - ou exagerada -, essa é a percepção que predomina. E que provoca repulsa crescente.

Para alguns, a solução seria um sistema híbrido, o semipresidencialismo, em que o Congresso acabaria por praticamente assumir a gestão executiva, mas com o presidente detendo ainda importantes competências. A proposta tem certa inspiração no modelo francês - e também no de Portugal -, em que o parlamentarismo é mitigado pela presença de presidentes com atribuições efetivas, em contraste com os sistemas parlamentaristas “puros”, em que o chefe de Estado tem funções essencialmente cerimoniais. Neste último modelo se enquadram, por exemplo, a Itália - onde o presidente chega a ser eleito pelo Parlamento -, o Reino Unido e vários países da Europa Setentrional - onde prevalecem monarcas como chefes de Estado.

O presidencialismo tout court, do qual o primeiro e mais bem-sucedido exemplo são os Estados Unidos, caracteriza-se por uma quase absoluta concentração da gestão pública no Poder Executivo, deixando para o Legislativo as funções clássicas de legislar, definir o orçamento e a tributação e fiscalizar o Executivo.

Interessante notar, em contraste, que o presidencialismo é mais presente nos países de menor grau de desenvolvimento. A América Latina é quase toda presidencialista, o que não é difícil de explicar: os Estados Unidos eram bem-sucedidos demais para não serem copiados e a sociedade civil era muito débil perante um Estado centralizado e estruturado como gestor de colônias de exploração.

Nosso presidencialismo já surgiu concentrando grandes poderes no chefe do Executivo, enquanto ao Legislativo cabia o papel de instância de homologação. O grande antagonismo era entre o centro e as províncias. Não por acaso, aqui e na América Latina em geral o presidencialismo tem um travo vagamente autoritário. Caudilhismo, bonapartismo e cesarismo foram adjetivos frequentes na descrição do sistema quando o nível de impasse levou ao acirramento aberto com o Legislativo. E nossa História foi uma longa procissão de intervenções militares, padrão, felizmente, superado. O autoritarismo nunca dispensou o presidencialismo, por óbvio. Parlamentarismo autoritário é uma antinomia.

Respeito, mas não tenho simpatia pela proposta de semipresidencialismo. Longe de dar maior efetividade, o sistema magnificaria nossos conflitos, que já não são poucos.

A proposta surgiu de um diagnóstico errado. O problema não é o sistema de governo em si - e digo isso como defensor do parlamentarismo. A raiz da baixa efetividade de nossa política está no nosso sistema eleitoral. O sistema proporcional puro incentiva a fragmentação e, pior, impede a coesão e a disciplina partidárias. Os maiores adversários de um candidato a deputado, hoje, são seus próprios correligionários. Algumas dezenas de votos podem deixar um candidato sem a vaga, que será obtida por um triz por seu colega de partido.

Semipresidencialismo não dá samba, não é rima nem solução. A solução verdadeira é corrigir nosso sistema eleitoral, com a adoção do voto distrital misto, que combina as virtudes do voto proporcional - preserva minorias relevantes - com as do sistema distrital - forma maiorias eficazes, é simples, barato e vincula eleitos e eleitores. Mais ainda, o Senado já aprovou o projeto de lei que implanta o voto distrital misto.

A decisão final está agora nas mãos da Câmara, sendo relator o deputado Samuel Moreira. Vamos em frente!

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Populismo com FGTS

Modalidade permanente de saques compromete os investimentos subsidiados pelo fundo

Segundo foi anunciado, serão admitidos saques periódicos de parte dos recursos depositados no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), com o propósito de estimular a atividade econômica em curto prazo. É uma medida heterodoxa, apesar de promovida por uma equipe que se considera ortodoxa: elevar o consumo subtraindo recursos para financiar investimentos. Expande-se a demanda das pessoas por bens e serviços à custa do encolhimento potencial das operações de investimentos subsidiadas pelo fundo. Não é por menos que porta-vozes das empresas de construção habitacional assumiram atitude crítica diante do anúncio.

A nova equipe econômica vem aos poucos mostrando que pretende realizar mudanças permanentes no FGTS. Na origem, há mais de meio século, esse fundo destinava-se a substituir as indenizações que os assalariados recebiam das empresas quando eram demitidos “sem justa causa”. Seu financiamento provinha, como ainda provém, dos depósitos mensais das empresas equivalentes a 8% dos salários, em favor dos trabalhadores. Outra possibilidade, introduzida no contexto do FGTS, foi o direito ao saque do dinheiro do fundo pelos trabalhadores que se aposentassem ou adquirissem “casa própria”.

Como curiosidade vale lembrar que um dos criadores do FGTS, em 1966, foi o então ministro do Planejamento, Roberto Campos, avô do atual presidente do Banco Central. Mas nessa matéria a atual agenda “reformista” é bem diferente da das últimas décadas, que criou e ampliou o papel e a importância do fundo citado.

Trata-se de uma fonte de recursos perenes e de longo prazo para as políticas públicas na área habitacional e de infraestrutura. O FGTS, instituído por lei em 1966, alcançou o patamar de direito social constitucional na Carta Magna de 1988. De fato, os sucessivos governos foram ampliando o papel desse fundo ao longo dos anos.

Criado originalmente, como disse, para servir de poupança do trabalhador, protegendo-o em épocas de crise e demissões, o FGTS passou por uma reformatação em 1991. Seus recursos passaram a apoiar – além de habitação popular – políticas de investimentos em infraestrutura, em especial no setor de saneamento. Em 2007 chegou a ser introduzido na sua estrutura um fundo especial de investimento, o FI-FGTS, com mandato para investir em empreendimentos em setores como aeroportos, energia, rodovias, ferrovias, portos e saneamento.

As contas individuais do FGTS dos trabalhadores são corrigidas monetariamente pela Taxa de Referência (TR), que também atualiza os saldos dos depósitos de poupança, e são capitalizadas a juros de 3% ao ano. Ou seja, rendem TR + 3% ao ano. Essa taxa de remuneração permite ao FGTS conceder subsídios ao financiamento de dois setores importantes para o desenvolvimento social do País, construção civil e saneamento, que proporcionam empregos e ampliam a oferta de moradias e de acesso à água tratada e ao esgoto.

Em setembro do ano passado o patrimônio do FGTS alcançou R$ 520 bilhões. As operações de crédito do fundo correspondem a dois terços desse valor. São R$ 305 bilhões aplicados em financiamentos habitacionais, R$ 36 bilhões em infraestrutura e R$ 2,5 bilhões até em refinanciamentos de dívidas estaduais e municipais. Em 2017 os custos dessas operações foram, na média, de 4,9%, 6,2% e 5,6%, respectivamente. Muito abaixo das taxas que seriam cobradas pelo mercado.

A propósito, as Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste são as mais beneficiadas pelo programa Minha Casa, Minha Vida, baseado em recursos do FGTS, criado em 2009 com objetivo de conceder subsídios para beneficiar famílias com renda mensal de até R$ 2.790. São descontos habitacionais associados a 22 empregos para cada R$ 1 milhão investido. De 2009 a 2019 a carteira de empreendimentos contratados chegou a R$ 372 bilhões. Mais de 8 milhões de empregos criados.

Grupos políticos e especialistas costumam fazer reparos à taxa que remunera os recursos depositados no FGTS, que, afinal, pertencem aos trabalhadores. Para eles, esse dinheiro deveria render juros de mercado. Há quem defenda também a maior liberação dos saques dos recursos depositados no fundo, apostando na redução do seu patrimônio ou até mesmo na extinção – integrantes do atual governo parecem tomar posição a favor desse tipo de medidas. Por sorte, a maioria do Congresso e a força da opinião pública têm inibido as ofensivas nessa direção.

O que não é dito nas explicações mais ligeiras é que o FGTS precisa de liquidez para fazer frente a eventuais excessos de saques. A elevação da rentabilidade e a liberação excessiva dos depósitos reduzem os subsídios concedidos por esse fundo. É simples: a necessidade de maior liquidez ou a redução do spread – diferença entre a taxa de retorno das aplicações e a taxa de remuneração das contas vinculadas dos trabalhadores – afetam as disponibilidades de caixa para aplicações. Como alternativa só restaria elevar o custo das operações de crédito.

O fato é que a arrecadação líquida do FGTS tem sido cada vez menor desde 2014, como parte dos efeitos da crise econômica. Naquele ano os depósitos superaram os saques em R$ 18,4 bilhões. Com saques e demissões, essa diferença caiu para R$ 4,9 bilhões em 2017. Ações para liberar os recursos do FGTS podem contribuir ainda mais para a redução da sua arrecadação líquida, fazendo o fundo ficar menos potente para operações de crédito subsidiado.

É preciso lembrar que os saques são realizados pelos trabalhadores mais em razão de demissões sem justa causa e de aposentadoria. E 84% dos cotistas do FGTS têm saldo acumulado de até um salário mínimo. Criar uma modalidade permanente de saques das contas do FGTS é uma medida populista que compromete investimentos subsidiados pelo fundo e deixará a maioria dos trabalhadores sem recursos na demissão e na aposentadoria.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Um grande homem público

Barelli deixou marcas importantes na história do país

Na última quinta-feira (18), morreu o economista Walter Barelli, cuja militância profissional na área deixou marcas importantes na história brasileira após o golpe militar de 1964.

Foi ele quem conduziu o Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos (Dieese) a partir da segunda metade dos anos 1960 até o início dos 90, instituição que teve um grande papel no fortalecimento do movimento dos trabalhadores de São Paulo, ao pesquisar índices de preços, ou custo de vida, que serviam de base às reivindicações sindicais.

O Dieese sobreviveu aos piores anos do autoritarismo no Brasil, com Barelli à frente, mantendo sempre sua credibilidade técnica.

Além de diretor do departamento, ele foi ministro do Trabalho de outubro de 1992 a abril de 1994, secretário do Emprego e Relações do Trabalho do Estado de São Paulo de 1995 a 2002 e deputado federal pelo PSDB de 2003 a 2007. Foi ainda professor do Departamento de Teoria Econômica e membro do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), da Unicamp.

Como ministro do Trabalho do presidente Itamar Franco, assinou juntamente com Fernando Henrique Cardoso a lei 8.678, de 1993, que introduziu na legislação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) a possibilidade do trabalhador sacar a poupança no fundo quando fica fora do regime por um período de três anos ininterruptos. Nada mais justo.

Outra novidade da lei 8.678 foi o estabelecimento de uma taxa adicional de juros para remunerar o saldo nas contas dos trabalhadores que ficam fora do mercado de trabalho por três anos ininterruptos. Os recursos para cobrir essa bonificação são obtidos pela Caixa Econômica Federal cobrando-se compensações nas operações de crédito financiadas com recursos do FGTS.

No comando do Ministério do Trabalho, Barelli liderou ações para combater o trabalho escravo. Quando ocupou o cargo, coordenou um mapeamento das ocorrências de trabalho escravo no Brasil. Concluiu-se na época que 31% dos registros de trabalho escravo estavam no Sudeste; 26%, na região Norte; 18%, no Centro-Oeste; 13%, no Nordeste; e 12%, no Sul. Entre os setores, os casos se concentravam especialmente nas áreas sucroalcooleira, agrícola, carvoeira e de reflorestamento.

Ele também se voltou a propostas que tornassem a gestão pública mais eficiente. Como deputado federal, criou em 2005 uma subcomissão na Comissão de Trabalho e Administração Pública da Câmara para avaliar gestão de pessoas, processos, tecnologia e ética no setor público.

Barelli e eu militamos juntos no movimento estudantil na primeira metade dos anos 1960. Dele recebi apoio decisivo para assumir então a presidência da União Estadual dos Estudantes (UEE), que me levou a presidir, em seguida, a União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1964.

Quando voltei do exílio, em 1977/78, contei sempre com apoio do Barelli para integrar-me na vida acadêmica e na política nacionais. Ao longo desses anos todos, mais de perto ou mais de longe, dependendo das diferentes conjunturas, mantivemos sempre a relação de fraterna amizade. Perdemos um grande homem público.

* José Serra é senador da República (PSDB-SP), ex-governador de São Paulo (2007-2010), ex-prefeito de São Paulo (2005-2006) e ex-deputado federal (1987-1991), doutor em economia pela Universidade Cornell


José Serra: As bodas do Real

O plano fez a sua parte, há 25 anos; agora é necessário que façamos a nossa, a do Brasil real

Na semana passada completamos o jubileu de prata da estabilidade de preços do Plano Real, deflagrada em 1.º de julho de 1994. O lançamento do programa se deu após nove tentativas de derrubarmos a superinflação e estabilizar a economia brasileira: 1979, 1981, 1983, 1985, 1986, 1987, 1989, 1990 e 1991. Todas elas frustradas por restrições externas, falhas de concepção, deficiências na implementação e resistências políticas. Naufragaram planos ortodoxos, como o de 1983; heterodoxos, como o Plano Cruzado; orto-heterodoxos, como é o caso dos Planos Collor. Hoje, duas décadas e meia pós-Real, mantém-se uma estabilidade razoável, embora persista outro desafio: a economia voltar a crescer de forma sustentada.

O conjunto de experiências no combate à superinflação teve um efeito contraditório. De um lado, trouxe lições sobre o que fazer (e não fazer) para que a próxima tentativa de estabilização da economia fosse bem-sucedida. Por outro, como ouvi na época do embaixador Rubens Ricupero, tais experiências acabaram criando no Brasil uma espécie de “síndrome de Elizabeth Taylor”, aquela atriz bonita que teve muitos casamentos, um atrás do outro. A cada anúncio matrimonial se criava a expectativa de que a nova tentativa dessa vez daria certo, apesar do ceticismo reinante. Algo parecido ocorria em relação aos planos de estabilização: depois de várias tentativas frustradas, era difícil evitar o pessimismo sobre as chances de sucesso de uma nova tentativa. Mas nem por isso morriam as esperanças de fazer algo que desse certo.

Reacender os ânimos e vencer essa síndrome foi um dos grandes méritos da gestão do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que sofria pressões de todos os lados. A começar da sociedade, que, síndromes à parte, estava sequiosa por vencer a superinflação, que a martirizava havia pelo menos 15 anos. Outra fonte de desgaste vinha do nervosismo das forças políticas próximas ao governo da época, cujo futuro eleitoral dependia dos resultados da estabilização.

Mas a batalha foi finalmente vencida, aproveitando-se muito bem as lições das experiências anteriores. O Plano Real, vale lembrar, envolveu a coexistência de duas moedas, eliminou qualquer tipo de choque ou de surpresa, contrariando orientações de planos anteriores, e foi bem-sucedido sob a bênção de pelo menos quatro condições, duas endógenas e duas exógenas ao governo.

As endógenas foram a criação, logo no início, de um bom padrão de disciplina fiscal, inicialmente consubstanciado no Plano de Ação Imediata, o PAI, que, por sinal, veio a estabelecer um marco para o controle das finanças públicas no País, incluindo os Estados e municípios.

Outra condição favorável foi o acerto da nomeação do embaixador Rubens Ricupero para substituir o ministro Fernando Henrique, obrigado a se afastar do cargo para se candidatar a presidente. Ricupero manteve a equipe e o apoio do presidente Itamar Franco e da opinião pública ao plano, o que não era fácil, dadas as incertezas que cercavam a execução das medidas necessárias, a evolução da economia e as inquietações que envolviam toda a sociedade brasileira.

Outra condição bastante favorável foi a abertura comercial e financeira promovida durante o governo Collor. Embora merecesse reparos, essa abertura foi mantida e acabou criando condições favoráveis à estabilidade do Real numa primeira fase, seja pela possibilidade de importações massivas, seja pelo ágil afluxo de recursos financeiros externos, ambos fatores de curto prazo.

Na prática, o Plano Real eliminou uma nuvem de poeira quente que sufocava a vida do País e o impedia de enxergar os problemas e soluções. Ao longo dos anos permitiu aumentar o consumo básico de forma estável, incluído o de alimentos. De fato, o problema da alimentação passou a segundo plano: não há mais aquela carestia que tanto angustiava a nossa população. Participantes da vida pública sabem muito bem que a maior preocupação hoje no Brasil não é relativa ao consumo, mas sim ao emprego.

O Real facilitou, também, redistribuir renda, pois a superinflação castigava especialmente as grandes massas trabalhadoras mais desprotegidas, que não tinham como se defender eficazmente da corrosão salarial causada pela alta descontrolada dos preços. Ampliou ao mesmo tempo a previsibilidade na vida das pessoas. Estivessem ou não satisfeitas com seus padrões de vida, elas passaram a ter um conhecimento maior a respeito das condições para melhorá-los. Essa conquista do Real tem se mantido (em se tratando de economia, risco sempre há), paralelamente à conquista e consolidação da democracia.

O principal desafio do pós-Real ainda não foi resolvido: voltarmos a crescer de forma sustentada. O desemprego só será menor no contexto de uma atividade econômica dinâmica, investimentos, produção e exportações. Não há outra forma. Os juros em níveis elevados e a taxa de câmbio apreciada por muito tempo minaram o setor produtivo. Esses juros atraíram capitais externos, mas a formação bruta de capital fixo não reagiu a valer. Criou-se uma espécie de tendência estrutural à excessiva valorização do câmbio.

É preciso ter claro: o Plano Real fez a sua parte, há 25 anos; agora é necessário que façamos a nossa, a do Brasil real. O baixo crescimento ainda é o desafio não suplantado desde a conquista da estabilização monetária. Do ponto de vista prático, no âmbito do Congresso, há duas contribuições possíveis: colaborar para ampliar as condições da infraestrutura econômica do País – começando por energia e transportes – por intermédio do Orçamento; e em paralelo acertar as contas públicas nas três esferas de governo – passo fundamental, um dos elementos críticos faltantes para que o Plano Real se possa consolidar de vez.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Mal-estar na globalização

Seu sucesso dependerá de reconciliar avanços econômicos e elementos culturais e políticos

Alexander Solzhenitsyn, com sua peculiar alma russa, escreveu que “o desaparecimento das nações nos empobreceria tanto quanto se todas as pessoas se tornassem iguais, com um único caráter e um só rosto. As nações são a riqueza da humanidade, elas são suas diversas personalidades: a menor delas tem suas cores particulares e representa uma faceta particular dos desígnios de Deus”.

Essa gema literária nos estimula a procurar entender, ao menos em parte, a onda nacionalista – não raramente xenófoba – que viceja no mundo, especialmente nos países mais ricos.

A globalização econômica e cultural permite às populações desfrutarem de um padrão de vida ascendente – e elevado, nos países desenvolvidos –, mas também subtrai parte da soberania dos Estados nacionais e reduz o raio de ação dos governos democraticamente eleitos. Mais ainda, a hegemonia cultural que acompanha esse processo encolhe as diferenças e particularidades que dão às pessoas o sentimento essencial de pertencimento.

A interconexão das economias nacionais e o avanço sem precedentes da tecnologia têm um efeito dinamizador cuja potência e rapidez é fácil de ilustrar. Nos anos 30, nos Estados Unidos, um rádio doméstico de cabeceira, com seus chiados e interferências, custava o equivalente a US$ 670, a preços de 2019. Isso é mais que o que se paga hoje por um smartphone intermediário, cuja capacidade de processamento é maior que a do conjunto dos computadores usados pela Nasa para levar o homem à Lua no final dos anos 60. E a uma velocidade de processamento 120 milhões de vezes maior!

Mas nem só de pão – e celular – vive o homem. Observamos, paralelamente a esse progresso, a persistência ou mesmo o aumento da precarização das relações de trabalho e das desigualdades – não obstante a disponibilidade mais elevada de bens e serviços. A maior fluidez das relações sociais que decorrem de tal processo cria ansiedades que não têm sido devidamente consideradas pelas elites políticas locais e internacionais. Em alguns casos, chega a transparecer até um certo desprezo. Ficou célebre a infeliz referência generalizante de Hillary Clinton aos eleitores de Trump como uma “cesta de deploráveis”.

O historiador Victor Hanson abordou com veemência esse estado de coisas – o divórcio cada vez mais litigioso entre o homem comum e “as elites”: “Nós criamos uma riquíssima e influente casta senhorial que não se sujeita às consequências negativas de suas próprias ideias”.

As eleições mais recentes na Europa e nos Estados Unidos evidenciam que, por um lado, os partidos tradicionais e suas lideranças de alguma maneira se afastaram dos problemas mais prementes do cidadão médio. Por outro – e este é um componente paradoxal do processo –, a insatisfação do cidadão comum se tornou politicamente mais organizada a partir da expansão vertiginosa das redes sociais. As candidaturas de contestação aos partidos tradicionais têm se valido da capilaridade dessas redes. As estruturas políticas tradicionais e seus canais de difusão de ideias têm se tornado, se não obsoletos, bem menos efetivos.

Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, o partido do Brexit, liderado pelo eurocético Nigel Farage e fundado um mês antes, foi o mais votado no Reino Unido, deixando para trás os conservadores e os trabalhistas. As redes sociais criaram instantaneamente uma estrutura política competitiva, circunstância que seria impensável sem a difusão quase ubíqua da internet e do smartphone nos últimos anos. O impacto da vitória do partido do Brexit foi tamanho que liquidou definitivamente com o governo de Theresa May e suas tentativas de contemporização. E provavelmente levará Boris Johnson, um entusiasta da saída do Reino Unido da União Europeia, à liderança dos Conservadores e ao cargo de primeiro-ministro. O fantasma de uma vitória de Nigel Farage nas próximas eleições está conduzindo o Reino Unido para o desligamento definitivo.

Seria equivocado equiparar os movimentos “antielitistas” ao nacionalismo militarista e expansionista que caracterizou, por exemplo, o fascismo. No caso norte-americano, boa parte do eleitorado de Trump anseia pela completa renúncia dos Estados Unidos ao papel de polícia do mundo. Esse eleitorado é francamente isolacionista, em contraste com o chamado pensamento neoconservador que, no campo da ideologia, deu as cartas no governo Bush e era entusiasta de uma ação “evangelizadora” dos Estados Unidos, a qual, supostamente, deveria levar a democracia aos quatro cantos do mundo. Simplificando, pode-se dizer que o saldo foram a Guerra do Iraque e o aumento da instabilidade no Oriente Médio. Diante desse vetor isolacionista, é curioso e surpreendente que os Democratas venham tentando associar o governo Trump a Putin, investindo numa espécie de “russofobia” belicosa e antiquada, mais condizente com os tempos da guerra fria.

Na Europa, os partidos nacionalistas são francamente hostis à União Europeia e, longe de uma pauta militarista ou expansionista, propõem a desconstituição do bloco e a diluição do poder de Bruxelas. E são intransigentes com a imigração. O rechaço à União Europeia não decorre simplesmente de preocupações econômicas, mas do senso de perda de soberania e do medo – um tanto irracional – de enfraquecimento da “identidade nacional”. São esses temores que impulsionam líderes como Matteo Salvini e Marine Le Pen. Os movimentos nacionalistas se colocam como defensores da identidade nacional e da democracia ante uma elite internacional cosmopolita, sem rosto e inimputável.

Por isso tudo, o sucesso da globalização dependerá de sua capacidade de reconciliar avanços econômicos com os profundos elementos culturais e políticos que moldaram as nações nos últimos cinco séculos.

* José Serra é senador (PSDB-SP)


José Serra: Parlamentarismo branco, prognóstico cinzento

Um Congresso mais poderoso, mas cada vez mais fragmentado, não é o que o País deseja

A maioria dos estudiosos da política brasileira assume a hipótese seminal de Sérgio Abranches de que a forma de governo vigente no Brasil é o “presidencialismo de coalizão”. Esse arranjo não se deu por acaso, mas responde a certas características estruturais da política brasileira e, mais ainda, de nossa formação histórica e social: o presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo e a representação proporcional. Tudo combinado!

Embora a definição utilizada pelos estudiosos possa variar em relação à original, há um elemento constante nas várias interpretações. Diante da fragmentação partidária derivada de nosso processo eleitoral, os presidentes eleitos não dispõem de base parlamentar “automática” com a qual possam implementar suas propostas de governo. A forma de garantir a governabilidade seria a formação de coalizões amplas – em geral pouco consistentes ideologicamente. Apesar dessa inconsistência, elas seriam capazes de sustentar o governo e, talvez, lhe permitir alguma direção programática, sem a qual a própria coalizão não sobreviveria.

Na verdade, o presidencialismo de coalizão é um diagnóstico sobre a insuficiência de nossas instituições políticas. Trata-se de reconhecer uma circunstância indesejada, mas de grande peso na nossa trajetória política e na nossa formação como sociedade.

Tirar o País da contingência do presidencialismo de coalizão requer esforço político enorme para alterar as práticas e crenças mais enraizadas de nossa vida pública. Adotar o parlamentarismo clássico seria um dos desafios para a superação desse modelo. Outro tipo de ação seria aperfeiçoar nosso debilitante sistema eleitoral, que, a cada eleição, fragmenta adicionalmente o Congresso e torna cada vez mais penosa a composição de maioria parlamentar.

Tenho lutado pela remoção destes entraves históricos: o presidencialismo e a eleições proporcionais no modelo atual. Defendo substituí-los por um parlamentarismo responsável, estruturado sobre bases partidárias que resultem do voto distrital misto. Este sistema envolve regra proporcional, mas que, diferentemente do atual, privilegia a maior representatividade e induz à formação de maiorias programáticas, sem impedir a presença parlamentar de minorias relevantes.

Na presente conjuntura, percebe-se que o poder do presidente tem sofrido erosão adicional, o que dá forma a uma espécie de parlamentarismo de fato, mas que não aumenta a responsabilização do Congresso, na medida em que crises e impasses não põem em risco os mandatos dos parlamentares, característica essencial de um parlamentarismo consequente. A resultante é o conflito permanente, uma espécie de “presidencialismo de colisão”!

Desde a redemocratização, considera-se que o presidente da República, embora com dificuldades para a formação de maiorias, detém importantes recursos políticos que lhe garantem grande peso na agenda do Congresso. A prerrogativa de editar medidas provisórias (MPs) e de nomear cargos públicos, o poder de veto, o rol de iniciativas privativas do chefe do Executivo e o poder de liberação de emendas orçamentárias comporiam, por assim dizer, o arsenal do Executivo para disciplinar a fragmentação partidária.

No entanto, por motivos vários, esses instrumentos de controle estão sendo enfraquecidos ou simplesmente eliminados.

Veja-se, por exemplo, a frequência crescente com que vetos presidenciais vêm sendo derrubados. Até o primeiro mandato de Dilma Rousseff, a derrubada de vetos era tabu. A simples ameaça de derrubada levava a dura resposta do Executivo. O resultado é que pouquíssimos vetos foram derrubados desde 1988 até 2015. De 2016 para cá, tudo mudou. Apenas na penúltima sessão do Congresso, nada menos que 41 dispositivos foram rejeitados.

Além disso, vem aumentando a frequência de emendas constitucionais (EC), sobre as quais o poder de veto não incide. De 1989 a 2008, foram promulgadas 57 ECs, média de 2,9 por ano (sem contar as emendas de revisão); de 2009 a 2017, foram promulgadas 42 ECs, média de 4,7 por ano. Isso sem contar a EC do orçamento impositivo, já aprovada e na bica de ser promulgada, que enfraquecerá um dos elementos de controle do Executivo: a liberação de emendas parlamentares.

A mesma tendência de redução do poder presidencial se vê na proposta de emenda que tramita com boas chances no Congresso e que pretende limitar a cinco o número de MPs por ano.

Tudo somado, estamos assistindo à construção de um novo sistema de governo: um parlamentarismo branco, desorganizado. Trata-se de um desdobramento indesejável. As mudanças que o Congresso tem conseguido impor elevam seu poder como corporação, mas estão longe de organizá-lo como fórum bem qualificado de decisão e encaminhamento das pautas majoritárias na sociedade. Um Congresso mais poderoso em suas atribuições, mas crescentemente fragmentado, não será capaz de gerar os difíceis consensos que a grave situação econômica exige.

Uma consequência poderá ser o aumento do conflito entre os poderes – o presidencialismo de colisão – sem que haja alternativa de dissolução do Parlamento, seguida por uma nova composição capaz de seguir um programa majoritário.

Além disso, o elevado grau de conflito sem mecanismos de solução de impasses tende a ampliar a chamada judicialização da política, fenômeno pelo qual as questões mais complexas e controversas deixam de ser resolvidas politicamente e passam à esfera de decisão do Judiciário, erigido à condição de poder moderador. Um resultado também indesejado.

Precisamos de um parlamentarismo de verdade, capaz de formar maiorias sólidas oriundas do voto distrital misto. Com esforço, poderemos fazer no segundo semestre de 2019 esta verdadeira revolução política, que prevaleceria já nas eleições de 2022 e passaria a valer em sua plenitude a partir de 2023.

* José Serra é senador (PSDB-SP)


José Serra: Sobre armas e estampidos

O crime tem múltiplas causas, todas difíceis de abordar. Soluções são igualmente complexas

Em janeiro, o presidente Bolsonaro assinou decreto que facilitou a posse de armas. A posse permite manter arma em casa ou outra propriedade, como um comércio. Mais recentemente, em 7 de maio, editou um segundo decreto, dessa vez liberando o porte, até mesmo de fuzis. Note-se que o significado da permissão do porte de armas vai bem além da posse, ao dar direito de andar armado ao cidadão que obtiver licença. Ontem, novo decreto abrandou a versão anterior.

Essas decisões são coerentes com a campanha eleitoral do presidente. De fato, a liberalização da posse e do porte de armas de fogo foi uma de suas mais marcantes promessas de campanha. A coerência, entretanto, não é necessariamente virtuosa quando insiste no erro. O aumento da criminalidade no Brasil não será resolvido expandindo o porte de armas, mas, principalmente, tornando mais provável a punição dos criminosos.

Um debate longuíssimo – e ainda inconclusivo – sobre o tema tem se desenvolvido nos Estados Unidos há mais de 20 anos. Quais serão os efeitos sobre a criminalidade da disseminação do porte de armas?

Em 1997, os pesquisadores John Lott e David Mustard publicaram importante artigo em que procuraram mostrar que o porte não ostensivo de arma (quando o cidadão pode andar armado, mas com a arma escondida) reduzia a criminalidade. A explicação era a de que a difusão do porte intimidaria os criminosos, pois eles saberiam que a vítima poderia antecipar-se ou revidar. O artigo foi, possivelmente, o trabalho mais influente em termos de políticas de segurança pública nos EUA. Hoje, 16 Estados liberam o porte não ostensivo sem nenhuma restrição; 26, por meio de licença automática (se preenchidos os critérios legais); e 8, mediante licença condicional. Nenhum dos 7 Estados que vedavam o porte em 1997 mantêm a proibição.

O maior antagonista de Lott e Mustard tem sido o pesquisador Richard Donohue, que publicou várias contestações ao trabalho da dupla. Em artigo recente, Donohue e outros procuraram demonstrar que a liberação do porte leva ao aumento de até 13% dos crimes violentos dez anos depois de adotada. Já os críticos de Donohue, como o pesquisador Gary Kleck, consideram que seus argumentos são frágeis, na medida em que ele não explica por que o aumento da criminalidade seria provocado pela liberação do porte. A criminalidade dos portadores não ostensivos seria praticamente nula e, portanto, não poderia explicar aumento da criminalidade geral.

E no Brasil? Qual será o impacto da permissão para o porte de armas? Argumenta-se que a medida poderá ser inócua ou mesmo contraproducente. A razão principal para isso seria o efeito surpresa, que quase sempre dá vantagem ao criminoso. Ainda que esteja armado e tenha habilidade, um cidadão comum tem pouca chance de neutralizar um assaltante. E isso vale também para policiais – altamente preparados para manusear armas –, que pouco podem fazer diante de um ataque de surpresa, como demonstra o elevado número de agentes assassinados.

Mas se armar a população não seria a saída para a nossa grave crise de segurança, que soluções outras poderiam ser propostas? Em primeiro lugar, é preciso reduzir a sensação de impunidade. A melhor criminologia contemporânea, muito influenciada pelo trabalho do economista Gary Becker, aponta que a certeza da punição, mais do que a severidade da pena, é o que efetivamente detém o criminoso.

Veja-se o caso de São Paulo: desde 1999 a taxa de encarceramento triplicou, enquanto a taxa de homicídios dolosos foi reduzida a menos de um terço do que era, caindo de 35 por 100 mil para aproximadamente 10 por 100 mil. O caso paulista demonstra que o aumento da taxa de encarceramento inequivocamente reduz a criminalidade. Além do efeito dissuasório sobre outros criminosos, o encarceramento incapacita o criminoso de cometer novos ataques.

No Brasil, temos várias causas para a impunidade, sendo duas as principais. Por um lado, nossas leis de execução penal, em muitas situações, anulam na prática as sentenças – como a progressão de regime a partir do cumprimento de um sexto da pena. Por outro, nossos sistemas de investigação, com poucas exceções, são ineficientes e defasados. Estudo da Agência Lupa mostra que apenas 6,5% dos homicídios dolosos cometidos em 2016 foram elucidados. Essa insuficiência investigativa leva à impunidade.

Outro elemento indispensável à diminuição da impunidade exigiria estabelecer um novo tratamento – mais duro – para os crimes violentos cometidos por adolescentes, aliás, objetivo de projeto de lei de minha autoria que tramita agora na Câmara.

É também preciso combater o poder do crime organizado sobre o sistema carcerário, que propicia o recrutamento, ainda que involuntário, de milhares de ex-presidiários e seus familiares para a engrenagem do crime. Para isso é necessário expandir a rede penitenciária federal e seus recursos humanos e logísticos.

Por último, não podemos esquecer que o tráfico de drogas é uma porta de entrada para o crime. Alguns acreditam que a liberação do uso de alucinógenos, como fez o Uruguai com a maconha, seria a solução para desvincular os usuários dessas redes criminosas. Segundo esse raciocínio, a criminalidade se reduziria por falta de demanda. Parece uma ilusão. A liberação de um tipo de droga não acaba com o tráfico, no máximo o desloca para outros tipos ainda proibidos. Aliás, a criminalidade no Uruguai, uma rara ilha de paz urbana na América Latina, tem tido crescimento mesmo depois da liberação da maconha.

Independentemente da solidez jurídica dos vários decretos já baixados, continuariam as dúvidas sobre a eficácia do porte e se manteria a preocupação com o aumento do estoque de armas a que ele fatalmente induziria. O crime no Brasil tem múltiplas causas, todas difíceis de abordar. As soluções são igualmente complexas e requerem muito mais do que o estampido de embates políticos.

* José Serra é senador (PSDB-SP)


José Serra: À espera de um milagre

Jair Bolsonaro teve que mudar a formatação de seu Ministério e aceitar que ministros sejam apadrinhados por políticos

O quadro geral da economia brasileira é inegavelmente ruim. A possibilidade de recuperação demanda políticas públicas especialmente adequadas e atuação firme do Estado. Não adiantará muita coisa aprovar uma reforma da Previdência e esperar que o milagre aconteça.

A série do PIB calculada pelo IBGE iniciou-se em 1901. Desde então nunca houve um crescimento médio anual por década tão baixo como agora. Reaquecer a economia exigirá restabelecer o ânimo perdido no investimento e no consumo. A retomada da indústria é fundamental nesse processo.

Na década de 1950 chegamos a crescer 7,4% anuais. Nos anos 1970 a taxa foi ainda mais impressionante: 8,6% ao ano. Mas entre 2011 e 2018 avançamos apenas 0,6%. Assim, estamos economicamente estagnados há um período muito longo. Essa temperatura morna é veneno para a distribuição de renda e a melhoria das condições de vida da população.

A renda brasileira por habitante não passa de um quarto da renda dos países desenvolvidos. Não podemos ficar matando o tempo: a ociosidade da economia é alta, o que justificaria a adoção imediata de políticas de estímulo à demanda, desde que, é quase óbvio, fossem respeitadas as restrições fiscais.

Acontece, no entanto, que os instrumentos tradicionais disponíveis de política econômica parecem estar contaminados, na sua inoperância, pelas políticas equivocadas da era petista. O papel do BNDES, por exemplo, foi o de privilegiar os chamados campeões nacionais, com dinheiro originado em dívida pública. Não deu muito certo. Os investimentos totais da economia não reagiram como esperado.

Essa espécie de pecado original dificulta qualquer tentativa de ação no mesmo âmbito. O desafio torna-se mais complexo com um governo que não exibe clareza de objetivos e de estratégia. Todas as fichas agora estão apostadas na Previdência. É correto pretender reformá-la. E é urgente. Mas não se pode abandonar todo o escopo de políticas e ações para retomar o crescimento econômico, como se estivéssemos à espera de um milagre vindo do Congresso.

Caberia ao governo reverter essa situação. As autoridades precisam mostrar ao povo brasileiro qual o seu plano para retirar a economia do atoleiro. Um país com desigualdades elevadas e nível de pobreza preocupante, como o nosso, não pode prescindir de uma atuação mais precisa e eficiente do Estado.

Uma dimensão essencial da política econômica é a política industrial – setor que concentra os empregos com maiores salários –, sem falar do progresso tecnológico de que nossa economia tanto necessita. Não haverá reversão consistente do desemprego sem pensar a fundo esse problema. É preciso encarar com realismo e pragmatismo. Os erros do passado não podem simplesmente levar-nos a abandonar qualquer possibilidade de reação diante desta crise brutal.

Entramos, ou caímos, numa armadilha perigosa, a partir da crença de que sem aprovar a reforma da Previdência nada pode avançar no País. Essa linha de argumentação acabará por nos inscrever num círculo vicioso gravíssimo. No mínimo, uma longa estagnação, como já argumentei neste mesmo espaço.

É preciso levar em conta que o IBC-Br, espécie de PIB mensal calculado pelo Banco Central, mostrou queda acumulada de 1% no ano até o final de fevereiro. As expectativas para o PIB medidas pela Pesquisa Focus estão cada vez piores, passando da casa de 2% para 1,5% nas últimas semanas.

Em economia não se brinca com a confiança. Em contexto de incerteza, de águas turvas, a tendência é ninguém sair do lugar: não há consumo e investimento. Nos últimos 12 meses, a indústria de transformação teve uma baixa líquida de mais de 11 mil empregos. Os dados de produção industrial vão na mesma direção: queda de 2,2% no acumulado até março deste ano e queda de 6,3% – março de 2018 a março de 2019. Quando observamos a evolução mensal, o desempenho é o mesmo que os economistas classificam como “andando de lado”, mas com um bom viés de baixa. Para ser mais claro, em porcentagem do PIB o nível atual da indústria é o mais baixo da série que se inicia em 1947: 11,3%.

Não basta o condão da reforma da Previdência para o Brasil voltar a crescer. O crescimento é um processo complexo, que depende da produtividade, do ímpeto dos empresários e consumidores, das condições de liquidez internacional, dos juros e da taxa de câmbio, da coordenação das políticas monetária e fiscal e de outras tantas variáveis. Isso tudo exige uma política econômica firme e bem feita.

No Congresso há muita coisa a fazer no atacado e no miúdo. É possível, por exemplo, aprovar projeto de lei que melhore fortemente as condições de investimento no setor de ferrovias. O governo, corretamente, parece ter abraçado o assunto. Na agenda do reequilíbrio das contas públicas, é desejável limitar a expansão da dívida da União e proporcionar ao País um horizonte maior de previsibilidade.

Outra frente de batalha diz respeito à política monetária e aos juros na ponta. Apesar de a Selic ter diminuído desde outubro de 2016, de 14,25% para 6,5%, e com ela os juros reais – hoje em torno de 3% ao ano –, o Brasil segue sendo o sétimo país com taxa mais alta no mundo. Na ponta, os juros também diminuíram um pouco, mas o spread bancário continua alto e corroendo os rendimentos e as possibilidades de consumo e investimento dos brasileiros. É preciso, nesse ramo, haver mais competição. Por isso é hora de o Cade entrar pesado no assunto. Não basta o Banco Central dizer que está combatendo inadimplências e fomentando a competição. É hora de praticar ações mais concretas.

É preciso tomar e/ou apoiar as iniciativas que ajudem a solucionar a crise e a devolver ao Brasil a esperança, como disse Fernando Henrique aqui, no Estadão. É hora de ter projeto de país, de esquecer o “quanto pior, melhor” e unir forças pela recuperação do emprego e da renda. Este é o anseio maior da Nação.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Outra década perdida?

A solução para nossos problemas econômicos exige voto distrital misto e parlamentarismo

Tudo leva a crer que o ano de 2019 fechará mais uma “década perdida”, numa frustrante repetição do que ocorreu nos anos 1980. A expressão, na verdade um tanto exagerada e catastrofista, foi cunhada com relação àqueles anos, quando a economia brasileira, até então invejada por sua pujança, tropeçou no desequilíbrio externo e na superinflação, exibindo um crescimento medíocre do PIB, muito distante do ritmo do pós-guerra: cerca de 17% em dez anos. A presente década pode terminar sendo, em matéria de dinamismo econômico, pior do que aquela.

É bem verdade, porém, que a “década perdida”, numa perspectiva econômica, é um tanto injusta com o Brasil dos anos 80. Dado o crescimento rápido verificado no após guerra – e em parte devido às suas lacunas –, grandes problemas foram se acumulando, sintetizados na inflação galopante e no desequilíbrio externo, marcas da nossa transição de economia agrícola para industrial no historicamente curto espaço de 50 anos. Metrópoles expandiram-se com infraestrutura deficiente e a oferta agrícola não acompanhava a demanda crescente. Ademais, a população padecia de níveis muito baixos de instrução e pouco acesso à saúde.

Como é sabido, o modelo de desenvolvimento por substituição de importações que prevaleceu no pós-guerra, associado à urbanização rápida e à lenta modernização da agricultura, produziu uma economia concentrada, protegida da competição externa e menos propensa à inovação, e por isso mesmo sujeita a fortes pressões inflacionárias. A essas pressões estruturais se sobrepôs um relaxamento fiscal que decorreu de nossa complexa redemocratização, cujo momento crítico foi a Assembleia Nacional Constituinte.

A nova Carta trouxe-nos um federalismo mal calibrado e pouco consequente do ponto de vista fiscal, com a complicação suplementar de ter consolidado um corporativismo indomável e “de luta” no serviço público – que por bom tempo conseguiu passar-se por “defesa dos trabalhadores”. A fome juntou-se à vontade de comer e, unidas, confluíram num arranjo político fiscalmente precário, por mais que alguns governantes, aqui e ali, tenham tentado retirar a água do convés com pequenos baldes.

O Plano Real representou a grande guinada, ao controlar a superinflação aberta que se arrastara até 1994, por meio de uma engenhosa regra de desindexação. Logo após, outra grande obra política de Fernando Henrique Cardoso foi realizada: a renegociação das dívidas dos Estados e municípios, que garantiu a geração de superávits primários nos entes subnacionais e praticamente extinguiu os bancos estaduais, verdadeiras usinas de inflação.

Ainda assim, o Brasil pós-década de 80 não foi capaz de sustentar um regime fiscal conducente à estabilidade com crescimento. Nossas taxas de juros sempre foram muito elevadas, deprimindo o investimento e onerando as contas públicas. E a partir do segundo governo Lula houve um grande relaxamento fiscal.

Nesse percurso de tropeços das contas públicas foram feitas várias tentativas de controle pela edição de novas regras fiscais. O exemplo mais importante foi a Lei de Responsabilidade Fiscal, que cumpriu importante papel, apesar que vários de seus dispositivos terem sido interpretados de forma equivocada, como no caso de se permitir que em Estados e municípios parcelas importantes dos gastos com aposentados e despesas de pessoal não fossem computadas na apuração do porcentual máximo de 60% de gastos com o funcionalismo. Vários Estados continuam até hoje formalmente enquadrados nessa regra, mesmo sem conseguir manter a folha em dia. Surreal! O Brasil é bom para criar regras fiscais – e melhor ainda para driblá-las.

A possibilidade de desagregação fiscal nos governos subnacionais ainda representa uma grande ameaça. Se não for contida, não só continuará tolhendo o crescimento econômico, como poderá ressuscitar a inflação. Por trás de tudo isso está o nosso sistema político disfuncional e fragmentado.

As dificuldades que se insinuam para a reforma da Previdência nada mais são do que um sintoma dessa doença do nosso corpo político. O Congresso tornou-se uma federação de quase 30 partidos, nenhum deles em condições de liderar uma maioria apta a implantar o que deseja a sociedade: um Estado saneado e apto gerencialmente a entregar serviços de qualidade em educação, saúde e segurança. Ao contrário, o atual sistema político não forma maiorias programáticas, é implacável em opor vetos e está continuamente dando lugar à expansão de gastos.

A dinâmica formal do Congresso revela essa disfunção. Como existem numerosos partidos, cada qual com seus líderes, um simples encaminhamento de voto toma longas horas, às vezes dias. Um partido pequeno pode entremear esse suplício com questões de ordem variadas e, assim, obstruir votações.

Os presidentes das Casas e das comissões têm de recorrer a acordos prévios com todas as lideranças para que as votações sejam concluídas. O risco, obviamente, é a diluição de todas as propostas votadas quando a questão é controversa. As exceções são os momentos em que a votação contempla o interesse geral dos parlamentares, como no caso da aprovação em tempo recorde da emenda do orçamento impositivo. Aliás, se prevalecer a redação atual, o pouco poder de barganha que restou ao Executivo será obliterado.

O presidencialismo é condenado por essa fragmentação, que só tende a aumentar. A solução para nossos problemas econômicos exige, ao menos como condição para se tornar politicamente viável, a adoção de um novo sistema eleitoral e um outro sistema de governo: o voto distrital misto e o parlamentarismo. Com eles, abrimos a possibilidade de os próximos anos se inscreverem numa década ganha, em vez de mais uma vez perdida. Como e o porquê é um tema para próximos artigos.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Entropia exponencial

Urge reformar o sistema eleitoral, causa da fragmentação partidária que gangrena a política

É tentador atribuir os atropelos deste início do mandato do presidente Jair Bolsonaro principalmente à sua personalidade, à inexperiência política de seus aliados ou até à heterogeneidade de concepções e de métodos dos grupos mais importantes que formam o governo. Isso tudo é verdadeiro e o enfoque é plausível, de modo que a maioria tende a jogar todo o peso dessas dificuldades nas idiossincrasias do atual governo e quase desconsidera os limites impostos por nosso disfuncional sistema político, resumido na combinação do presidencialismo com o um Legislativo pulverizado em 28 partidos, dos quais 14 não ultrapassam 5% das cadeiras na Câmara.

Reconhecer, como cabe, e como considero, que parte da instabilidade atual é de fabricação própria do governo Bolsonaro não deveria obscurecer o fato de que as dificuldades de formação de maiorias programáticas seriam inevitáveis qualquer que fosse o governo, em razão do nosso desagregador modelo eleitoral e partidário.

O que a maioria dos brasileiros espera e exige? A retomada do desenvolvimento econômico, com mais e melhores empregos, ao lado de drástica redução nos índices de violência.

Nenhum passo importante será dado na direção do desenvolvimento sustentado sem um forte ajuste fiscal. Nossa situação fiscal é patologicamente injusta. A carga tributária é elevada para um país emergente, além de mal utilizada. Os investimentos públicos minguaram, a nossa infraestrutura decadente não permite aumentos sistêmicos de produtividade e a política fiscal beneficia os mais ricos. Os salários do funcionalismo público não têm relação alguma com a produtividade e os regimes de previdência dos servidores não têm sustentabilidade atuarial. Em resumo, transformaram-se em instrumentos de concentração de renda.

Nos esforços de redistribuição de renda, as transferências governamentais acabaram perdendo o foco. O Bolsa Família, um programa verdadeiramente voltado para quem mais precisa, gasta pequena fração de outras transferências – como os benefícios de prestação continuada e aposentadoria rural –, que, embora meritórias em sua concepção original, têm sido vítimas de fraudes e de critérios inadequados de acesso.

Ufa! Criou-se hoje um quase consenso quanto à necessidade prévia ou simultânea de uma reforma substantiva da Previdência para desatar esses nós. Fala-se menos, no entanto, de outra condição imperativa: a criação de espaço para o aumento do investimento público e privado, com redução dos juros. O Brasil investe atualmente medíocres 16% do PIB, uma taxa muito menor que a de países já desenvolvidos, como Suécia (22%), França (22%) ou Coreia do Sul (31%).

Tornou-se inadiável também o enfrentamento do problema da segurança pública. Em 2016 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes ultrapassou a marca de 30, segundo a última edição do Atlas da Violência. Das 50 cidades mais violentas do mundo, 14 são brasileiras, conforme estudo da ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz. E, de forma preocupante, o crime organizado espalhou-se por todas as regiões do Brasil.

O combate à violência e ao crime organizado demanda ações em várias frentes, incluída a esfera legislativa. Nossas leis têm numerosas brechas que incentivam a impunidade. E a impunidade é, isoladamente, a causa mais importante dessa espiral de violência.

Diante desses desafios formidáveis, que requerem amplo consenso, temos um sistema político fragmentado, incapaz de formar maiorias e competentíssimo para opor vetos. A situação vem piorando a cada eleição. Um indicador do grau de fragmentação parlamentar é o número de “partidos efetivos”, proposto pelos pesquisadores Laakso e Taagepera. Esse número não se confunde com o de partidos formalmente representados no Parlamento, mas é uma medida abstrata do grau de fragmentação parlamentar. Quanto maior o número de partidos efetivos, mais difícil a formação de maiorias e mais decisivo é o papel dos partidos menores.

Nas eleições de 1998 esse indicador foi de 7,1, em 2014 subiu para 13,4 e nas últimas eleições chegou a inacreditáveis 16,5. Quanto maior o número de partidos, maior o poder de barganha dos pequenos partidos e mais incentivo à criação de mais agremiações. Uma entropia exponencial.

Esse processo é causa relevante da contínua corrosão da nossa situação fiscal. Grupos de interesses particularistas conseguem arrancar concessões que, somadas, acabam por erodir as finanças públicas. Em contrapartida, torna-se extremamente custoso negociar maiorias – especialmente em pautas controversas – indispensáveis para um ajuste fiscal que se baseie em revisão de despesas, e não em aumento de receita.

A situação atual é mais desse mesmo cenário paralisante. O governo Bolsonaro parece ter dificuldades crescentes para arregimentar a maioria necessária à reforma da Previdência. Se tiver de ampliar demasiadamente as concessões táticas que lhe permitam formar maioria, a reforma será diluída e não atingirá os objetivos mínimos pretendidos.

É por essa razão que vejo como inadiável uma reforma política para valer. Não para resolver um impasse imediato, o que seria impraticável, mas para refazer o futuro, sem prejudicar os mandatos atuais, do presidente e dos parlamentares. Uma reforma profunda, mas pontual, indo à causa essencial da fragmentação que está gangrenando a política no Brasil: o sistema eleitoral. É preciso mais do que nunca adotar o voto distrital misto, que barateia eleições e permite amplitude ideológica ao Parlamento, dando voz a minorias relevantes, mas que não obsta a formação de maiorias programáticas.

Que as dificuldades políticas atuais sirvam ao menos para, já nas eleições de 2022, adotarmos um sistema eleitoral baseado nessa reforma, livrando o País da entropia política que o está devorando.

* José Serra é senador (PSDB-SP)