José Serra

José Serra: Democracia na calamidade

Precisamo-nos afastar do autoritarismo e da demagogia com base em fórmulas mágicas..

O Brasil enfrenta os efeitos sociais e econômicos da pandemia de covid-19 em ambiente plenamente democrático, com os Poderes Legislativo e Judiciário assumindo papel central na gestão da crise, além de uma ação firme e tempestiva dos governos estaduais. No âmbito federal, as manifestações heterodoxas da Presidência da República, contrárias ao isolamento social, vêm sendo remediadas pela capacidade de ação do Parlamento e pela temperança do Supremo Tribunal Federal (STF). Nosso regime democrático, que se baseia na divisão dos Poderes da República, salvou muitas vidas quando assumiu elevado grau de protagonismo no combate ao novo coronavírus.

De todo modo, as falhas nos entendimentos entre as instituições do poder federal em torno das ações contra o patógeno é preocupante. Assim que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu que o vírus representa uma pandemia, lideranças da área econômica do Executivo federal apressaram-se a dizer que alguns poucos bilhões seriam suficientes para exterminar os efeitos da doença. O governo chegou até a defender a Proposta de Emenda à Constituição n.º 186, a PEC da Emergência Fiscal. Um equívoco, tendo em vista que a medida impediria contratar médicos, criar auxílios financeiros emergenciais para beneficiar grupos vulneráveis, bem como linhas especiais de crédito para salvar empresas. Tivesse sido aprovada, estaríamos diante de uma verdadeira tragédia sanitária, social e econômica.

Em artigo publicado neste espaço fiz críticas à PEC 186, remando contra a campanha de outros economistas e mostrando que a medida poderia criminalizar componentes importantes da política fiscal ao vedar a criação de despesas obrigatórias e renúncias tributárias. Tivemos sorte de ela não ter sido aprovada antes da proliferação da covid-19 em todo o País.

Creio que o Congresso Nacional vem exercendo suas funções institucionais de forma tempestiva e enérgica. Na fase inicial da crise o Senado assumiu a responsabilidade de anunciar um projeto de decreto legislativo para reconhecer a situação de calamidade, flexibilizando as regras e os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Não havia outro caminho, dadas as incertezas e a necessidade de elevar as despesas do Orçamento em caráter extraordinário e urgente. Essa iniciativa forçou o governo a abandonar a ideia de alterar as metas fiscais prevista em lei, levando-o a enviar mensagem presidencial à Câmara dos Deputados que foi convertida no Decreto Legislativo n.º 6, suspendendo a necessidade de se atingir qualquer meta fiscal no ano corrente.

A Câmara, por sua vez, promoveu uma arrojada articulação política para aprovar a PEC do “Orçamento de Guerra”, que hoje tramita no Senado. A medida poderá garantir ao Executivo segurança jurídica para empreender uma política fiscal expansionista, indubitavelmente necessária para lidar com os efeitos econômicos e socais da pandemia.

As novas regras constitucionais criariam uma espécie de orçamento público extraordinário, baseado na maior flexibilidade da gestão fiscal. A proposta também ampliaria os instrumentos de intervenção do Banco Central (BC) na economia, sem dispensar a devida prestação de contas ao Congresso. Aliás, espero que sejam soterrados todos os projetos de lei que conferem autonomia política ao BC, especialmente se aprovada essa PEC. O acúmulo de atribuições conferidas ao banco implode qualquer argumento favorável à soberania política da nossa autoridade monetária.

Essa atuação salva-vidas do Parlamento está sintonizada com recentes decisões tomadas pelo STF, instituição essencial do nosso regime democrático, que vem atuando com temperança. Sem titubear, a Suprema Corte concedeu na semana passada uma medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.357, em favor da Advocacia-Geral da União, que excepcionalizou a incidência de diversas restrições da LRF e da Lei de Diretrizes Orçamentárias deste ano.

Nessa linha, o STF também suspendeu a campanha publicitária do governo “O Brasil não pode parar”, ao conceder cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 669. Financiada com recursos públicos, a propaganda contrariava orientações da OMS e do próprio Ministério da Saúde - um disparate carregado de ideologia e populismo, sem o menor rigor técnico.

Não se pode deixar de destacar aqui o bom combate dos técnicos do Ministério da Saúde, que têm atuado de maneira responsável em prol da integridade física das pessoas. Nossos heróis - médicos e demais profissionais que lidam diretamente com a covid-19 - serão sempre lembrados e homenageados.

A guerra contra a pandemia do coronavírus constitui um desafio colossal para nosso povo. Nossas ações devem ter o respaldo técnico da comunidade científica e dos organismos internacionais. Para isso precisamos afastar-nos do autoritarismo e da demagogia fundamentada em fórmulas mágicas que supostamente trariam soluções integrais e rápidas, simplificando barbaramente a realidade.

A saúde no Brasil depende da democracia plena durante a calamidade, e não da calamidade instalada na democracia.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Contra a covid-19

Medidas devem ser voltadas não só para a saúde, mas ter impacto positivo na economia

O quadro imposto pela “crise do coronavírus” exige respostas imediatas. Para começar, a coordenação das diferentes iniciativas tomadas no País precisa considerar o que está sendo feito no resto do mundo. Debelar a covid-19 e amenizar os efeitos sobre a renda das famílias é árdua tarefa. Por isso tenho sugerido a adoção de um protocolo socioeconômico para tratar do problema, incluída a criação de um fundo específico para tornar viáveis eventuais aportes realizados por pessoas físicas e jurídicas.

A escalada do número de contaminados levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar uma pandemia. Torna-se compulsório o acompanhamento sistemático do volume de contagiados com e sem sintomas; hospitalizados graves ou não; e, lamentavelmente, o número de mortos. Até ontem, antes de fecharmos este artigo, o Brasil tinha 2.433 casos confirmados e 57 mortos.

A situação é inédita: restrições à circulação de pessoas, mercadorias e serviços; interrupção das atividades de trabalho e lazer; fechamento da maioria das empresas de comércio e elevação dos gastos públicos. As consequências das restrições impostas demonstram que não é só uma gripe. A pandemia afeta, sobremaneira, a saúde econômica global e não é preciso aqui reiterar os desastrosos resultados na indústria, no comércio e no sistema financeiro mundial. É imperativo, portanto, que Poderes e autoridades brasileiras se unam na busca de alternativas que mitiguem as dificuldades que enfrentamos e que aumentarão muito daqui em diante.

Precisamos observar o que está acontecendo no resto do mundo, não exatamente para copiar outros países, mas para entendermos o que deve ser feito no Brasil. Por exemplo, o papel da política monetária está esgotado nos países europeus. Nos Estados Unidos, antes de reduzirem a zero a taxa de juros, havia algum raio de manobra. Agora não mais. Por outro lado, cabe enfatizar, o ativismo da política fiscal está amplamente presente na Europa e nos EUA e deverá ser cada vez mais forte entre nós.

Cada medida a ser tomada deve ser bem contextualizada. No Brasil ainda há margens para redução das taxas de juros e ampliação das linhas de crédito ou refinanciamentos, a fim de evitar falências generalizadas. Do mesmo modo, deve-se recorrer, no campo fiscal, a políticas de subsídios que ajudem a preservar a capacidade produtiva e incentivar a indústria de medicamentos, material hospitalar, etc., para elevar a oferta tão necessária neste momento. A atuação deve concentrar-se em três frentes: expansão do gasto direto em saúde, em volume expressivo e de maneira célere, transferências de renda às famílias mais pobres e distribuição de alimentos.

Reafirmo: vivenciamos o início do que pode ser a maior crise econômica em tempos de paz, com forte choque de oferta e de demanda em nível mundial. As medidas a serem tomadas devem contemplar não apenas ações voltadas para a saúde, mas, simultaneamente, exercer impactos positivos sobre a dinâmica das economias. No Brasil, efeito perverso sobre a renda e o emprego, sobretudo dos trabalhadores informais, autônomos e microempresários, com a queda abrupta da atividade econômica, requer decisões tempestivas do governo central e do Congresso. Ao anunciar apoio a esses segmentos e enviar o decreto de estado de calamidade, o governo deu passos na direção correta.

Podemos, contudo, fazer mais. Penso que uma alternativa seria criar o que denominaria protocolo socioeconômico, tendo como carro-chefe ações na área da saúde: fortalecimento do SUS, ampliação emergencial do número de UTIs, com hospitais de campanha – o Exército pode tomar essa iniciativa – e reforço do atendimento das unidades básicas de saúde. Associando-se a isso o fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social, garantindo direitos socioassistenciais e atendimento mais adequado às pessoas em vulnerabilidade social e em situação de rua. Melhorando a atenção primária.

Além dessas medidas, devem-se adotar, por exemplo, ações que identifiquem os idosos que vivem em assentamentos e em moradias precárias, sem saneamento básico. Isso é possível recorrendo ao Cadastro Único, instrumento criado na esfera federal para impulsionar as ações sociais, uma das muitas benditas heranças do governo FHC. O cadastro permite não só identificar quem é pobre ou extremamente pobre, mas também saber em que condições vivem essas pessoas, tamanho das famílias, faixa etária de cada um de seus membros e o tipo de benefício social que recebem. O instrumento já temos, basta utilizá-lo.

Para garantir a implementação desse protocolo podem-se utilizar os recursos do fundo que mencionei no início, destinando também à pesquisa e compra de medicamentos. Abarcaria ainda dinheiro público, concentrando as ações e garantindo transparência aos gastos. É uma saída orçamentária para acelerar todo o processo, que será penoso e demandará, acima de tudo, atuação eficiente do Estado.

A meu ver, essas são algumas das muitas dimensões a serem trabalhadas para enfrentarmos esse microrganismo que tomou o mundo de assalto e nos tornou reféns.

*Senador (PSDB-SP)


O Estado de S. Paulo: Só com fortalecimento do SUS País pode enfrentar pandemia, diz Serra

 O ex-ministro da Saúde e do Planejamento José Serra, senador pelo PSDB-SP, conversou com a Coluna sobras as crises na saúde e na economia provocadas pelo coronavírus. Segundo ele, é preciso “ampla coordenação com a política fiscal” e “fortalecer o SUS“ 

Alberto Bombig, O Estado de S. Paulo

Coluna do Estadão – Qual a avaliação do senhor da crise até agora?
José Serra – O cenário é, sem dúvida, grave. Creio que ainda estamos na primeira fase, experimentando o choque e caindo na real, tentando lidar com os preparativos para um surto de gripe que deve vir, segundo os dados da OMS e a experiência dos países asiáticos e europeus. Como vamos lidar com a saúde e a economia nas próximas semanas fará toda a diferença lá na frente. A contração econômica em escala mundial e os tropeços dos mercados de capitais e do sistema financeiro internacionais poderão gerar corridas bancárias e insolvência de grandes empresas e bancos de investimentos, refletindo-se em seguradoras e fundos de pensão. O mundo terá que se coordenar fiscal e monetariamente. Isso é imperativo. Inclusive, a autonomia dos BCs mundiais já vinha sendo revista desde 2008 e está sendo posta em xeque por esta crise, que requer ampla coordenação com a política fiscal. Logo, não devemos sequer voltar a discutir este tema antes de superá-la e conhecermos o novo arranjo econômico que se estabelecerá. No tocante à saúde, creio que só conseguiremos enfrentar essa pandemia com um fortalecimento a curto prazo do SUS, com ampliação emergencial do número de leitos em UTI e dos serviços de saúde, reforçando atendimento nas unidades básicas. Por isso também o decreto de calamidade é fundamental, para que se possa redirecionar recursos para o SUS.

Coluna do Estadão – Como o Legislativo pode contribuir para o enfrentamento?
Serra – O primeiro passo é reconhecer o estado de calamidade. Eu apresentei um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nesse sentido, antes de o governo anunciar o pedido ao Congresso. Mas, independentemente da paternidade desta ou daquela medida, é importante apoiar as iniciativas emergenciais do governo. Além disso, devemos suspender pautas que não sejam prioritárias, especialmente as que se chocam com medidas urgentes, como a PEC Emergencial, que vedaria a contratação de temporários, novas linhas de financiamento e subsídios, que nesse cenário devam ser necessárias. A reforma tributária, com um cronograma de 45 dias que já era inexequível, não pode ser discutida com esse cenário de crise. Após a crise precisaremos de propostas com potência imediata sobre a atividade e a produtividade, não as propostas que parcelam queda de arrecadação, aumento de carga, choque de preços, desemprego e complexidade adicional por 10 longos anos. O debate das propostas em discussão deveria ser arquivado dada a realidade desta crise e seus desdobramentos econômicos e fiscais.

Coluna do Estadão – O Brasil deve fechar as fronteiras?
Serra – Claro que não. Só devemos reagir contra a importação de fatores de crise, mas podemos usar nossa pauta de alimentos essenciais para barganhar melhores termos de troca para medicamentos, suprimentos médicos e outros insumos básicos essenciais para o enfrentamento deste momento. Para as pessoas, teremos de observar o avanço da pandemia aqui. Se houver um risco de propagação maior do vírus, seria recomendado.


José Serra: O que é essencial ficou de fora

Reforma tributária aumenta impostos sobre o consumo das famílias. Um disparate!

O texto-base da proposta de reforma do sistema tributário, em debate na Comissão Mista do Congresso, deixou de fora o que de fato querem as empresas e os consumidores: a simplificação imediata, acompanhada da progressiva redução dos tributos sobre o consumo, que oneram as famílias de baixa renda. Isso é o essencial e jamais poderia ser sacrificado ou, pior, agravado sob qualquer pretexto.

No ano passado publiquei neste espaço os motivos pelos quais não poderíamos aprovar uma reforma tributária com os parâmetros das que estão no Congresso. Se, por um lado, geram pressão regional para que se amplie a elevadíssima descentralização das receitas da União, por outro, mitigam a autonomia tributária dos entes federados. Sem mais nem menos, deixam de atacar um dos principais problemas do nosso federalismo: a irresponsabilidade fiscal dos governos subnacionais.

A proposta atual tem como base o texto da Câmara e prevê dois pontos que estão na contramão do que deve ser feito. Reduz os impostos dos bancos e causa um choque de preços e de renda nos demais setores, aumentando os impostos sobre o consumo das famílias, com maior impacto nas de menor renda: um total disparate!

Estima-se um aumento expressivo da carga tributária do setor de serviços: educação, 211%; transporte, 59%; profissionais autônomos, 460%; taxistas, 1.150%; dentre outros. Cabe destacar que esse é o setor que mais emprega no Brasil e onde estão concentrados os empregos de baixas qualificação e renda. Com esse aumento no custo dos serviços para a classe média haveria redução da demanda e desemprego nas classes mais baixas. Em resumo, haveria perda de renda para a classe média e desemprego nas regiões mais carentes. Como consequência, essas regiões necessariamente recorreriam a novas transferências compensatórias ou sobrecarregariam a assistência social e o seguro-desemprego.

Seria um erro obsceno permitir esses eventos econômico-sociais no momento em que o País experimenta elevado desemprego combinado com aumento da desigualdade de renda.

Há ainda o risco de aumento expressivo da sonegação fiscal com o novo modelo no destino. Acontece que as economias de diversas localidades consumidoras ainda são rudimentares, pautadas em serviços locais focados em atender pessoas físicas com base na circulação da renda oriunda das transferências. Não por menos, sua arrecadação também é precária, com baixa capacidade de fiscalização. Ou seja, parte da renda repartida pelos produtores com os consumidores poderia ser desperdiçada com o aumento da sonegação fiscal nessas localidades, inclusive de receitas que seriam destinadas à União, que também teria de promover aumento de alíquotas para compensar a perda global.

É preciso deixar bem claro: a proposta não simplifica de imediato o sistema tributário, como vendem seus defensores. O essencial ficou de fora! É fácil perceber que a transição de modelos envolve a convivência conflituosa entre o sistema atual e o novo por pelo menos dez anos. Não é preciso ser nenhum Ph.D. em sistema tributário para perceber que a complexidade de dois sistemas (o novo e o atual) é maior que a de apenas um. Ademais, a complexa e longa transição deixaria o novo modelo exposto a todo tipo de atritos e pressões políticas por mudanças. Com isso, o modelo ficaria sujeito ainda à insegurança jurídica decorrente da resolução de conflitos entre os inevitáveis perdedores e ganhadores da nova arena.

Busca-se uma transição longa porque o novo sistema causaria um enorme choque de preços entre os diversos setores produtivos e regiões do País. Nessa transição, haveria certamente um aumento da carga tributária em decorrência da elevação dos novos impostos, especialmente nos Estados e municípios perdedores. Uma análise imparcial e desapaixonada da proposta de reforma tributária em jogo nos leva a crer que também haverá de partida uma ampliação dos custos da arrecadação tributária.

Este diagnóstico impõe ações para encontrarmos outros caminhos para reformar nosso sistema tributário. Seu aperfeiçoamento depende de um esforço amplo baseado num debate técnico. Evidente que isso requer grande articulação e visão consensual entre o Executivo, o Congresso e os atores econômicos, partindo dos problemas para as soluções.

Devemos buscar medidas de aperfeiçoamento graduais que atendam às demandas da sociedade, que essencialmente são: simplificação imediata do recolhimento de tributos; redução dos litígios tributários, com diminuição da belicosidade e liberalidade do fisco; redução da sonegação para maior justiça social; e redução da cumulatividade e da carga tributária global, sobretudo dos tributos sobre o consumo que incidem desproporcionalmente sobre os mais pobres. Tais medidas devem reconhecer o atual arranjo e atender à grande maioria sem produzir perdedores.

Essa construção política ainda não se observa, não cabe no prazo de 45 dias, apresentado pelo plano de trabalho da comissão mista e só será possível se lideranças do Congresso e do Executivo promoverem o diálogo necessário para avançarmos com clareza e determinação.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Mais uma sopa de pedras

Não precisamos de regras heterodoxas para controlar o crescimento do gasto obrigatório

No final do ano passado o governo federal apresentou ao Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 188, cujo propósito é estabelecer novas regras para controlar as despesas do orçamento federal. Mais uma! Será a 12.ª regra fiscal dos últimos anos, num país que não consegue pagar as despesas do dia a dia com os tributos arrecadados. E a nova proposta traz um detalhe perigoso: compromete a estrutura do teto de gastos, até agora uma presumida âncora da política fiscal.

O propósito da PEC 188 é nobre: integrar o pacote econômico endossado pelo Poder Executivo a fim de pôr em ordem as contas públicas. No entanto, dada a falta de consistência, a proposta pode acabar virando uma sopa de pedras. As possibilidades levantadas pela equipe econômica, contraditórias e desarmonizadas, se assemelham a pedrinhas lançadas no caldeirão do sistema de regras que deveriam nortear o nosso processo orçamentário. O gosto é insosso.

Para além de uma distribuição de recursos dos royalties do petróleo mais vantajosa para Estados e municípios, propõe-se uma nova regra de ajuste fiscal no artigo 109 da PEC 188: toda vez que um órgão da administração pública federal gastar mais do que 95% do seu orçamento com despesas tidas como obrigatórias, ficará sujeito a restrições fiscais como proibição de contratar funcionários públicos e de criar novas despesas obrigatórias.

Esse controle do crescimento do gasto obrigatório é estranho. O conceito de despesa obrigatória é um dos mais imprecisos do nosso arcabouço jurídico. Além disso, a matemática rústica que envolve a métrica incentiva o aumento dos gastos e a rigidez orçamentária. Quanto maior for o orçamento total do órgão, maior será o espaço fiscal para se criarem gastos obrigatórios.

Mas o principal problema da PEC é a alteração que propõe na estrutura do teto de gastos, aprovado em 2016 para impedir o crescimento das despesas acima da taxa anual de inflação. Sabe-se que desde 2014 o orçamento federal tem registrado resultados negativos. Ou seja, os tributos e taxas arrecadados pela União não estão sendo suficientes para bancar as despesas da máquina pública. Para combater esse déficit orçamentário o Congresso aprovou a Emenda Constitucional n.º 95, estabelecendo um limite de crescimento para os gastos públicos. Teria sido melhor aprovar naquele momento um limite para a dívida pública federal, por ser a regra fiscal mais efetiva e adotada nas democracias avançadas.

As boas práticas internacionais ensinam que a não observância de regras fiscais deve acarretar sanções. Estas podem ser monetárias, como proibição de se criar novas despesas, ou administrativas, como multas ou tipificação criminal dos responsáveis por atos que violam as regras. A Emenda 95, corretamente, foi aprovada estabelecendo sanções monetárias a serem aplicadas quando o teto é descumprido, sem partir para a criminalização da política fiscal.

A PEC 188 rompe com essa ideia. Se aprovada como pretende a equipe econômica, o presidente da República passa a cometer crime quando a despesa pública crescer a uma taxa superior à inflação. Esse tipo de sanção, vale dizer, também pode derrubar chefes dos Poderes Judiciário ou Legislativo que estejam gerindo despesas inercialmente crescentes por causa de administrações anteriores imprudentes do ponto de vista fiscal. Na prática, o risco de se criminalizar a política fiscal é o início do fim do teto de gastos.

Mal desenhadas, as regras fiscais não são cumpridas nos países que mais precisam delas. É curioso perceber que no Brasil a elevação do endividamento público acompanha um mosaico de leis para controle de gastos. Pesquisas do economista francês Charles Wyplosz mostram que o mesmo fenômeno se verifica em diversos países europeus – Espanha, França, Grécia e Itália –, onde a dívida pública cresce persistentemente ainda que esteja em vigor, na zona do euro, um amplo leque de regras fiscais.

Nota-se também que no Brasil a elevada fragmentação partidária promove um processo orçamentário caótico. O grande número de atores com poder de influência acaba beneficiando grupos de interesse específicos, que no mais das vezes prevalecem em detrimento dos direitos dos demais contribuintes. Nesse contexto, não podemos criar regras constitucionais de curto alcance.

O Senado deve ter presente que vai assumir a grande responsabilidade de analisar as propostas apresentadas pelo governo para pôr em ordem as contas públicas. Se queremos ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), devemos apostar no que deu certo por lá: limitar o montante da dívida pública e institucionalizar processos de revisão periódica de gastos (spending reviews) – que está pronto para ser votado na Câmara dos Deputados há mais de um ano e estranhamente não foi considerado prioritário pelo atual governo. Essas medidas tornariam o teto de gastos mais efetivo no longo prazo e garantiriam o ajuste fiscal sem comprometer investimentos sociais em saúde e educação. Não precisamos ingerir sopas de pedras na forma de novas regras heterodoxas para controlar o crescimento do gasto obrigatório ou para criminalizar a política fiscal.

* José Serra é Senador (PSDB-SP)


José Serra: Que o ano novo mereça esse nome

É hora de o Parlamento assumir efetivamente suas responsabilidades e partir para a ação

Este é o meu primeiro artigo de 2020, ano de muitos desafios e, espero, de muita dedicação para obtermos consensos nos principais temas de nossa agenda política. Num país continental e populoso como o Brasil, com tantos problemas sociais e desigualdades, mas com tanto potencial, não nos podemos contentar com os pequenos avanços na economia e, muito menos, com grandes retrocessos em áreas estratégicas como educação, cultura, meio ambiente e relações exteriores.

A frase de Otto von Bismarck “a política é a arte do possível” não se aplica aqui e agora. No Brasil de hoje precisamos de muito mais do que parece plausível. A política precisa ampliar os limites do possível e patrocinar uma verdadeira revolução em nossa sociedade. Nos últimos anos a política tem produzido crises e divisão na sociedade. Um processo que parece agravar-se a cada ano e precisa começar a ser revertido em curto prazo.

Não é fácil, mas também não é impossível. Aprendi ao longo dos meus anos de vida pública que se formos pessimistas no diagnóstico, mas otimistas na ação, encontraremos o caminho. Mais ação e menos retórica, mais diálogo e menos disputas, mais planejamento e menos improviso. É preciso tirar as coisas do papel.

A política econômica deste governo avançou na agenda fiscal e dos juros. O déficit público abaixo da meta legal e o controle da dívida são pontos importantes. O efeito das devoluções antecipadas de créditos concedidos ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) entre 2008 e 2014 explica boa parte do nível mais modesto da dívida bruta. Esse e outros fatores atípicos, como o volume expressivo de receitas extraordinárias, a exemplo das provenientes dos leilões do pré-sal, escondem o fato de que há ainda um longo caminho a percorrer no controle das despesas públicas, sobretudo as obrigatórias.

A aprovação da reforma da Previdência foi, sem dúvida, o destaque de 2019, mas as medidas de ajuste de curto prazo só vieram no final do ano, com as chamadas PECs fiscais, que ainda terão de tramitar e ser corrigidas pelo Legislativo.

Na área da educação, preocupa a inação do governo e do Congresso Nacional. Em 2019 não avançamos na discussão sobre o Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb). Além de assegurar os repasses desses recursos para 2020, precisamos dar caráter permanente ao fundo, melhorar a sua distribuição e aumentar os recursos de forma responsável. Paralelamente, precisamos garantir a correção do piso salarial nacional do magistério público da educação básica pela inflação.

Criado no governo Fernando Henrique e ampliado em 2006, no governo Lula, o fundo representa 80% do investimento em educação em mais de mil municípios brasileiros, como demonstra levantamento da organização Todos pela Educação. É utilizado para o pagamento de salários, merenda, transporte escolar, material didático e reformas em escolas. Neste ano, a previsão é de que alcance R$ 173 bilhões.

O Fundeb, que está aguardando decisão da Mesa do Senado há sete meses, perderá sua validade no final deste ano. Portanto, deve ser a prioridade na volta do recesso parlamentar.

Na cultura houve esvaziamento da Agência Nacional de Cinema (Ancine), com a não indicação de membros para sua diretoria, que hoje conta só com um diretor dos quatro do colegiado. Além de que a possível redução de atribuições e orçamento, no contexto da reforma administrativa a ser encaminhada pelo governo, tem causado instabilidade e desemprego no setor.

Em relação ao meio ambiente, a possibilidade de o Brasil abandonar o Acordo de Paris ou os ataques do governo brasileiro à Noruega e à Alemanha – que interromperam o recebimento de recursos importantíssimos do Fundo Amazônia – não podem ser ignorados. O Brasil pode ter de devolver cerca de R$ 1,5 bilhão destinado por esses países a combater queimadas, além dos R$ 130 milhões já suspensos em agosto. Paralelamente, as queimadas na Região Amazônica cresceram 30% em 2019 – o pior resultado desde 2008. O desmonte de sistemas de fiscalização ambiental é um retrocesso inadmissível, com consequências negativas para a imagem do País no exterior, dificultando nossas exportações e provocando uma forte fuga de investimentos externos.

De todo modo é importante esclarecer que os doadores do Fundo Amazônia não impõem condicionalidades à destinação dos seus recursos, não havendo, portanto, perda de soberania.

A questão do meio ambiente é apenas um exemplo do distanciamento do tradicional e reconhecido papel da nossa política externa. Deixando de lado o perfil conciliador e defensor dos interesses nacionais, sem amigos ou inimigos, optou-se por adotar um alinhamento incondicional com os Estados Unidos, para citar um caso. Adotou-se um discurso ideológico, com a prevalência das relações com os governantes, e não com as políticas de Estado dos países parceiros.

As polêmicas, os amadorismos e recuos marcaram o ano de 2019. É papel do Congresso acompanhar de perto as opções adotadas pelo governo na área externa e contribuir para que volte ao equilíbrio. Não podemos ver passivamente o Executivo tomar partido em rivalidades que não nos pertencem, pondo em risco parcerias, relações políticas e comerciais importantes. É urgente abandonar a política em que o tom belicoso sempre precede o pragmatismo, em que concessões são feitas em troca de pequenos afagos, mas sem nada que atenda efetivamente aos interesses do Brasil.

É hora de o Parlamento assumir efetivamente suas responsabilidades e partir para a ação. Parafraseando o poeta Carlos Drummond de Andrade, não precisamos de uma lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Para ganhar um ano novo que mereça esse nome temos de merecê-lo, temos de fazê-lo novo. Sei que não é fácil, mas tentaremos, experimentaremos, lutaremos incansavelmente. É dentro de nós que o ano novo cochila e espera.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Presidencialismo de colisão x parlamentarismo

Precisamos alcançar, nos termos da Constituição, caminhos para enfrentar crises conjunturais

Os recorrentes embates entre o Executivo e o Congresso representam uma generosa fonte de incentivos para a reflexão sobre a mudança do sistema de governo em nosso país. Os exemplos desses embates são numerosos e não estão circunscritos aos mandatos atuais.

Tudo começa com a falta de entendimento entre o Executivo e os parlamentares que apresentam proposições para a solução de problemas nas mais diferentes áreas, que acabam sendo atropeladas por recursos que o governo utiliza heterodoxamente com o propósito de formar maioria. É esta maioria que lhe permite dar curso a seus projetos ou amenizar a fiscalização que poderia e deveria sofrer.

Nesse contexto, as saídas propostas pela sociedade (impeachment, por exemplo) para contornar as ondas de perda de credibilidade que recaem sobre o presidente tendem a transformar o nosso sistema de governo num verdadeiro presidencialismo de colisão. Penalizando o País, como trava ao nosso desenvolvimento.

Para a opinião pública, passamos a impressão de que nos dedicamos mais a aparar as arestas políticas do dia a dia do que a dar retorno positivo aos que depositaram em nós a confiança para resolver as dificuldades econômicas e sociais.

O parlamentarismo é uma convicção que carrego desde a época da Constituinte, partindo de um argumento fundamental: a necessidade de participação mais efetiva e responsável do Congresso na definição, implantação e controle das políticas governamentais. O presidencialismo favorece a situação oposta: a grande concentração do poder de decisão nas mãos do Executivo leva o Parlamento a sentir-se pouco comprometido, flertando constantemente com a polarização.

Há quem acredite que a nossa democracia esteja em perigo, que estamos andando no fio da navalha entre o seu enfraquecimento e o risco do autoritarismo. Não penso assim, mas acredito, não é de hoje, que o modelo presidencialista esteja desgastado e que precisamos voltar a cogitar o parlamentarismo.

Um parlamentarismo sem subterfúgios, sem meias palavras, que fortalecerá o chefe do Poder Executivo, seus ministros e o seu programa de governo.

No presidencialismo, o Parlamento se fortalece na razão direta do enfraquecimento do governo. No parlamentarismo, aumenta a chance de uma aliança política positiva Executivo/Legislativo, que proporcione um governo mais forte.

O parlamentarismo permite mudanças na equipe e no programa de governo sem traumas institucionais. Abre caminho, igualmente, para coalizões governamentais baseadas em programas, e não em puras adesões em troca de favores.

Oportuno enfatizar que uma condição essencial para o pleno funcionamento do parlamentarismo reside na possibilidade de o presidente, em face de impasses que impeçam a definição de maioria parlamentar estável, dissolver a Câmara e convocar novas eleições. O sistema favorece, a médio prazo, as condições de governabilidade no país, abaladas em momentos de crise.

O Brasil viveu, desde a promulgação da Constituição, momentos dignos de registro. Consolidamos a democracia política, que tem na Carta sua guardiã mais efetiva, e, apesar dos muitos percalços, estabelecemos as bases de uma economia fundada numa moeda consistente e sólida. Mas precisamos alcançar, nos termos constitucionais, mediante amplo entendimento político, os caminhos para o enfrentamento de crises conjunturais. Abrindo a oportunidade para um avanço que respeite a história e a cultura do povo brasileiro.

Diz-se, com frequência, que o parlamentarismo é apresentado como uma panaceia toda vez que o País passa por alguma crise política ou de governabilidade, mas que os problemas de crescimento econômico, inflação, salários, emprego, desenvolvimento e, sobretudo, de injustiça social não serão resolvidos pelo sistema de governo. A meu ver, não se trata de criar ou recriar panaceias, mas de encontrar uma forma de governo que aumente as possibilidades de os problemas nacionais serem mais bem enfrentados e equacionados.

É, também, corriqueira a crítica de que, no parlamentarismo, o fisiologismo e a cooptação exercerão de forma plena e livre sua influência negativa no processo político brasileiro. Esse é um argumento equivocado, que tem como ponto mais fraco o fato de ignorar que, num sistema parlamentarista, o Congresso passa a ser corresponsável pelas decisões do Executivo, aprovando os programas de governo e a composição do próprio gabinete. Estas atribuições constituem um poderoso fator para atenuar os vícios e reforçar as qualidades do Parlamento. Sem um Congresso forte e responsável, a democracia sempre sairá perdendo.

Arraigar-se na máxima de que no Brasil o presidencialismo é o sistema de governo que tem tradição, por ter cruzado toda a história da República, e que ao parlamentarismo falta condição semelhante é opor-se, como princípio, a todas as possibilidades de mudanças institucionais significativas, sugerindo que elas sempre conduzirão ao desconhecido. Mas esse desconhecido e os horrores que comporta não são, contudo, explicitados.

Ficar preso à ideia de que o presidencialismo é bom, mas o presidente em exercício, seja quem for, é que não é bom é imaginar que as crises políticas e econômicas às quais o Brasil está sujeito podem ser separadas do sistema de governo que as envolve.

Defendo o parlamentarismo porque acredito que é possível e necessário um Poder Executivo mais forte. Quando digo isso, evidentemente, não estou falando num Executivo repressor dos direitos individuais ou sociais, ou que tenha força para oprimir o Legislativo. Penso exclusivamente num governo com capacidade para definir e implementar políticas públicas de forma mais coerente, persistente, que tenham como resultado concreto o crescimento e o desenvolvimento do Brasil. Penso na eficácia, na legitimidade e na flexibilidade do sistema de governo, num contexto democrático cada vez mais fortalecido.

* Senador (PSDB-SP)


José Serra: Fogo na casa para assar o leitão

O ajuste fiscal é necessário e precisa ser endereçado, mas não a qualquer preço 

O governo apresentou propostas de emenda à Constituição (PECs) para atacar o desequilíbrio das contas públicas. Uma delas prevê a extinção dos chamados fundos públicos, que geralmente contam com receita carimbada para financiar determinados gastos. Há algumas ineficiências nessa matéria, mas virar a mesa não parece ser o caminho mais sensato. Em meio à estagnação da economia brasileira, o papel do Estado é central e decisivo.

Seguramente, há fundos desnecessários. Alguns deles se transformaram em feudos controlados por grupos que se acham donos de fatias do orçamento público. Contudo existem fundos importantes para a sociedade e para a economia, que muitas vezes não estão associados a vinculações orçamentárias. Na verdade, são instrumentos para canalizar recursos para parcerias público-privadas (PPPs), exportações e agronegócio, dentre outras áreas.

É preciso avaliar caso a caso antes de sacar recursos desses fundos, como pretende o governo. Alega-se que o saldo acumulado seria utilizado para pagar dívida pública. No entanto, esses pagamentos representariam, em última instância, aumento do dinheiro em circulação na economia. O Banco Central (BC), por sua vez, teria de enxugar esse possível excesso de liquidez com títulos – as tais operações compromissadas. No fim das contas, a queda inicial da dívida seria neutralizada por esse aumento das operações do BC. Elas por elas.

A OCDE recomendou aos líderes europeus ações para aumentar os investimentos públicos, com vista a reverter a desaceleração econômica na região. Na Europa, o Plano Junker segue essa diretriz. Seu objetivo é garantir assistência técnica e recursos para estruturar projetos de investimento. Um dos pilares do plano é o Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos, criado em 2015 para prover recursos nas áreas de concessões e PPPs.

A ideia desse fundo europeu é simples: atrair as instituições financeiras para projetos essenciais ofertando garantias com dinheiro do orçamento da União Europeia. Em tempos de taxas de juros negativas e de escassez dos recursos públicos, é uma saída inteligente. As garantias ajudam a mitigar os riscos associados a financiamentos de projetos com potencial para elevar as taxas de crescimento econômico. Assim, recupera-se a confiança e são estimulados os investimentos, cuja míngua aprofundou a crise por lá.

Para ter claro, o fundo europeu apoia investimentos estratégicos nas áreas de infraestrutura, eficiência energética, agricultura, educação, saúde e microempresas. O fundo já pôs à disposição ¤ 21 bilhões somente para garantir projetos de infraestrutura. Destes, ¤ 16 bilhões vieram do orçamento europeu e ¤ 5 bilhões, do Banco Europeu. Esses recursos foram suficientes para garantir investimentos privados no valor de ¤ 315 bilhões. Até o mais liberal dos economistas vai defender a ideia de que projetos com externalidades positivas elevadas devem ser apoiados com dinheiro público. A dose faz o veneno.

Aqui, como lá, também cabem medidas dessa natureza. Mas as ações recentemente anunciadas pelo governo parecem seguir rumo diferente. A PEC dos fundos públicos pretende reduzir a zero o funding público para investimentos, propondo até mesmo o fim de fundos que oferecem garantias nas operações de financiamento às exportações. Os problemas que existem nas vinculações, nos fundos e nas despesas obrigatórias precisam ser discutidos com clareza e cautela. A rigidez orçamentária é elevada, mas não será desfeita facilmente.

A proposta do governo é genérica, mas tem erros. Compreenda-se o contexto em que surgiu. O Orçamento enviado pelo governo ao Congresso contém apenas R$ 19 bilhões de investimentos para 2020. É o menor patamar da História recente, reflexo do avanço dos gastos obrigatórios e da queda de receitas. Sem crescimento econômico e controle adequado da despesa pública, segue-se à espera do ajuste fiscal para valer.

Uma radiografia dos gastos obrigatórios revela que 93% correspondem a gastos sociais e folha de pessoal – 69% e 24%, respectivamente. Metade das despesas com servidores refere-se a aposentadorias, que não podem ser reduzidas. Dos que estão na ativa, boa parte atua em áreas sensíveis, como defesa nacional, segurança, educação e saúde. Por isso a contenção do gasto com pessoal precisa ser feita a partir de um diagnóstico adequado e minucioso do serviço público. É necessário um rearranjo profundo das despesas obrigatórias.

Enquanto isso não é feito, os recursos para investimentos públicos ou para ofertar garantias em investimentos privados de alto risco diminuem dramaticamente. Acabar com todos os fundos públicos numa canetada aceleraria esse processo de desmonte do Estado brasileiro. A crença é que o mercado poderia, sozinho, resolver a questão do financiamento do desenvolvimento econômico nacional. Infelizmente, não pode.

A escassez de recursos públicos é um dado da realidade. O ajuste fiscal é necessário e precisa ser endereçado, mas não a qualquer preço. A solução passa por adotar uma estratégia de contenção de despesas com base em revisões periódicas dos gastos públicos (spending reviews, em inglês), como já foi proposto em projeto de lei aprovado no Senado em 2017. A partir da elaboração de cenários econômicos e fiscais, calcularíamos o espaço orçamentário prospectivo e decidiríamos como distribuí-lo entre as diferentes prioridades do País. O futuro seria menos turvo. A alocação de dinheiro público, mais racional.

O ajuste fiscal linear, quase sem pensar, é temerário. As ineficiências existentes no processo orçamentário e na distribuição de recursos públicos precisam ser digeridas primeiro, para depois serem devidamente enfrentadas. Não é tarefa para resolver com propostas apressadas de alterações constitucionais. Menos ainda quando desacompanhadas de diagnóstico detalhado. Acabar com todos os fundos públicos – até mesmo os que funcionam bem – seria como botar fogo na casa para assar o leitão.


José Serra: Leilões na mudança

É essencial alterar a legislação para que o petróleo beneficie as futuras gerações

Ao olhar as grandes mudanças no setor de petróleo e gás brasileiro é importante rememorar o primeiro ano do governo FHC, quando se retirou o monopólio da Petrobrás da Constituição. Isso possibilitou a sanção da Lei do Petróleo, em 1997, e autorizou a realização dos leilões de blocos para exploração e produção.

A partir daí o mercado de petróleo brasileiro entrou em nova fase. Adotou-se o regime jurídico de concessão, em que as empresas disputam os blocos oferecendo o maior bônus e comprometimento com o conteúdo local. Com o início da produção, as empresas passariam a pagar royalties e participações especiais. O sucesso dos leilões foi total, com a entrada de grandes empresas petrolíferas internacionais e a criação de empresas nacionais voltadas para esse mercado.

O modelo de concessão foi o único utilizado no Brasil de 1999 ao anúncio do pré-sal, em 2008. Nesse período foram realizados nove leilões, com arrecadação de R$ 100,3 bilhões com royalties e participações especiais. Consequentemente, a produção de petróleo nacional mais que dobrou, saindo de 838 mil barris/dia em 1997 para 1,8 milhão de barris/dia em 2008. As reservas comprovadas saltaram de 7 bilhões para 12,8 bilhões.

O pré-sal encarnou a promessa de que o Brasil estaria bem próximo de viver a era de ouro do petróleo, com a previsão de enormes reservas e o preço do barril de óleo em torno dos US$ 100. Mas acabou virando instrumento político. Com o argumento da necessidade de proteção de recursos tão abundantes, decidiu-se que a exploração e produção de petróleo em áreas estratégicas para o País necessitaria de novo regime.

Em vez de promover aprimoramentos no modelo vigente, suspenderam-se os leilões por seis anos, até que se chegasse a um novo modelo considerado adequado. Em 2010, finalmente, o governo instituiu o regime de partilha da produção, que concedia à Petrobrás participação de, no mínimo, 30% dos campos do pré-sal, assim como o monopólio da operação.

Só em 2013 se realizou o primeiro leilão do pré-sal, sem que se atingisse o resultado esperado. O certame ofertou o polígono de Libra, com a estimativa de 8 bilhões a 12 bilhões de barris de óleo equivalente (BOE) recuperáveis. Mas o novo marco para a exploração do petróleo não trouxe a tão aguardada participação maciça de empresas estrangeiras. Sem concorrência, apenas um consórcio apresentou oferta e o governo recebeu o mínimo estipulado nas regras – um bônus de assinatura de R$ 15 bilhões e 41,65% do petróleo produzido após descontados os custos de produção (o lucro-óleo). Ficou evidente que o novo regime mitigou a atratividade da área ofertada.

A Lei n.º 12.351/2010 precisou ser aperfeiçoada para a realização de novos leilões sob o regime de partilha. Algumas melhorias foram realizadas com a Lei n.º 13.365/2016, que revogou a obrigatoriedade de a Petrobrás ser a operadora única, mas podendo participar com 30% em todos os consórcios.

Na sequência, o governo Temer mudou a política de conteúdo local, aprovou o Repetro – um novo regime fiscal aduaneiro que suspendeu a cobrança de tributos federais na importação de equipamentos para o setor de petróleo, principalmente as plataformas de exploração – e estabeleceu um calendário de leilões.

A assertividade das medidas foi vista nos resultados dos leilões seguintes. Em três ofertas de concessão e cinco de partilha arrecadaram-se aproximadamente R$ 42 bilhões em bônus de assinatura. Esse cálculo não inclui o megaleilão de excedentes da cessão onerosa, cujo bônus de assinatura foi de R$ 70 bilhões, valor expressivo dentro da indústria global de petróleo, mas abaixo do potencial esperado de R$ 106,5 bilhões.

Os altos valores obtidos nos leilões de partilha realizados recentemente deram ao Brasil uma posição de protagonismo na indústria mundial de petróleo e gás. Apesar disso, não preencheram as expectativas divulgadas. No último dia 7, na sexta rodada do pré-sal , somente um dos cinco blocos ofertados foi arrematado. Um consórcio da Petrobrás (80%) com a chinesa CNODC (20%) foi o único a apresentar lance para o bloco Aram.

É bom lembrar que a Petrobrás exerceu o direito de preferência em outros dois blocos – Norte de Brava e Sudoeste de Sagitário –, mas não apresentou ofertas para eles. Quando ela exerce o direito de preferência, as petroleiras que também pretendiam ser operadoras costumam desistir de fazer ofertas pelo bloco. A preferência da Petrobrás afeta pesadamente a decisão das concorrentes, o que reforça as falhas do modelo de partilha da produção.

De imediato, são essenciais duas alterações na legislação para que a riqueza do petróleo realmente beneficie as futuras gerações de brasileiros. A primeira é o fim da preferência da Petrobrás nos leilões de partilha, o que certamente ampliará sua competitividade nos leilões. A segunda, permitir ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), assessorado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, decidir qual é o melhor regime jurídico de exploração e produção a ser adotado nos leilões do pré-sal. Atualmente, a oferta de novas áreas de exploração é feita pelo regime de partilha. Mas há um entendimento na indústria de que algumas dessas áreas, como acumulações no pós-sal, são economicamente viáveis apenas em regime de concessão. O polígono estabelecido na legislação atual não faz distinção geológica ou econômica. Pela regra, o CNPE também pode considerar uma área fora do polígono como estratégica e ofertar como partilha.

O calendário de leilões já prevê a realização de rodadas de licitações do pré-sal para o biênio 2020-2021. Portanto, quanto mais cedo esses aperfeiçoamentos forem realizados, mais o País terá a ganhar. Há espaço para alterações na legislação para realizar mudanças e aperfeiçoar o regime de leilões. E a expectativa é que sejam aprovadas no Congresso. Já foi trilhado um longo caminho em prol de mudanças do setor de óleo e gás. Não podemos parar por aqui.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Dá para fazer

Deveríamos seguir logo o norte apontado pelos ganhadores do Nobel de Economia deste ano

Nunca é demais insistir na importância de retomar o crescimento econômico sustentado para aumentar o bem-estar social. Mas sem uma estratégia de país, como argumentou Celso Lafer em seu último artigo nesta página, não se vai muito longe. Isso envolve a fixação de objetivos que deem continuidade aos avanços das últimas décadas, enquanto o crescimento econômico não vem. Os ganhadores do Nobel nos ensinam que é possível melhorar muito a qualidade de vida das pessoas avaliando políticas públicas e apostando nas mais efetivas.

Entre os anos 1940 e os anos 1980, o Brasil crescia a uma média anual de 7% acima da inflação. Nos quatro decênios posteriores, a média caiu a menos de um terço desse ritmo. Para ter claro, o PIB brasileiro dobrava a cada dez anos, entre a década de 40 e a de 80, e passou a crescer pouco mais de 20% por década entre os anos 1980 e 2019. O PIB per capita, por sua vez, que avançava a 4,2% ao ano no primeiro período, passou a crescer abaixo de 1%.

A desaceleração da economia brasileira tem raízes profundas. Cometemos erros sistêmicos que deixaram o Brasil à margem do processo de desenvolvimento observado em outros países emergentes, como a Coreia do Sul. Lá, investe-se pesadamente em educação desde os anos 1980. Nós seguimos pouco integrados à economia mundial e temos deixado a indústria de transformação perder cada vez mais participação no PIB. Desemprego e ociosidade altos combinados com inflação baixa são os mais claros sinais de que o motor não vai bem.

Mas houve avanços, de 1980 para cá, apesar da forte desaceleração do PIB. Fizemos a transição de uma ditadura para um regime democrático, aprovamos a Constituição de 1988, tiramos do papel o Sistema Único de Saúde – universal e integral –, garantimos o acesso de milhões de brasileiros à escola, debelamos a superinflação, por meio do Plano Real, e avançamos bastante na gestão dos recursos públicos.

O desafio que se coloca agora ao País tem duas grandes dimensões: retomar o crescimento e seguir avançando na agenda social. Banerjee, Duflo e Kremer, vencedores do Prêmio Nobel de Economia deste ano, defendem o aumento de recursos para políticas públicas voltadas aos mais pobres, combinadas a avaliações de sua efetividade, isto é, do resultado gerado.

Em entrevista concedida no dia 14 de outubro ao Estadão, o professor do Insper Naércio Menezes Filho explica os achados dos três pesquisadores. Utilizando método similar ao que é aplicado nos experimentos de Biologia ou Física, criam-se grupos de controle para observar, seguindo critérios de aleatoriedade, os efeitos de determinada política pública. Naércio dá um exemplo: “É possível avaliar se um programa de desparasitação (distribuição de um medicamento eficaz contra um ou vários parasitas), por exemplo, tem impacto na saúde das crianças e no seu desempenho escolar”.

Os ganhos dessas inovações poderão ser enormes para as políticas públicas mundo afora. O Brasil, por exemplo, adotou uma série de ações, como o programa de medicamentos genéricos, na minha gestão no Ministério da Saúde, ou mesmo o Saúde da Família, que poderiam passar a ser avaliadas por meio dessas novas técnicas. O ganho seria o de adotar critérios baseados em evidência empírica para decidir sobre o aumento de recursos a uma política com alto grau de efetividade, de resultado, e o corte de dinheiro de uma ação que gera pouco ou nenhum efeito na vida das pessoas.

Naércio afirma ao repórter do Estado que, “quando se olha para os últimos 30 anos, dá para perceber que o Brasil progrediu muito. As pessoas que nasciam pobres não tinham uma esperança na vida. Hoje, mesmo com a crise econômica, não se vê mais tantas pessoas migrando para as cidades mais ricas ou um grande volume de gente passando fome”.

De fato, é possível melhorar muito a vida das pessoas aprimorando políticas públicas existentes e aumentando os recursos para ações voltadas à redução da pobreza, da mortalidade infantil, dentre outras tantas áreas. Falo por experiência prática, tanto na Prefeitura quanto no governo do Estado ou nos cargos que ocupei no Executivo federal.

Lembro-me de como a dra. Zilda Arns, por exemplo, fazia verdadeiros milagres com pouquíssimos recursos, no âmbito da Pastoral da Criança. As ações continuaram e foram ampliadas. Baseiam-se em visitas às famílias, orientação sobre higiene e nutrição. Gestos simples, como lavar as mãos antes de lidar com o bebê, podem evitar um sem número de doenças. Numa entrevista ao Roda Viva, em 2001, a dra. Zilda disse que gastava apenas R$ 0,86 por criança ao mês. Em valores atuais, estamos falando de R$ 2,48.

Minha ideia não é deixar em segundo plano as ações macrofiscais, mas caminhar mais rapidamente, em paralelo, naquilo que está às mãos do governo e do Congresso, desde já. O crescimento econômico está se recuperando, mas ainda muito lentamente. Não podemos apenas cruzar os braços e esperar que os juros mais baixos impulsionem o consumo e os investimentos.

Há ações baratas ou sem custo que poderiam render aumento expressivo do bem-estar social, sobretudo aos mais pobres, que mais dependem do Estado. Realocar recursos de ações pouco efetivas para políticas públicas com bons resultados é uma das maneiras de fazer isso. Como exemplo, cito o projeto de lei que apresentei recentemente no Senado para estimular a educação superior a partir de uma reserva financeira criada pelo Estado para todas as crianças nascidas em famílias pobres.

Deveríamos, o quanto antes, seguir o norte apontado pelos ganhadores do Nobel de Economia. Para isso, trata-se de aprender com o que já foi feito no passado, sobretudo desde a Constituição de 1988, adotar práticas de avaliação de revisão periódica dos gastos públicos e aprender com o que há de melhor na academia, transformando ideias em políticas públicas. Dá para fazer.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: Preferência pela educação

A Petrobrás é forte, competente e lucrativa, não precisa de privilégios

O ataque de 14 de setembro ao maior complexo de exploração petrolífera do mundo, na Arábia Saudita, trouxe prejuízos transitórios e uma lição duradoura: o mundo está encharcado de petróleo.

Num primeiro momento, especulou-se que o inusitado ataque imporia prêmio de risco geopolítico permanente aos preços do óleo. Quase um mês depois, porém, o pico de alta nas cotações se desvaneceu numa pronunciada queda dos preços dessa matéria-prima. Na véspera do evento, a cotação do brent foi de US$ 60,22 o barril; no dia útil seguinte, fechou a US$ 69,02, uma alta de 15%. Entretanto, três semanas depois, em 2 de outubro, a cotação caiu a US$ 57,69 – 5% menor que à véspera do ataque.

A lição: o petróleo é uma riqueza cujos dias – ou décadas – estão contados. Enquanto a produção é impulsionada por novas tecnologias, como o fraturamento hidráulico e a exploração em águas ultraprofundas, a demanda não tem acompanhado o crescimento da economia mundial. O gasto energético tem sido mais eficiente e o petróleo vem sendo substituído por outras fontes de energia. De 2008 a 2018, o PIB mundial cresceu 28,3% e a demanda por óleo, apenas 16,1%.

Quanto mais demorarmos, menos bônus extrairemos da riqueza-petróleo. Quando o assunto é o pré-sal, tempo é dinheiro, literalmente.

O Brasil desperdiçou oportunidades trazidas pelos preços maiores do petróleo quando iniciou uma improdutiva e demorada mudança do marco legal do pré-sal. Ficamos cinco anos parados, sem novos leilões de petróleo. E o novo regime aprovado, o de partilha, representou só a volta mal disfarçada do monopólio da Petrobrás. A estatal passou a ser operadora compulsória de, no mínimo, 30% dos campos. E com a obrigação de arcar nessa proporção com os custos de exploração, encargo muito além da capacidade da empresa, então à beira da insolvência por causa de anos de má gestão. O primeiro leilão só foi realizado em 2013, para o campo de Libra.

Em 2016, lei de minha autoria modificou o regime de partilha, transformando a obrigatoriedade de participação da Petrobrás em direito de preferência. O ideal seria ter revogado essa obrigatoriedade, mas o direito de preferência foi o consenso político possível à época.

A mudança permitiu destravar os leilões do pré-sal. Em 2017 e 2018 foram feitas quatro rodadas de licitações, que arrecadaram R$ 16,1 bilhões em bônus de assinatura e garantiram R$ 2,5 bilhões em investimentos na fase de exploração.

A competição entre as petroleiras resultou em ofertas de excedente em óleo para a União que chegaram a 80%. O excedente em óleo é o lucro da produção. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis estimou que os campos leiloados nas quatro rodadas do pré-sal renderão R$ 1,2 trilhão para União, Estados e municípios ao longo de 30 anos, ou R$ 40 bilhões por ano. Nada mau para um projeto de lei tachado de “entreguista” pelos suspeitos de sempre.

Entretanto, é possível avançarmos ainda mais para aumentar a participação do Estado na renda petrolífera. Em que pese o sucesso dos leilões do pré-sal, ficou claro que o direito de preferência dado à Petrobrás causa distorções que podem frear ou mesmo reduzir o ganho estatal proporcionado pela exploração.

O direito de preferência permite à Petrobrás, caso tenha seu lance superado no leilão, aderir ao consórcio vencedor, tornando-se a operadora do campo, com participação mínima de 30%. Isso pode parecer razoável, em se tratando de empresa estatal. Porém é preciso levar em conta que a Petrobrás participa dos leilões com uma lógica exclusivamente empresarial, isto é, objetivando a maximização de seu lucro. E não se deve esquecer que, apesar do controle ser estatal, a propriedade da empresa, hoje, é majoritariamente detida por acionistas privados.

Vejam do que se trata: na 4.ª Rodada de Partilha de Produção, na condição de operadora de um consórcio, a Petrobrás ofertou 18% de excedente em óleo para a União pelo bloco de Três Marias, proposta derrotada por outro consórcio, que ofereceu 49,95%. Como era previsível, a empresa exerceu seu direito de preferência e aderiu ao consórcio vencedor.

Se aderiu, é porque considerou vantajoso, mesmo repassando 49,95% de excedente em óleo para a União – o que não a inibiu de apresentar inicialmente uma proposta tão baixa quanto 18%. Ficou óbvio: o direito de preferência induz a Petrobrás a oferecer lances mais baixos dos que daria na ausência desse direito. A empresa não corre o risco de perder campos que lhe interessem.

Por isso estou propondo agora um passo à frente: um projeto de lei que prevê o fim do direito de preferência da Petrobrás. Os interesses da empresa nem sempre coincidem com os interesses da União. Para um mesmo nível de eficiência, qualquer aumento do lucro da Petrobrás reduz a parcela de óleo ofertada à Federação.

O excedente em óleo da União é receita pública destinada ao Fundo Social e, dessa, 50% vão para a educação pública. Quanto menores os lances da Petrobrás, menos recursos serão destinados à educação.

Não somos adversários da empresa. Ao contrário, desde sempre defendemos a ideia de que ela seja bem gerida e apresente bons resultados. Apenas discordamos de que parte de seu lucro possa advir não de maior eficiência, mas do direito de preferência, um privilégio legal.

A Petrobrás é forte, competente e lucrativa o suficiente para contemplar o interesse dos seus acionistas, majoritariamente privados. Não precisa de privilégios especiais. Num Brasil moderno e socialmente justo, privilégios só para a educação.

Neste momento de grave crise fiscal, em que os recursos para a educação chegam a ser contingenciados – a ponto de comprometerem o futuro do Brasil –, temos de tomar posição de forma inequívoca: toda a preferência deve ser da educação.

*Senador (PSDB-SP)