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José Casado: Enlaçado e cercado
Governador acena com vacina na rua em 40 dias
Trinta e oito graus sobre terra queimada. É Carnaíba, no sertão, a 400 quilômetros do Recife. Lá vivem 19 mil pessoas aturdidas pelo vírus, mas fiéis à esperança de proteção. Médico e prefeito, José de Anchieta Patriota (PSB) se cansou do desgoverno federal. Entrou no Instituto Butantan e saiu com a reserva de 40 mil doses da vacina CoronaVac.
Ontem, a lista do Butantan abrigava 912 prefeituras, 13 estados mais os governos de Argentina, Chile, Peru e Honduras. A romaria ao laboratório cresce. O início da vacinação em São Paulo está marcado para 25 de janeiro, feriado pelos 466 anos da construção do barraco pioneiro da capital paulista, obra dos jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta.
É essa a mudança relevante na perspectiva política. Faz diferença quem chega antes com respostas objetivas à ansiedade pandêmica. O governador João Doria (PSDB) acena com vacina na rua em 40 dias.
Em contraste, depois de nove meses Jair Bolsonaro não tem vacina nem seringas — corre atrás de 331 milhões, mas vai precisar de 600 milhões. Mandou ao STF um plano sem data ou quantidade de pessoas nas fases de vacinação. Enviou ao Congresso um orçamento com déficit na Saúde (R$ 40 bilhões em 2021), sem prever gasto com imunizantes.
Diretores da Pfizer tomam chá de cadeira na Saúde desde abril, mas sua vacina já é usada nos EUA. O Butantan ainda espera resposta às três cartas que enviou no primeiro semestre oferecendo a CoronaVac.
A romaria de governantes a São Paulo evidencia fadiga com a inépcia. Bolsonaro acabou enlaçado por Doria e cercado em Brasília. O Supremo exige-lhe um plano consistente. O Ministério Público liberou estados e municípios na procura de solução, diante da omissão federal. O Congresso prepara lei para a imunização, legitimando o uso da CoronaVac.
Restou a aposta no socorro da agência reguladora, que não oculta disposição de vetar ou atrapalhar a “vacina do Doria”. É risco puro, porque o Congresso já engatilhou uma CPI da Anvisa. Ela, inevitavelmente, empurraria Bolsonaro no precipício que ele tanto contempla.
José Casado: Primeira vítima
Bolsonaro avança no campo minado do Congresso
Era uma luta de facas no escuro. Acabou domingo, quando um Supremo em autocombustão impediu a tortura da Constituição para extrair o contrário daquilo que ela diz.
Agora, é guerra aberta pelo domínio do Congresso. Vencedores na Câmara e no Senado terão poder decisivo sobre as votações, além de influência na disputa presidencial de 2022.
Quem comandar a Câmara terá nas mãos o destino da pilha de pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro. No Senado, decidirá a sorte de processos contra parlamentares, como Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), e ministros do STF.
Bolsonaro se convidou para a guerra, levando-a para o governo. É decisão de alto risco para quem trata aliados com desconfiança, adversários como inimigos e acha que pode vencer a pandemia sem vacina, sem crime de responsabilidade. Ele faz política movido pelo rancor. Em 2002, declarou-se aliado “de corpo e alma” a Ciro Gomes e, depois, de Lula — seus atuais inimigos — porque estava contra o governo Fernando Henrique Cardoso, a quem sugeria fuzilar.
Tornou-se a primeira vítima da luta no Legislativo, associado ao PT na aposta frustrada da reeleição do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP).
Na Câmara, quer inviabilizar candidatos alinhados a Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual presidente. Há quatro visíveis: Baleia Rossi (MDB-SP), Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), Marcos Pereira (Republicanos-SP) e Elmar Nascimento (DEM-BA). Começou apoiando Arthur Lira (PP-AL), mas já admite Tereza Cristina (DEM-MS), ministra da Agricultura, e Fábio Faria (PSD-RN), das Comunicações. Está deixando um rastro de ressentimentos.
No Senado, dividirá o MDB ao optar entre Eduardo Braga (AM), Fernando Bezerra (PE) e Eduardo Gomes (TO). Rejeitados devem ir para as candidaturas de Tasso Jereissati (PSDB-CE), Antonio Anastasia (PSDB-MG), Esperidião Amin (DEM-SC) e Simone Tebet (MDB-MS).
Bolsonaro avança no campo minado do Congresso. Já não pode evitar as consequências.
José Casado: Acabou a moleza
Com voto facultativo na prática, candidatos terão de se virar para convencer o eleitor a sair de casa
Por lei, o voto continua obrigatório. Na vida real, está mais facultativo a cada eleição. Um em cada três eleitores decidiu não votar no domingo. A abstenção avançou na década e, agora, mais que dobrou em relação às eleições municipais de 2000. Na cidade do Rio, chegou a 35%. Somou 47% em Copacabana, o bairro de maior densidade demográfica.
A recusa voluntária de 1,7 milhão superou a determinação da escolha majoritária nas urnas: Eduardo Paes (DEM) se elegeu com 1,6 milhão de votos, 91 mil abaixo do volume de abstenção. Não ofusca sua vitória acachapante sobre o trêfego pastor-prefeito, desde ontem em súplica por vaga no Ministério de Jair Bolsonaro.
O vírus semeou medo. Foi real o temor da contaminação em Petrópolis. Há 15 dias, a cidade registrava a média de 100 infectados transmitindo para 110 pessoas. Na semana passada, a taxa saltou de 110 para 230. Resultado: abstenção de 35,6%, muito acima do primeiro turno (29,9%).
Mas a pandemia também disseminou empatia. Beneficiou quem ficou contra o pandemônio governamental, o negacionismo fomentado pelo Palácio do Planalto. Bruno Covas (PSDB) esgrimiu com o argumento da Ciência e acabou premiado em São Paulo com um milhão de votos de vantagem sobre o adversário e 400 mil acima do volume de abstenção.
Porém o mais notável efeito pandêmico foi deixar escancarado o desleixo pelo eleitor, que espertos chefes partidários embutem na lei eleitoral.
Há 33 partidos registrados — outros 77 em formação—, todos acomodados numa legislação que impõe bilionário financiamento anual dos partidos, o custeio extraordinário de cada eleição, a propaganda subsidiada em rádio e televisão, além da obrigatoriedade do voto. É dinheiro fácil do Erário e imposição do dever de votar ao cidadão.
Acabou a moleza. A pandemia motivou, e a tecnologia ajudou a facilitar a justificativa de ausência. Na prática, o voto obrigatório já é facultativo. Partidos e candidatos terão de se virar para convencer o eleitor a votar. Caso contrário, assumem o risco de declínio na representatividade eleitoral, fórmula certa para a crise permanente.
José Casado: A arte da mentira
Presidente tem compulsão para fantasiar
É inútil esperar coerência de Jair Bolsonaro. Afinal, ele atravessou as últimas 90 semanas sem se importar com os fatos ou a realidade. Seu compromisso é com a reeleição. E só.
Num encontro virtual de líderes do G-20, sábado, decretou a inexistência de racismo no Brasil. Repetia o cadete 531 da Aman em 1977. Àquela hora, enterrava-se João Alberto Silveira Freitas — “pessoa de cor”, definiu o vice Hamilton Mourão—, assassinado por vigilantes dentro do Carrefour em Porto Alegre. Bolsonaro encontrou nos protestos antirracistas os subversivos de sempre, que tentam “importar para o nosso território tensões alheias à nossa história”.
Viajou a Macapá, onde reluz nova obra da sua imprevidência administrativa: o apagão que inferniza a vida de 800 mil pessoas. Incendiaram-se dois transformadores, e o da reserva está há um ano “em manutenção”. Responsável pela segurança energética, o governo deixou nas trevas 143 mil quilômetros quadrados do território nacional.
Sob a luz do sol, Bolsonaro prometeu um futuro iluminado e abandonou o Amapá antes do breu noturno. Poderia ter esticado o passeio até São Paulo, onde a negligência governamental deixou encalhar quase sete milhões de testes para o novo coronavírus cuja validade vence nos próximos 40 dias, como revelou o repórter Mateus Vargas.
Voltou à cúpula do G-20 se autoelogiando na condução do “gigante pela própria natureza”. Proclamou: “Vamos continuar protegendo nossa Amazônia, nosso Pantanal e todos os nossos biomas”. Omitiu que, até 31 de agosto, o governo só gastou R$ 105,4 mil na execução da política ambiental. Nem falou do plano (PPA 20-23) em que transfere a quase totalidade dos R$ 140 bilhões do orçamento do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura.
Bolsonaro tem compulsão para fantasiar. Em 1988, o vício custou-lhe a exclusão da escola militar. Virou manchete no “Noticiário do Exército” (nº 7449) por “faltar com a verdade e macular a dignidade militar”. Na Presidência, mentiras são mais perigosas. Ocultam o pandemônio governamental, mortífero numa pandemia.
José Casado: Cresce pressão sobre o Brasil
Bolsonaro tem 71 dias para escolher se muda ou fica refugiado nas cinzas da era Trump
A realidade bate à porta do insone Jair Bolsonaro. O delírio da “reinvenção do Brasil” numa “nova ordem mundial” sob comando de Donald Trump, como repetia seu chanceler, acaba na quarta-feira 20 de janeiro, quando Joe Biden assume com o plano de mudar o rumo dos Estados Unidos. Aos 78 anos, ele terá pressa em abrir um “caminho irreversível” para a inovação tecnológica em saúde, comunicações e energia limpa.
Se conseguirá, é outra história. Mas sinaliza o fim de uma tragicômica sintonia de negação da ciência: enquanto Trump considerava a mudança climática uma conspiração chinesa, Bolsonaro reduzia a pandemia a gripezinha.
Outra consequência é o impulso ao cerco legislativo ao Brasil. Democratas e republicanos atravessaram os últimos 12 meses apresentando um novo projeto a cada 50 dias para forçar Brasília a conter o desastre na Amazônia e proteger os indígenas.
Bolsonaro se enrolou na bandeira da soberania nacional quando viu Biden acenar com US$ 20 bilhões (R$ 104 bilhões) para “deixar de destruir” a Amazônia. Mas aceitou, em silêncio, uma interferência externa bem mais barata. No Orçamento de 2020, o Congresso americano separou US$ 15 milhões (R$ 78 milhões) para financiar “assistência estrangeira na Amazônia”, condicionados a provas de respeito aos direitos humanos. Também não reclamou da repetição da ajuda em 2021, com veto ao uso do dinheiro na remoção de indígenas (emenda nº 6395, já aprovada na Câmara).
O cerco legislativo à antipolítica ambiental antecede Biden. Desde o ano passado, avançam projetos como a “Lei da Amazônia” (HR nº 4263), com punições como bloqueio de ativos e de importação de algumas commodities, além de restrições militares — entre elas a revogação da recente designação do Brasil como aliado militar dos EUA fora da Otan.
Bolsonaro tem 71 dias para escolher se muda o rumo ou atravessa a segunda metade do mandato, e a campanha de reeleição, refugiado na saudade e nas cinzas da era Trump.
José Casado: O custo do amadorismo
Brasil nunca foi e dificilmente será prioridade na agenda americana
O resultado da eleição americana vai moldar a segunda metade do mandato de Jair Bolsonaro. A embaixada em Washington tem procurado líderes republicanos e democratas para reafirmar o interesse num amplo acordo econômico e de defesa com Donald Trump ou Joe Biden.
Isolado, com seu chanceler já oficializando a condição de “pária” no mundo, Bolsonaro tenta garantir nos EUA uma apólice de seguro na travessia da crise global. Além disso, passa noites insones devaneando na crendice de que as colunas da Casa Branca ocultam o portal de “salvação do mundo” — como define o Itamaraty — da força da China.
O Brasil nunca foi e dificilmente será prioridade na agenda americana. Mas Bolsonaro se oferece, propenso a pagar o sobrepreço inerente ao notável amadorismo diplomático.
O problema é a realidade. Trump e Biden coincidem no essencial à defesa da hegemonia diante da ascensão chinesa, baseada na inovação em computação quântica e em novos padrões de consumo da classe média de 400 milhões, mais que a população dos EUA. Divergem sobre forma e meios de manter o domínio.
A receita de Trump é a das negociações conflituosas (com o México e o Canadá, no Nafta; a Europa, na Otan; e a China) para acordos protecionistas. Bolsonaro já tem um roteiro. Por ele, atravessaria a campanha de reeleição determinando quem vai perder mercados, empregos e lucros para a concorrência americana.
Com Biden, a quem elegeu adversário, o jogo será ainda mais duro no comércio, nas “consequências econômicas significativas” da antipolítica ambiental, em eventual socorro na crise e no acesso a tecnologias de guerra, a miragem militar bolsonarista.
Bolsonaro conseguiu a proeza de assumir um alto custo antes do resultado das urnas. E as perdas tendem a ser maximizadas, porque o seu esteio político-empresarial continuará refém de Pequim, provedor de um terço das receitas na mineração, no agronegócio e na banca financiadora. Nunca estiveram tão dependentes da China. O amadorismo vai custar caro para todos.
José Casado: A fila cresce na bolsopandemia
Processos atrasados na Previdência ultrapassaram 4,4 milhões
É um desastre administrativo sem precedentes. A quantidade de processos atrasados na Previdência ultrapassou 4,4 milhões. Estão pendentes mais de 3,6 milhões de perícias e 788 mil avaliações de assistência social, atestam os dados oficiais auditados no dia 30 de agosto.
Por trás das estatísticas, está uma multidão sem rosto, de pobres com algum tipo de incapacidade, dependentes das aposentadorias e pensões ainda não reconhecidas. O número de vítimas desse congestionamento no INSS já equivale a 60% dos habitantes do Rio. Supera a população da Baixada Fluminense.
A confusão nada tem a ver com falta de dinheiro. É desleixo burocrático mesmo, com limitada contribuição da pandemia — o volume de processos atrasados aumentou um terço entre março e agosto. No caos florescem interesses de corporações, como a dos médicos peritos.
É reflexo da falta de liderança. Mas isso, naturalmente, não está na agenda de Jair Bolsonaro, mais preocupado com a reeleição sob a bandeira do retrocesso secular, numa fraudulenta defesa do liberalismo. Na bolsopandemia, ele já desperdiçou dinheiro público com químicos inócuos, redefinindo o charlatanismo na política.
O filme é antigo. Foi visto há 170 anos, quando a febre amarela aportou a bordo de um navio de bandeira americana, devastando o império de Pedro II. Em abril de 1850, o senador mineiro Bernardo Pereira de Vasconcellos, defensor da escravidão, foi à tribuna do Senado para pregar a “liberdade” de ficar doente, sem interferência do governo: “Peço que me deixem curar com charlatães quando entender que me podem servir melhor do que os senhores doutores”. Morreu duas semanas depois, de febre amarela.
O presidente agora propõe uma revolta da vacina, como a de 1904. É ardil de campanha, conveniente para encobrir a tragédia de 157 mil mortes e a incapacidade de resolver problemas governamentais que se agravam, como o do INSS. No melhor cenário, estima o Tribunal de Contas da União, o último dessa fila só será atendido dentro de 34 meses, por volta de agosto de 2023. Ou seja, no próximo governo.
José Casado: Jogo de alto risco
Na sua diplomacia errática, Bolsonaro se arrisca a terminar o mandato sem acordos comerciais relevantes
Sob intensa pressão empresarial, governos do Brasil e dos Estados Unidos correram para concluir acordos relegados há anos ao remanso da diplomacia. Estão longe do pacto “ousado”, anunciado a cada semana dos últimos 22 meses por Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes.
Notável foi a pressa para terminá-los a apenas duas semanas da eleição americana. É consequência de temores no setor privado com o duplo risco no horizonte: possível derrota de Trump combinada às dificuldades brasileiras com um eventual governo democrata, cujo potencial Bolsonaro insiste em multiplicar a cada avanço de Joe Biden.
Os papéis de ontem resumem expectativas de inversão no estado degradado das relações bilaterais. O fluxo de comércio e de investimentos caiu 25%, o mais baixo na década, atestando perdas com as ilusões bolsonaristas sobre o alinhamento a Donald Trump na guerra com a China.
Os compromissos anunciados são relevantes, porém restritos. Cria-se um canal para liberação mais rápida de mercadorias e ajusta-se uma futura revisão de leis, para cumprir velhas promessas na tributação. Novidade é um legado da Operação Lava-Jato, aquela que Bolsonaro anuncia ter liquidado: adoção no Brasil de padrões anticorrupção usuais nos EUA, com proteção jurídica a quem denuncia subornos.
Aparentam menos vantagens que a proposta chinesa já enunciada pelo embaixador Yang Wanming, para aumento dos investimentos: cooperação na economia digital a partir da tecnologia 5G e comércio aberto, com redução de emissões de carbono até 2030 e neutralidade até 2060.
Na sua diplomacia errática, Bolsonaro se arrisca a terminar o mandato sem acordos relevantes com os EUA, com a Europa e, ainda, brigando com a China por causa da tecnologia 5G, embora tenha presidido um inédito aumento da dependência de Pequim, cliente único de 40% das vendas do agronegócio brasileiro. Deveria ouvir o diplomata Thomas Shannon, que serviu aos governos Obama e Trump. Ele apareceu em São Paulo ontem, advertindo: o Brasil não deveria se meter e muito menos escolher um lado na guerra EUA-China.
José Casado: Xeque de Xi em Bolsonaro
Nunca o Brasil esteve tão dependente da China
Jair Bolsonaro começa a perceber que fez um mau negócio ao se meter na guerra econômica dos Estados Unidos contra a China.
Apostou num tratado de comércio com Donald Trump. Fracassou. No melhor cenário, vai chegar ao meio do mandato com um acordo de compra de material bélico nos EUA e “facilidades” de vistos para empresários.
Idealizou uma “reinvenção do Brasil” à sombra de Trump, na definição do burlesco e inepto chanceler Ernesto Araújo, e hostilizou o Partido Democrata, que controla a Câmara. O troco veio num documento público: “Nos opomos firmemente a qualquer tipo de acordo comercial com o governo Bolsonaro”. A frase dá a dimensão das dificuldades num eventual governo Joe Biden.
Amadorismo diplomático custa caro. Bolsonaro ajudou a propagar ideias hostis aos chineses, como o “comunavírus”. Acreditou na ficção da “nova ordem” à margem da China, a potência emergente. Mas, no meio da guerra de Trump contra o “exército tecnológico de 5G” da Huawei, apelou ao líder Xi Jinping por socorro para viabilizar um leilão de petróleo.
Em silêncio, Pequim mudou de tática. Um ano depois, o xeque de Xi: nunca o Brasil esteve tão dependente da China. Entre janeiro e agosto aumentaram em 14% as compras chinesas no mercado nacional. As vendas totais aos EUA caíram 32%.
Hoje, Pequim é destino de 40% das exportações do agronegócio. É o maior cliente e, também, o comprador quase exclusivo (72%) de soja. As aquisições de alimentos já superam em US$ 5 bilhões a soma das compras feitas por EUA, América Latina, Europa, África e Oriente Médio. A trading estatal chinesa Cofco prevê aumento de importações em 5% ao ano durante a próxima década.
Bolsonaro ficou prisioneiro no front da guerra EUA-China. Terá de decidir se aceita a tecnologia 5G da Huawei. É escolha política com consequências, como nas questões ambientais do acordo Mercosul-União Europeia. Começa a descobrir a falta que faz a diplomacia profissional na condução da política externa.
José Casado: Planos para uma guerra
É novidade a sincronia entre Brasília e Washington no planejamento do cerco militar ao regime de Caracas
Na sexta-feira, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, acabou enredado num roteiro quase cômico. Saiu de Washington, parou em Boa Vista, xingou o ditador vizinho Nicolás Maduro, desafiando-o a sair no braço, voltou ao avião e foi embora. Teve como coadjuvante o chanceler Ernesto Araújo, burlesco cruzado do obscurantismo bolsonarista, para quem um agente “comunista-globalista” é o responsável pela morte de mais de 137 mil brasileiros — o “comunavírus”.
Da visita de Pompeo, ex-chefe da CIA, restou o eco da investida contra o líder da cleptocracia venezuelana, qualificado como narcotraficante. Nada de novo, tudo verdade.
Inovador foi o aval do governo Jair Bolsonaro a um diplomata estrangeiro para usar o território brasileiro num ataque a governo vizinho. Esse delito constitucional foi flagrado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Desde a redemocratização, interferências indevidas na política dos vizinhos eram feitas no exterior. Lula, por exemplo, fez comícios na Venezuela pela reeleição do ditador Hugo Chávez e mobilizou a marquetagem do PT para ajudar a eleger o sucessor Maduro, enquanto a Odebrecht pagava as contas.
Outra novidade foi a sincronia entre Brasília e Washington no planejamento do cerco militar ao regime de Caracas. Mobilizaram-se três mil soldados brasileiros, satélites e baterias de foguetes, levadas por 4,6 mil km, numa simulação de guerra convencional na fronteira Norte.
A “Operação Amazônia” acaba amanhã. Foi desenhada junto com a “Poseidon” no Caribe, conduzida pelo Comando Sul dos EUA com tropas colombianas. O cerco a Maduro incluiu Guiana e Suriname, que disputam limites no Atlântico com a Venezuela para exploração de petróleo. Pompeo visitou-os e saiu com acordos de livre trânsito para os aviões do Pentágono.
Ontem, em Brasília, parlamentares preparavam “moção de censura” ao secretário americano pela cena insólita em Boa Vista. Alvo errado. Foi Bolsonaro e o seu chanceler que jogaram o Brasil num plano de guerra contra a Venezuela, e com explícito desprezo ao Congresso.
José Casado: Nova maioria bolsonarista
Sem caixa, o governo terá de escolher beneficiários
O relógio marcava 0h32m do 1º de abril quando Jair Bolsonaro escreveu um dos seus primeiros tuítes: “O Bolsa-farelo (família) vai manter esta turma no Poder”. Comentava a saída de Dilma Rousseff da Casa Civil para se candidatar à sucessão de Lula.
Nove anos depois, Bolsonaro está criando o próprio “Bolsa-farelo (família)”. Acredita ser a melhor cartada para viabilizar a reeleição em 2022. Numa trapaça da história, repete Lula, que, em 2005, driblou os efeitos do mensalão e abriu caminho ao novo mandato com o Bolsa Família.
Desde julho, o Planalto recebe pesquisas indicando a formação de nova maioria (um terço) na base eleitoral bolsonarista. É composta por pobres, beneficiários do “auxílio emergencial”, residentes em pequenas e médias cidades do Norte e do Nordeste. Substitui a fatia do eleitorado de classe média, perdido nas metrópoles.
É adesão com discernimento. Quase metade responsabiliza o presidente, mais do que governadores e prefeitos, pela fragilidade do país na pandemia. No rastro do seu negacionismo já se contam 132 mil mortos.
Há, porém, claro respaldo a Bolsonaro, ancorado na expectativa de continuidade da ajuda. Os pobres temem desemprego e fome na crise do pós-pandemia.
É armadilha política porque, sem caixa, o governo terá de escolher beneficiários, dividindo a nova maioria. Mas dá a Bolsonaro a chance de se apropriar de um tema, a desigualdade, monopolizado pela oposição.
A retórica sobre a concentração de renda foi eficiente para o PT nas urnas. Os resultados dos governos petistas, porém, ficaram limitados: os beneficiários do Bolsa Família representam só 21% da pobreza “visível” no auxílio emergencial (66 milhões). Lula focou no assistencialismo, descartou um programa amplo de renda básica (não contributiva), como sugeria o ex-senador Eduardo Suplicy, entre outros.
Bolsonaro quer seu “Bolsa-farelo (família)”. Não propõe ir além, reduzir a desigualdade nem ajudar “invisíveis” a viver por conta própria. Como diz o sociólogo Paulo Delgado, em ensaio recém-publicado, “por não cultivar a arte do respeito, é o governo que mantém o pobre fraco”.
José Casado: Privilégios e impunidade
Disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta
Judiciário e Ministério Público perderam a bússola em disputas pelo foro privilegiado —mecanismo institucional que, para muitos, simplifica a rota da impunidade para poucos. Tem tribunal estadual anulando decisão do Supremo e procurador em luta contra procuradores, para garantir tratamento especial a políticos suspeitos de crimes comuns.
Há 55 mil agentes públicos nesse cercadinho judicial. Rio, Bahia e Piauí abrigam 11 mil privilegiados. A lista vai do presidente da República a vereador; de senador a reitor de universidade; de juiz a delegado.
Semanas atrás, o Tribunal de Justiça do Rio deu a regalia a um filho do presidente, Flávio Bolsonaro, político notório pelo talento para lucrar muito, várias vezes e rapidamente.
Era deputado estadual quando comprou uma quitinete na Prado Júnior, em Copacabana. Revendeu-a 60 semanas depois com o extraordinário lucro de 292%. A valorização na área havia sido de 11% (índice FipeZap). Fez mais 18 negócios assim na Barra, Botafogo e Laranjeiras.
Personagem do inquérito sobre rachadinhas e lavagem de dinheiro na Assembleia do Rio, o ex-deputado reivindicou no STF o foro privilegiado de senador. O juiz Marco Aurélio Mello rejeitou. Ele apelou ao tribunal estadual, que inovou. Deu-lhe o privilégio e transformou em letra morta a decisão do Supremo.
Procuradores do Rio recorreram contra a inovação da Justiça fluminense. Entrou em campo o procurador-geral, Augusto Aras, como relatou a repórter Bela Megale. Aras acha que o filho do presidente merece ficar longe do juízo de primeira instância. Agora, o procurador-geral batalha para derrotar os procuradores do Rio no Supremo. Quer ver rejeitada a decisão de Mello, que foi baseada na jurisprudência do próprio STF.
Há uma lógica de poder nessa aparente anarquia institucional — a de que alguns são mais iguais que outros. A disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta no serviço público: 80% dos beneficiários estão no Judiciário e no Ministério Público, mostra estudo de João Cavalcante Filho e Frederico Lima, consultores legislativos.