josé antonio segatto
Livro de Segatto tem compromisso com defesa da democracia, diz professor
João Vitor*, da equipe FAP
O professor Ricardo Marinho afirma que o livro Cultura política e democracia, do historiador José Antônio Segatto, tem compromisso com a defesa da cultura política democrática e republicana. “Desta forma, não é um livro a passeio. Apesar de sua linguagem acessível, exige do seu leitor a disposição de adentrar nesses terrenos movediços e de soluções nada fáceis”. A avaliação dele foi publicada em artigo na revista Política Democrática online de dezembro (38ª edição).
A revista é editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. A instituição disponibiliza, gratuitamente, em seu portal, todo o conteúdo da publicação mensal na versão flip. Marinho, do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional, diz que Segatto é um historiador de formação crítica sólida.
Para Segatto, conforme analisa o autor do artigo, o belo, a estética e, consequentemente, a cultura política, de sentido republicano e democrático, deram lugar a uma cultura com significado antropológico puramente descritivo, empurrando-a para a “desrepublicanização” progressiva da cultura, da política e da sociedade.
De acordo com o artigo, Segatto observa que a revolução científico-tecnológica dos séculos XX e XXI mudou as formas e os ritmos dos dias tais como acontecia anteriormente na humanidade.
Segundo Marinho, a leitura de Cultura política e democracia leva à reflexão sobre o fato de a obra ser fruto do acompanhamento da crise da cultura política e da democracia manifesta em 2013 e, por isso, mobiliza sua experiência de mais de 25 anos na busca de saídas.
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A obra, de acordo com o professor, tem 26 artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo, escritos nas palavras de Segatto “para tentar compreender e sugerir alternativas a problemas postos pela conjuntura”.
A íntegra do artigo de Ricardo José de Azevedo Marinho pode ser conferida na versão flip da revista, disponível no portal da FAP, gratuitamente.
A nova edição da revista da FAP também tem reportagem especial sobre a variante Ômicron da covid-19, entrevista especial com Hussein Kalout, além de artigos sobre política, economia e cultura.
Veja lista de autores da revista Política Democrática online de dezembro!
Compõem o conselho editorial da revista o diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado, Caetano Araújo, o jornalista e escritor Francisco Almeida e o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques. A Política Democrática online é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado.
*Integrante do programa de estágios da FAP, sob supervisão do jornalista e editor de conteúdo Cleomar Almeida
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Coletânea reúne textos de grandes nomes do cenário político brasileiro, como FHC e Cristovam Buarque
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Episódios recentes do Brasil, muitos deles emplacados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, têm aumentado a crise de valores republicanos e democráticos no país. Em momentos de adversidades políticas, as forças da esquerda devem assumir o protagonismo necessário para a democracia com projetos reformistas e revigorados, sugere o livro As Esquerdas e a Democracia, organizado por José Antonio Segatto, Milton Lahuerta e Raimundo Santos. Editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e Verbena Editora, a obra é uma coletânea de artigos e está à venda no site da Amazon.
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O objetivo do livro As Esquerdas e a Democracia, que tem 1565 páginas e foi lançado em 2017, é analisar programas e convicções da esquerda, ou ao menos de parte dela, no Brasil e sua associação aos ideais e práticas democráticos. Apesar de reunir textos de intervenção de diversos autores, a obra tem uma concepção comum baseada na defesa dos ideais do Estado democrático de Direito, laico e republicano, como liberdade, igualdade, justiça e dignidade.
O futuro político dos partidos políticos da esquerda brasileira é outro tema central abordado na coletânea, conforme lembra o professor associado do Instituto de Política da UnB (Universidade de Brasília), Paulo César Nascimento, no prefácio da obra. “Os dois principais partidos que disputavam a hegemonia no campo da esquerda e da centro-esquerda brasileira, e que se revezaram no poder nas últimas duas décadas, mostram sinais de declínio político”, diz Nascimento.
“Temos que optar entre sair da crise com as mesmas estruturas, mantendo o grau de injustiça que tem nossa sociedade e esperar uma nova crise ou sair da crise com mudanças estruturais, iniciando a construção de uma nova sociedade”, escreve o presidente do Conselho Curador da FAP, o ex-senador Cristovam Buarque, em um dos 10 texto da coletânea.
Em outra análise, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirma, por sua vez, que o “‘basta da corrupção’ não é uma palavra de ordem ‘udenista’”. “É um requisito para uma sociedade melhor e mais decente”, escreve. “Em momentos de transição, a palavra conta: só ela junta fragmentos, até que as instituições e suas bases sociais se recomponham. É o que nos está faltando: a mensagem que aponte caminhos de esperança para passos à frente”, continua.
Em texto de sua autoria, o sociólogo Caetano Araújo, que é diretor da FAP e consultor político, afirma que uma estratégia de mudança que tem a democracia como premissa e a construção da equidade e da sustentabilidade como objetivos deve ser considerada a plataforma, em construção, de uma esquerda democrática. “Avançar nesse rumo implica, contudo, substituir a percepção de emancipação como simples retirada de empecilhos para a realização da liberdade por uma alternativa que enfatize o aspecto de construção, de processo, de aprendizado coletivo que o processo de mudança com essa finalidade carrega”, avalia.
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José Antonio Segatto: Incivilidade política
Podemos ter de viver tempos infaustos para os valores democráticos e o exercício da cidadania
Um importante intelectual alemão, Karl Marx, em 1852, no livro O 18 de Brumário, em perspicaz análise do processo político francês dos anos 1848-51, revela como foram criadas as “circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco (Luís Bonaparte) desempenhar um papel de herói”.
Guardadas as singularidades dos acontecimentos na França da época, posteriormente, nos séculos 20/21, fenômenos com alguma similitude com aqueles se sucederam em outros lugares e situações particulares, até mesmo em tempos recentes. Podemos citar como exemplos, circunscrevendo-nos apenas ao continente americano e à contemporaneidade, as eleições presidenciais que elegeram o agrônomo Alberto Fujimori (Peru, 1990), o coronel Hugo Chávez (Venezuela, 1998), o empresário Donald Trump (Estados Unidos, 2016) e o capitão Jair Bolsonaro (Brasil, 2018).
O caso do Brasil, o mais recente, é deveras ilustrativo desses fatos. Político obscuro e sem qualidades, que durante quase três décadas engrossou as fileiras do baixo clero no Congresso Nacional, Bolsonaro fez carreira de deputado federal por partidos fisiológicos e clientelistas ou de aluguel. Representante do corporativismo militar e do nacional-estatismo, arauto do regime ditatorial e apologeta de seus métodos despóticos e cruéis, manteve sempre a coerência de concepções e a constância de práticas em sua trajetória parlamentar: a demonização da política e o ultraje da democracia, a glosa dos direitos de cidadania e a hostilidade aos valores humanistas, o combate às manifestações identitárias e multiculturais.
O desafio, todavia, é explicitar como um sujeito incivil e rústico, sem projeto, sem estrutura partidária e com recursos limitados, pôde angariar tantos adeptos e obter tamanha votação, que permitiu sua eleição para a Presidência da República de um país deveras complexo.
Inúmeras têm sido as respostas dadas por jornalistas e cientistas políticos, por especialistas e leigos, para compreender o sucedido. Dentre elas, algumas podem ser destacadas:
1) A severa crise econômica e suas sequelas teriam criado insatisfação generalizada.
2) A revelação dos muitos e graves escândalos de corrupção nos diversos níveis do aparato estatal, envolvendo partidos governistas – sobretudo o consórcio PT-PMDB –, associados a práticas fisiológicas, clientelistas e patrimonialistas, teria produzido reprovação indignada do establishment político pela opinião pública. Ademais, seria responsável pelo depauperamento do centro político e pela perda de credibilidade do sistema partidário, permitindo a emergência no cenário político de novos atores.
3) A incapacidade de governos na segurança pública teria propiciado as condições para o aumento exponencial da criminalidade, da violência e da disseminação do medo e da apreensão social.
4) A ineficácia da gestão do Estado e da condução das políticas públicas, concatenada aos malfeitos dos donos do poder, teria criado clima de insatisfação e descrédito sem precedentes da política e dos políticos, dos partidos e das instituições.
5) O ativismo de entidades e movimentos identitários, na busca de reconhecimento, teria desencadeado uma reação conservadora afrontosa, em especial de igrejas evangélicas, em defesa de valores tradicionalistas.
6) Os influxos da onda conservadora e/ou de direita em ascensão na Europa e nos Estados Unidos teriam fomentado a disseminação de concepções extemporâneas e reacionárias: xenófobas, racistas, populistas, nacionalistas e antiglobalistas – em consonância, propalou-se uma atroz persecução a socialistas e partidos de esquerda em geral, além de movimentos identitários, de defesa de direitos civis e/ou humanos. A ira antipetista propagou-se como uma centelha e atingiu a esquerda indistintamente.
Esse conjunto de fatos e fatores teria produzido uma situação de mal-estar sociopolítico de vulto, um verdadeiro estado de anomia e seria mesmo responsável pelo desencadeamento, em 2013-15, de um agressivo e inusitado movimento antissistema, que conseguiu mobilizar grandes contingentes de manifestantes nas ruas e nas redes sociais. Com palavras de ordem “contra tudo o que está aí” e profissões de fé cruzadistas – em resguardo da pátria e da ordem, da família e dos “bons costumes”, de Deus e da civilização cristã – foram aguçados sentimentos elementares e ordinários que estariam latentes e afloraram de maneira impetuosa.
Nesse clima e/ou conjuntura é que teriam sido criadas as condições para a emergência da candidatura Bolsonaro. Apresentado como outsider, antipolítico, salvador da pátria, com uma retórica insolente e beligerante, preconceituosa e regressista, anti-secularista e anticosmopolita, conquistou ampla massa de adeptos dos mais variados estratos sociais. Explorando ardilosamente a mídia eletrônica, reuniu uma legião de tuiteiros, youtubers, blogueiros, etc. – orientados por ideólogos do submundo da internet – numa incomensurável operação de propaganda e proselitismo político-ideológico.
Se as interpretações ou constatações acima expostas forem verossímeis, elas sinalizam que podemos ter de vivenciar, nos próximos anos ao menos, tempos infaustos para os valores e procedimentos democráticos e para o exercício da cidadania. O cargo de presidente da República não enseja, entretanto, per se, prerrogativas de domínio desmesurável e arbitrário – os mecanismos de poder e os meios de exercê-lo tendem a restringir possíveis investidas antirrepublicanas, de insolência política, de ultraje da democracia e de constrangimento de direitos. As garantias institucionais e constitucionais vão depender, contudo, do ativo e engenhoso protagonismo dos agentes da sociedade civil e política, comprometidos com a manutenção do Estado de Direito Democrático, com a publicização do Estado e com as liberdades em sentido lato.
* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
José Antonio Segatto: Desventuras de uma revolução
Despótica e hostil à democracia, a gerontocracia cubana perdeu o encanto
Há seis décadas, em 1.º de janeiro de 1959, uma coluna rebelde tomou Havana, desencadeando um processo revolucionário. Encetada dois anos antes por um grupamento guerrilheiro em Sierra Maestra, a insurreição levou à deposição da ditadura corrupta e cruel de Fulgêncio Batista (1952-59) e sua substituição por um governo nacional-democrático , a seguir metamorfoseado em regime de cunho socialista, sob a liderança de Fidel Castro.
A sublevação vitoriosa, de fato, só foi possível dado o amplo apoio sociopolítico nas cidades: Movimento 26 de Julho, organizações sindicais e estudantis, partidos liberais e comunista, etc. Entretanto, forjou-se, em seu curso, uma versão mítica da revolução, segundo a qual ela só teria sido exequível pela façanha de um pequeno grupo de destemidos guerrilheiros comandados por Fidel Castro e Che Guevara - este, sobretudo após seu assassinato na Bolívia, em 1967, ganhou aura romântica e foi transformado numa espécie de grife, ícone da juventude rebelde.
Desde o princípio, ressalte-se, a revolução cubana tornou-se inconveniente para os Estados Unidos, cuja reação - compressão, rompimento de relações diplomáticas, financiamento da contrarrevolução (invasão da Baía dos Porcos), bloqueio econômico, etc. - empurrou o novo governo para a esfera de influência soviética.
Já em 1961 foi proclamado o caráter socialista da revolução, cujos desdobramentos a impeliram para a reprodução do regime soviético, adaptando-o aos trópicos caribenhos: propriedade estatal dos meios de produção, partido único, abolição dos direitos civis e políticos, coibição do dissenso, estabelecimento de polícia política de monitoramento e coação político-ideológica e da sociabilidade, supressão dos resquícios de democracia. Em consonância a isso o Partido Comunista Cubano (PCC), refundado em 1965, tornou-se partido-Estado. Sua adoção pela URSS, no entanto, com os crescentes préstimos econômicos e militares, políticos e culturais, implicou a instauração de um tipo de socialismo dependente e subsidiado.
Congruente com esse projeto-guia, em 1967 o Estado cubano, secundado pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) - numa hábil operação política -, fundou a Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas). Objetivando tirar o foco da pressão norte-americana sobre a ilha, deveria ser um instrumento multiplicador de movimentos revolucionários no continente, ou seja, espécie de estado-maior da revolução - apoio político, logístico, financeiro, bélico -, disseminaria focos guerrilheiros na região. Pequenos grupos de elite, vanguarda armada revolucionária, teriam o dever de replicar o exemplo cubano nos diversos países. Da dissidência dos partidos comunistas e de outros grupamentos ou seitas esquerdistas despontaram movimentos guerrilheiros de variadas espécies em países como Guatemala, Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Brasil, Uruguai, Argentina e outros.
À exceção da Nicarágua, onde a Frente Sandinista tomou o poder em 1979, nos demais lugares não só malograram, mas em muitos casos resultaram em tragédias políticas e até mesmo humanitárias. A reação brutal de setores dominantes por meio das Forças Armadas, com auxílio americano, criou condições para golpes de Estado e para o estabelecimento de ditaduras atrozes. Caso emblemático foi o do Chile, em que se abria, segundo Eric Hobsbawm, com a eleição de Salvador Allende “a perspectiva emocionante de uma transição pacífica sem precedentes para o socialismo”.
No caso chileno, a ação cubana desempenhou papel considerável na desestabilização do governo da Unidade Popular. Em 1972, Fidel Castro prorrogou sua visita ao país por um mês, acompanhado por insignes personagens do seu serviço de inteligência, que lá se instalaram por tempo alongado, pressionando o governo e/ou atiçando ações aventureiras de grupos e movimentos esquerdistas.
Além disso, a revolução cubana constitui um marco divisor na história da esquerda na América Latina. Os partidos comunistas que então iniciavam processos de renovação de seus projetos e de suas práxis - valorização da democracia, adoção da via pacífica e processual para o socialismo, abandono de compreensões estagnacionistas - sofreram uma inflexão e se defrontaram com a obliteração de suas intervenções político-institucionais no âmbito do Estado de Direito Democrático.
No momento em que o projeto da Olas já havia dado provas do seu infortúnio e a democracia (re)emergia na América Latina - em coincidência com o colapso do socialismo real e a dissolução da URSS -, o regime cubano, consorciado com o Partido dos Trabalhadores (PT), (re)fundou órgão de articulação no continente sob sua orientação. Em 1990 foi realizado o 1.º Fórum de São Paulo, com a participação de dezenas de partidos e movimentos, grupos e seitas de procedências distintas da esquerda. Tratava-se de substituir a estratégia insurrecional pela luta político-institucional.
A iniciativa teve relativo sucesso nas décadas seguintes, com a ascensão ao poder do bolivarianismo na Venezuela e em países andinos, do petismo no Brasil, da Frente Ampla no Uruguai, do peronismo na Argentina, do sandinismo na Nicarágua, etc. Quase todos eles, porém, com raras exceções, experimentaram a desventura do domínio e do mando em grande medida por não terem compromisso com os valores e procedimentos democráticos.
Se de início, nos anos 1960, a revolução cubana exerceu razoável fascínio, os rumos que tomou com o tempo, no entanto, levaram-na a perder, gradativamente, o encanto - regime de padrão autoritário-burocrático, de feitio castrense , dirigido por uma gerontocracia despótica e hostil à democracia, seu destino foi desventuroso, redundando num socialismo miserável.
*José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
‘Avanço da extrema-direita torna obrigatório reexame político do AI-5”, diz José Antônio Segatto
Professor da Unesp avalia a relação do ato da ditadura militar com o cenário atual da política brasileira
Por Cleomar Almeida
O professor titular de sociologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) José Antônio Segatto afirmou que o avanço da extrema-direita no país torna obrigatório o reexame do significado histórico e político do AI-5. Em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro, ele ressalta que o AI-5 foi o quinto de dezessete decretos emitidos pela ditadura militar que sustaram a democracia e direitos de cidadania e desencadearam perseguições, prisões, inquéritos policiais-militares, invasão e depredação de sindicatos, bem como a suspensão de direitos e garantias civis e políticas e cassação de mandatos.
» Acesse aqui a revista Política Democrática online de dezembro
Segatto observa que, em 1965, em represália à derrota eleitoral do regime em alguns estados (Minas Gerais e Guanabara), decretou-se o Ato Institucional número 2, extinguindo os partidos políticos e estabelecendo eleições indiretas para a Presidência da República e para os governos dos Esta- dos. “Além disso, renovou o poder do chefe do governo de cassar mandatos, suspender direitos políticos por 10 anos e aumentou de 11 para 16 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal”, escreveu ele.
Mais adiante, o professor destacou que o AI-2 seria complementado logo a seguir, em fevereiro de 1966, pelo AI-3 que determinou a suspensão das eleições para prefeitos das capitais, de cidades em áreas de segurança nacional e estâncias hidro-minerais, e que esses seriam indicados pelos governadores. “Em dezembro, o AI-4 revogou a Carta de 1946 e apresentou outra que sintetizava os três atos anteriores, aprovada por um Congresso manietado em janeiro de 1967.
A culminância desse processo foi o AI-5 em 1968 que, nas suas justificativas, anunciava claramente seus objetivos”, asseverou.
Pelo AI-5, como lembrou Segatto, o general-presidente passou a ter poderes ilimitados de intervir no Congresso, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos por dez anos de qualquer cidadão, confiscar bens, decretar estado de sítio, demitir ou aposentar servidores públicos, entre outros. “Junto aboliu o direito de habeas corpus e instituiu a censura”.
De acordo com o professor, o AI-5 vigorou por dez anos e só foi revogado em 1978, no governo Geisel. “Nesses anos, inspirado na doutrina de segurança nacional, o regime erigiu um verdadeiro estado de exceção. Estatuiu amplíssima legislação arbitrária: Lei de Segurança Nacional, Lei de Imprensa, Lei de Greve, leis cerceando atividades estudantis”.
O autor lembra, também, no artigo, que inúmeros mandatos eletivos foram cassados, centenas de oposicionistas foram mortos, grande quantidade de servidores públicos (professores, militares e outros) foi destituída de seus cargos, intelectuais e artistas, jornais e revistas tiveram obras e matérias censuradas, as prisões por motivos políticos, a tortura e o desa- parecimento de militantes tornaram-se comuns. “Militarizou-se o Estado e criminalizou-se a sociedade civil. O terrorismo de Estado implantou a lógica da força e o domínio do medo”.
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José Antonio Segatto: Devagar com o andor
É quase consenso a necessidade de atualizar a Carta, o problema é conjuntura adversa
“Faça como um velho marinheiro/
que durante o nevoeiro/
leva o barco devagar”
Paulinho da Viola, em Argumento
No momento em que a Constituição completa três décadas de sua promulgação, ela tem sido motivo de crítica ou mesmo depreciação por vertentes políticas as mais variadas. De um lado, uma reação conservadora, por considerá-la demasiado democrática e comportar direitos desmedidos, chegou a propor a elaboração de outra Constituição, concebida por uma comissão de notáveis nomeada pelo presidente da República, desde que afinada com suas convicções e referendada por plebiscito; de outro, a esquerda preponderante e seus satélites - que, diga-se, votou não por acaso contra sua aprovação e, posteriormente, desafiou muitas de suas normas - prometeram refazer a Constituição por vias não muito transparentes, como, por exemplo, consultas populares, claro, sob sua condução. Verificou-se ainda uma terceira posição, congregando intelectuais e juristas, liberais de boa cepa, seduzidos pelo canto de sereia do revisionismo constitucional: uns indicando a necessidade de uma “lipoaspiração” para eliminar excessos e outros, completa reformulação para suprimir ambivalências.
As duas primeiras, entende-se, são coerentes com suas práticas e cultura políticas, visto que nunca tiveram apreço ou compromisso efetivo com os valores e os procedimentos democráticos e as instituições republicanas. Já a terceira passa a impressão de aspirar a uma Carta liberal sem impurezas, impoluta. Mas, a despeito das diferenças de concepções ideológicas, ao que parece, todas elas conjecturam que o regime político-institucional inaugurado em 1988 se esgotou.
Muitas são as restrições que se fazem à Constituição e podem ser sintetizadas em alguns itens: 1) exageradamente extensa e prolixa, contendo temas comezinhos e até excentricidades, abarcando questões que deveriam ser objeto de legislação ordinária; 2) excesso de direitos outorgados - o Estado deve tudo prover, “direito do cidadão dever do Estado”, abundância de direitos e escassez de deveres - seria responsável pelo déficit fiscal e outros problemas; 3) rigidez orçamentária e ordenamento tributário engessariam os investimentos e opções de políticas públicas; 4) amplificação de prerrogativas corporativas, além de manter privilégios adquiridos, em especial, pelo funcionalismo público; 5) alargamento da autoridade do Judiciário, particularmente do Supremo Tribunal Federal, que teria criado uma situação paradoxal no equilíbrio dos Poderes da República, com a sobreposição dos atos de legislar e do arbítrio - o que teria implicado, por exemplo, a judicialização da política e a politização do Judiciário. Obviamente há muitos outros senões à Carta constitucional, mas o que parece mais incômodo a alguns setores sociopolíticos e econômicos expressivos é o seu caráter considerado demasiado democrático, infelizmente.
Sem dúvida alguma, a Constituição tem numerosos problemas. Não só de origem, mas também decorrentes das emendas - cerca de uma centena - nela efetuadas no decorrer dos sucessivos governos e legislaturas. Desfecho de um longo e complexo movimento de resistência à ditadura, e conduzida por uma ampla e heterogênea frente democrática, a Assembleia Nacional Constituinte - composta pelo Congresso Nacional eleito em 1986 - foi cercada de grandes expectativas; deveria contemplar desde demandas sociopolíticas, há muito comprimidas, até novos interesses e requisições. É a partir dessas circunstâncias históricas - culminância da transição democrática - que se pode compreender tamanha abrangência da Constituição de 1988: 245 artigos e 70 disposições transitórias.
Entretanto, ainda que com todas as deficiências que podem ser-lhe imputadas, a Constituição, de fato e de direito, consistiu em elemento basilar - isso é inegável - que permitiu a concertação democrática dos últimos 30 anos. É possível que constitua o mais longo período de estabilidade democrática da História republicana, não obstante as crises e/ou os percalços de que são amostras os processos de impeachments de Collor de Mello e Dilma Rousseff. Incorporou e tornou lei reclamos e/ou aspirações, desde as históricas até as hodiernas. Nos capítulos referentes aos direitos fundamentais, à organização dos Poderes e suas relações com a sociedade civil, foi afirmada a defesa das instituições democráticas e da soberania popular, bem como fixou normas e princípios inovadores para a garantia da “dignidade da pessoa humana”, da igualdade de condições e das liberdades indispensáveis. Ademais, ao concretizar direitos individuais e coletivos delineou as bases de um Estado de bem-estar social.
As postulações de reforma constitucional são perfeitamente plausíveis. É quase consenso a necessidade de sua atualização, para retificar suas vicissitudes e promover determinados ajustes para deixá-la em consonância com as extraordinárias transformações por que passa o mundo em geral e o País em particular. O grande problema, porém, é efetuar uma revisão da Constituição nesta conjuntura extremamente adversa, em que se assiste ao açulamento do dissenso político, ao esgarçamento da sociabilidade, à depreciação dos valores cívicos, ao protagonismo e domínio de partidos políticos e poderes destituídos de fé pública, etc. O risco de um retrocesso é real e poderia ter resultados de proporções imprevisíveis e politicamente perversos.
Tal circunstância aconselha cautela e muito discernimento político. Convida a lembrar um antigo dito popular que diz: “devagar com o andor que o santo é de barro” - maneira de expressar a necessidade de prudência em determinadas situações e momentos. Da mesma forma, sugerem os versos do compositor, citados na epígrafe, que, em meio à bruma turva é preciso movimentar-se com precaução para atingir o destino em segurança.
*José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
José Antonio Segatto: Corporativismo voraz
Os candidatos abordam o problema de forma lateral ou mitigada, alguns nem o aventam
Não é nenhum contrassenso a asserção segundo a qual o corporativismo foi tornado elemento essencial na cultura política do País, entranhando-se em quase todas as relações sociais. Amalgamado a concepções e práticas seculares do clientelismo e do patrimonialismo, germinou em terreno fértil, estercado, décadas a fio, pelo positivismo. Além de impregnar, integralmente, as esferas da vida sociopolítica, passou a mediar, de forma perene, os nexos entre a sociedade civil e o Estado, as normas e os institutos, os valores e as ideologias.
Introduzido no Brasil nos anos 1930, e mais especificamente e com maior eficácia na ditadura estado-novista (1937-1945), tornou-se política de governo ou mesmo de Estado. O corporativismo pressupunha que a sociedade deveria ser organizada pelo Estado, por meio de corporações econômicas e de critérios que excluíam a representação eleitoral, os partidos políticos, as ideologias liberais ou socialistas, etc. O Estado, no papel de organizador e regulador da sociedade, teria de garantir a harmonia, a paz social e o progresso – antagonismos sociopolíticos e/ou conflitos entre capital e trabalho não eram admitidos. Getúlio Vargas já em 1931 afirmava que isso seria alcançado na medida em que estivessem reunidos e congraçados “plutocratas e proletários, patrões e sindicalistas, todos representantes de classe, integrados no organismo do Estado”.
Resultado exemplar dessa política foi a decretação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. Inspirada na Carta del Lavoro do fascismo italiano, a CLT foi assentada em três pilares – estrutura sindical, Justiça do Trabalho e legislação trabalhista –, tendo como fundamento o corporativismo. Juntamente com a regulamentação das relações de trabalho se criou um sindicalismo vertical e subordinado ao Estado, delimitado pela unicidade e sustentado por imposto compulsório. Esse arranjo institucional, além de implicar o estabelecimento de mecanismos inibidores da organização e da intervenção autônoma dos trabalhadores e também do empresariado, instaurou direitos de cidadania regulados e restritos, do mesmo modo que acarretou a cooptação de parte expressiva da sociedade civil. Tendo sobrevivido a vários testes históricos, a CLT preserva, ainda hoje, seus elementos essenciais, que persistem reavivados por força de poderes e privilégios, mesmo antiquados ou extemporâneos.
Conformado, ao longo de décadas, de modo sub-reptício, ao modus operandi, o corporativismo foi potencializado nos anos 1980, num momento de explosão de movimentos reivindicativos, em reação à compressão imposta pelo regime ditatorial. Nessa conjuntura, houve até mesmo uma impetuosa radicalização de pleitos corporativos, animada pela emergência de um sindicalismo de resultados vigoroso – processo que culminaria na Constituinte de 1988.
A nova Carta, ainda que tenha abrigado garantias essenciais de cidadania, acabou saturada de privilégios e mercês, travestidos de direitos lídimos, por pressão de corporações muito bem organizadas e poderosas. Dentre as novidades corporativas pode-se ressaltar o direito de sindicalização e de greve do funcionalismo público. Esses preceitos impeliram à sindicalização extensiva de órgãos e instituições – sindicalizou-se tudo: prefeituras, governos estaduais e federal, Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, polícias, fundações, institutos e universidades, agências reguladoras, etc. Até o Itamaraty foi sindicalizado.
Consecutivamente, houve um aumento significativo de movimentos paredistas e ações por demandas particularistas, manifestações em defesa de salvaguardas estabelecidas. O paredismo nos serviços públicos constituiu-se no melhor dos mundos – depois de meses sem trabalhar e sem perdas e danos e quaisquer ônus em seus proventos, o servidor pode receber vantagens como aumento de salário e benefícios vários, mas, em geral, nada ou quase nada repõe. As greves conduzidas por um sindicalismo de resultados audacioso e impelido por um corporativismo voraz, que subsistem de mercadejar o patrimônio e os fundos públicos, têm como propósito capital a maximização de interesses e proventos pecuniários.
O apogeu desse processo de solidificação do corporativismo se deu neste início de século, não por acaso, nos governos chefiados pelo Partido dos Trabalhadores – consorciado com partidos fisiológicos e clientelistas –, que esteve norteado, desde seu nascimento, por interesses e instintos sôfregos. Nesses governos se retomaram muitas das diretivas corporativas do varguismo: a cooptação da sociedade civil, em especial dos sindicatos; a gestão do Estado em consonância com as corporações estatais e privadas; a reatualização do nacional-estatismo, concertado com conglomerados empresariais e categorias de trabalhadores; a execução de políticas públicas adequadas a determinados setores socioeconômicos; as ações legislativas de fomento a interesses particulares em detrimento do público, além de outras orientações similares. Concomitantemente, revigorou-se aquela cultura política sincrética (mescla de corporativismo, clientelismo e patrimonialismo) referida no início. O resultado foi evidenciar e/ou ativar concepções e práticas, entre as quais a promiscuidade entre o público e o privado; apropriação de bens e fundos públicos por corporações estatais ou não; transfiguração da ética da responsabilidade em ética de conveniência.
Sem sombra de dúvida, a perpetuação dessa cultura política, da qual o corporativismo constitui um de seus pilares centrais, é uma questão primordial a ser solucionada pelas forças que objetivam a democratização e a publicização do Estado e sua relação equânime com a sociedade civil e política. Infelizmente, entretanto, os candidatos à direção e gestão do País têm colocado o problema de forma lateral ou mitigada e alguns nem ao menos o aventam.
* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
José Antonio Segatto: Infortúnios políticos
A exumação de um anacronismo pelo PT é mero simulacro de um passado infausto
Há momentos em que a História parece repetir-se, reavivando vestígios e elementos do passado. Muitas das ações e proposições histórico-políticas, incluídas as extemporâneas, insistem em sobreviver, em prosseguir influenciando e direcionando a intervenção de organizações, movimentos, protagonistas. Karl Marx, ao analisar o fardo de determinadas ideologias e práxis pretéritas no presente, lembrou certa feita que, em muitos casos e ocasiões, “a tradição de (...) gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”; e posteriormente completou, ao advertir que “somos atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos”.
Uma amostra indicativa desse fenômeno pode ser situada na conduta do Partido dos Trabalhadores (PT) na atual conjuntura. Suas ações e retórica apresentam aproximação e mesmo equivalência às do Partido Comunista Brasileiro (PCB) nos anos 1948-54. Em 1945, no bojo do processo de democratização, o PCB conquistou a legalidade e transformou-se num partido de massas e de caráter nacional-popular.
Chegou a ter 200 mil filiados, adquiriu um porcentual eleitoral significativo, criou uma imprensa com diversos jornais e revistas, conquistou o apoio de extensos setores do proletariado urbano, das camadas médias e da intelectualidade. Fez-se presente na luta pela democracia com uma política de “união nacional, dentro da lei e da ordem, para a consolidação democrática”, assentada num “regime republicano progressista e popular”, como a definiu seu então venerável líder, Luís Carlos Prestes.
O período de legalidade foi, no entanto, curto – os reflexos da guerra fria, juntamente com as pressões de forças conservadoras, acarretaram a ilegalização do PCB (1947). Clandestino e perseguido, isolou-se e adotou uma política sectária, de confrontação e desdém pela liberal-democracia. Enformado por um marxismo dogmático e vulgar, retomou o projeto nacional-libertador com apelo insurrecional. Com uma retórica estridente e intolerante, passou a insultar os adversários chamando-os de “agentes do imperialismo” e/ou “do latifúndio”, “direita fascista”, “traidores do povo”, “vendilhões da pátria”, “escribas da imprensa reacionária”, “lacaios da burguesia”, além de outros termos desabonadores. Essa política começou a ser superada em meados dos anos 1950, quando iniciou um processo renovador – sob os influxos da desestalinização da URSS (1956) – que o levaria a valorizar a democracia, a ação política institucional e a via pacífica para o socialismo.
Fundado na luta contra a ditadura, o PT, por sua vez, foi constituído por segmentos sociais diversos. Generosamente amparado pela mídia, sua política se fundamentou, inicialmente, num radicalismo liberal (contra o Estado), no corporativismo de resultados e no exclusivismo partidário (rejeição de alianças e autoafirmação). Na passagem dos anos 80 para os 90, experimentou metamorfose significativa: incorporou concepções nacional- desenvolvimentistas de base estatal, absorveu contingentes consideráveis de membros da burocracia pública, acomodou-se às vantagens do sindicalismo corporativo, passou a flertar com setores insignes do empresariado, aproximou-se do castrismo e, posteriormente, do bolivarianismo e encetou um projeto de poder. A seguir, alçado ao poder central, governou com um consórcio de partidos fisiológicos e patrimonialistas, por meio da partilha do aparato estatal e de seus proveitos, da cooptação de entidades e movimentos e de políticas públicas clientelistas – sua identidade de esquerda e seu protagonismo impetuoso foram substituídos pelo pragmatismo e pelas conveniências políticas momentâneas.
No momento em que esse arranjo de poder entrou em crise e o PT foi dele excluído, seus dirigentes e militantes, adjuntos e satélites passaram a vituperar os coligados de véspera. Consternados com a destituição do mando, com a autuação de líderes acusados de mercadejar e/ou se apropriar de fundos públicos, com a corrosão de sua credibilidade e com a redução de sua capacidade mobilizatória, reanimaram seu peculiar instinto de animosidade contra os valores, normas e instituições democráticas. Seu vezo persecutório foi extremado com ataques à Justiça (facciosa, a serviço do imperialismo), à imprensa (burguesa, monopolista), ao Congresso (golpista), aos liberal-democratas (neoliberais, direitistas), etc. Com oratória ruidosa, desferiram impropérios de todo tipo contam os que ousaram e ousam não pensar como eles. Para os petistas, esses atos se justificam, pois estamos vivenciando um verdadeiro estado de exceção. A condenação e a prisão de seu “grande líder” – convertido em redentor – haveriam, disseram petistas, de provocar uma comoção inédita no País, com resultados imprevisíveis, que poderia até despertar ímpetos sediciosos em devotos e/ou correligionários e em movimentos populares que, com seus “exércitos” de sem-terra e sem-teto, incendiariam o Brasil.
Essa conduta política rebelde e intolerante parece não ter encontrado ressonância na sociedade – indicativo disso foi a considerável perda de votos e de representação nas eleições municipais de 2016. É também nítido o decréscimo de seu poder mobilizador e de sua faculdade de persuasão político-ideológica, além de ter reduzidas sua inserção e sua influência na sociedade civil e política.
Guardadas as devidas diferenças de época histórica e as particularidades político- ideológicas, bem como de formação e composição de cada um dos partidos em foco, fato é que o PT parece reencarnar muito dos fundamentos da práxis comunista e de sua cultura política, absorvendo concepções e práticas, palavras de ordem e gritos de guerra remotos. Mas se essa política já havia evidenciado seu anacronismo há cerca de sete décadas, sua exumação e concretização no presente é um mero simulacro de um passado infausto.
*José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
José Antonio Segatto: Política e representação
Os problemas do voto proporcional poderiam ser resolvidos, em parte, por medidas simples. Mais uma vez, como tem ocorrido invariavelmente em todos os momentos de crise, a reforma política é aventada como panaceia para todos os problemas do sistema de representação e gestão política do País. Em suas diferentes versões, tanto em sentido estrito (mudanças na legislação eleitoral e de regulação partidária) como lato (alterações na forma de governo), seria condição indispensável para conformar o sistema político à governabilidade e à democracia. Uma das medidas primordiais seria a substituição do voto proporcional pelo majoritário/distrital para a eleição de deputados federais e estaduais.
Seus defensores justificam que seria a melhor maneira de aproximar os eleitores da política – a delimitação espacial das circunscrições eleitorais avizinharia representados e representantes, facilitando a cobrança de uns e forçando a prestação de contas de outros. Além disso, tornaria os pleitos menos custosos, eliminaria as deformações do sistema proporcional, em que o eleitor não tem controle de seu voto, e, o que mais importa, diminuiria a quantidade de partidos, excluindo mesmo as minorias e/ou as pequenas legendas, convertendo a governabilidade em algo mais exequível.
Essas razões que embasam as proposições em prol do sufrágio majoritário/distrital podem ser objetadas em muitos de seus aspectos: 1) a divisão das atuais circunscrições eleitorais (Estados) em unidades bem menores, correspondentes à quantidade de representantes nos Parlamentos, coloca o problema da delimitação de suas fronteiras pelo número de eleitores e a diferença entre os pleitos (federais e estaduais), com quantuns diversos de representantes; os critérios para o redesenho dos distritos podem implicar ordenações arbitrárias de privilegiamento de interesses locais ou regionais e oligárquicos. 2) As eleições majoritárias uninominais, ao eleger candidatos por maioria simples, eliminam minorias (mesmo que expressivas), tendem a resultar em governos unitários e subtraem atribuições dos partidos políticos, fomentando o personalismo. 3) A tese de que aproxima os cidadãos de seus representantes por meio da defesa de interesses locais é falaciosa; os atributos de um deputado federal é o de legislar e tratar de questões nacionais, e não de demandas particularistas ou regionais – o risco que se corre é o de conceber vereadores federais (ou estaduais) ou despachantes paroquiais. 4) É duvidosa a alegação de que o sistema de voto distrital diminui os custos das campanhas; os dados revelam que as eleições majoritárias, mesmo que limitadas espacialmente, são sempre mais caras que as proporcionais. 5) O argumento segundo o qual as eleições por distritos menores amplificariam a eficácia parlamentar e potencializariam a representação contém forte teor ideológico, pois, ao contrário, a probabilidade de gerar correspondência assimétrica entre os votos e a representação é bem mais elevada nos pleitos majoritários do que nos proporcionais – exemplos disso são os sistemas eleitorais distritais norte-americano, inglês, francês e outros.
Seria possível enumerar outros problemas do voto distrital/majoritário e suas impropriedades para a representação política democrática. Acredito, entretanto, que os já enumerados são suficientes para apontar que o sistema de eleições proporcionais, embora imperfeito, tem se mostrado mais equitativo para representar a soberania popular, conforme indicam as experiências – mesmo as propostas híbridas, mescla do voto majoritário uninominal com proporcional de lista fechada, como o sistema distrital misto, não revogam suas vicissitudes.
Ademais, as facções políticas que pregam como imperioso o voto majoritário/distrital o apresentam como uma grande novidade e remédio para os muitos males da política brasileira. Esquecem-se, como que numa amnésia histórica, de que tal tipo de sistemática eleitoral foi utilizada por um longo período no País – obviamente que em outras circunstâncias e/ou época –, no Império e na República, desde meados do século 19 até 1930. Seus resultados não foram nem um pouco promissores – atendeu cabalmente aos propósitos do domínio oligárquico e coronelista e às conveniências políticas de uma elite parcamente democrática.
Substituindo o sistema distrital, o de voto proporcional de lista aberta em circunscrições (distritos) equivalentes aos entes nacionais (Estados) vem sendo praticado há mais de sete décadas e, ao longo desse período, sofreu alterações diversas. É inegável que, não obstante certos aperfeiçoamentos, contém ainda muitas imperfeições. Por exemplo: o fato de o eleitor votar em fulano e, com frequência, eleger sicrano, votar no candidato do partido x e eleger o postulante do y (nas coligações); o constante encarecimento das campanhas e as interferências do poder econômico em seu financiamento; entre outras resultantes indesejáveis.
Esses problemas, entretanto, poderiam ser resolvidos, em parte, por medidas simples como a proibição de coligações nas eleições proporcionais e/ou sua substituição pelo mecanismo de federações partidárias; a troca da lista aberta pela lista fechada flexível, estabelecida em prévias eleitorais partidárias, etc. A estas poderiam ser vinculadas a fixação de uma cláusula de barreira para que o partido tenha direito ao funcionamento legislativo, acesso ao fundo partidário e ao horário eleitoral gratuito; de um fundo para financiamento público de campanhas eleitorais; a correção da desproporção de representação entre os Estados na Câmara e no Senado; etc. Tais medidas, indubitavelmente, seriam providenciais para salvaguardar a operacionalidade dos mecanismos de representação política e da soberania popular, afora regular o processo democrático, dando-lhe maior previsibilidade e legitimidade.
* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp