Joel Pinheiro da Fonseca
Joel Pinheiro da Fonseca: Esquerda precisa superar jogo infantil sobre Bolsonaro e impeachment de Dilma
Prosseguindo o debate com o professor Luis Felipe Miguel a respeito do impeachment de Dilma Rousseff, que completa 5 anos, autor argumenta que a esquerda constrói uma narrativa simples e maniqueísta para atribuir à “direita moderada” uma suposta ruptura do pacto democrático e a vitória de Bolsonaro, fechando os olhos para a crise no governo do PT e para a multidão que foi às ruas contra o partido
Rotular é o jeito mais fácil de não argumentar. No Brasil, então, é uma verdadeira arte: encontre os rótulos adequados, adjetivos e qualificações carregados de avaliação moral implícita, e já está comunicado para seu público quem é o bem e quem é o mal. Resta só contar a história.
Assim faz o artigo do professor Luis Felipe Miguel publicado na Ilustríssima em 16/5. Constrói uma narrativa simples e maniqueísta para jogar no colo da direita moderada brasileira (que não seria sequer moderada, mas radical) a eleição de Bolsonaro, seu suposto filho bastardo.
Foi essa direita —e sua aliada, a mídia— que cooptou os protestos de junho de 2013, que não aceitou a derrota nas urnas em 2014, que rompeu o consenso democrático, fez os protestos pelo impeachment e inventou a Lava Jato. A direita quer negar direitos, recusa a justiça social e mesmo a solidariedade. Em um verdadeiro primor de objetividade analítica, Miguel chega a caracterizá-la de “antipovo”.
É fácil jogar o jogo da responsabilidade. Eu também sei jogar. Se fosse entrar nele, diria que o próprio PT pariu Bolsonaro. Primeiro com a corrupção numa escala que chocou o Brasil. Segundo com a pose incessante de superioridade moral, e mesmo de monopólio da virtude, que jogava todo mundo que discordava de sua agenda no campo dos “antipovo”, polarizando o Brasil desde pelo menos 2010.
Foi a dissonância do discurso intolerante vindo de uma “goela muito aberta” pela corrupção (para usar a expressão de Emílio Odebrecht) que engendrou o ódio cego de tantos milhões de brasileiros pelo PT. Por fim, o partido promoveu uma farsa em 2018 com a falsa candidatura de Lula e com o real candidato, Fernando Haddad, inexpressivo, indo se consultar com seu mentor na prisão. O bebê é seu!
Jogar esse jogo, contudo, é perda de tempo. Primeiro porque, como argumentei anteriormente, os rumos da história são incertos. E segundo porque esse jogo nos fixa na percepção enganosa de que a história se faz entre as narrativas de elites opostas (seja a “direita moderadas” ou o PT), ignorando um ator que facilmente é esquecido justo pela esquerda, que gosta de se ver como seu intérprete oficial: o povo.
Na narrativa de Luis Felipe Miguel, o impeachment foi obra de uma decisão da direita de romper o pacto democrático que vigorava desde a redemocratização. Primeiro é preciso apontar que isso está factualmente errado. O impeachment de Dilma foi o segundo desde a redemocratização. Ou seja, não foi rompimento coisa nenhuma, e sim continuidade com nossa tradição democrática e constitucional, que inclui a possibilidade de retirar um presidente impopular que cometa crime de responsabilidade, como foi o caso de Collor e de Dilma.
O objetivo do “golpe” teria sido, ainda segundo Miguel, “impedir que o campo popular continuasse a ser admitido como interlocutor legítimo do jogo político”. Será? Segundo pesquisa Datafolha de março de 2016, 68% da população era favorável ao impeachment. A popularidade do governo estava ainda pior. Na mesma época, Dilma amargava 10% de aprovação. As multidões nas ruas assustavam e pressionavam o Congresso.
É no mínimo curioso que o suposto “campo popular”, acuado, tivesse tão pouco… povo! Custa a Miguel reconhecer que a queda de Dilma não apenas não contrariou como teve a adesão entusiasmada do “campo popular”.
No artigo de Miguel, sobram atores responsáveis pelos eventos de 2013 a 2018: a mídia, o PSDB, a Fiesp, a direita moderada, a burguesia. Só faltou o povo.
A questão é que o povo real, empírico, de carne e osso, sempre múltiplo, nem sempre deseja as mesmas coisas que seus porta-vozes da esquerda iluminada postulam. Ele tem uma autonomia própria para além das elites de direita ou esquerda que buscam domá-lo. Com as redes sociais, essa autonomia só aumentou.
E assim voltamos a 2013. Não houve um aliciamento da direita por obra da malvada mídia. A mídia já não tinha esse poder. Basta lembrar que jornalistas, especialmente da rede Globo, foram vaiados e atacados pela multidão, assim como representantes de todo e qualquer partido.
Com os fatos incontestes da crise econômica (14 milhões de desempregados e a recessão mais profunda jamais registrada em nossa história) e da corrupção do PT e aliados, era bem compreensível que grande parte do povo quisesse varrer os petistas do mapa em 2016.
Somem-se a isso os crimes de responsabilidade concretos —as pedaladas e a criatividade contábil que só aprofundaram a crise fiscal, e que Miguel nem sequer tenta defender— e temos todos os elementos para o impeachment.
Não foi uma pequena elite de direita que tramou e efetuou o impeachment. Ele foi demandado por uma maioria barulhenta da população, que não raro rejeitava também os cabeças dos partidos de centro-direita, que o apoiaram com alguma relutância (com a consciência de que poderiam facilitar a volta do PT).
Esses líderes não contavam com amor popular. Basta lembrar que Geraldo Alckmin e Aécio Neves chegaram a ser vaiados numa manifestação anti-Dilma, e que a popularidade de Temer, em seus melhores momentos, jamais superou os 10%.
O mesmo povo apoiou majoritariamente as greves dos caminhoneiros que colocaram o governo Temer de joelhos. Bolsonaro nadou de braçada. Por fim, nas urnas em 2018, embora contasse com diversos candidatos (Alckmin, Amoêdo, Meirelles), a direita moderada também perdeu feio.
Volto ao ponto central do meu artigo original: temos um forte sentimento antissistema, uma insatisfação profunda com a vida institucional brasileira e com a política como ela é feita. Bolsonaro foi capaz de encarnar esse sentimento.
De minha parte, tenho a consciência tranquila —sim, esta consciência supostamente extremista, antipovo, que nega a solidariedade e ainda quer criminalizar a esquerda— por ter apontado e combatido o movimento pró-Bolsonaro desde 2016, quando ele já exaltava Ustra e antagonizava com Jean Wyllys na Câmara.
Já fui mais radical pró-mercado, mas a vida intelectual é constante transformação. Ao longo desse processo, aprendi muito com autores e interlocutores de todos os vieses, inclusive de esquerda. E sei que o ponto de partida para qualquer troca é não bloquear a discussão desde o início, acusando as motivações alheias, verdadeiro cacoete marxista.
Grande parte da esquerda brasileira ainda está presa ao jogo infantil de tentar colar todo mundo que não compactuou com o PT no campo filobolsonarista. É confortável atribuir as piores intenções para não ter que discutir a realidade.
Houve o petrolão? É um avanço prender políticos e empresários corruptos? É preciso resolver o desequilíbrio fiscal brasileiro? E enfrentar as causas de nossa pouca produtividade no plano global? Não adianta vir com os rótulos de “antipovo” e “contra direitos”. Ou talvez pensem que quebrar o país, estourar o desemprego, derrubar nossa produtividade, fazer controle político de preços e maquiar números, isso sim, seja ser pró-povo!
Esse primarismo mata o debate no Brasil. Não é à toa que, hoje, a oposição eficaz ao governo Bolsonaro venha justamente da centro-direita, no Congresso e nos governos estaduais. Teto de gastos ou expansão fiscal, mercado de trabalho mais rígido ou mais flexível, abertura ou fechamento comercial, direito penal mais garantista ou mais duro com a corrupção; todos são plenamente defensáveis dentro de uma estrutura democrática. Não há que se condenar a priori as supostas motivações (e portanto a legitimidade) de cada um.
Felizmente, parece que o surto que elegeu Bolsonaro começa a enfraquecer. Lula, por outro lado, se fortalece. A pergunta é: seu projeto de poder continuará fechado nesse solipsismo esquerdista ou voltará ao pragmatismo do diálogo de seu primeiro governo?
Vale lembrar que o Bolsa Família foi elaborado em colaboração pragmática com economistas supostamente “neoliberais”, “antipovo” —Marcos Lisboa, Ricardo Paes de Barro e outros—, contra os desejos de quadros históricos do partido. Foi o maior sucesso do PT.
Lulistas viscerais e inteligentes como Luis Felipe Miguel podem ajudar a qualificar o debate ou, viciados na ilusão da própria superioridade moral, acusar tudo e a todos que não se curvarem. Lula e Bolsonaro podem ser muito diferentes, mas o fanatismo de seus seguidores é parecido.
Enquanto culpam os adversários —o Judiciário, a CIA (ou a ONU), a elite, a imprensa—, se aliam a Renans, Liras e Sarneys para governar. Só não se esqueçam de que o povo está vendo. E não se espantem se ele não comparecer.
*Joel Pinheiro da Fonseca é economista, mestre em filosofia pela USP e colunista da Folha
Fonte:
Folha de S. Paulo
Joel Pinheiro da Fonseca: Quarentenas e isolamento são medidas conservadoras?
Nossos antepassados reagiram às epidemias de maneiras similares às nossas
Vivemos em tempos de decadência moral e espiritual. Os homens perderam a coragem. “Onde foram parar os machos?”, clama ávido um famoso assecla do bolsonarismo. E não pra menos! Pessoas em casa, fechadinhas, sem trabalhar, ganhando auxílio, com medo de um minúsculo vírus; isso não seria motivo de vergonha a nossos corajosos ancestrais?
Em uma variação do mesmo tema, o lamento ganha contornos espirituais. O homem moderno esqueceu-se de Deus e da vida eterna, e por isso é tão neuroticamente obcecado com a saúde. Afinal, a morte vem para todos. Por fim, corre o argumento, medidas de isolamento violam nossos santos direitos individuais, que não admitem restrição nenhuma. Não foi assim que o Ocidente se ergueu?
É bela a disposição de nossos conservadores em querer proteger nossa civilização. Mas é uma pena que ela não venha acompanhada de qualquer conhecimento histórico sobre essa civilização.
Ao contrário da imaginação conservadora, nossos antepassados de carne e osso reagiram às epidemias de seu tempo de maneiras similares às nossas. A própria ideia de uma quarentena aplicada a navios e caravanas que chegam de fora durante uma peste foi uma inovação da peste negra. E as medidas não paravam por aí.
Para impedir que a infecção saísse de uma cidade e fosse para outra, as autoridades impunham um cordão sanitário ao redor da cidade infectada: ninguém mais podia sair até que a epidemia passasse.
Proibição de aglomerações e festas, de jogos e teatros (aliás, Shakespeare escreveu seus poemas mais famosos durante uma longa quarentena sem teatro de 1592 a 93). Mesmo procissões religiosas foram restritas em diversas ocasiões, e muitas igrejas fechavam as portas. Nos piores momentos, os próprios fiéis deixavam de ir.
Algumas epidemias foram surpreendentemente bem documentadas. É o caso da peste de 1665 em Londres. Seguindo a prática comum, qualquer pessoa visivelmente infectada era imediatamente apreendida e levada a uma casa de pestilência, onde provavelmente morreria, para não infectar os saudáveis.
No caso de casas suspeitas, a ordem das autoridades era pintar um X vermelho na porta e colocar um guarda na rua para impedir que qualquer morador saísse delas.
Mas nem só de maldade era feita a política: para ajudar os desesperados e as cidades isoladas, havia coletas adicionais de impostos e doações de alimento. Exatamente como os auxílios que tantos países, inclusive o Brasil, utilizaram durante esta pandemia.
No início do século 20, nosso conhecimento já tinha avançado bastante. Quando a gripe espanhola tomou o mundo de assalto em 1918, as autoridades de vários países impuseram medidas muito similares às que vemos hoje: fechamento de escolas, restaurantes, comércios não essenciais, igrejas, teatros e aglomerações públicas em geral. Uso de máscara de pano para conter o contágio.
Medidas extremas para lidar com emergências de saúde pública estão conosco desde a Antiguidade. Não são invenção de tiranos e comunistas. A partir do momento que o perigo passa, as restrições vão embora. É o que já vemos em Israel, na Inglaterra, na Austrália.
Os delicados “conservadores” de hoje, para quem uma máscara de pano parece um sacrifício duro demais, associam essas medidas à tirania comuno-globalista. Mal sabem que são todas parte de sua amada civilização ocidental.
*Economista, mestre em filosofia pela USP.
Joel Pinheiro da Fonseca: A ascensão do terrorismo bolsonarista
Temos o coquetel perfeito para novos surtos com consequências letais
Em 17 de março, um bombeiro ateou fogo à sede de um jornal no interior de SP. O motivo? O jornal defendia medidas de isolamento social. No fim de março, em Salvador, um PM teve um surto psicótico e passou a ameaçar cidadãos e colegas de trabalho. Imediatamente depois de sua morte, foi elevado à condição de herói nos meios bolsonaristas, inclusive pela deputada Bia Kicis. No domingo (11), no aeroporto de Guarulhos, outro PM em surto psicótico fez uma comissária de bordo refém. Casos como esses estão se tornando mais comuns.
E não são só militares. Também em março, um empresário do interior paulista fez um vídeo, armado, com ameaças ao ex-presidente Lula. O governador de SP, João Doria, decidiu se mudar de sua casa para o Palácio dos Bandeirantes depois das ameaças de manifestantes bolsonaristas.
A pandemia e o isolamento deixam todos nós sob estresse constante. Some-se a isso discursos extremistas e teorias da conspiração, e temos o coquetel perfeito para novos surtos com consequências letais.
Bolsonaro e seus cabos eleitorais não precisam incitar violência diretamente contra alguém. Se o fizessem, sofreriam um processo criminal. É o que ocorre quando um deles, como o deputado Daniel Silveira ou a militante Sara Winter, se exalta e perde a linha. A receita é mais difusa, mas o resultado é similar e conta com vistas grossas das autoridades.
Doutrine a cabeça de seguidores com teorias da conspiração, paranoia e maniqueísmo político. Eleja alguns adversários como alvos preferenciais do ódio. Conclame a uma atitude genérica de resistência, revolta, a alguma “ação” não especificada para levar à vitória; deixe tudo no ar. Boa parte do público alvo entenderá a mensagem. Uma minoria de desequilibrados irá colocá-la em prática. É só aguardar. Quando a tragédia previsível acontecer, faça cara de paisagem, lamente o ocorrido e siga adiante, na esperança silenciosa de que os fanáticos se encarregarão de intimidar qualquer crítico.
Em privado, Bolsonaro revela suas reais intenções sem medo. Na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, depois tornada pública pelo STF, disse com todas as letras que queria o povo armado para resistir às ordens de governadores. Seu sonho se aproxima da realidade com o decreto de armas que entraria em vigor nesta terça (13) e teve trechos suspensos pela ministra Rosa Weber.
No que depender de Bolsonaro, a produção e venda de armas e munições no país fica mais facilitada e menos rastreada. O laudo de capacidade técnica para se armar será emitido, não pelas autoridades, mas por clubes de tiro. O limite de armas e munições que cada um pode ter deve ser generosamente aumentado. Para atiradores, chega a 60 armas. E poderão ainda andar com elas carregadas por aí. Milicianos agradecem.
Em post desta segunda (12), diz Bolsonaro: “Hoje você está tendo uma amostra do que é o comunismo e quem são os protótipos de ditadores”. Sim, no discurso bolsonarista, as medidas restritivas têm como objetivo implantar uma ditadura comunista.
Ao fim do post, conclui o presidente: “Pergunte o que cada um de nós poderá fazer pelo Brasil e sua liberdade e ... prepare-se”. O recado está dado, e os meios para se “preparar” também. População armada e alimentada com propaganda sediciosa em seus celulares. Policiais chamados ao motim. Quantos desses jovens PMs, por sinal, serão alunos de Olavo de Carvalho, que oferece seu curso —nada mais do que fanatização sectária— gratuitamente a policiais desde 2019? Como se não bastasse a Covid, agora temos que lidar também, e cada vez mais, com o terrorismo bolsonarista.
Joel Pinheiro da Fonseca: Nas redes sociais, toda política se resume à comunicação
Tudo o que Bolsonaro faz segue o critério único da popularidade (ou sobrevivência) imediata
Não é possível que alguém ainda acredite numa mudança de postura do presidente na reunião com governadores. Se nem mesmo o mais trivial dos atos de proteção da vida, o uso da máscara, Bolsonaro consegue defender, pode esquecer qualquer apoio às medidas de isolamento. A única certeza é que Bolsonaro jamais tomará uma atitude impopular junto à opinião pública, por mais importante que seja. Ele não precisa.
Tudo o que Bolsonaro faz segue o critério único da popularidade (ou, em alguns casos, sobrevivência) imediata. A política não depende da realidade em si, e sim das percepções. Bolsonaro e seus cabos eleitorais foram os que primeiro souberam adaptar essa velha máxima à realidade das redes sociais e dos aplicativos de mensagens.
A fragmentação das fontes de informações causada pelas redes permite, paradoxalmente, encalacrar grandes segmentos em bolhas informacionais que repetem sempre a mensagem desejada. Consumindo sites de extrema direita e recebendo mensagens em seus grupos de WhatsApp e Telegram, os apoiadores são alimentados com um fluxo ininterrupto de fake news pró-governo. Com isso, fazer intervenções bem-sucedidas na realidade é uma estratégia politicamente inferior a simplesmente investir na comunicação.
No mundo real, de decisões e entregas, Bolsonaro negligenciou a vacina e, pressionado, correu tardiamente atrás das doses, permitindo milhares de mortes desnecessárias neste início de ano. Em vez da vacina, promovia a cloroquina, remédio sem efeito cuja promessa de eficácia deixou as pessoas menos cautelosas. Sabotou os esforços do governo de SP de desenvolver e distribuir a Coronavac, que até agora tem sido nosso principal imunizante. Vivemos a piora acentuada das mortes e o colapso da Saúde, o Brasil transformado num criadouro vivo de novas variantes, enquanto o mundo se recupera. Fracasso total.
No mundo da comunicação do governo, no entanto, ele sempre foi pró-vacina e nosso desempenho é causa da inveja mundial. Uma das últimas fake news a que tive acesso diz que Bolsonaro, num lance de mestre, enganou a “esquerda” e trouxe especialistas de Israel para comandar a produção de vacina em solo nacional. Não duvido que a refutação dessa fake news chegue nos próximos dias. Mas os seguidores já terão esquecido e estarão na próxima. Quem se lembra, hoje, do milagroso spray nasal, também israelense? (Curiosamente, Israel, um dos países mais bem-sucedidos no combate ao Covid, usou um mix de lockdown e vacinação em massa; isso nosso governo não copia).
É claro que nenhuma estratégia é perfeita. Apesar da bolha de realidade alternativa produzida pelo bolsonarismo, há fatos que insistem em invadir a percepção dos eleitores: mortes de parentes, desemprego, queda na renda, altas dos preços de alimentos e combustíveis.
Mas o trabalho de associar esses fatos ruins ao governo federal é difícil e tortuoso. Afinal, como o ministro Paulo Guedes alegou, a culpa do dólar estar acima de R$ 5 é da esquerda (sempre ela!), que fala mal do competente Bolsonaro no exterior. A liga de confiança mínima no jornalismo profissional e na ciência foi perdida.
Em algum momento a realidade cobrará seu preço também na percepção do eleitorado. Ele e todos os seus aliados neste circo de mentiras irão para a vala comum que é seu destino. As armas de comunicação em cujo uso ele foi pioneiro, contudo, continuarão à disposição do próximo astuto e inescrupuloso o bastante para dominá-las. E não precisa nem sequer ocupar a mesma posição no espectro ideológico. Bolsonaro passará, as fake news não.
Joel Pinheiro da Fonseca: Mudar de ministro não adianta; o problema é o presidente
Mudar o rumo do governo seria admitir que Bolsonaro foi diretamente responsável por dezenas de milhares de mortes
Os protestos pró-Bolsonaro que tomaram o Brasil neste domingo foram marcados por muito fanatismo, muitos pedidos de golpe militar e muita teoria da conspiração.
O sentimento de revolta que movia os participantes, contudo, é em parte compreensível. Voltar a fechar grande parte da economia —o que significa falir negócios, destruir empregos, desamparar famílias, aumentar o estresse doméstico— é desesperador. Só uma situação muito crítica justifica esse tipo de medida drástica.
Se ainda não está claro para alguém, a situação está crítica. O estado de São Paulo, por exemplo, triplicou os leitos de UTI disponíveis, e mesmo assim os internados logo excederão a capacidade do sistema.
Outros estados vivem situação similar. Dos pacientes de Covid-19 que são internados em UTI, mais da metade sucumbe. O único jeito de impedir essa tragédia de aumentar ainda mais é reduzir as aglomerações e, paralelamente, acelerar o tanto quanto possível nossa única porta de saída: a vacinação em massa.
Para os manifestantes, as medidas de isolamento de governadores são um plano para se capitalizar politicamente e contrariar o presidente. Se fosse, seria o plano mais estúpido da história. Não há nada mais impopular do que impor medidas duras sobre a população. Quem tenta se capitalizar politicamente é quem vê a tragédia chegando e nada faz, exceto, pela terceira vez na pandemia, mudar seu ministro da Saúde.
Neste momento, não sabemos o que esperar do sucessor de Pazuello, o presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Marcelo Queiroga. Antes, especulou-se sobre a médica Ludhmila Hajjar, profissional competente e ética. Durante a pandemia, ela defendeu as medidas de isolamento, foi contra a promoção de cloroquina, foi favorável ao uso de máscara e combateu a politização da doença. Ela trabalha com base na ciência. Ou seja, é diametralmente oposta a tudo que o governo federal fez e faz.Pazuello foi um péssimo ministro da Saúde. Com efeito, ele jamais deveria ter sido ministro. Assumiu o cargo interinamente depois da saída de Nelson Teich, quando ficou claro que nenhum médico sério estaria disposto a assumir a vaga, que trazia apenas uma condição: submissão total aos desejos do presidente.Pazuello mostrou-se submisso e por isso ficou. Suas trapalhadas mortais exasperaram o Brasil. Sua troca, porém, será, na melhor das hipóteses, não mais do que um paliativo. O real problema da Saúde não é o ministro, e sim o presidente da República.
Mudar o rumo do governo seria admitir que o presidente foi diretamente responsável —não por ignorância, e sim por má-fé— por dezenas de milhares de mortes. Bolsonaro não mudará; não vai em momento nenhum assumir a responsabilidade do cargo ou algo que o valha. Continuará igualmente inepto e mal-intencionado. Precisará, portanto, de um novo Pazuello. O que está em jogo não é uma medida ou outra; é a própria essência do bolsonarismo, um movimento de fanatização das massas para permitir que Bolsonaro continue no poder e siga agindo contra a população impunemente. No momento em que ele abandonar o discurso vitimista e for julgado por seus resultados, o projeto implode.
A única possibilidade de mudança virá caso Bolsonaro aceite entregar o ministério ao centrão. Zelar pela saúde pública é impossível; jogar o ministério mais rico de todos nas mãos dos interesses fisiológicos do Congresso, aí sim, pode acontecer. E quem negará que já seria um avanço? O Brasil atual só nos permite sonhar baixo.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Joel Pinheiro da Fonseca: Ninguém quer o segundo turno dos pesadelos, mas caminhamos para ele mesmo assim
Estamos tão viciados na dicotomia Bolsonaro-PT que não largamos dela
Em breve descobriremos se a decisão do ministro Fachin de anular quatro processos contra Lula por um erro de jurisdição (que já tinha sido discutido no passado) veio a favor ou contra Lula, a favor ou contra Moro, para salvar ou matar a Lava Jato.
Tudo está em aberto, a depender da velocidade do tribunal do Distrito Federal e da segunda instância. Se os julgamentos demorarem, a vitória é de Lula, que concorrerá em 2022. Se forem rápidos, Lula voltará a ser ficha-suja, dessa vez sem a esperança de uma reversão graças à suspeição de Sergio Moro. Uma decisão judicial deveria ser completamente alheia à política. Mas a instabilidade, arbitrariedade e casuísmo das decisões no Brasil obrigam que a gente as interprete apenas dessa maneira.
Seja como for, essa reviravolta monocrática, ainda que coloque tudo de volta no mesmo lugar, reacendeu nos corações e mentes aquela suspeita chata, que buscamos afastar e que, como uma mosca, se recusa a ir embora: a de que, em 2022, ficaremos entre Bolsonaro e PT.
Os males de Bolsonaro dispensam apresentação. Estamos há dois anos sob o governo mais inepto que este país já viu, com um presidente que é fonte constante de instabilidade e ataques às instituições. Educação, saúde pública e meio ambiente jogados ao fogo; o Brasil, um pária internacional; o debate público envenenado por mentiras numa escala inédita; perseguição à imprensa; a tal agenda de reformas já com o pé na cova.
Lula, por sua vez, traz um PT não só sem a famosa “autocrítica”, mas empedernido em seus piores crimes. Pelo discurso partidário, não houve mensalão nem corrupção na Petrobras ou junto às empreiteiras. Foi tudo uma criação da mídia e da direita e chegou a hora da desforra. Nas propostas, é populismo na veia: da economia ao controle da mídia.
É quase impensável Bolsonaro não ir pro segundo turno. Vivemos o pior momento da pandemia em que, sem figura de linguagem, Bolsonaro matou ao menos dezenas de milhares de pessoas. Se os seus 30% não o abandonaram até agora, é preciso muita fé para imaginar que o abandonarão depois. A chance de impedir o Bolsonaro-PT, portanto, está em alguém superar o candidato do PT no primeiro turno.
Pelo que as pesquisas mostram, há uma chance. Se o voto da esquerda for fragmentado e o centro se unificar em um candidato (que concentre os votos hoje pulverizados entre Moro, Doria, Mandetta, Huck) há um caminho para alguém de fora da polarização ir para o segundo turno. Outro caminho é Ciro conseguir alguns votos do centro e conquistar parte da esquerda que iria para o candidato do PT. Só não é provável.
Se Lula for candidato, fica ainda mais difícil. Lula concentra os votos que estariam dispersos na esquerda. Isso mata a chance de um nome de centro-esquerda como Ciro. Bolsonaro também se fortalece com Lula candidato, o que dificultará a vida dos demais nomes de centro.
O nome que poderia mais naturalmente se colocar ao mesmo tempo contra Lula e Bolsonaro e ainda reivindicar o legado da Lava Jato —hoje enterrada por uma combinação dos três Poderes— é Sergio Moro, mas ele parece determinado a se omitir do debate político.
PT e Bolsonaro, se acontecer, não será uma escolha difícil. Cada um de nós já sabe muito bem como votaria. Mas colocar-nos nessa escolha já é uma derrota. Estamos tão viciados na dicotomia e tão descrentes de qualquer terceira via que não largamos dela. Guiamos para o precipício, vemos o precipício na nossa frente, mas não mudamos a rota.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Joel Pinheiro da Fonseca: Cercear extremismos desonestos faz bem ao debate público
Sem um chão comum na verdade objetiva, discussão na sociedade perde sua razão de ser
As empresas de redes sociais, bem como os Estados nacionais, têm tomado medidas que na prática limitam o debate público. Negacionismo, cloroquina, desejo de matar ministros; tudo isso vem sendo cerceado. Devemos nos preocupar pela liberdade de expressões tolhida?
A ciência, e o pensamento humano de maneira geral, precisa do contraditório para progredir. A defesa de hipóteses minoritárias, teses ousadas e mesmo dissidentes é benéfica para o conhecimento. Por vezes, a posição minoritária pode estar certa. Mesmo quando errada, pode ter alguns elementos corretos, ter identificado falhas reais na tese dominante. E, mesmo quando a tese majoritária está correta, a necessidade de defendê-la fortalece os argumentos a seu favor.
Uma das características da real discussão de ideias é que ela se dá longe da pressão popular. Seu objetivo é a verdade (nunca plenamente alcançada), e não a popularidade, o dinheiro ou o poder. Ela se dá prioritariamente entre especialistas e outros interlocutores já familiarizados com a fronteira do conhecimento. Esses são sempre poucos, ao contrário do grande público, incapaz de acompanhar o estado atual da discussão.
Muito diferente dessa discussão abstrata é o debate público, que visa persuadir milhões. Aqui, a força da argumentação pura vale menos do que a habilidade retórica de tocar os sentimentos dos leitores e espectadores.E ele está quase sempre ligado às decisões práticas que a sociedade tomará e que trarão impactos reais.O debate público também ganha com a divergência. É no exercício da discussão que as pessoas aprendem a pensar melhor. E como vivemos numa democracia, é o entendimento imperfeito do público que balizará as decisões da gestão pública.
Ele não se presta, contudo, a resolver divergências intelectuais. A opinião da maioria é um péssimo juiz da verdade de qualquer tese minimamente complexa. Assim, trazer a esse público teses dissidentes incapazes de se sustentar perante especialistas, munidas apenas de artifícios retóricos para promover a adesão sentimental da maioria, é uma prática desonesta.
Não há problema nenhum em se fazer um estudo acadêmico sobre a eficácia da cloroquina ou do uso de máscaras no combate à Covid, caso algum pesquisador julgue-o relevante.
Agora, defender aguerridamente a cloroquina ou atacar as máscaras nas redes sociais e em jornais de grande circulação é desonesto e prejudicial.
Se os principais participantes do debate público não se comprometem a se pautar pelo estado atual da discussão entre especialistas, criam mundos paralelos de desinformação.
O único resultado possível é a polarização da sociedade em grupos cada vez mais incapazes de se comunicar. O conhecimento se perde em meio aos ruídos da política.
No plano do conhecimento, da discussão ideias, a liberdade deve ser total. E não há necessidade alguma de chegarmos a consenso; podemos passar a eternidade discordando, sempre com argumentos melhores, com enorme prazer nessa empreitada.
No plano do debate público, contudo, decisões concretas impactarão a todos nós.
A desonestidade é sempre ruim, mas em momentos de calamidade, nos quais uma crença equivocada pode levar a milhares de mortes, torna-se intolerável. O próprio debate público, sem um chão comum na verdade objetiva, perde sua razão de ser. O cerceamento do extremismo desonesto é bem-vindo.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Joel Pinheiro da Fonseca: Redes sociais aceitaram sua responsabilidade, mas precisam de critérios mais claros
Se critério das empresas for a preferência ideológica ou pressões sociais do momento, coitada da liberdade de expressão
A invasão do Capitólio por extremistas, apesar de sem precedentes, não foi inesperada. É resultado preparado por anos de fake news, desinformação, discurso de ódio e teorias de conspiração nas redes sociais. Depois da longa negligência, a resposta das redes foi rápida. Donald Trump está banido da maioria delas, assim como, aparentemente, centenas de outros influenciadores de extrema direita.
Com a consolidação de um oligopólio nas redes —Google, Facebook e Twitter controlam todas as principais— essas empresas passam a ter um poder similar ao de grandes grupos de mídia no passado: o poder de varrer uma opinião ou pessoa do debate público pelo mero silêncio. Basta não dar espaço para alguém se expressar que essa pessoa desaparecerá da discussão e das mentes do público. Sem Twitter e fora da presidência, o dano que Trump pode causar é drasticamente reduzido. Quanto a influenciadores que nunca tiveram altos postos na política ou na mídia, sua capacidade de influenciar o debate cai a próximo de zero quando são banidos das redes.
Há, no entanto, diferenças. Na mídia tradicional, o poder de dar voz e silenciar era exercido na seleção de quem teria o limitado espaço da página de um jornal ou na grade de uma TV. A rede social, ao contrário, seleciona os poucos que não terão espaço, pois nela cabe todo mundo.
A decisão de excluir alguém de algo a que todos têm acesso exige uma justificativa muito mais sólida do que a de dar a alguns privilegiados algo que é escasso. No caso de Trump, sobram justificativas válidas: seus tuítes pregavam o descrédito de instituições fundamentais da democracia americana, encorajavam sedição e insurreição. Além disso, por seu cargo e número de seguidores, sua voz é poderosíssima em termos de possíveis consequências práticas. Se um zé-ninguém conclama a derrubada do Congresso, ninguém dá ouvidos. Se é o presidente da República, as mesmas frases se tornam armas perigosas.
Num primeiro momento, a perda de espaço nas redes sociais principais indicava que os extremistas iriam para redes sociais menores, como o Parler. Lá, embora a radicalização seja levada a níveis verdadeiramente alucinados (muitos dos que invadiram o Capitólio são figuras do Parler), a capacidade de influenciar as massas é muito menor. Só que mesmo esses redutos de extremismo estão sendo desbaratados: com boicote de Google, Apple e Amazon, o Parler não sabe se continuará a existir.
O sentimento de vitória esmagadora contra as forças do mal é uma delícia. Mas não é um bom guia. Há indícios de que as redes sociais são muito mais intolerantes com o extremismo de direita do que com o de outras variantes. Que Donald Trump tem sido tratado de maneira mais dura até do que o aiatolá Khamenei, cuja conta de Twitter já pregou o fim de Israel e, mesmo assim, não foi suspensa.
As redes estão se conscientizando da responsabilidade de não permitir que qualquer loucura —ainda mais com consequências perigosas— seja veiculada em suas plataformas. Mas para que isso seja feito de forma justa e evite abusos, precisam desenvolver critérios e mostrar transparência e isonomia em sua aplicação. Se o critério das empresas for a preferência ideológica de seus diretores somadas às pressões sociais do momento, coitada da liberdade de expressão. Hoje, o alvo é justo. Amanhã pode não ser.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Joel Pinheiro da Fonseca: Bolsonaro prefere prolongar a pandemia a beneficiar Doria
Esperar uma conduta digna e racional do presidente virou utopia
Imagine um país no qual a descoberta de uma vacina salvadora para a pior epidemia do século contasse com o apoio do presidente, e não com a sabotagem ativa de seu governo e da rede de bajuladores profissionais. Sim, estou ousado na utopia.
Lá atrás, no início da pandemia, Jair Bolsonaro e João Doria fizeram cada um a sua aposta de vacina: um no consórcio da Fiocruz com a AstraZeneca, o outro no do Butantan com a Sinovac.
Não tinha como saber qual ficaria pronta antes; era questão de sorte. Calhou de ser a vacina de SP, que está mais avançada no processo de testagem.
Era natural de se esperar que aquela que ficasse pronta antes traria algum ganho ao político que nela apostou. Isso é do jogo. O governo Bolsonaro tinha, ademais, a faca e o queijo na mão para partilhar com Doria os louros dessa vitória. O ministro da Saúde até tentou fazer seu trabalho: negociou a compra de doses da Coronavac pelo governo federal (desde que ela fosse devidamente testada e aprovada) e já apontava a direção: ela seria a vacina do Brasil, não de um estado específico.
Bolsonaro não gostou. Para negar qualquer holofote a um possível futuro rival, ele prefere deixar a pandemia correr solta.
Apoiadores de Bolsonaro atacam o governo de São Paulo por não ter aguardado a autorização da Anvisa antes de colocar prazos em seu plano de vacinação.
Ora, se se pautasse pela lerdeza proposta pelos críticos —fizesse, em suma, como o governo federal— o governo de São Paulo estaria traindo a população. É preciso que tudo já esteja pronto e planejado para quando a Anvisa finalmente liberar a aplicação. Se deixar as providências para depois, aí é que não teremos vacina tão cedo.
Em um texto particularmente alucinado, o assessor internacional de Bolsonaro, Filipe Martins, disse que os atos de Doria o alinham à "tirania global". Ter um plano para vacinar a população (inclusive pessoas de outros estados) e comprar doses da vacina. Que tirania terrível!
Só não é tão terrível quanto a omissão criminosa de Bolsonaro. Não tem plano de vacinação estruturado, não comprou os insumos para vacinar a população, não tem doses de vacina em quantidade.
Segundo informações da BBC, as compras de seringas, algodão e outros insumos já estão atrasadas. Mesmo que a licitação seja concluída ainda em dezembro, serão de 60 a 90 dias até que a compra seja entregue. Ou seja, perder-se-ão dias valiosos.
Todo mundo é político: Doria não menos que Bolsonaro. O grande teste é até onde se está disposto a sacrificar outros valores em nome do ganho político. Para um líder comprometido com o bem comum, haverá certas coisas que ele não estará disposto a fazer para ganhar mais poder. Para um projeto tirânico, não há limite: vale tudo para abocanhar uma fatia maior ou para prejudicar um adversário, o que dá no mesmo.
Agora a bola está com a Anvisa. Não acredito que ela seria capaz do crime de atrasar propositalmente a certificação de uma vacina apenas para agradar ao chefe do Executivo.
Graças a legislação aprovada pelo próprio Bolsonaro no início da pandemia, no entanto, já existem caminhos legais para aplicar a vacina em caráter emergencial caso a Anvisa demore.
Para os torcedores do presidente, cabe indagar: vale a pena —até mesmo do ponto de vista político— comprar essa briga e tentar barrar na Justiça uma vacina que pode salvar milhões? Eu já não duvido de nada. Esperar conduta digna e racional virou utopia.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Joel Pinheiro da Fonseca: O Brasil optou pela política, mas será a velha ou a nova?
População mostra que os surtos revolucionários duram pouco
Nas eleições municipais, o Brasil voltou à velha política. Sei que o termo é criticado. Alguns propõem que a distinção seja entre "boa" e "má" política, e não "velha" e "nova". A palavra importa pouco, desde que estejamos de acordo sobre a coisa: o fato de que uma boa parte da classe política nacional vive de negociar interesses partidários e individuais por mais poder, mais verbas e mais visibilidade, deixando a população de fora (exceto para ganhar voto).
Diálogo, negociação, saber ceder aqui para obter ali; são virtudes necessárias para uma política que funcione. Querer substituir isso pelos gritos raivosos de um chefe intransigente pode alegrar uma parcela do eleitorado, mas é receita certa para, na melhor das hipóteses, frustração e ineficácia (e, na pior, violência e ditadura). Mas essas virtudes políticas precisam servir a um fim que não é a própria política. E isso ainda não conseguimos fazer.
A história brasileira mostra a preferência pela negociação e conciliação sobre a ruptura e o conflito. Isso não é, em si, bom nem mau; é a característica que salta aos olhos na história brasileira. Tem lado positivo: evitamos os piores derramamentos de sangue, os mergulhos em ideologias alucinadas e grandes líderes onipotentes. E tem o lado negativo: a mudança demora mais. É tudo feito parcialmente, para contemplar também os interesses de quem perdeu. Tanto o mal quanto o bem saem incompletos.
Nossa independência teve conflitos, mas nada que se comparasse à independência americana, da América hispânica ou do Haiti. Idem para a abolição da escravidão. Na hora de passarmos para a República, não matamos nosso monarca, como França ou México. Pelo contrário, sustentamos seus descendentes até hoje.
Nossos períodos ditatoriais, por mais brutais que tenham sido, não se comparam em violência com as ditaduras à direita e à esquerda do resto do continente. Tampouco nosso culto a grandes líderes tem algo que se aproxime de peronismo ou chavismo. Poucos estão dispostos a matar por uma causa ou líder. E absolutamente ninguém está disposto a morrer. Há espaço para todos os grupos que ambicionam o poder; menos para o grosso desarticulado da população.
Não foi à toa que a "classe política" ganhou reputação ruim. É claro que existem representantes sérios, mas um número grande o suficiente e visível o suficiente deu mostras de estar, ao longo das décadas, no jogo político apenas para melhorar sua posição. A corrupção é parte disso, mas não é todo o problema. Mesmo estritamente dentro da lei, uma política profissional que busque apenas os interesses de seus participantes está falhando gravemente na sua função primordial que é servir a sociedade.
É inútil sonhar com uma política na qual não haja, também, negociação de interesses. Na verdade, ela é em alguma medida desejável: sem poder, sem cargos, sem recursos, nenhum político ou partido conseguirá implementar as medidas que beneficiem os eleitores. Estamos fadados a fazer política. O próprio governo Bolsonaro, a essa altura, abandonou suas pretensões revolucionárias para deitar e rolar gostoso com o centrão. Mas faz a "velha" (ou "má") política: negocia sobrevivência, não propostas.
A população mostra que os surtos revolucionários duram pouco; logo buscamos líderes capazes de conversar e chegar a consensos. Mas se eles não entregarem resultados, o sonho de ruptura voltará. Num mundo que se rasga em meio à polarização e a atomização promovida pelas redes sociais, a preferência nacional por negociação e diplomacia vem bem a calhar. Mas apenas se seus líderes souberem conciliar essas virtudes com algo além de seu próprio interesse.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Joel Pinheiro da Fonseca: Na disputa França x Brasil sobre Amazônia, Bolsonaro faz gol contra
Somos, por pura mesquinhez do governo, o bandido dessa história no mundo
Para o governo Bolsonaro, o problema ambiental é um problema de comunicação: como emplacar uma narrativa favorável ao Brasil em meio a narrativas negativas que circulam pelo resto do mundo.
É como se não existisse a realidade objetiva, o problema concreto do desmatamento e das queimadas. Na falta de qualquer interesse de resolvê-lo, o desafio é como fazê-lo desaparecer pelo uso do discurso.
Na semana passada, em mais uma rodada dessa estratégia de marketing, Bolsonaro disse que iria anunciar publicamente os maiores importadores de madeira ilegal brasileira. França e Alemanha estavam na mira.
O contexto é a relutância europeia em ratificar o acordo comercial UE-Mercosul. Bem sabemos que a França procurará pretextos para afundar o acordo e proteger seus agricultores. Bolsonaro entrega esses pretextos de bandeja. Voltou atrás na ameaça, mas o mal-estar ficou.
França, Alemanha e outras potências podem e devem ajudar o Brasil a combater o tráfico de madeira ilegal e o desmatamento em geral.
Aliás, o Fundo Amazônia —financiado em parte pela Alemanha— fazia exatamente isso, mas infelizmente abrimos mão dele. Mas é claro que Bolsonaro não deseja esse tipo de ajuda. Se ele denuncia a compra de madeira ilegal por outros países, não é para combatê-la lá fora, mas para seguir sem reprimi-la aqui. Afinal, seu governo é o maior incentivador da prática: graças a mudanças regulatórias de seu governo, as regras para a certificação da madeira se tornaram mais frouxas —90% do consumo de madeira ilegal brasileira se dá justamente no Brasil.
Qual o resultado da pirraça bolsonariana? Alguma grande vitória contra a França? Pelo contrário. A cada nova interação, o acordo UE-Mercosul parece ficar mais distante, justamente o que os produtores rurais franceses querem. A Alemanha também reagiu à fala de Bolsonaro, fazendo o que ele talvez menos quisesse: levou-as a sério. O Ministério da Agricultura alemão já anunciou que quer leis mais duras para fiscalizar produtos tropicais.
Bolsonaro não está nem aí. O único objetivo é agradar sua base de apoiadores aqui dentro do Brasil, que inclui interesses econômicos predatórios da grilagem e do garimpo ilegal: se para isso virarmos um pária internacional, com dificuldades de fechar novos acordos, sem direito a voto na ONU (por não pagar as contas) e, quiçá, no futuro, alvo de boicotes econômicos, tudo bem. O importante é o teatrinho nas redes.
A Amazônia interessa ao resto do mundo, mas deveria interessar ainda mais ao Brasil. Somos nós que podemos auferir as riquezas de sua biodiversidade; é o nosso agro que mais se beneficia dos serviços ambientais que ela proporciona, por exemplo, ao garantir o regime de chuvas no Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Interesse interno e internacional estão perfeita e claramente alinhados.
O presidente eleito Joe Biden (sim, ele tomará posse em 20 de janeiro, por mais que Bolsonaro também se recuse a aceitar) já anunciou John Kerry como enviado especial do clima. A pauta climática e ambiental em geral —que se estende por outros temas, como desmatamento, plásticos, água— só ganhará mais centralidade com essa adesão de peso dos EUA. Por qualquer critério, o Brasil deveria ser um dos grandes protagonistas da discussão ambiental no mundo. Somos, neste momento, por pura mesquinhez do governo, o bandido da história.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Joel Pinheiro da Fonseca: O jornalismo deveria fazer oposição ao populismo?
Derrota de Trump anima, mas é desmotivador ver a imprensa se tornar tão parcial
Biden venceu, viva! Uma vitória da democracia, da ciência, das instituições, da imprensa. Mas espere um momento: por acaso a imprensa deveria ser torcedora, ou até participante, nessa disputa?
Todo mundo sabe que não existe veículo completamente imparcial e objetivo. Há sempre valores, ideologias, narrativas, interesses, que inevitavelmente influenciarão as decisões sobre o que e como publicar. Nesse sentido, vejo muitas vozes defendendo que, como a imparcialidade perfeita é impossível, cada veículo de imprensa deveria assumir seu lado. Discordo.
A imprensa é relevante justamente na medida em que não é apenas mais um porta-voz de um campo político. A perfeita objetividade e imparcialidade pode ser uma utopia, inatingível na prática, mas é importante que siga como ideal operante na conduta institucional. A partir do momento em que aceitamos abrir mão de um valor em nome da defesa de um grupo político, é inevitável que a prática seja contaminada e que os padrões rigorosos sejam sacrificados ao partidarismo. À “opinião” do jornal basta o editorial; o jornalismo deve mirar a verdade e objetividade como valores superiores a qualquer causa política, mesmo as desejáveis.
A situação da imprensa não é fácil. Num momento de polarização, em que qualquer conteúdo que não seja feito sob medida para um dos lados da disputa é imediatamente rechaçado por ambos, publicar informações com objetividade não conquistará o amor de ninguém. Por mais que um lado possa estar mais próximo da verdade e dependa menos da fabricação sistemática de mentiras para se viabilizar, a realidade não costuma estar perfeitamente alinhada a ninguém. Assim, um jornalismo objetivo raramente encantará a torcida de qualquer lado. Mesmo quando confirma nossas crenças, não é com a ênfase e na medida que realmente gostaríamos. E aí reside seu valor para alimentar o debate público responsável.
As redes sociais participam desse debate também. Todas buscam alguma maneira de limitar o alcance de fake news. Não tenho a resposta para como fazê-lo, mas sei o tipo de medida que definitivamente não desce: suprimir notícias que prejudicavam o candidato democrata na semana da eleição.
As notícias envolvendo o filho de Joe Biden, veiculadas para tentar manchar a reputação do pai às vésperas do pleito, eram vazias. No entanto, quantas reportagens igualmente irresponsáveis em suas especulações e acusações contra Trump não foram compartilhadas livremente sem qualquer entrave do Twitter? O conluio com a Rússia, o caso com a atriz pornô, o abuso sexual. Se o site decidir que notícias bombásticas, sem o devido rigor jornalístico, devem ser limitadas perto das eleições, então que essa regra seja formulada abertamente e aplicada com transparência. Caso contrário, vira apenas sabotagem contra a direita, ao mesmo tempo em que se toleram todos os excessos do progressismo.
Populistas como Trump fazem do ataque à imprensa parte de seu jeito de governar. É muito fácil para a imprensa reagir conforme o esperado e transformar a oposição ao governo parte de seu ideário. Ao agir assim, apenas confere legitimidade aos ataques sem base de que é alvo. Considero a derrota de Trump um dos melhores eventos deste ano difícil que tem sido 2020. Mesmo assim, é desmotivador ver o The New York Times ou a CNN se tornarem tão abertamente parciais em sua cobertura.
O valor de uma fonte confiável de fatos relevantes para o debate público é muito maior do que o de uma militância de discursos louváveis.
*Joel Pinheiro da Fonseca,economista, mestre em filosofia pela USP.