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Igor Gielow: Trump promove sedição e fornece roteiro para Bolsonaro em 2022

Se brasileiro perder, narrativa do inconformismo está pronta; republicanos pagam preço na Geórgia

A derrota do Partido Republicano na Geórgia, tirando da sigla o controle do Senado e entregando um Congresso mais amistoso para o governo Joe Biden, é um conto cautelar acerca dos limites do populismo da cepa Trump.

Não só deles: antecipa, a insurreição estimulada pelo presidente na frente do Capitólio e nas ruas de Washington, a tática no forno de Jair Bolsonaro caso perca o pleito em 2022.

Particular, a variante trumpista do populismo agregou lições dos eurocéticos britânicos, da extrema direita anti-imigração europeia e de líderes autocráticos como o russo Vladimir Putin, mas trouxe consigo a estridência isolacionista das entranhas dos EUA.

Aproveitando o solo semeado pelo movimento Tea Party, de rejeição à globalização e com fortes cores conspiratórias, Donald Trump emergiu para sua surpreendente vitória em 2016 e inspirou seguidores no mundo todo. Hoje, o que ocupa o principal posto se chama Bolsonaro.

Assim, o fracasso republicano no Sul dos EUA, ainda que tenha de ser relativizado pelas margens estreitíssimas da vitória democrata, é o preço pago pelo partido por manter-se mais ou menos fiel a Trump até o fim.

Isso porque o fim, para o presidente americano, não tem nada menos do que o tom sombrio do "Götterdämmerung" (crepúsculo dos deuses) wagneriano levado por Hitler a seu bunker em 1945. A democracia americana viu cenas inacreditáveis em pleno 2021.

Só que o desespero aqui é acrescido do tom burlesco que marca Trump, diluindo o resultado num pastiche quando tudo acabar, ou assim se espera. O que não quer dizer que não haja perigos reais, a começar pelo confronto que pode degringolar nas ruas.

Se parece exagero ver riscos institucionais ou para a paz mundial, cabe atentar à carta assinada por dez ex-secretários de Defesa ainda vivos. Com poucas meias palavras, eles mandam Trump parar de alimentar o mito da eleição fraudada e de namorar ideias de ruptura.

Tudo ocorre à luz do dia, ou quase: Trump tenta manipular a recontagem de votos presidenciais na mesma Geórgia e vocifera, dia sim e outro também, que está sendo vítima de um roubo. Aliados próximos sugerem coisas como a decretação da lei marcial para manter o sujeito no cargo.

Ao dizer claramente que militares devem evitar se misturar a isso, o texto dos ex-secretários também remete à escalada militar no golfo Pérsico, percebida por um acuado Irã como o risco de um conflito para tentar bagunçar os dias finais do mandato de Trump.

Próceres do conservadorismo americano como Dick Cheney e Donald Rumsfeld, arquitetos das guerras do 11 de Setembro, estavam entre os signatários. Republicanos de quatro costados, simbolizam o afastamento do coração do partido de Trump.

O próprio vice-presidente Mike Pence, que constitucionalmente comanda a sessão do Congresso que contará simbolicamente os votos da eleição vencida por Biden, escreveu uma carta histórica, rejeitando a pressão feita pelo chefe para que desconsiderasse votos contestados na eleição.

Ele simplesmente não pode fazer isso, mesmo que quisesse. Ainda assim, Trump fez um discurso igualmente histórico, pela infâmia, implorando a Pence que descumprisse a Constituição.

Ciosos de que isso não daria certo, os republicanos ainda trumpistas impõem patranhas para tentar melar a sessão da confirmação de Biden. Foi quando a turba resolveu intervir e interromper o trabalho do Legislativo.

O dano aos republicanos na Geórgia sela ao menos um racha na sigla, com a repreensão às manobras contra os resultados no Arizona por figuras mais graduadas do partido.

Isso antevê a disputa que se dará para tentar juntar os cacos para os pleitos seguintes, se é que Trump não acabará saindo preso da Casa Branca —ele estimulou sedição contra o Congresso.

Na maior vitrine que sobrou do trumpismo, o governo Bolsonaro, esses movimentos deverão ser lidos com atenção pelos aliados do presidente nesses próximos dois anos.

Bolsonaro usa a carta da fraude eleitoral, focada em sua obsessão pelo voto impresso, desde antes de ser eleito. Já naquele tempo dizia que, se não ganhasse a eleição, teria ocorrido um roubo. Provas, como no caso de seu ídolo americano, nunca mostrou.

Basta acompanhar a "cobertura", aspas obrigatórias, do processo eleitoral americano nas redes sociais bolsonaristas para saber o discurso montado para 2022. Naquele mundo paralelo pontificado pelos filhos do presidente, a fraude brasileira já está no forno.

Assim, a confusão nas ruas de Washington remete às aglomerações estimuladas por bolsonaristas e aos protestos antidemocráticos do primeiro semestre no Brasil.

Aquelas que foram atendidas pelo próprio presidente. A ameaça será usada até o limite, na hipótese de Bolsonaro ser derrotado ano que vem. Até o discurso de culpar a mídia por tudo é idêntico​

O fato de que o presidente foi o último de algum país com algum peso relativo a dar parabéns a Biden em si foi inócuo, mas importante para entender o método. Ninguém pode se queixar de imprevisibilidade quando se trata de Bolsonaro.

Conhecido pelo faro de sangue na água, o grupo de partidos conhecido como centrão já apoiou todo mundo, do PT a Bolsonaro. Estava embarcado confortavelmente no governo Dilma Rousseff quando a vaga do impeachment a colheu. Segue no poder.

Mas, como ocorreu em 2016, não tem vocação para carregador de caixão político. O pleito municipal de 2020 no Brasil já sugeriu uma inflexão do eleitorado, de resto ainda bastante apoiador do presidente, em direção a nomes mais moderados.

Bolsonaro teme a debacle econômica que pode advir neste ano, além de todo o caos gerencial da pandemia —outro ponto em comum com seu guru americano.

Terá de se agarrar à sua base mais fiel e radical, enquanto cede mais espaço aos aliados antes demonizados, em caso de perda de popularidade mais ampla.

Se 2022 assistir a um embate polarizado e histriônico, como Bolsonaro sugere sempre que pode, talvez a lição americana seja lida com antecipação pelo pessoal do centrão.


El País: Congresso dos EUA confirma vitória de Biden após revolta instigada por Trump

Ao final de um dia caótico, que deixou quatro mortos, presidente republicano se compromete com uma transição “ordenada”

Amanda Mars, El País

As urnas e as instituições deram o tiro de misericórdia na era Trump, na madrugada desta quinta-feira, após uma jornada lamentável para a história dos Estados Unidos. O Congresso confirmou a vitória do democrata Joe Biden horas depois de ser invadido por uma turba de seguidores do presidente republicano, agitados por suas acusações infundadas de fraude eleitoral. Os graves distúrbios, que deixaram quatro mortos, obrigaram à suspensão da sessão e à mobilização da Guarda Nacional, mas os parlamentares voltaram a se reunir ainda na noite de quarta-feira, numa sólida exibição de firmeza, e cumpriram a Constituição. Às 3h40 horas (5h40 em Brasília), o vice-presidente Mike Pence ―que pela Constituição é também o presidente do Senado― declarou a vitória do candidato democrata, após dias de pressões do seu chefe, que lhe pedia para se rebelar. Imediatamente depois, Trump emitiu um comunicado em que continuava protestando pelo resultado mas, pela primeira vez, se comprometia a uma transição de poderes “ordenada” em 20 de janeiro.

Nesse dia Biden tomará posse e iniciará um mandato que terá ampla margem de manobra, pois os democratas controlarão a Casa Branca, a Câmara de Representantes (deputados) e também o Senado, após a eleição de dois democratas ―Raphael Warnock e Jon Ossoff― no Estado da Geórgia. Começará então o duro trabalho de curar feridas, estender pontes e reparar reputações. Líderes de todo o mundo condenaram o ocorrido nos EUA (uma das poucas exceções foi o brasileiro Jair Bolsonaro), país visto como referência de democracia e solidez institucional, e que há 200 anos não vivia algo assim.

“Vamos terminar exatamente o que começamos e certificaremos o vencedor das eleições presidenciais de 2020. O comportamento criminal nunca dominará ao Congresso dos Estados Unidos”, disse o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell. Ele qualificou a revolta como “insurreição fracassada” e proclamou com orgulho: “Os Estados Unidos e este Congresso já confrontaram ameaças muito maiores que a turba perturbada de hoje. Não nos dissuadiram antes e não nos dissuadirão agora. Tentaram romper nossa democracia e fracassaram”. O vice-presidente Mike Pence havia reaberto a sessão, pouco antes, dizendo que “vocês não ganharam, a violência nunca ganha, a liberdade ganha.” Os discursos tinham algo de terapia de grupo.

Após quatro anos acolhendo a retórica incendiária de Donald Trump, os republicanos se depararam neste nublado dia de janeiro de 2021 com um monstro de aspecto muito feio, uma multidão que quebrava vidraças do seu grande templo democrático, escalava suas paredes, irrompia nos plenários e se sentava na poltrona da presidência do Senado. A democracia se impôs, mas o sistema ficou abalado.

O pavio havia sido aceso pela manhã por Trump num comício em frente à Casa Branca, justamente por ocasião da sessão parlamentar que certificaria a vitória democrata nas eleições presidenciais. “Depois disto, vamos caminhar até o Capitólio e vamos incentivar nossos valentes senadores e congressistas”, disse a uma multidão formada por milhares de pessoas vindas de todo os EUA. “A alguns não vamos incentivar muito, porque vocês nunca irão recuperar o país de vocês com fraqueza, têm que mostrar força”, acrescentou. Ao final, os trumpistas partiram para o Capitólio e, depois de romper o cordão policial, desencadeou-se a violência.

Os legisladores correram para se refugiar, e Mike Pence foi retirado, enquanto os manifestantes zanzavam pelo interior do edifício, alguns com bandeiras confederadas e outros fantasiados, deixando uma nota tragicômica na jornada. Um deles se sentou na poltrona do presidente do Senado; outro, no gabinete da presidenta da Câmara, Nancy Pelosi, a quem, segundo a Associated Press, deixou uma mensagem que dizia: “Não recuaremos”. Quatro pessoas morreram, segundo a polícia: uma mulher atingida por um tiro, e outras três por emergências médicas. A cifra de detidos chegava a 52, o que parecia muito pouco para o espetáculo vivido, e a polícia encontrou duas bombas caseiras e uma geladeira com coquetéis molotov nas imediações. O escasso preparativo do dispositivo de segurança diante de uma manifestação que já se previa monumental e a lentidão da resposta fizeram as perguntas se multiplicarem, sobretudo depois da ostensiva presença das forças da ordem durante os protestos contra o racismo em meados deste ano.

“O que aconteceu aqui é uma insurreição incitada pelo presidente dos Estados Unidos”, denunciou o senador republicano Mitt Romney, de Utah. “Assim é como se discutem as eleições em uma república bananeira, não em nossa república democrática”, afirmou em nota o ex-presidente republicano George W. Bush. Mas é nessa rica república onde esta tempestade foi se formando dia a dia desde a derrota eleitoral de Trump em 3 de novembro, com a conivência de uma parte dos políticos conservadores.

Imagens do momento em que o Capitólio nos EUA foi invadido.
Imagens do momento em que o Capitólio nos EUA foi invadido.

Um grupo de senadores e deputados republicanos planejava torpedear a sessão de confirmação de Joe Biden com o argumento das supostas irregularidades nas urnas, embora inúmeros tribunais tenham concluído que não havia base para essas suspeitas, e de exaustivas recontagens não terem levado a resultados diferentes. O Congresso deveria contar os votos certificados pelos Estados em dezembro passado, numa sessão conjunta da Câmara de Deputados e do Senado, um último trâmite exigido pela Constituição antes da posse do novo presidente, em duas semanas. Os legisladores insubmissos tinham preparado uma bateria de objeções aos escrutínios dos Estados que foram decisivos para a derrota de Trump, embora elas não tivessem perspectiva de prosperar, já que seria necessário o aval da Câmara de Representantes, de maioria democrata, e do Senado, onde apenas uma dúzia de republicanos apoiava a manobra. O objetivo, portanto, era fazer barulho, mas o estrondo afinal veio do lado de fora.

O cômputo das cédulas era feito em voz alta, território por território, por ordem alfabética, e o primeiro protesto chegou cedo, na vez do Arizona, um Estado que, ao se inclinar por Biden em 3 de novembro, escolheu um presidente democrata pela primeira vez desde 1996. Quando o debate sobre essa objeção começou, a confusão se instalou às portas do Capitólio e a sessão teve que ser suspensa. Mike Pence foi retirado, os legisladores se refugiaram sob suas mesas, e foram observadas cenas de grande violência no Capitólio. Depois do ocorrido, pelo menos quatro dos políticos que pretendiam lançar as objeções mudaram de opinião, como a senadora georgiana Kelly Loeffer – que acaba de perder a reeleição –, alegando problemas de “consciência”. A objeção foi derrubada e o cômputo em voz alta continuou, com outra longa interrupção ao chegar à Pensilvânia.

De Trump não se ouvia nada a essas horas. A rede social Twitter tinha decidido bloquear sua conta durante 12 horas, e o Facebook, durante 24, depois de apagar as mensagens em que desculpava a violência de seus seguidores e insistia nas teorias conspiratórias da fraude eleitoral. “Estas são as coisas e acontecimentos que ocorrem quando se tira uma vitória sagrada e esmagadora de grandes patriotas, que foram tratados de forma má e injusta durante muito tempo. Vão para casa em paz e amor. Recordem este dia para sempre”, tinha publicado em sua conta. Em uma declaração em vídeo, chegou a dizer aos participantes dos distúrbios: “Vão para casa, amamos vocês, vocês são muito especiais, mas precisam ir para casa”. Por causa dos incidentes, quatro funcionários graduados da Casa Branca se demitiram, segundo a Bloomberg, entre eles o subassessor de Segurança Nacional, Matt Pottinger, e Stephanie Grisham, chefa de gabinete da primeira-dama.

Ao todo, o drama se prolongou por quase 15 horas. O ataque da quarta-feira não foi o primeiro sofrido pelo Capitólio, pois em 1954 um grupo de nacionalistas porto-riquenhos disparou na Câmara de Representantes e feriu vários deputados, e em 1998 um homem matou dois policiais. Mas a última vez que o prédio havia sido sitiado por uma turba foi durante o ataque britânico liderado pelo general Robert Ross, em 1814, depois da batalha de Bladensburg.

Apesar do tumulto, intuía-se que a invasão não configurava um golpe de Estado, já que a Bolsa de Nova York subiu 1,4%, mais atenta aos estímulos econômicos prometidos pelo novo Senado do que aos tumultos que os investidores viam pela televisão. Mas morreu gente, passou-se medo, e Washington debruçou-se sobre o abismo. E agora, até 20 de janeiro, restam duas semanas com um Trump na Casa Branca que ninguém no seu círculo parece capaz de frear.


Elio Gaspari: O maior espetáculo da Terra

EUA vão ao triste patamar das repúblicas latino-americanas

Donald Trump começou o espetáculo da sua partida deixando “House of Cards” no chinelo. Seu telefonema de uma hora para o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger (um republicano), seria rejeitado por qualquer roteirista de séries de TV. Foi desconjuntado, alternou momentos de prepotência e delírio. Ao seu estilo, puxou a carta do Apocalipse: “O povo da Geórgia está zangado, o país está zangado”. Falou três vezes em “tumultos”. Ameaçou e fez-se de vítima, queixando-se do que “vocês fizeram com o presidente”.

Na essência, Trump acha que ganhou a eleição na Geórgia por mais de cem mil votos e telefonou para que Raffensperger contasse o resultado, arrumando-lhe 11.779 votos. Repetiu 11 vezes esse número ou o milhar arredondado. Numa das últimas menções foi patético: “E agora? Eu só preciso de 11 mil votos. Pessoal, eu só preciso de 11 mil votos. Tenham paciência”.

O telefonema termina de uma forma bizarra.

Raffensperger: “Obrigado pelo seu tempo, presidente”.

Trump: “Ok. Obrigado, Brad”.

(Não cabe a um interlocutor encerrar uma conversa com o presidente dos Estados Unidos.)

Raffensperger sabia com quem estava lidando. Não deu outra. No domingo, Trump soltou um tuíte dizendo que ele não sabia de nada porque não queria ou porque não podia. O secretário de Estado respondeu: “Respeitosamente, presidente Trump, o que o senhor está dizendo é falso. A verdade aparecerá”. Horas depois o áudio apareceu no “Washington Post”.

Faltavam 18 dias para a posse de Joe Biden e terminara o primeiro capítulo da série “Os últimos dias de Trump”. Começou o segundo, menos pitoresco e muito mais grave. Dez ex-secretários da Defesa mandaram uma carta ao “Post” dizendo que a eleição já acabou e que os militares devem ficar fora dessa encrenca. Entre os signatários, Richard Cheney e Donald Rumsfeld. A dupla tem mais de 40 anos de experiência em Washington e patrocinou as guerras de George W. Bush. Dois republicanos que não comiam mel, comiam abelha. Suas assinaturas mostram que o núcleo tradicional do partido afastou-se de Trump.

Atitude inédita, o manifesto colocou os Estados Unidos no triste patamar das repúblicas latino-americanas. Como nenhum dos signatários tem biografia de vivandeira, é razoável supor que havia algo no ar além dos aviões de carreira. Sabe-se, por exemplo, que um general da reserva, integrante do pelotão palaciano, circulou a ideia de colocar os Estados Unidos sob lei marcial, e um assessor de Trump falou num possível adiamento da posse de Biden.

O que está acontecendo em Washington é o maior espetáculo da Terra. Coisa nunca vista, com promessa de novas emoções.

Felizmente, o comportamento do secretário de Estado da Geórgia e dos ex-secretários de Defesa mostra que as instituições dos Estados Unidos funcionam. Vai daí que no dia 20 de janeiro irá ao ar o último capítulo. Não se sabe o que Trump fará. Ele pode imitar John Adams, que foi-se embora da cidade na noite da véspera da posse de Thomas Jefferson.

Poderia também sair da Casa Branca para um prédio que fica a uns poucos minutos de carro. Lá funciona a Associação Americana de Psiquiatria.


El País: Democratas conquistam primeira vaga na Geórgia e se aproximam de controlar o Senado dos EUA

Raphael Warnock se torna o primeiro senador negro eleito no Estado sulista, enquanto a disputa pelo segundo assento continua acirrada. Geórgia não escolhia um senador democrata desde 1994

Antonio Laborde, El País

A apuração da crucial eleição para o Senado na Geórgia, que decidirá a maioria na Câmara Alta dos Estados Unidos ―definindo, portanto, o escopo do futuro mandato do presidente eleito Joe Biden―, transcorre de forma apertada desde a madrugada desta quarta-feira. Logo depois das 2h (hora local, 4h em Brasília), com 97% dos votos apurados, os meios de comunicação projetaram a vitória do democrata Raphael Warnock em uma das vagas. O pastor evangélico fez história ao se tornar o primeiro senador negro a ser eleito neste Estado sulista, permitindo que seu partido fique um pouco mais próximo de controlar o Congresso. Se o outro candidato democrata vencer, o Senado ficará formado por 50 republicanos e 50 democratas (incluindo dois parlamentares formalmente independentes), e a vice-presidenta eleita, Kamala Harris, exercerá o voto decisivo nos casos de empate. Os republicanos precisam ganhar o assento que continua em jogo no Estado para prolongar os seus seis anos de domínio do Senado, o que obrigaria Biden a alcançar pactos com a oposição para impulsionar sua pauta política.

Raphael Warnock se impôs com 50,6% dos votos sobre a senadora republicana Kelly Loeffler (49,4%). O segundo assento em jogo é disputado pelo diretor de documentários Jon Ossoff, democrata, e o republicano David Perdue, que encerrou no domingo seu atual mandato de senador pela Geórgia. Com 98% dos votos apurados, Ossoff lidera por 0,3 ponto percentual (12.000 votos). Os quatro candidatos superam os dois milhões de votos. As apertadas disputas ―que leva a uma demora na apuração― ocorrem porque no primeiro turno, em 3 de novembro, nenhum deles conseguiu superar metade dos votos válidos, o que a lei local determina que seja resolvido em uma nova rodada de votação. As autoridades informaram que os resultados oficiais devem sair por volta de 12h (14h em Brasília) desta quarta-feira.

Durante a madrugada, Warnock sinalizou que se via como ganhador, embora não declarasse isso formalmente. “Vou ao Senado para trabalhar por toda a Geórgia, não importa em quem você votou nesta eleição”, disse em uma mensagem que compartilhou nas suas redes sociais. Por sua vez, o grande motor mobilizador dos democratas neste ano eleitoral, a ativista Stacey Abrams, felicitou seu “querido amigo” e “próximo senador”. A adversária republicana Kelly Loeffler discursou no final da noite em Atlanta para antecipar que não vai conceder a vitória ao democrata e que lutará para que “cada voto legal” seja contado.

“Parece que estão armando um grande sorvedouro de eleitores contra os candidatos republicanos. Estão esperando para ver quantos votos precisam?”, escreveu o ainda presidente Donald Trump no Twitter, insinuando, novamente sem provas, que os democratas querem manipular o pleito.

O republicano Brad Raffensperger, secretário de Estado da Geórgia, informou no final da noite de terça que faltavam ser apurados quase 200.000 votos, mas ainda há as cédulas enviadas por militares que servem no exterior, cujo prazo para serem recebidas vai até as 12h de sexta-feira.

A eleição transcorreu em um clima de alta tensão, depois de uma campanha marcada pela ofensiva de Trump para anular o resultado das eleições presidenciais, agitando acusações infundadas de fraude maciça que implicam questionar todo o sistema eleitoral. A Geórgia se encontrava no olho do furacão após ter dado seus votos a Biden, fazendo dela o único oásis azul no chamado “cinturão bíblico” do sul. A vitória do democrata foi selada após uma apuração dramática, que Trump tentou a todo custo desacreditar.

Antes de as seções eleitorais serem abertas, nesta terça-feira, mais de 3 milhões de pessoas (de 7,7 milhões de eleitores registrados no Estado) já tinham votado de maneira antecipada ou pelo correio, uma cifra sem precedentes em um segundo turno de eleições para o Senado. Os votos antecipados, que costumam favorecer os democratas, foram os primeiros a serem apurados. Por isso, à medida que foram sendo contadas as cédulas emitidas na terça-feira, sua vantagem foi diminuindo. Depois, com os resultados de alguns condados de maioria progressista, a foto voltou a mudar.

Nas eleições presidenciais de novembro, cinco milhões exerceram seu direito a voto na Geórgia, e a mobilização da comunidade afro-americana e dos jovens foi crucial para o apertado triunfo de Biden, que conseguiu derrotar Trump no feudo conservador por menos de 12.000 votos. A Geórgia não optava por um presidente democrata desde 1992, e não escolhia um senador desse partido desde 1994. Os apoios democratas se concentram em Atlanta e nos seus bairros periféricos, o núcleo progressista do Estado, que na última década se estendeu a grande velocidade, pondo em xeque a hegemonia republicana baseada nas zonas rurais.

Nesta quarta-feira está prevista a certificação da vitória de Biden em uma sessão bicameral do Congresso. Um grupo de senadores e deputados republicanos planeja reforçar o clima de tensão e tumulto apresentando objeções, embora careçam de votos para que o protesto se traduza em algum contratempo na confirmação do Biden, uma formalidade prévia à sua posse, em 20 de janeiro.

A figura de Trump pairou sobre esta eleição. Primeiro pela pressão que exerceu sobre os republicanos que não lhe seguiram em suas acusações de fraude eleitoral, apontando-os como desleais ao partido. E, segundo, porque esta eleição significa uma prova para os republicanos, um teste para sua capacidade de sedução sem a figura do presidente.

Uma das dúvidas a serem esclarecida com os resultados oficiais da Geórgia foi o peso ―para o bem ou para o mal― da retórica trumpista sobre a fiabilidade do sistema eleitoral. Trump vem há dois meses denunciando, sem provas, que houve fraude no pleito de 3 de novembro, ao mesmo tempo em que conclamava suas bases a saírem de casa para votar nos dois candidatos republicanos ao Senado. Conforme as pesquisas de boca de urna feitas pelo The Washington Post nesta terça, quase 9 em cada 10 democratas da Geórgia acreditam que a eleição de novembro foi justa, enquanto só 2 em cada 10 republicanos acham isso.

O último escândalo relacionado com a inédita cruzada de Trump foi a informação publicada no domingo passado sobre o telefonema em que o mandatário pressionou o secretário de Estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, para que “encontrasse” os votos suficientes para reverter a vitória de Biden. Os eleitores democratas fora das seções eleitorais se mostravam fartos das polêmicas do presidente e com as esperanças voltadas para o triunfo de seus candidatos a senadores para começar a escrever um novo capítulo na história política. Jerald Hogan, de 46 anos, estava confiante na guinada do Estado conservador: “Pela primeira vez em minha vida acredito que as coisas vão mudar.”


Paul Krugman: Como o Partido Republicano se tornou selvagem

Democracia dos EUA está sob ameaça de um tribalismo malévolo

Sempre houve pessoas como Donald Trump: egocêntricas, inclinadas à autopromoção, convictas de que as regras se aplicam apenas ao povinho, e de que aquilo que acontece ao povinho não importa.

Mas o moderno Partido Republicano não se parece com qualquer coisa que tenhamos visto no passado, pelo menos na história dos Estados Unidos. Se ainda existe alguém que não está totalmente convencido de que um dos nossos dois grandes partidos políticos se tornou inimigo não só da democracia, mas da verdade, os acontecimentos transcorridos depois da eleição deveriam bastar para eliminar quaisquer dúvidas.

Não é só porque a maioria dos republicanos da Câmara e muitos senadores republicanos estão apoiando os esforços de Trump para reverter sua derrota eleitoral, embora não existam provas de fraude ou de irregularidades generalizadas. Veja a maneira pela qual David Perdue e Kelly Loeffler estão conduzindo sua campanha no segundo turno das eleições para o Senado na Geórgia.

Eles não estão fazendo campanha em torno das questões políticas ou mesmo de aspectos reais do histórico pessoal de seus oponentes. Em lugar disso, afirmam, sem qualquer base nos fatos, que os oponentes são marxistas ou estão “envolvidos no abuso de crianças”. Ou seja, as campanhas para reter o controle republicano do Senado se baseiam em mentiras.

No domingo, Mitt Romney execrou as tentativas de Ted Cruz e de outros republicanos do Congresso de reverter o resultado da eleição presidencial, questionando: “Será que a ambição eclipsou os princípios”? Mas que princípios Romney acredita que o Partido Republicano defende, nos últimos anos? É difícil ver qualquer coisa que embase o comportamento recente dos republicanos a não ser a busca de poder de qualquer que seja a maneira.

Em 2003, escrevi que os republicanos haviam se tornado uma força radical, hostil aos Estados Unidos em sua forma atual, e que potencialmente ambicionavam criar um Estado de partido único no qual “as eleições sejam apenas uma formalidade”. Em 2012, Thomas Mann e Norman Ornstein alertaram que o Partido Republicano “não se deixa influenciar pelo entendimento convencional dos fatos” e “desconsidera a legitimidade da oposição política”.

Quem se surpreende diante da avidez de muitos integrantes do partido por reverter os resultados de uma eleição com base em acusações especiosas de fraude simplesmente não estava prestando atenção.
Mas o que propele a queda dos republicanos à escuridão?

Será uma reação populista à elite? É verdade que existe ressentimento com relação à mudança na economia, que privilegia as áreas metropolitanas com populações de nível de educação elevado, em detrimento das áreas rurais e das cidades pequenas; Trump recebeu 46% dos votos, mas venceu a eleição em condados que representam apenas 29% do PIB (Produto Interno Bruto) dos Estados Unidos. Existe uma forte reação adversa dos brancos à crescente diversidade racial do país.

Mas os últimos dois meses representam uma lição prática sobre até que ponto a ira das “bases” na verdade é orquestrada pelas lideranças. Se uma grande parte da base republicana acredita, sem qualquer fundamento, em que a eleição foi roubada, isso acontece porque os líderes do partido vêm repetindo essa acusação. Agora os políticos mencionam o ceticismo generalizado quanto aos resultados da eleição como motivo para rejeitar o resultado –mas foram eles mesmos que conjuraram esse ceticismo, do nada.

E o que é notável, se estudarmos os antecedentes dos políticos que fomentam o ressentimento contra as elites, é o quanto muitos deles são privilegiados. Josh Hawley, o primeiro senador a declarar que objetaria à certificação dos resultados da eleição, protesta contra a elite, mas se formou na Universidade Stanford e na Escola de Direito de Yale. Cruz, que hoje lidera os esforços para subverter a eleição, tem diplomas de Princeton e Harvard.

O ponto não é que eles sejam hipócritas, e sim que não se trata de pessoas que tenham sido maltratadas pelo sistema. Assim, por que parecem tão dispostos a derrubá-lo?

Não acredito que seja apenas por serem cinicamente calculistas, ou que estejam fingindo para satisfazer as bases. Como já afirmei, na verdade é a base que está seguindo orientações da elite do partido. E a loucura dessa elite não parece ser apenas fingimento.

Meu melhor palpite é de que estamos contemplando um partido que se tornou selvagem –que cortou o contato com o resto da sociedade.

As pessoas comparam o Partido Republicano ao crime organizado ou a um culto, mas para mim os republicanos se parecem mais com os meninos perdidos de “O Senhor das Moscas”. Eles não recebem notícias do mundo externo, porque suas informações vêm de fontes partidárias que simplesmente não reportam fatos inconvenientes. Não estão sujeitos a supervisão adulta, porque, em um ambiente polarizado, há poucas disputas competitivas.

Assim, eles cada vez mais olham apenas para si mesmos, e se engajam em esforços cada vez mais absurdos para demonstrar sua lealdade à tribo. O partidarismo deles não se relaciona a causas, ainda que o partido continue comprometido com o corte dos impostos dos ricos e com punir os pobres; o objetivo é afirmar o domínio daqueles que estão por dentro, e punir quem fica de fora.

A grande questão é por quanto tempo os Estados Unidos na forma que conhecemos serão capazes de sobreviver diante dessa tribalismo malévolo.

A atual tentativa de reverter o resultado da eleição presidencial não terá sucesso, mas já se estendeu por muito mais tempo e atraiu muito mais apoio do que qualquer qualquer pessoa previa. E a menos que alguma coisa aconteça para romper o domínio das forças inimigas da democracia e da verdade sobre o

Partido Republicano, um dia elas terão sucesso em matar o experimento americano.

* Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

Tradução de Paulo Migliacci


Elio Gaspari: O grande espetáculo de Trump

Ele passa o tempo trancado, jogando golfe, anistiando comparsas e delirando

Faltam três semanas para o dia em que Joe Biden assumirá a Presidência dos Estados Unidos. Com a pandemia e Donald Trump, não se sabe direito como as coisas funcionarão. Não se sabe sequer se ele irá à cerimônia.

Numa época tomada pela Covid-19, pelas vacinas e por Jair Bolsonaro, junta-se um espetáculo histórico: o comportamento de Trump nos últimos dias de seu governo.

Recusando-se a aceitar o resultado das urnas, o atual presidente entrou na moldura de desespero e desequilíbrio de Richard Nixon nos dias que antecederam sua renúncia, em agosto de 1974. Ele estava bebendo demais, brigava com a mulher e chamou o secretário de Estado para rezar. O chefe de seu gabinete temeu que ele se matasse. Estava entendido que Nixon destrambelhara. Temeu-se que, num surto, ele resolvesse usar armas nucleares contra algum inimigo. Por isso, se ele tentasse mexer nas bombas, a ordem precisaria ser confirmada pelo secretário da Defesa. Ela nunca foi dada. Esses fatos, contudo, começaram a sair dos bastidores aos poucos. Para consumo geral, ficou a imagem do presidente deixando a Casa Branca com um grande sorriso e os braços erguidos.

Trump está oferecendo um espetáculo público. Depois de contestar o resultado das urnas, passa o tempo trancado, jogando golfe, anistiando comparsas e delirando. Nesse ambiente, surgiu até a ideia de colocar a maior democracia do mundo sob lei marcial. Como não poderia deixar de ser, aporrinhou a mulher porque teria aparecido pouco nas revistas de moda. Desde novembro, estava claro que Trump destrambelhara num patamar inédito. Acompanhá-lo até o dia 20 de janeiro, seguindo cada detalhe de sua partida, será um grande espetáculo. Algo como um seriado de televisão.

Os Estados Unidos ralaram em duas décadas com dois dos três piores presidentes de sua história: Trump e George W. Bush. O terceiro foi James Buchanan (1857-1861), que deixou para Abraham Lincoln a encrenca que resultaria na Guerra Civil.

Dos três, o único que se conduziu como um desequilibrado foi Trump. E daí vem a boa notícia: as instituições americanas sobreviveram a um tatarana na Casa Branca. Prova disso está no fato de que, ao contrário do que supunham seus adoradores, a judicialização do resultado eleitoral jamais dependeu de uma decisão dos nove juízes da Corte Suprema. Seus pleitos atolaram antes.

Noves fora Buchanan, a competição pelo título de pior presidente fica entre Bush II e Trump. Essa é uma boa discussão. Como pessoa física, Trump ganha com larga vantagem. Como a blindagem das instituições impediu muitos de seus estragos, é possível que Bush II, com sua guerra no Iraque e a recessão do fim de mandato, tenha causado mais danos à nação. Registre-se que Bush, como seu pai, é um ex-presidente exemplar, coisa que não há a menor possibilidade de acontecer com Trump. (Está aí a procuradora-geral do Estado de Nova York, encarregada de olhar para as finanças do doutor.)

Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, valendo-se de um provérbio português, “ninguém se livra de pedrada de doido nem de coice de burro”. Nem os Estados Unidos. Dificilmente o mundo terá oportunidade de acompanhar um espetáculo como o que vem por aí.


Alon Feuerwerker: Só lá na frente

Assim é a política. O quase ex-presidente Donald Trump acha pouco os US$ 600 que o Congresso quer dar a título de auxílio a milhões de americanos por causa da crise provocada pela Covid-19. Trump quer que sejam US$ 2.000. O problema? O valor aprovado foi fruto de um suado acordo neste pedregoso fim de ano entre deputados e senadores democratas e republicanos (leia).

Para quem está indo embora, jogar para a plateia e provocar confusão tem um custo apenas relativo. No caso de Trump, com um ingrediente adicional: ele está muito longe de pretender se aposentar, e um de seus alvos principais desde agora são os homens e mulheres do partido dele que correram, uns mais rapidamente, outros mais devagar, a reconhecer a vitória de Joe Biden.

E no Brasil? A criação de empregos vai razoavelmente bem, segundo o Caged (leia). Mas a recuperação leva mais gente a procurar emprego, e daí crescem também as taxas de desemprego (leia). Uma dúvida que continua é se a recuperação vai resistir ao fim do auxílio emergencial, que deixará o palco junto com 2020. Mas isso só saberemos lá na frente.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Zuenir Ventura: E Biden não virou jacaré

Presidente eleito dos EUA, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina da Pfizer/BioNTech

Além de tudo, a vacinação em massa seria um bom negócio para o país. É o que dizem duas autoridades econômicas do governo: o presidente do Banco Central e o ministro da Economia. Roberto Campos Neto afirma que investir em vacina é mais barato do que o pagamento de benefícios emergenciais. Já Paulo Guedes traduz isso em números. Em entrevista, ele lembrou que o auxílio emergencial chegaria a R$ 55 bilhões por mês, enquanto a vacinação da população custaria menos da metade, R$ 20 bilhões.

Isso não deveria ser novidade. Desde criança, me acostumei ao ritual de ser picado contra diversas doenças, numa boa. Doía um pouquinho, mas valia a pena, porque fazia bem à saúde da gente e do país. Nunca chegou a me fazer chorar.

Até que ultimamente comecei a ouvir perguntas disparatadas sobre possíveis efeitos que seriam causados pela imunização. Ideia de algum maluco, como a hipótese de que quem tomasse corria o risco de virar jacaré. Parei de rir quando soube que não era uma fake news das redes sociais. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi quem, num evento na Bahia, advertiu os ouvintes assustados: “Se você virar um jacaré, é problema seu”.

Ele não costuma dizer coisa com coisa, mas dessa vez garantia, com a autoridade de presidente da República, acredite, que o contrato da Pfizer/BioNTech isentava o laboratório da responsabilidade pelos efeitos colaterais. E dava mais exemplos: “Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) não têm nada a ver com isso”.

O teste definitivo aconteceu anteontem, quando o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina, justamente do laboratório contra o qual Bolsonaro lançara a advertência, o Pfizer/BioNTech.

Mas até ontem pelo menos, até o momento em que escrevo esta coluna, tudo indica que Joe Biden não virou jacaré. Se isso tivesse acontecido, acho que não só eu, mas o mundo todo teria sabido.


Yascha Mounk: Verniz de invencibilidade de Trump se desfaz com vitória de Biden

Republicano lançou tentativa de golpe mais incompetente desde 'Bananas', de Woody Allen

O presidente Donald Trump deixou uma coisa dolorosamente clara: depois de deixar a Casa Branca a contragosto, ele vai seguir fazendo tudo o que puder para continuar a ser notícia. Vai postar insultos e teorias conspiratórias no Twitter. Talvez abra seu canal de televisão próprio. E, segundo membros de seu círculo interno, é possível que se candidate a presidente em 2024.

Após meia década sob sua influência, muitos observadores políticos imaginam que Trump vai conseguir conservar a atenção da nação voltada para ele. Entendo por quê. Uma minoria considerável dos americanos acredita que a eleição foi fraudada e permanece profundamente devota ao presidente que está de saída.

Mesmo agora que a derrota de Trump libertou o Partido Republicano de seu captor, os políticos republicanos parecem estar sofrendo de um caso grave de síndrome de Estocolmo. E a única área na qual o 45º presidente já comprovou reiteradamente possuir talento real é sua capacidade de se manter no centro da atenção pública.

Mas, embora Trump ainda possa acabar se mostrando uma influência tão dominante sobre a política na década de 2020 quanto foi na década de 2010, esse resultado é menos provável do que muitos supõem.

Sobram teorias para tentar explicar a ascensão de Trump ao poder em 2016. De acordo com algumas, ele falou em nome dos economicamente despossuídos. Segundo outras, suas mensagens racistas disfarçadas atraíram eleitores preconceituosos.

Entretanto, embora as duas hipóteses ajudem a explicar parte de sua atração, a verdade é muito mais simples: milhões de americanos que não pensam muito em política encaravam Trump como um vencedor, um realizador.

Desde seus primeiros momentos de fama local em Nova York, ele vem moldando sua imagem pública cuidadosamente para dar ênfase a seu poder e seu sucesso.

Os insiders de Manhattan sabem que a verdadeira elite da cidade sempre o desprezou. Mas os leitores de seu livro “A Arte da Negociação” o encaram como exemplo rematado de um negociador dominante que sabe como usar seu poderio financeiro.

Jornalistas de negócios sabem que muitos dos empreendimentos de Trump foram à falência em pouco tempo e que ele poderia estar muito mais rico agora se tivesse simplesmente aplicado sua herança no mercado acionário. Mas, para a maioria dos americanos, o apresentador de “O Aprendiz” é a personificação de um empreendedor que construiu um grande império graças a seu incrível tino para os negócios.

Agora, porém, o verniz de invencibilidade de Trump está se desfazendo. Ele perdeu sua tentativa de reeleição e lançou a tentativa de golpe mais incompetente desde “Bananas”, de Woody Allen. Ele pode se enfurecer e falar loucuras sobre o que aconteceu em novembro, mas não poderá impedir seus seguidores de verem Joe Biden tomar posse em janeiro. O medo de qual pode ser seu próximo passo está dando lugar às gargalhadas. Trump está parecendo mais fraco e assustado a cada dia que passa.

Tampouco está claro se o presidente em final de mandato vai conseguir construir uma “Rede Trump de Jornalismo”. Se ele tiver um programa diário de uma hora na televisão, seus fãs mais devotos com certeza vão assistir. Mas, para ser comercialmente viável, seu canal teria que ampliar aquele público fundamental, atrair outros apresentadores que fossem capazes de conservar a atenção do público, contratar jornalistas que pudessem cobrir de fato o que acontece no mundo e atrair publicidade de empresas comuns.

Competir com a Rede Fox não seria fácil para ninguém que estivesse lançando uma nova rede de jornalismo conservador. Dado o histórico de incompetência de Trump tanto nos negócios quanto em seu cargo público, parece improvável que ele tivesse êxito nessa empreitada.

Tampouco é evidente que Trump pudesse realisticamente se candidatar à Presidência outra vez. Em 2024 ele pode estar falido, na prisão ou com a saúde muito fragilizada. E, mesmo que esteja em condições de disputar a candidatura presidencial republicana, ele não necessariamente a conquistaria.

O Partido Republicano teve uma composição ideológica relativamente estável no último meio século. O chamado “banquinho de três pés” unia conservadores sociais, defensores do livre mercado e figuras de linha dura na política externa, formando uma aliança intranquila, mas durável. Mas, precisamente pelo fato de a composição política do partido ser tão heterogênea, seus líderes mais influentes —de Richard Nixon a George W. Bush e de John McCain a Donald Trump— não guardam muita semelhança uns com os outros.

Que ninguém se engane: ainda é muito cedo para encarar Trump como carta fora do baralho. Pode ser que os americanos continuem a acompanhar seu feed no Twitter com horror ou fascínio pelos próximos quatro anos. Talvez os eleitores das primárias escolham Trump como candidato republicano em 2024. Pode até ser que Trump faça um retorno triunfal à Casa Branca.

Mas o que é possível não precisa ser provável. E as chances são muito boas que os americanos se entediem com as palhaçadas cada vez mais risíveis do mau perdedor que acabam de expulsar do cargo.

*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".


Moisés Naim: Trumpismo sobreviverá

Trump será o primeiro presidente dos EUA a ter um movimento político de massas com seu nome, como Mao Tsé-tung e Chávez

Os seguidores mais entusiasmados de Mao Tsé-tung, Juan Domingo Perón, Charles De Gaulle, Fidel Castro e Hugo Chávez deram lugar a movimentos políticos mais duradouros do que os líderes que os inspiraram.

Donald Trump será o primeiro presidente dos EUA a ter um movimento político de massas com seu nome. O trumpismo – caracterizado por sua retórica combativa contra elites e imigrantes, seu nacionalismo nostálgico, sua tendência autocrática e sua manipulação narcisista da mídia – tem muito em comum com movimentos políticos que adotaram o nome de seu líder. O trumpismo terá, portanto, uma vida longa e transcenderá Trump.

Alguns desses movimentos tiveram influência internacional, como o maoismo, enquanto outros eram predominantemente regionais, como o castrismo cubano, e alguns eram puramente nacionais, como o gaullismo francês e o peronismo argentino.

Esses movimentos têm muitas semelhanças: a transgressão rotineira das normas políticas estabelecidas, o oportunismo descontrolado, a propensão ao autoritarismo, o anti-intelectualismo e a hostilidade a regras e instituições que limitam a concentração de poder no Executivo são apenas algumas. O mesmo ocorre com a feroz inimizade contra rivais que não são vistos como compatriotas de ideias diferentes, mas como inimigos mortais.

As ideologias desses movimentos se revelaram de uma maleabilidade peculiar: o maoismo foi usado para legitimar o totalitarismo comunista de suas origens e, décadas mais tarde, para apoiar a abertura econômica que criou o atual modelo capitalista chinês. Na França, o gaullismo serviu para justificar o nacionalismo espinhoso do general De Gaulle e, posteriormente, o centrismo democrático de Jacques Chirac.

O peronismo argentino tornou-se famoso por sua plasticidade: originalmente justificou o fascismo “light” de Juan Domingo Perón e, décadas depois, as reformas neoliberais de Carlos Menem para, mais tarde, servir de base ao populismo de esquerda de Néstor e Cristina Kirchner. Na Venezuela, o chavismo transformou o país mais rico da América Latina em um dos mais pobres, mas pesquisas de opinião revelam que metade da população apoia Hugo Chávez, morto em 2013.

O trumpismo está prestes a entrar nesta lista, independentemente dos problemas jurídicos e políticos que afetarão Trump nos próximos anos. Com ou sem Trump, o trumpismo continuará. O movimento terá mais ou menos sucesso político, mas suas estratégias, táticas e truques para ganhar e manter o poder perdurarão.

Com suas ações e indiscutíveis sucessos políticos, o 45.º presidente dos EUA revelou ao mundo que é possível chegar ao poder fazendo e dizendo coisas que nenhum político ousou antes. Rotular imigrantes mexicanos como estupradores ou colocar crianças imigrantes em jaulas, insultar seus rivais ou outros chefes de Estado, mentir rotineira e abertamente e fazer o que é necessário para ampliar as divisões sociais existentes ou criar novas fontes de polarização e agitação social são coisas que não tiveram custo político para Trump. Ao contrário: permitiram que ele chegasse à Casa Branca e fosse o candidato mais votado da história dos EUA – depois de Joe Biden.

Inúmeros imitadores de Trump aparecerão nos próximos anos. Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, a quem seus seguidores chamam de “Trump dos trópicos”, é um de seus primeiros e mais bem-sucedidos imitadores. E, nos EUA, haverá uma multidão de candidatos que se declararão trumpistas, mas terão o cuidado de evitar as políticas catastróficas.

No curto prazo, o mais importante é o papel que Trump terá como líder da oposição ao governo Biden. Uma vez fora da Casa Branca, o ex-presidente deve se defender da avalanche de ações judiciais. Terá de passar muito tempo com seus advogados, juízes e promotores.

Simultaneamente, estará captando recursos, consolidando a máquina do trumpismo e uma plataforma de mídia semelhante à Fox News. Ao mesmo tempo, estará lutando pelo controle do Partido Republicano. 

A incerteza política continuará a reinar nos EUA. O certo é que Trump tem agora um movimento político de massas que servirá de base para que ele siga lutando para reconquistar o poder. Que seja. / Tradução de Augusto Calil

*É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowment


Celso Lafer: Joe Biden e Hannah Arendt

Derrota de Trump foi o choque da realidade do despropósito da sua conduta

Em 28 de maio de 1975 o senador Joe Biden escreveu uma pequena carta a Hannah Arendt para solicitar o envio da conferência que ela pronunciara em Boston em foro voltado para discutir o bicentenário dos Estados Unidos. Indicava que tinha tido notícia da reflexão arendtiana em artigo de Tom Wicker e observava que o conhecimento do texto era de seu interesse como integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

A carta integra os arquivos de Arendt, é de conhecimento público e teve alguma circulação no correr da campanha presidencial deste ano nos Estados Unidos. É, por si só, um exemplo de que Biden desde o início de sua vida pública tinha antenas para os grandes desafios do sistema político americano.

É sem conta o número de motivos que me levam a olhar com simpatia a eleição de Joe Biden, o que significa para os valores e a prática da democracia e o que deverá representar para um papel mais construtivo dos Estados Unidos no mundo. Para um estudioso da obra de Arendt, e sem forçar a mão, é natural buscar no seu texto de 1975, que interessou a Biden, elementos que contribuem para o entendimento do alcance da sua vitória eleitoral.

O texto de Arendt, na versão para o português, intitula-se Tiro pela culatra, para indicar que não se pode escapar da avaliação e das consequências de uma crise da república americana, tema que abordou. Hoje integra a coletânea de seus ensaios reunidos no livro Responsabilidade e Julgamento, organizado por Jerome Kohn e publicado em 2003.

O texto de Arendt resulta de suas reflexões sobre um momento de depreciação da vida política americana, que foi o da crise da presidência Richard Nixon e seus antecedentes, que acabou na sequência, observo eu, levando à eleição de Jimmy Carter, com sua dimensão de purgação moral. Tem como pano de fundo o livro de 1972, significativamente intitulado Crises da República, no qual tratou da mentira na política, da desobediência civil e da violência, e como lastro o seu Sobre a Revolução. Neste ela destacou que foi a Revolução Americana que implantou a primeira República moderna, instaurou o governo das leis por meio de uma duradoura Constituição dotada de autoridade que, atenta à pluralidade da condição humana, ensejou a gramática da ação e a sintaxe do poder.

As instituições democráticas republicanas, por mais sólidas que sejam, como as dos Estados Unidos, exigem para a sua durabilidade a prática de costumes democráticos, nisso se incluindo o virtuoso zelo do bem da República.

A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela “alma” dos Estados Unidos. Nessa batalha, Biden personificou uma afirmação de continuidade de valores e das instituições americanas, de suas práticas e seus costumes. Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do soft power de atração dos Estados Unidos. Além do mais, foi um esforço de operar um regime do “governo dos homens”, no caso, ele, em detrimento do “governo das leis”. É, por via de consequência, uma faceta da crise da República. Para essa dimensão o texto de Arendt oferece subsídios relevantes.

São muitos os pontos importantes da análise arendtiana de 1975 que comportam analogia com o deletério que a presidência Trump instalou na “alma” e no espírito das instituições americanas. Destaco: a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e nesse caminho pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados; o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência; o inserir da criminalidade nos processos políticos do país; o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder; o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio; o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (palavras de Arendt em 1975!); o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.

Em síntese, a fabricação da imagem como política global norteou a presidência Trump, atropelando no seu ímpeto as instituições republicanas dos Estados Unidos e os seus costumes e práticas. A fabricação da imagem como política global, realçou Arendt, se insere “no imenso arsenal da insensatez humana”. A derrota eleitoral de Trump foi o choque da realidade do despropósito de sua conduta.

Recolocar a República americana nos seus trilhos será a tarefa de Biden e de seus colaboradores. Não será tarefa fácil, como é sabido, e não apenas pela impregnação que Trump retém na sociedade americana e no Partido Republicano, mas também pelo radicalismo das polarizações que permeiam a vida do país e a complexidade do desafio da sua pauta. Nesse contexto, no entanto, as lições de Hannah Arendt de 1975 serão úteis a partir de janeiro de 2021.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Marcus Pestana: Sobre conservadores, liberais, progressistas e reacionários

Apesar dos efeitos paralisantes ocasionados pela pandemia da Covid-19, fatos importantes marcaram o cenário internacional em 2020, oferecendo pistas sobre o futuro e as ideias que o presidirão. O mais importante foi a vitória do democrata Joe Biden nos EUA e a derrota de Donald Trump. Parece uma sinalização clara de esvaziamento da onda de crescimento do populismo autoritário. O sentimento anti-globalista, xenófobo, racista, iliberal, antidemocrático, anti-humanista, vai dando lugar novamente a um mundo mais integrado, solidário e comprometido com a liberdade e a tolerância. Também os tropeços da concretização do Brexit, numa complexa negociação entre a Inglaterra e a União Europeia, indicam que a escolha da população inglesa talvez não tenha sido a melhor.

A China continua sua longa marcha rumo à hegemonia econômica, e mesmo servindo de espantalho ideológico para a guerra cultural dos reacionários, nunca esteve tão distante, com seu capitalismo de Estado ou seu socialismo de mercado, da matriz de pensamento marxista-leninista-maoísta. O resíduo que existe de socialismo real agoniza nas experiências de Cuba, Venezuela, Nicarágua e na exótica presença da Coreia do Norte no cenário mundial. Líderes do centro democrático, como Ângela Merkel e Macron, procuram manter posição de equilíbrio, diálogo e defesa da democracia.  A esquerda moderna e democrática procura respostas para o futuro no reposicionamento permanente do PD italiano, do PS português, do PSOE espanhol, dos socialdemocratas alemães em crise e do enfraquecido PS francês.Diante deste quadro assistimos a um embaralhamento desqualificado de conceitos e valores, onde há uma confusão enorme entre conservadorismo, liberalismo, progressismo e reacionarismo. Na polarização ideológica global os reacionários procuram usar o escudo do liberalismo e do conservadorismo contra uma caricatural e inexistente ameaça comunista.

Quando se desce do patamar do debate intelectual para a guerrilha das redes sociais, aí que a confusão se aprofunda e o besteirol ideológico impera. Vejo, no Brasil, um amplo espaço para a necessária convergência entre os verdadeiros conservadores, liberais e progressistas, em torno de uma agenda que articule a defesa da liberdade política, econômica e individual, a eficiência do Estado, o fortalecimento da sociedade civil e o combate às desigualdades. Por isto, é importante separar o joio do trigo.

Dou aqui algumas dicas para aqueles que de boa fé querem travar um debate qualificado sobre as ideias que devem governar nosso futuro. Quem quiser conhecer o verdadeiro pensamento conservador sugiro a leitura do livro “Edmund Burke, redescobrindo um gênio” de seu discípulo Russel Kirk. Para quem quiser ser introduzido no pensamento liberal uma boa dica é “O chamado da tribo, grandes pensadores para nosso tempo” de Mário Vargas Llosa. Os que quiserem se aprofundar numa visão progressista de mundo recomendo os artigos e livros do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Agora, quem quiser contrastar tudo isso com a visão atrasada e regressiva dos reacionários leia os livros de Olavo de Carvalho e os escritos de nosso chanceler Ernesto Araújo.

A teoria sem prática é estéril. A prática sem boa teoria é cega. Se queremos outro Brasil, o primeiro passo talvez seja colocar as ideias em ordem.         

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)