joe biden

Monica de Bolle: A posse e seus símbolos

Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos

Foram quatro anos de “meu jeito”. Se “meu jeito” tivesse alguma relação com o mundo real, talvez esses anos tivessem sido ligeiramente mais toleráveis, ainda que não muito menos terríveis. Mas, não. O jeito de Trump foi constituir uma realidade alternativa desde o início. Fatos alternativos, a expressão e a insistência na fantasia, começaram no dia da posse, e ele agiu todos os dias para implantá-los. Pois hoje, no tão esperado dia da partida do pior presidente dos Estados Unidos na história recente, o avião decolou para Mar-a-Lago ao som de “My way”, na voz de Frank Sinatra. Assisti à cena com uma alegria feroz e uma ponta de decepção, porque adoro Frank Sinatra. Mas esse foi tão somente o início do dia.

Na sequência da partida, que fez pensar como ética e estética se relacionam, vieram outras cenas. Solenes, esperançosas, alegres, até, apesar da tragédia, das mortes, das desavenças, de uma crueldade orgulhosa. Como normalmente ocorre em solenidades, foram vários os momentos marcantes da posse de Joe Biden e não tenho a pretensão de cobrir todo o seu simbolismo. O Mall, área central de Washington, D.C., que reúne seus monumentos e prédios históricos, parques, museus e galerias, aparecia na TV coberto de bandeiras dos Estados Unidos. Cada uma representava uma pessoa morta pelo vírus causador da Covid-19. Foi uma forma simples e eficaz de comunicar o valor da vida individual para o país. Lady Gaga, um ícone LGBT, cantou o hino com seu estilo inigualável. Já a cantora de origem porto-riquenha Jennifer Lopez clamou “justicia para todos”, após quatro anos de injúrias de Trump contra negros e latinos. Kamala Harris se tornou, no ato, a primeira vice-presidente: uma mulher, negra e filha de imigrantes. Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos.

Quem capturou a atenção na cerimônia, entretanto, foi Amanda Gorman, jovem poetisa de 22 anos, que declamou seu poema “O monte que galgamos” com alegria e bravura. Foi emocionante, e não houve sentimentalismo em suas palavras ou sua postura. Por isso foi tão impactante. Como ela disse, “nós, sucessores de um país e de uma época em que uma menina negra magricela, descendente de escravos e criada por uma mãe solteira pode sonhar em ser presidente, apenas para se ver recitando para um presidente”. Há promessa e poesia nessas palavras: promessa da política, pelo novo que irrompe anunciando aos que vieram antes que o mundo não perecerá, e poesia da política também. O poema de Gorman deixou claro que um ciclo se encerrava para que outro se abrisse. Novo. O novo como cumprimento da promessa, ainda que em situação de crise.

Os ritos pareciam encerrar a transição que se iniciou logo após a eleição. A seu término, Biden partiu para a Casa Branca com o propósito de desfazer males feitos por Trump.

O novo presidente vinculou os Estados Unidos de novo ao Acordo do Clima de Paris, tomou medidas para frear a pandemia e assinou decretos se comprometendo com a proteção social.

Comunicou por atos três pilares de seu governo: a proteção social, o meio ambiente e a saúde pública, além do multilateralismo. Sem ter tido muito tempo para refletir sobre o que tudo isso representa, fui chamada para uma entrevista. Nela me perguntaram: “Como ficam as relações entre o Brasil e os Estados Unidos”. Relações? Que relações? O Brasil de Bolsonaro tem relações frágeis com uns Estados Unidos imaginários, pois o amigo fantasia do presidente brasileiro, Trump-My-Way, jamais deu a mínima para ele ou para o país. De bate-pronto, respondi: vejamos os decretos que Biden acaba de assinar, os compromissos que acaba de assumir e os comparemos com o Brasil. Proteção social? Bolsonaro extinguiu o auxílio emergencial. Meio ambiente? Bolsonaro tem criado condições propícias ao desmatamento, com desmonte institucional e restrições orçamentárias. Saúde pública? Bolsonaro deixou morrerem centenas de milhares de brasileiros e fez de tudo para que a pandemia chegasse a seu pior momento. Multilateralismo? Seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto, é, ao mesmo tempo, antiglobalista e árduo defensor de um liberalismo econômico sem peias. Trata-se da política do “E daí?” em todas as áreas que são caras para Biden. Portanto, que relação Brasil-EUA?

É preciso muito pensar. Pensar nesse 20 de janeiro, nas promessas da política. Cultivar esse momento em que as possibilidades são muitas e estão em aberto a quem tem disposição para disputá-las.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Ruy Castro: Carta de Bolsonaro a Biden foi lida às gargalhadas

Os americanos têm nos arquivos cada trumpice de Bolsonaro, por mais ínfima e secreta

Lisboa, no verão de 1975, devia ser a cidade mais excitante do mundo para um jornalista. Era o auge da Revolução dos Cravos, que, no ano anterior, derrubara uma ditadura de 48 anos. O governo do premiê Vasco Gonçalves, na prática comunista, estava sendo pressionado pela extrema esquerda a radicalizar e, com isso, deu-se um festival de tomada de empresas, ocupação de fábricas e nacionalização dos bancos. Dizia-se que Portugal sairia da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), liderada pelos EUA, e se juntaria ao Pacto de Varsóvia, dominado pela URSS.

Morando e trabalhando lá, fui ao Pabe, botequim dos correspondentes estrangeiros, encontrar um bem informado repórter americano. "Os russos não têm interesse em Portugal", ele disse. "Imagine um país comunista na Europa, de porta para o Atlântico! Isso só lhes traria problemas com os EUA. O que eles querem é Angola". Referia-se à ainda colônia portuguesa, às vésperas da independência depois de longa guerra contra a metrópole recém-encerrada pelo governo Vasco. "Assim que Angola ficar formalmente livre, os russos irão em busca de seu petróleo e deixarão Portugal falando sozinho", completou.

No dia 11 de novembro, Portugal e os grupos de guerrilha assinaram a independência de Angola, e o MPLA (Movimento pela Libertação de Angola, pró-URSS) tomou o poder. Duas semanas depois, no dia 25, um golpe liquidou a Revolução dos Cravos. O repórter sabia o que dizia. Claro, seu informante era a CIA.

Se os americanos sabem até o que vai acontecer, imagine como não são seus arquivos. De Jair Bolsonaro, por exemplo, eles têm cada trumpismo, por mais ínfimo. De Ernesto Araújo, ministro do Exterior, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente, cada ato público ou secreto, legal ou ilegal —e tudo em assuntos de seu interesse.

Em Washington, a carta de Bolsonaro ao presidente Joe Biden foi lida às gargalhadas.


Ascânio Seleme: O exemplo de Trump

O caminho que ele percorreu até a derrota para Biden é o mesmo que Bolsonaro trafega

Trump seria muito provavelmente reeleito se não houvesse o coronavírus, que o desmascarou. Suas mentiras, apesar de contadas aos milhares, eram absorvidas como mais do mesmo. Pareciam uma bobagem. Não eram, como se veria mais tarde. Seu estado de confrontação permanente também não assustava no princípio. Seus adversários do Partido Democrata tampouco se entusiasmaram com a campanha que viam se encaminhar para uma derrota inevitável. Por isso, talvez, Biden tenha sido o candidato escolhido para a disputa, por ser o mais talhado para o sacrifício.

Embora seja um político valoroso, de trajetória impecável, Biden era visto como um homem velho, de outra época. Eleito, seria o mais velho presidente a tomar posse nos Estados Unidos. Além disso, ou talvez por isso mesmo, seus lapsos de memória eram considerados até por seus mais fiéis aliados como um problema político sério. Biden foi gago na juventude. Corrigiu o problema com tempo e terapia, mas eventualmente tropeça numa palavra ou engasga no meio de uma frase. Um problemão num debate eleitoral.

E foi assim, atropelando aqui e ali uma palavra que não conseguia pronunciar, esbarrando num detalhe, numa cifra, numa referência de que não podia se lembrar, que Biden foi tocando a campanha até ganhar a eleição com margem folgada. Surpresa? Vista desde janeiro de 2020, imensa surpresa. Mas, como a campanha refletiu a negligência de Trump com a pandemia e o transformou num símbolo do negacionismo, a vantagem substancial do republicano foi aos poucos evaporando.

Não foi a economia. Em janeiro do ano passado, a economia americana bombava, e o emprego era pleno. O presidente Donald Trump tinha autoridade, embora sua arrogância tenha sido seguidamente confundida com liderança. Claro que foi enorme o impacto do vírus sobre a vida econômica americana, como de resto em todo o mundo. Milhões de pessoas perderam o emprego, milhares de empresas fecharam suas portas definitivamente. Um número sem tamanho de esperanças e sonhos foi sepultado com os 400 mil americanos que perderam a vida para a Covid-19.

Mas o eleitor saberia interpretar o problema como uma tragédia global e não o atribuiria ao candidato Donald Trump, não fosse ele o mais antidemocrático, mentiroso, arrogante, beligerante e perverso presidente da história americana. Seu descaso negacionista com o vírus contribuiu para a exorbitância das mortes. Trump rejeitou sistematicamente o uso de máscaras, repetiu que o vírus era perigoso apenas para cardíacos e idosos e, já em outubro do ano passado, disse aos americanos: “Não deixem que o vírus domine suas vidas, não tenham medo, saiam às ruas”.

O caminho que Trump percorreu desde sua posse até a derrota para Biden é o mesmo que Jair Bolsonaro trafega no Brasil. E seu desfecho tem tudo para ser o mesmo. Se Bolsonaro não for cassado antes, muito provavelmente vai perder a eleição de 2022. Como ocorreu com Trump, a confiança popular, que era seu maior patrimônio quando tomou posse, foi se deteriorando pelos mesmos motivos que destruíram o ídolo norte-americano: a mentira, o ódio, o desprezo à vida e o desrespeito à democracia.

No Brasil, a pandemia contaminou o governo Bolsonaro da mesma forma que destruiu o de Trump. Uma boa parte das mais de 210 mil vítimas brasileiras deve ser atribuída à negligência e ineficiência do governo federal. A ilusão do tratamento precoce e o descaso com cuidados básicos, além dos maus exemplos, da politização do vírus e do atraso deliberado na compra de vacinas, aumentaram a conta de brasileiros mortos. Bolsonaro, seus pazuellos e ernestos um dia pagarão pelos crimes agora cometidos.

E agora, quando percebeu estar encurralado, tornou a ameaçar a democracia. Uma de suas velhas retóricas, a mais infame delas, voltou a brotar na boca do presidente. Os brasileiros devem dar ao golpismo de Bolsonaro o mesmo destino que os americanos deram ao de Trump: o lixo. Se não for já, que seja logo mais, em outubro do ano que vem.


Míriam Leitão: A democracia prevaleceu

O governo Joe Biden começou ontem, através do ritual da posse e do tom do discurso, a restauração dos fundamentos da democracia americana. A fala dele pedindo união poderia ser apenas protocolar, não fosse o fato de que a divisão foi levada ao absurdo pelo seu antecessor, que governou aprofundando o fosso social e político. Por isso, os ritos em Washington foram mais valiosos.

“Aprendemos de novo que a democracia é preciosa, que a democracia é frágil e, nesta hora, a democracia prevaleceu”. Poderia ser apenas uma frase bonita de um discurso de posse, exceto pela realidade de que ali mesmo onde Biden falava, duas semanas antes, uma horda de radicais insuflados pelo então chefe do governo havia tentado simplesmente impedir o ato do Congresso de reconhecer a eleição.

Biden começou ontem mesmo a desfazer a herança recebida. Todos rigorosamente de máscara durante todo o evento era um recado. Mas eles foram muitos em cada momento. Os gestos recíprocos entre o governo democrata que começa e republicanos como o ex-vice-presidente Mike Pence e o senador Mitch McConnell e, principalmente, o ex-presidente George Bush, deram sentido à frase: “a política não precisa ser um jogo violento destruindo tudo em seu caminho.”

Um presidente na sua posse defender a “verdade” seria visto como algo completamente banal, não fosse o fato de que a mentira é hoje um problema real da política. Um mentiroso compulsivo ocupou a presidência por quatro anos e falou mais de 30 mil mentiras, contabilizou o “Washington Post”. Na pior delas, feriu a base da democracia. O ataque ao Capitólio, disse o senador republicano Mitch McConnell, foi “alimentado por mentiras” e provocado por Trump.

Exaltar a diversidade da América também é previsível. Mas ganhou um sentido concreto, num governo que quebra um enorme precedente. A primeira mulher vice-presidente da história do país. Kamala Harris chega carregada de simbolismo pela sua origem. A mãe dela veio jovem da Índia para estudar e fazer carreira nos Estados Unidos. Sempre foi subestimada por seu sotaque forte. Casou-se com um jamaicano negro e teve duas filhas. Uma delas hoje está sentada na segunda cadeira mais poderosa do país e ontem à tarde deu posse aos novos senadores.

O discurso, portanto, era sincero. A posse de ontem refletia essas escolhas e valores. As primeiras ordens executivas confirmavam o que Biden havia dito. A volta ao acordo de Paris também não é um mero gesto. Significa o fim do isolacionismo que vigorou nos últimos anos, mas, além disso, é um compromisso que pode ter um impacto concreto. Os Estados Unidos são o segundo maior emissor de gases de efeito estufa.

Na sua sabatina no Senado na terça-feira, a nova secretária do Tesouro, Janet Yellen, falou que a retomada da economia terá que privilegiar projetos de infraestrutura, e fontes de energia que emitam menos. E que todo o sistema de subsídios terá que ter em mente a preocupação ambiental. Chegou a especificamente defender estímulo ao carro elétrico. A retomada da economia terá esse eixo, reduzir os riscos climáticos e por isso a terceira ordem executiva que Biden assinou foi a volta ao acordo global do clima. A primeira foi o uso de máscaras nos locais onde ele pode legislar. Lá como aqui, governadores e prefeitos podem decidir, mas isso não significa, como Bolsonaro sempre repete, que o governo federal nada possa fazer. Biden está determinado a fazer, e muito, pelo combate à pandemia, que ele definiu como inimiga do país. E outra decisão foi a volta à Organização Mundial de Saúde.

Os Estados Unidos estão de volta. De volta aos seus sonhos de um país de democracia forte, de rituais centenários de transição de poder, de busca de inclusão, e de relação com o mundo. O multilateralismo sentiu muita falta dos Estados Unidos. A Europa é que o diga.

Biden falou que a democracia foi testada e mostrou resiliência. É inevitável pensar no Brasil. Em dias em que, de novo, o presidente brasileiro rosna ameaças, como a de que as Forças Armadas é que decidem se há ou não democracia, e em que o seu procurador-geral insinua “estado de defesa”, é bom lembrar a razão da fragilidade da democracia. Por ser um sistema aberto, ela abriga seu próprio inimigo. E ele pode chegar à Presidência. Nos Estados Unidos, no fim, a democracia prevaleceu.


Merval Pereira: Isolados no mundo

Já tivemos um governo cujo embaixador em Washington, Juracy Magalhães, dizia que “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”. Embora a esquerda latino-americana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, o governo Lula em 2008 preferia um presidente republicano, porque seria "menos protecionista" e menos "próximo dos tucanos".

A relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre os ex-presidentes Fernando Henrique e Bill Clinton, uma relação também especial nasceu entre Lula e Bush, que teve uma convivência mais amistosa com ele do que com Fernando Henrique Cardoso, que já declarou que sentiu "asco físico" por Bush.

Provavelmente Bush sentia em Fernando Henrique uma rejeição intelectual que não acontecia com Lula, cujo temperamento  é mais parecido com o dele.  Embora tenha sido Obama que o chamou de “o cara”, fazendo com que sua imagem internacional se fortalecesse, nunca foram próximos e,  em sua autobiografia “Uma terra prometida”, Obama comentou que soube do envolvimento do ex-presidente brasileiro em falcatruas, o que irritou Lula.

O fato é que até mesmo governos militares como o do General Geisel souberam lidar com a política externa de maneira pragmática, reatando relações diplomáticas com a China e reconhecendo a libertação das colônias portuguesas na África, mesmo com comunistas liderando as guerras de libertação.

Com Bolsonaro, voltamos ao tempo em que tudo vindo dos Estados Unidos conservador e retrógrado de Donald Trump estava bom, embora não tenhamos tido nenhuma vantagem por esse relação de subserviência ideológica. A vitória de Biden foi rejeitada pelo governo Bolsonaro até que Trump desistisse de tentar anular o pleito, e nenhum governo brasileiro torceu tanto por um candidato quanto o de Bolsonaro por Trump.

A consequência é que vamos ficar, como se previa, isolados, párias na comunidade internacional, porque estamos na contra mão do mundo ocidental, onde nos inserimos geopoliticamente. Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos, vai retomar as políticas que fizeram dos EUA uma liderança mundial:  o acordo do clima de Paris, o nuclear com o Irã, e vai voltar à Organização Mundial do Comércio (OMC).

O Brasil está agora sobrando. Não consegue ficar bem nem com os governantes com a mesma tendência. Narendra Modi, o Primeiro-Ministro da Índia, é um politico de direita que poderia ser uma ligação com Bolsonaro, mas entramos em conflito com a Índia por causa de interesses americanos ao não apoiar a reivindicação de quebra de patentes na pandemia que favoreceria as empresas indianas, maiores fabricantes de insumos farmacêuticos.

A resposta veio com o retardamento das doses de vacina contra a COVID-19 para o Brasil. É inacreditável que o país não tenha percebido que o BRICS era um organismo importante geopoliticamente. Desprezou-o até o ponto em que o Secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo elogiou o Brasil por ter deixado de lado os BRICS. Nunca houve tanta clareza de que nem sempre os interesses do Brasil são os dos Estados Unidos.

O Brasil nesses dois anos de bolsonarismo sempre cedeu aos EUA, e entrou em conflitos desnecessários, com a China, com a Índia, com a Argentina. Uma política externa tosca, que acha que pode ter uma relação normal com o novo governo democrata, e pode culpar o embaixador chinês pelos desentendimentos, depois de praticamente vetar a tecnologia 5G chinesa.  

Com Biden vai piorar, porque ele é um outro tipo de político, liberal, e a nossa relação com os EUA vai ficar muito difícil se não houver uma mudança, primeiro do chanceler, que está nos envergonhando no mundo. Estamos com uma perspectiva muito ruim no exterior e o caso das vacinas é uma prova inconteste. Bolsonaro é pragmático, mudou na política do Congresso da água pro vinho, se adaptou ao Centrão. Só que para mudar a política externa, teria que evoluir, mas é quase impossível que venha a ter uma visão ampla da política externa, neutra em relação a interesses ideológicos específicos.

Faz uma política externa mais ideológica do que a do PT. Bolsonaro não entende política externa como de Estado.


O Estado de S. Paulo: Biden assina retorno dos EUA ao Acordo de Paris e à OMS

Novo presidente americano assina 17 ações executivas, agindo rápido para desmantelar o legado de seu antecessor, Donald Trump

O novo presidente americano, Joe Biden, assinou 17 ordens executivas nesta quarta-feira, 20, que incluem o retorno dos Estados Unidos ao  Acordo de Paris de 2015e à Organização Mundial da Saúde (OMS). Em primeira aparição no Salão Oval, o democrata disse que estava assinando ações "ousadas". "Não há tempo para começar como hoje", disse Biden, completando que essas ações visam cumprir suas promessas ao povo americano.

Ao assinar as 17 ações executivas durante suas primeiras horas no cargo, Biden torna-se o mais rápido a desmantelar o legado de um  antecessor do que qualquer outro presidente da história moderna. As medidas incluem memorandos, ordens executivas e diretivas para as agências, dando os primeiros passos para lidar com a pandemia do coronavírus e desfazer algumas das políticas que foram a marca do governo Donald Trump

A volta ao Acordo de Paris, compromisso anunciado antes da posse por Biden, está entre os decretos já assinados pelo presidente. "Vamos combater as mudanças climáticas de uma forma que não tínhamos tentado até agora", disse a jornalistas.

Mais cedo, o presidente da FrançaEmmanuel Macron comemorou a volta dos Estados Unidos ao acordo global que busca conter aquecimento.

O retorno à Organização Mundial da Saúde (OMS) também foi consolidado pelo presidente americano nesta quarta, 20. Sob o comando de Trump, o país deixou a OMS em meio à pandemia do novo coronavírus, com acusações de que a China exercia pressão sobre a agência. Uma das primeiras ordens de Biden, também uma medida na contramão de Trump, foi a obrigatoriedade do uso de máscara em todos os prédios federais.

O presidente ordenou também que as agências federais interrompam toda a formulação de regras até que seu governo tenha tempo para revisar as regulamentações propostas. O chefe de gabinete da Casa Branca, Ron Klain, anunciou a medida em um memorando aos chefes de departamentos executivos e agências na tarde de quarta-feira. A ordem de congelamento regulatório é ato importante nas transições presidenciais, permitindo que o novo governo analise as ações pendentes de seus antecessores.

Compromisso anterior, Biden revogou licença para o polêmico oleoduto Keystone XL, projeto há muito tempo debatido. O Keystone XL, de 2.574 km, tinha como objetivo transportar petróleo bruto do Canadá para o Estado americano do Nebraska, onde se conectaria a uma rede existente para entregar o petróleo a refinarias no Golfo do México. 


Biden pede união em discurso de posse: 'A democracia prevaleceu'; leia a íntegra

Presidente fez seu primeiro discurso a frente do cargo durante a cerimônia de posse, realizada nesta quarta-feira, 20, no Capitólio

Em seu primeiro discurso como presidente dos Estados Unidos, Joe Biden pediu união durante a cerimônia de posse realizada nesta quarta-feira, 20, no Capitólio, em Washington. O presidente afirmou que "a democracia prevaleceu" em sua vitória contra Donald Trump nas eleições do ano passado, e prometeu ser o presidente de todos os americanos, independente de terem votado nele ou no opositor.

"Vivemos a nação que queremos ser e podemos ser", disse Biden, que agradeceu a presença de integrantes de ambos os partidos na cerimônia de posse, entre eles os ex-presidentes democratas Barack Obama e Bill Clinton, o ex-presidente republicano George W. Bush, e o ex-vice presidente, Mike Pence. "Sei da resiliência da nossa Constituição e da força de nossa nação".

Biden reconheceu que o país atravessa um momento conturbado politicamente, mencionando a pandemia do novo coronavírus e seus prejuízos econômicos. "Poucas pessoas em nossa história viveram momentos mais difíceis do que o que estamos vivendo neste momento", disse. O presidente também citou problemas políticos, como o supremacismo branco e o terrorismo doméstico, desafios que prometeu "vencer". 

"Precisamos de mais do que palavras, precisamos de uma das coisas mais difíceis de uma democracia: a união". E completou: "Peço que todos os americanos façam o mesmo comigo nesta causa: unidos para combater os inimigos que temos, a raiva, ressentimento, extremismo, ilegalidade, violência, doenças, desemprego. Juntos, podemos fazer coisas grandes e consertar erros". PARA ENTENDERBiden venceu nos EUA. O que muda no mundo? Análises exclusivas respondemDecisões do presidente dos EUA sobre economia, política externa, imigração, meio ambiente e mesmo comportamento afetam a sua vida. Banco de análises traz projeções de quem mais entende sobre os efeitos do futuro governo Biden

Em seu apelo por união, Biden fez também uma defesa da boa política, afirmando que ela não precisa ser um "incêndio que destrói tudo a sua frente".  

"Tanta discórdia não precisa levar a guerras. Precisamos rejeitar a cultura onde fatos são manipulados e inventados. Caros americanos, temos de ser diferentes. Os EUA têm de ser melhor do que isso. E creio que EUA são muito melhor do que isso", afirma.

Em parte do discurso que direcionou "aos que nos ouvem além de nossas fronteiras", Biden afirmou que os Estados Unidos vão retomar o protagonismo no cenário internacional. "Vamos liderar não só pelo exemplo da nossa força, mas pela força do nosso exemplo", disse o presidente.

De acordo com Biden, durante sua gestão, os EUA serão um parceiro forte e confiável e voltará a participar das negociações internacionais, em claro sinal de que irá reverter a política isolacionista adotada pelo seu antecessor, Donald Trump.

O presidente também ressaltou o fato de estar junto de Kamala Harris, a primeira vice-presidente negra da história, exaltando o local onde Martin Luther King fez seu famoso discurso de 1963 em defesa dos direitos dos negros.

Por fim, o presidente listou os grandes desafios que sua gestão terá pela frente, como a pandemia do coronavírus, as mudanças climáticas e o próprio papel dos Estados Unidos. "Há muito a ser feito. E uma certeza: prometo a vocês, nós seremos julgados por como vamos lidar com essa crise da nossa era".

Leia a íntegra do discurso: 

Chefe de Justiça Roberts, Vice-presidente Harris, Presidente da Câmara Pelosi, Líder do Senado Schumer, McConnell, vice-presidente Pence, meus distintos convidados e meus companheiros americanos, este é o dia dos Estados Unidos.

Este é o dia da democracia. Um dia de história e esperança de renovação e resolução através de um cadinho para todos os tempos. Os EUA foram testados de novo e estão à altura do desafio. Hoje, celebramos o triunfo não de um candidato, mas de uma causa, a causa da democracia. O povo, a vontade do povo, foi ouvido e a vontade do povo foi atendida.

Aprendemos novamente que a democracia é preciosa. A democracia é frágil. A esta hora, meus amigos, a democracia prevaleceu.

A partir de agora, neste solo sagrado, onde apenas alguns dias atrás, a violência procurou abalar os próprios alicerces do Capitólio, nos reunimos como uma nação, sob Deus, indivisível para realizar a transferência pacífica de poder, como fizemos por mais de dois séculos.

Ao olharmos para a frente em nosso jeito exclusivamente americano: inquietos, ousados, otimistas e voltados para a nação que podemos e devemos ser.

Agradeço aos meus antecessores de ambos os partidos a sua presença aqui hoje. Agradeço do fundo do meu coração. E eu sei, eu conheço a resiliência de nossa Constituição e a força de nossa nação. Assim como o Presidente Carter, com quem falei ontem à noite, que não pode estar conosco hoje, mas a quem saudamos por sua vida inteira de serviço.

Acabei de fazer o juramento sagrado. Cada um desses patriotas o tomou. O juramento, feito pela primeira vez por George Washington. Mas a história americana não depende de nenhum de nós, não de alguns de nós, mas de todos nós, de nós, as pessoas que buscam uma união mais perfeita.

Esta é uma grande nação. Somos boas pessoas. E ao longo dos séculos, através de tempestades e conflitos, na paz e na guerra, chegamos tão longe. Mas ainda temos muito a percorrer. Seguiremos em frente com velocidade e urgência, pois temos muito a fazer neste inverno de perigos e possibilidades significativas, muito a reparar, muito a restaurar, muito a curar, muito a construir e muito a ganhar.

Poucas pessoas na história de nossa nação foram mais desafiadas ou acharam uma época mais desafiadora ou difícil do que a que estamos agora. Um vírus que ocorre uma vez em um século e que silenciosamente espreita o país. Custou tantas vidas em um ano quanto os Estados Unidos perderam em toda a Segunda Guerra Mundial. Milhões de empregos foram perdidos. Centenas de milhares de empresas fechadas. Um grito por justiça racial, há cerca de quatrocentos anos em andamento, nos emociona. O sonho de justiça para todos não será mais adiado.

O grito de sobrevivência vem do próprio planeta, um grito que não pode ser mais desesperado ou mais claro. E agora um aumento do extremismo político, supremacia branca, terrorismo doméstico que devemos enfrentar e iremos derrotar. Superar esses desafios, restaurar a alma e garantir o futuro da América exige muito mais do que palavras. Requer o mais elusivo de todas as coisas em uma democracia: unidade, unidade.

Em outro janeiro, no dia de Ano Novo em 1863, Abraham Lincoln assinou a Proclamação de Emancipação. Quando ele colocou a caneta no papel, o presidente disse, e eu cito, “se meu nome entrar para a história, será por causa deste ato. E toda a minha alma está nisso.”

Minha alma inteira estava nisso hoje. Neste dia de janeiro, toda a minha alma está nisso: Trazer os Estados Unidos juntos, unindo nosso povo, unindo nossa nação. E peço a todos os americanos que se juntem a mim nessa causa.

Nos unindo para lutar contra os inimigos que enfrentamos: a raiva, o ressentimento, o ódio, o extremismo, a ilegalidade, a violência, a doença, o desemprego e a desesperança. Com unidade, podemos fazer grandes coisas, coisas importantes. Podemos corrigir os erros. Podemos colocar pessoas para trabalhar em bons empregos. Podemos ensinar nossos filhos em escolas seguras. Podemos superar o vírus mortal. Podemos recompensar, recompensar o trabalho e reconstruir a classe média e tornar o sistema de saúde seguro para todos. Podemos oferecer justiça racial e fazer dos Estados Unidos mais uma vez a principal força do bem no mundo.

Sei que falar de unidade pode soar para alguns como uma fantasia tola hoje em dia. Sei que as forças que nos dividem são profundas e reais, mas também sei que não são novas. Nossa história tem sido uma luta constante entre o ideal americano de que todos somos criados iguais e a dura e horrível realidade de que o racismo, o nativismo, o medo e a demonização há muito nos separaram. A batalha é perene e a vitória nunca está garantida.

Durante a guerra civil, a Grande Depressão, a guerra mundial, o 11 de setembro, através de lutas, sacrifícios e contratempos, nossos melhores anjos sempre prevaleceram. Em cada um desses momentos, muitos de nós, muitos de nós nos reunimos para levar todos nós adiante. E podemos fazer isso agora. História, fé e razão mostram o caminho, o caminho da unidade. Podemos nos ver não como adversários, mas como vizinhos. Podemos tratar uns aos outros com dignidade e respeito. Podemos unir forças, parar a gritaria e baixar a temperatura. Pois sem unidade não há paz, apenas amargura e fúria. Nenhum progresso, apenas uma indignação exaustiva. Nenhuma nação, apenas um estado de caos.

Este é nosso momento histórico de crise e desafio. E a unidade é o caminho a seguir. E devemos conhecer este momento como Estados Unidos da América. Se fizermos isso, garanto que não iremos falhar. Nunca, jamais, jamais falhamos na América quando agimos juntos.

E então hoje neste momento neste lugar, vamos começar do zero, todos nós. Vamos começar a ouvir uns aos outros novamente. Ouça um ao outro, veja um ao outro, mostre respeito um pelo outro. A política não precisa ser um fogo violento, destruindo tudo em seu caminho. Cada desacordo não precisa ser causa de guerra total. E devemos rejeitar a cultura na qual os próprios fatos são manipulados e até fabricados.

Meus companheiros americanos. Temos que ser diferentes disso. Os Estados Unidos tem de ser melhor do que isso. E eu acredito que é muito melhor do que isso. Basta olhar em volta. Aqui estamos, à sombra da cúpula do Capitólio, como foi mencionado antes, concluída durante a Guerra Civil, quando a própria união estava literalmente na balança. Ainda assim, nós resistimos, nós prevalecemos.

Aqui estamos olhando para o grande mall onde o Dr. King falou de seu sonho. Aqui estamos nós, onde há 108 anos, em outra posse, milhares de manifestantes tentaram bloquear a marcha de mulheres corajosas pelo direito de voto. E hoje comemoramos o juramento da primeira mulher na história dos Estados Unidos eleita para um cargo nacional: a vice-presidente Kamala Harris. Não me diga que as coisas não podem mudar.

Aqui estamos do outro lado do Potomac, do Cemitério de Arlington, onde os heróis que deram a última medida completa de devoção descansam em paz eterna. E aqui estamos nós, poucos dias depois que uma turba violenta pensou que poderia usar a violência para silenciar a vontade do povo, para parar o trabalho de nossa democracia, para nos tirar deste solo sagrado.

Seremos um parceiro forte e confiável para paz, progresso e segurança. Olha, todos vocês sabem, nós passamos por muito nesta nação. E meu primeiro ato como presidente, gostaria de pedir a você que se junte a mim em um momento de oração silenciosa para lembrar todos aqueles que perdemos no ano passado para a pandemia. Aqueles quatrocentos mil compatriotas americanos, mães, pais, maridos, esposas, filhos, filhas, amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Iremos honrá-los tornando-nos o povo e a nação que sabemos que podemos e devemos ser. Por isso, peço a vocês, vamos fazer uma oração silenciosa por aqueles que perderam suas vidas, aqueles que ficaram para trás e por nosso país.

Amém.

Gente, este é um momento de teste. Enfrentamos um ataque à nossa democracia e à verdade, um vírus violento, crescente desigualdade, a picada do racismo sistêmico, um clima em crise, o papel da América no mundo. Qualquer um desses será o suficiente para nos desafiar profundamente. Mas o fato é que enfrentamos todos de uma vez, apresentando a esta nação uma das responsabilidades mais graves que já tivemos. Agora vamos ser testados. Nós vamos intensificar? Todos nós? É hora de ousadia, pois há muito o que fazer. E isso é certo, eu prometo a você, seremos julgados, você e eu, pela forma como resolveremos essas crises em cascata de nossa era.

Estaremos à altura da ocasião, é a questão. Vamos dominar esta hora rara e difícil? Será que vamos cumprir nossas obrigações e passar adiante um mundo novo e melhor para nossos filhos? Eu acredito que devemos. Tenho certeza que você também. Eu acredito que sim. E quando o fizermos, escreveremos o próximo grande capítulo da história dos Estados Unidos da América. A história americana. Uma história que pode soar como uma música que significa muito para mim. É chamado American Anthem. Tem um versículo que se destaca, pelo menos para mim, e é assim:

O trabalho e as orações de um século nos trouxeram até hoje.

Qual será o nosso legado? O que nossos filhos dirão?

Deixe-me saber em meu coração quando meus dias acabarem.

América, América, dei o meu melhor para vocês.

Vamos adicionar. Vamos adicionar nosso próprio trabalho e orações ao desenrolar da história de nossa grande nação. Se fizermos isso, quando nossos dias chegarem ao fim, nossos filhos e os filhos de nossos filhos dirão de nós: Eles deram o seu melhor, cumpriram seu dever, curaram uma terra devastada.

Meus compatriotas, eu encerro o dia em que comecei, com um juramento sagrado diante de Deus e de todos vocês. Dou minha palavra, sempre serei sincero com você. Vou defender a Constituição. Vou defender nossa democracia. Defenderei a América e darei tudo, tudo de vocês. Manter tudo o que eu faço a seu serviço, pensando não no poder, mas nas possibilidades, não no interesse pessoal, mas no bem público. E juntos escreveremos uma história americana de esperança, não de medo. De unidade, não de divisão. De luz, não escuridão. Uma história de decência e dignidade, amor e cura, grandeza e bondade. Que esta seja a história que nos guia. A história que nos inspira e a história que conta os tempos que ainda virão e que atendemos ao chamado da história. Nós conhecemos o momento. Democracia e esperança, verdade e justiça não morreram sob nossa supervisão, mas prosperaram. Que a América garantiu a liberdade em casa e permaneceu mais uma vez como um farol para o mundo. Isso é o que devemos aos nossos antepassados, uns aos outros e às gerações seguintes.

Assim, com propósito e determinação, nos voltamos para as tarefas de nosso tempo. Sustentados pela fé, movidos pela convicção, devotados uns aos outros e ao país que amamos de todo o coração. Que Deus abençoe a América e que Deus proteja nossas tropas. Obrigado, América.

NOTÍCIAS RELACIONADAS


Míriam Leitão: Primeiros e difíceis trabalhos de Biden

Não há mal que sempre dure. O governo Trump acaba e hoje começa a administração Joseph Biden e Kamala Harris. Não será um tempo fácil. Os Estados Unidos chegam a impensáveis 400 mil mortos por coronavírus e a recessão ceifa empregos. Biden terá que tomar decisões urgentes contra a pandemia. Por ordens executivas ele vai revogar políticas de Trump, principalmente na área externa. Tentará aprovar o pacote de US$ 1,9 trilhão de socorro aos trabalhadores e à economia e, como disse ontem Janet Yellen, a nova secretária do Tesouro, a mudança climática será assunto central na administração.

O economista José Alexandre Scheinkman, professor de Columbia, e professor emérito de Princeton, descreve o quadro em que o novo presidente assumirá:— Biden está em situação complicada. A pandemia está acelerando, e os números previstos para os próximos meses são muito ruins. É difícil mudar a trajetória a curto prazo. O desemprego está com um número alto. Ele tem maioria apertada na Câmara e no Senado, e uma fração não desprezível da população está convencida, por fake news, evidentemente, de que Trump ganhou a eleição.

Em compensação, Scheinkman se diz muito impressionado com a qualidade da equipe que Biden escolheu em áreas fundamentais como economia e ciência:

— Janet Yellen é uma economista com merecida e ótima reputação, e todo mundo concorda que a conduta dela no Fed foi excelente. Para o Conselho de Assessores Econômicos, escolheu minha ex-colega de Princeton Cecilia Rouse, que respeito muito. É muito melhor do que qualquer dos conselheiros de Trump. Ele escolheu como assessor científico Eric Lander, que liderou nada menos que o Human Genome Project, extraordinariamente competente. E elevou o cargo ao nível de ministro. Depois de um governo que não acreditava em ciência, ele nomeou um cientista de primeiríssima linha.

Biden começa assim com uma mudança radical de atitude, mas seu primeiro trabalho, segundo Scheinkman, será “apagar incêndios”.

— Mudança climática é um desses incêndios. Evidentemente, os Estados Unidos voltarão ao Acordo de Paris. Trump tomou várias decisões nos últimos dias que se forem implementadas vão acelerar a crise climática. Biden terá de rever. Mas o mais imediato é reduzir a mortalidade da pandemia. E ele terá que negociar seu pacote, que ainda é apenas uma intenção e será alterado no Congresso. Sobre a economia, há um relativo otimismo de que a vacinação permitirá a volta — diz Scheinkman.

O professor diz que a crise de 2008, que Obama enfrentou ao assumir, destruiu o sistema financeiro, e a economia teve dificuldades. Não havia dinheiro, não havia empréstimos, nem investimentos. Agora, é diferente:

— Esta tem um aspecto que a gente não entende. A demanda pode voltar, mas os pequenos negócios podem ter desaparecido. Aqui em Nova York, todos gostam de café, mas alguns podem ter fechado. Muitos donos de loja desistiram do negócio.

Scheinkman diz que a vacinação é um grande desafio, porque há mais vacina produzida e entregue ao governo central do que as que estão sendo aplicadas pelos estados. Há um problema federal e outro estadual. Ele foi vacinado na segunda-feira, em Nova York:

— O processo ficou muito lento aqui, mas Cuomo (Andrew Cuomo, governador de Nova York) fez alterações. Uma delas é a de incluir professores de todas as redes, inclusive universitários, e pessoas de mais de 65 anos.

O mundo mudará radicalmente hoje, porque a direção da principal potência do mundo será outra, a partir do meio-dia. O Brasil sente nos últimos dias o peso da estúpida opção pelo isolamento. É uma das maiores nações do mundo, em extensão e em PIB, mas o presidente, seus assessores internacionais e seu ministro das Relações Exteriores são adeptos de teorias da conspiração. Ernesto Araújo chegou a dizer “que seja um país pária”. Ontem, o país não conseguia receber as vacinas da Índia, tinha dificuldades de diálogo com a China, e Bolsonaro viu o fim do governo do seu idolatrado Donald Trump. É um crime fazer isso com o Brasil, que sempre teve uma competente diplomacia. No caso dos Estados Unidos, a política externa de Bolsonaro cometeu o erro mais primário, o de confundir país com governo. Criou relações com Trump, que era transitório, em vez de ser com os Estados Unidos, hoje sob nova direção.


Elio Gaspari: 2021 começou bem

Há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde?

Ao meio-dia de hoje, Joe Biden deverá assumir a Presidência dos Estados Unidos, e Donald Trump foi-se embora. No Brasil, começou a ser aplicada a vacina contra a Covid-19. Mudou o jogo. Dois centros irradiadores de ansiedade e morte perderam a iniciativa. O capitão Bolsonaro e o general Pazuello podem dizer o que bem entenderem, mas há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde? Trump continuará dizendo que ganhou a eleição, mas Biden estará no Salão Oval.

Bolsonaro e Pazuello continuarão em guerra contra João Doria, mas foi ele quem acelerou a chegada da vacina. No caso do relacionamento com o governo de Joe Biden, o problema será outro. Noves fora todas as pirraças de uma diplomacia que se sente bem colocando o país na condição de pária, haverá uma nova realidade na Casa Branca. (Na Índia, a vacinação maciça imunizará seus párias, antes que as vacinas do general Pazuello cheguem aos marajás de Pindorama.)

No lugar de um delirante vulgar, estará na Casa Branca um mandarim que passou oito anos na vice-presidência e 36 no Senado. Para o atual governo brasileiro, a chegada de Biden irá além das diferenças entre republicanos e democratas, ambientalistas e agrotrogloditas. Trump levou consigo a capacidade de operar numa realidade paralela, dimensão frequentada por Bolsonaro, pelo venezuelano Nicolás Maduro e pelo filipino Rodrigo Duterte.

O veterano diplomata americano Thomas Shannon, ex-embaixador no Brasil e ex-subsecretário de Estado no início da administração de Trump, já disse que as relações entre os dois países estavam fora do eixo. Numa linguagem que não faz seu estilo, Shannon comentou o negacionismo eleitoral endossado por Bolsonaro: “É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido”.

Tendo perdido o farol trumpista, se o governo brasileiro continuar na sua órbita de realidade paralela, ficará falando sozinho, prisioneiro de suas fantasias. Os americanos poderão controlar a agenda com um parceiro malcriado.

Lidando com a pandemia, Bolsonaro investiu-se de poderes que não tem. Como o mercado brasileiro é grande, ele supôs que os vendedores de vacinas e de seringas fariam fila à sua porta. Acabou pendurado no imunizante “do João Doria” que demonizou, garantindo que “NÃO SERÁ COMPRADA” (maiúsculas dele).

A ideia de que o Brasil está no centro do mundo é pobre. O pelotão palaciano poderia ir à página 113 do livro “Kissinger e o Brasil”, do professor Matias Spektor. Ele conta um encontro do secretário de Estado Henry Kissinger com o chanceler soviético Andrei Gromyko, ocorrido na manhã de 11 de julho de 1975. O Brasil acabara de assinar um Acordo Nuclear com a Alemanha, e Gromyko estava preocupado com a possibilidade de o Brasil vir a fabricar uma bomba atômica.(O embaixador americano em Brasília também desconfiava disso.) O chanceler soviético queria a ajuda americana para bloquear o projeto: “Vocês estão mais perto do Brasil geográfica e politicamente”.

Poderia ter começado uma discussão sobre as características do acordo, mas Kissinger deu uma resposta curta, de três frases, combinou manter Gromyko informado e arrematou:

—Tudo bem. Vamos almoçar?

O Acordo Nuclear foi sumindo, sumindo, e sumiu.


Afonso Benites: Com posse de Biden, Brasil sofrerá pressão conjunta de EUA e Europa por Amazônia

Diplomatas avaliam que nova Casa Branca se dedicará a vincular política ambiental à comercial. Embaixadores em Brasília dizem que, para não perder dinheiro, Planalto terá que ajustar discurso

Pelos próximos dois anos, a boa relação do Brasil com os Estados Unidos dependerá muito mais do Governo Jair Bolsonaro do que o de Joe Biden, que será empossado na presidência americana nesta quarta-feira. Se o presidente brasileiro insistir na sua política ambiental que pouco protege o meio ambiente e na condução ideológica de seu ministério das Relações Exteriores, corre o risco de fazer o país perder dinheiro e ser cada vez mais um pária na arena internacional. A avaliação foi feita por quatro embaixadores europeus e asiáticos que trabalham em Brasília e foram ouvidos para esta reportagem. Todos falaram sob a condição de não terem seus nomes publicados. E todos entendem que uma sinalização de que a política brasileira estaria além da relação Donald Trump-Bolsonaro seria demitindo os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Ernesto Araújo (Itamaraty).

Conforme esses diplomatas, os chanceleres de países europeus, principalmente, darão suporte a qualquer veto ou restrição que Biden fizer ao Brasil por conta política ambiental. E mais. Já pediram que o presidente americano o faça. “A França já sinalizou que quer deixar de ser dependente da soja brasileira. A tendência é que, sem a proteção ambiental, os países encontrem mais argumentos para impor barreiras ao Brasil e, consecutivamente, protegerem os seus próprios produtores”, disse um diplomata europeu. “Quem não cuidar do que resta das florestas no mundo, acabará duramente punido onde mais dói, no bolso”, afirma outro representante de embaixada estrangeira.

A chegada de Biden encontra o Brasil em uma situação já frágil em termos internacionais. Se, sob sombra de Trump, Bolsonaro tinha uma caixa de ressonância poderosa e relativo pouco custo para a estratégia de isolamento internacional, agora o jogo começa a mudar. As últimas semanas foram de reveses para o Planalto na chamada “diplomacia da vacina”. O país, tenta, sem sucesso, acelerar a chegada de compras de doses prontas da vacina Oxford/AstraZeneca da Índia assim como de insumos para a fabricação de imunizantes vindos da China.

Uma das possibilidades que tem sido aventada no âmbito internacional seria a de Biden apoiar que a Organização Mundial do Comércio (OMC) estabeleça uma política de restrição a quem infringir determinadas normas ambientais. É algo parecido com o que ocorreu na década de 1990, quando havia severos vetos aos negócios com países em que eram registrados trabalho infantil ou escravo. É um debate que ocorrerá ainda ao longo de 2021.

“Os EUA querem criar uma nova doutrina mundial que prima pelos predicados da economia verde, da proteção da biodiversidade, mas também como componente vital na regulação das relações comerciais”, ressalta o cientista político e pesquisador de Harvard, Hussein Kalout, que foi secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência sob o Governo Michel Temer. A escolha de John Kerry, ex-secretário de Estado de Barack Obama, para ocupar o cargo de “czar ambiental” de Biden é uma dessas sinalizações de endurecimento da política verde do novo presidente.

Outra indicação de que a política de Biden também enfraquecerá Bolsonaro foi a opção dele por Anthony Blinken para o cargo de secretário de Estado. Ele é um defensor do multilateralismo, ao passo que o presidente brasileiro, assim como Trump era, é um crítico das organizações internacionais e defensor de acordos bilaterais.

De início, contudo, Biden terá preocupações urgentes antes de tratar da política externa com o Brasil. Entre elas, estariam o combate à pandemia de coronavírus, estratégias para recuperar a economia americana e como recompor a política interna que ficou extremamente polarizada principalmente no fim do mandato de Trump. Na visão de Kalout, a gestão do democrata será pragmática na seara internacional, e com o Brasil não será diferente. Pontes não seriam queimadas, mas o Brasil seria colocado em espera, por um tempo.

“O alinhamento entre os Governos brasileiro e americano foi para além do que é um alinhamento automático. Tivemos uma subordinação de interesses. Perdemos a autonomia decisória em matéria de política internacional. O Brasil tornou-se incapaz de tomar decisões desprendidas daquilo que o Trump entendia o que era necessário para o Brasil”, ponderou o ex-secretário de Temer.

Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro fez questão de se aproximar de Trump. Mesmo após a confirmação da eleição de Biden, ele insistiu na infundada tese de que as eleições americanas foram fraudadas. E foi um dos últimos a parabenizar o vencedor do pleito.

Sobre a possibilidade de se demitir Salles e/ou Araújo, Kalout diz que essa medida não surtiria efeito de imediato, a menos que a condução da política dessas pastas mudasse. “Não adianta só trocar nomes. Tem de trocar o direcionamento, tem de trocar a maneira de se conduzir. E isso não depende, exclusivamente, do ministro que ocupar o cargo, mas do presidente”, diz o cientista político.

Um tema que deverá sofrer poucas mudanças é o da tecnologia da internet 5G. Trump vetou a presença da empresa chinesa Huawei dos Estados Unidos e tem pressionado para que países aliados o façam. O presidente Bolsonaro vinha sinalizando que seguiria o caminho traçado pelo republicano, mas ainda não havia uma definição final. O leilão da frequência deve ocorrer até meados deste ano. Agora, mesmo com a assunção de Biden a tendência é que alguma limitação à empresa chinesa persista, ainda que de maneira mais moderada.

“Essa guerra é suprapartidária. Se fosse o Trump ou o Biden seria a mesma coisa. Se não vierem vetos, virão barreiras que vão dificultar uma vitória da Huawei”, disse um dos diplomatas. O que está em jogo, não é apenas a questão financeira, mas a guerra geopolítica que EUA e China travam por essa tecnologia. Avaliação parecida é feita pelo cientista político Kalout. “Não tem como o Brasil banir, ele ainda depende da Huawei. Mas os EUA vão exercer pressão para delimitar essa entrada da Huawei no 5G do Brasil, mas também em toda a Europa”, afirmou.


EL País: Joe Biden abre nova era nos EUA

Democrata chega à presidência mais poderosa do mundo em circunstâncias adversas, destinado a ser um líder decisivo

Amanda Mars, El País

Um colega do Senado, Daniel Patrick Moynihan, disse certa vez a Joe Biden: “Não entender que a vida vai te bater e te derrubar é não entender o que há de irlandês na vida”. Àquela altura, o democrata já sabia disso, e não só pelo que tinha lhe contado seu avô Finnegan. Havia passado a infância esquivando os valentões que zombavam da sua gagueira. Perdera a esposa e a filha de um ano em um acidente de carro aos 29 anos. Veria morrer, décadas depois, outro de seus filhos, vitimado por um câncer atroz. “Mas para mim essa não é a história completa sobre o que é ser irlandês”, diz Biden em Promise Me, Dad, o livro que escreveu após do falecimento de Beau, que estava destinado a seguir sua saga política. “Nós, os irlandeses, somos as únicas pessoas no mundo nostálgicas do futuro. Nunca deixei de ser um sonhador. Nunca deixei de acreditar nas possibilidades.”

Quando era pouco mais que adolescente, a mãe de sua então namorada (Neilia, sua primeira esposa) lhe perguntou sobre sua vocação profissional, e o rapaz lhe respondeu que queria ser presidente dos Estados Unidos. Nesta quarta-feira, Joseph Robinette Biden Jr. (Scranton, Pensilvânia, 1942), nostálgico do futuro, crente nas possibilidades, tomará posse nesse cargo rodeado de cercas e soldados, perante um Capitólio invadido dias atrás por uma turba que queria evitar o seu Governo.

Biden assume a presidência que cobiçou durante toda a sua vida nas circunstâncias mais adversas que jamais projetou, e num momento de sua vida em que imaginava já estar de saída. Após duas pré-candidaturas presidenciais fracassadas e uma terceira, a de 2020, em que chegou a ser dado como morto nas primárias, o destino lhe pôs à frente de um país atravessado por três graves crises: a pior pandemia em um século, a recessão mais aguda desde a Grande Depressão, e uma espécie de ruptura de convivência social.

O desafio é maiúsculo, de calibre rooseveltiano, mas a oportunidade política é também colossal, rooseveltiana, para citar Franklin Delano Roosevelt, que tirou os EUA da crise 1929. Biden será o presidente que proclamará o fim da pandemia, que completará o programa de vacinação e o que poderá celebrar a superação da derrota econômica. O destino escreveu que este político de 78 anos e sem excessivo carisma, moderado em um tempo efervescente, ocupe o que no mundo da fotografia se chama de instante decisivo. Fala-se muito que será presidente de um só mandato. Pouco importa. Escreverá igualmente um episódio capital dos Estados Unidos e, com este, de meio mundo.

O choque sobrevindo há menos de um ano atrapalhará ou dará asas às reformas? A derrota de Donald Trump e a recuperação da Casa Branca para os democratas geraram grandes expectativas, e nos últimos dias se espalham as comparações com a chegada de Franklin Delano Roosevelt ao poder em 1933. Este, logo depois de estrear no Governo, recebeu um visitante ―a imprensa da época não o identificou― que lhe disse em relação ao New Deal: “Senhor presidente, se seu programa der certo, o senhor será o melhor presidente da história dos Estados Unidos. Se fracassar, será o pior”. E Roosevelt replicou: “Se fracassar, serei o último [presidente]”.

A história é citada em The Defining Moment, um livro de Jonathan Alter sobre aqueles primeiros 100 dias no poder, um relato, nas palavras do seu autor, sobre como um homem de gênio especial para a política e a comunicação reviveu o espírito de uma nação golpeada.

Num momento em que o país atravessa momentos sombrios, Biden assume com uma capacidade muito especial de adaptação ao meio (foi conservador quando o mundo o exigia e, por exemplo, mais rápido que Barack Obama em abraçar o casamento gay quando a sociedade girou) e o olfato suficiente para saber que essas suas qualidades distintivas ―a empatia, a moderação, a doce normalidade― se tornariam o bálsamo necessário para este vibrante país.

“Tem semelhanças com Lyndon B. Johnson [vice e sucessor de Kennedy], porque ele também é um legislador experiente que serviu a um presidente mais jovem e agora está sendo chamado a realizar reformas progressistas, mais progressistas do que se espera dele”, comenta por email o escritor e jornalista Evan Osnos, ganhador do Pulitzer e autor de Joe Biden. American Dreamer, nova biografia do próximo presidente. Osnos, que acompanha e cobriu Biden durante anos, aborda a ambição do veterano democrata, uma condição que costuma passar despercebida no vice-presidente da era Obama, eclipsada por esse aspecto de homem cordato.

Será o primeiro presidente desde Ronald Reagan a não ter passado por nenhuma das oito universidades da Ivy League ―esse olimpo educativo formado por Harvard, Columbia e Princeton, entre outras―, uma circunstância que hoje, dado o clima de desconfiança contra as elites, representa algo de virtude política. Em uma reportagem recente do The New York Times sobre a preparação de sua primeira onda de decretos, assessores que trabalham com ele contavam que detesta a linguagem excessivamente técnica ou acadêmica, e que com frequência interrompe a conversa dizendo: “Pegue o telefone, ligue para a sua mãe e diga a ela o que você acaba de me dizer. Se ela entender, podemos continuar conversando”.

Sim, se a mãe entender, não o pai ou o irmão. Biden é uma criatura da Geração Silenciosa, esse grupo de norte-americanos que nasceu depois da Grande Geração, que combateu pela democracia na Segunda Guerra Mundial, mas antes dos boomers e sua revolução cultural. Nascido no seio de uma família de classe trabalhadora, filho de um vendedor de carros Chevrolet, será o primeiro presidente católico desde John Fitzgerald Kennedy. Também, o que chega ao número 1.600 da avenida Pensilvânia com maior bagagem política. Tomou posse no seu primeiro cargo em Washington, de senador por Delaware, em janeiro de 1973, aos 30 anos, tornando-se assim um dos mais jovens integrantes da Câmara Alta na história. Agora, assumirá o cargo de presidente como o mais idoso.

Entre um marco e outro, viu a sociedade mudar e contribuiu para isso no Congresso. Negociou com os políticos segregacionistas, votou a guerra do Iraque, dirigiu ―de um modo que hoje envelheceu mal― a primeira grande audiência por uma acusação de assédio sexual (Anita Hill contra Clarence Thomas, que seria confirmado como juiz da Suprema Corte, em 1991). Agora, promete impulsionar a mais ambiciosa reforma ambiental, social e trabalhista da história.

“Nas decisões importantes que precisam ser tomadas rapidamente, aprendi com os anos que um presidente nunca terá mais de 70% da informação de que necessita. Assim, uma vez que você consultou os especialistas, os dados e as estatísticas, tem que estar disposto a confiar na sua intuição”, disse o novo presidente no passado.

Biden prometeu ao mundo que os Estados Unidos “estão de volta” ao tabuleiro global após quatro anos de guinada isolacionista. Ao seu país prometeu curar as feridas. Chega com muitos planos e um objetivo de fundo, recuperar a unidade norte-americana, ou algo próximo a isso. Pretende buscar acordos com os republicanos no Congresso, tirar partido da sua experiência como legislador, e tratar de evitar que o novo impeachment de Trump, ainda a ser julgado no Senado, condicione sua caminhada.

Sofrerá dificuldades, esse lado irlandês da vida. Mais da metade dos eleitores de Trump ―e foram 74 milhões em 2020― acha que o democrata será um presidente ilegítimo, que venceu as eleições de forma fraudulenta, apesar de nem a Justiça nem as autoridades eleitorais terem encontrado qualquer sinal de tais irregularidades. Passado esses primeiros 100 dias de graça, também receberá fogo amigo, pressões dos flancos mais esquerdistas do Partido Democrata, que receberam com certa desilusão um gabinete formado por veteranos da velha-guarda obamista. Mas também governará uma sociedade que passou quatro anos crispada e quer uma mudança.

Nesta terça-feira, quando deixava sua cidade, Wilmington (Delaware), e seguia rumo a Washington para a posse, lembrou-se de seu filho morto em 2015. “Só lamento uma coisa, que Beau não esteja aqui, porque deveria ser ele a tomar posse como presidente.” A nostalgia do futuro não é incompatível com a do passado.


Celso Lafer: Consequências do trumpismo

Dante inseriria Trump nos círculos do inferno em que penam os falsários e os traidores

A tomada da Bastilha prefigurou a Revolução Francesa; a invasão do Palácio de Inverno, a implantação do comunismo na Rússia; a marcha sobre Roma, a afirmação do fascismo na Itália; a Noite dos Cristais, na Alemanha, o Holocausto. O que configura a ocupação violenta do Congresso em Washington por uma horda de adeptos do trumpismo, inconformados com a vitória eleitoral de Joe Biden? Ela foi uma surpreendente e inédita ruptura dos tradicionais limites que sempre cercaram e protegeram a autoridade das instituições políticas dos Estados Unidos.

A República americana continuadamente teve como uma das características da sua identidade o respeito às instituições e a afirmação de um “governo das leis” sob a égide e a aura da Constituição. É o que foi configurando, no correr de uma longa experiência histórica, a autoridade da democracia ensejando um patamar de estabilidade aos seus processos de mudança política, com destaque para a dinâmica das sucessões presidenciais provenientes de eleições periódicas.

O que mina e corrói a autoridade é o desprezo pelos limites que ela naturalmente impõe. Daí, nos Estados Unidos, a figura jurídica do contempt of Court, que penaliza, num processo, quem deliberadamente cria obstáculos à administração da justiça, descartando a dignidade e a autoridade da Corte. Contempt of Congress aplica-se aos que obstam ou buscam impedir o due course dos seus procedimentos.

Desprezo pelos limites, foi isso que configurou o que se passou em Washington. O estrépito do “vale-tudo” da violência pôs em questão a autoridade das instituições. Buscou comprometer o alcance do abrangente poder conjunto da cidadania de lidar com os problemas e desafios do país pela via do processo eleitoral.

A ocupação violenta do Congresso teve como objetivo obstruir os procedimentos de formalização conclusiva da inequívoca vitória eleitoral de Biden, confirmada pela dinâmica das instituições e pelas diversas instâncias do Poder Judiciário, que rejeitou, por absoluta falta de provas, as incontáveis alegações de fraude com as quais Trump alimentou a sua própria inconformidade e a da horda de seus mais raivosos militantes com o desfecho do processo eleitoral.

O desprezo pelos limites do politicamente aceitável confirmou que a eleição foi uma luta pela “alma” do país e pelo espírito que historicamente a vivificou. Uma luta que Joe Biden travará na sua presidência.

Trump dedicou-se à corrupção da alma da República e da confiabilidade das suas instituições. Foi o que preparou a ruptura dos limites. São notas de sua atuação a mentira como princípio de governança voltada para manipular o Congresso e o Partido Republicano, com o personalismo do seu “bullying”, direcionado para um contínuo esforço de operar um regime ao arrepio da lógica do “governo das leis”. Por isso o empenho do trumpismo em pôr de lado as práticas e os preceitos constitucionais e jurídicos atravancadores do ímpeto da vontade presidencial num Estado de Direito. Daí o deslavado inserir do ilícito nos processos políticos do país, o uso abusivo do “privilégio do Executivo” e do perdão presidencial para proteger os colaboradores que mobilizou na sua sanha destrutiva.

Trump cobriu com um tecido de mentiras o espaço público dos Estados Unidos com a sua solerte operação das redes sociais. Criou “bolhas” intransitivas alimentadas por polarizações, cevadas pelo discurso de ódio, voltadas para desqualificar os que a ele se contrapunham. Aviltou o bem público da inclusividade, que é um dos valores da democracia. Confrontou com suas arengas despropositadas uma das máximas do mérito da democracia: é melhor contar cabeças do que cortar cabeças, nas palavras de Bobbio.

A virtude é um dos ingredientes de uma República que deve zelar pelo bem comum. Quando ela fraqueja, como na presidência Trump, abre-se o espaço para o domínio das baixas paixões, dos ressentimentos, das invejas e da vaidade. Trump traiu a alma das instituições republicanas dos EUA. Dante o inseriria nos círculos do inferno onde penam os falsários e os traidores.

A força das instituições americanas está contendo a sua fúria destrutiva. Mas ela é configuradora de consequências não só para os Estados Unidos, mas para o mundo, com destaque para a vigência do valor da democracia.

O trumpismo mina o softpower gravitacional da democracia americana no mundo. Justificá-lo é uma ameaça generalizada à democracia. Daí a inconformidade democrática, no Brasil, quanto às recentes manifestações do presidente e do seu chanceler. Elas são mais do que a expressão de afinidade com uma concepção da prática política. Revelam uma declarada simpatia pelas posições de Trump e dos seus mais raivosos adeptos. Foram uma oportunidade para nelas identificar uma antecipada prefiguração de uma despropositada fraude eleitoral nas eleições presidenciais de 2022. É um semear de ventos para tempestades políticas futuras.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)