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Folha de S. Paulo: Em carta, entidades pedem a Biden que não faça acordo ambiental com Bolsonaro

Manifesto é assinado por ONGs ambientais, indígenas, sindicatos, coletivos negros e LGBTs

Rafael Balagos, Folha de S. Paulo

Um grupo de cerca de 200 entidades brasileiras enviou uma carta, nesta terça (6), ao governo de Joe Biden com um pedido para que os EUA não façam nenhum acordo climático com o governo de Jair Bolsonaro a portas fechadas, pois consideram que a gestão federal não tem legitimidade para representar o Brasil.

A carta foi enviada aos gabinetes do presidente americano e da vice-presidente, Kamala Harris, à embaixada dos EUA em Brasília, a parlamentares democratas, a membros do gabinete de John Kerry, assessor especial de Biden para o clima, além de organizações internacionais de preservação ambiental.

As instituições consideram a gestão Bolsonaro uma inimiga da preservação da natureza. "Sua política antiambiental desmontou órgãos de fiscalização, promoveu o enfraquecimento da legislação e incentivou a invasões de territórios indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e áreas protegidas", afirmam.

A lista de signatários inclui a Apib (Associação dos Povos Indígenas do Brasil), a ONG Conectas, a CUT (Central Única dos Trabalhadores), a Frente Favela Brasil, a Fundação Tide Setubal, o Greenpeace Brasil, o Instituto Pólis, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o MNU (Movimento Negro Unificado) e a SOS Mata Atlântica. A íntegra da carta e a lista de adesões estão no final desta reportagem.

O manifesto pede que a ajuda estrangeira ao Brasil seja debatida com a participação de órgãos da sociedade civil, governos locais, universidades, parlamentares e as populações afetadas diretamente pelas questões ambientais, como indígenas e quilombolas.

"Não estamos criticando os projetos de colaboração internacional em meio ambiente no Brasil, que sempre foram muito importantes. O que queremos é que o governo americano ouça também a sociedade civil, para que não se deixe enganar pelo governo Bolsonaro", comenta Marcio Astrini, secretário-geral do Observatório do Clima, rede de entidades ambientais que também assina o manifesto.

O temor dos ativistas é o de que o governo federal consiga recursos estrangeiros sem destinação específica. "Isso abre margem para que o dinheiro seja usado de forma eleitoral, com finalidades que passam longe de ajudar a proteger a natureza", aponta o secretário.

"Planejamos fazer mais ações até o dia 22. Uma das propostas é organizar um evento no Congresso americano, no dia 15, para debater meio ambiente e Amazônia", diz ele.

A Casa Branca marcou, para os dias 22 e 23 de abril, uma reunião de cúpula sobre o clima e convidou 40 líderes mundiais, incluindo o presidente Jair Bolsonaro. Durante o encontro, os EUA devem anunciar uma nova meta de emissões de carbono para 2030, como parte de seu retorno ao Acordo Climático de Paris.

Como mostrou a Folha, o governo Bolsonaro pediu ajuda aos EUA para atingir novas metas em energia limpa —área em que o Brasil se destaca historicamente. Do outro lado, Kerry já teve reunião com o ministro do Meio Ambiente brasileiro, Ricardo Salles, e tem pedido em público que as nações se comprometam com metas mais objetivas para combater o aquecimento global.

O desmatamento na Amazônia cresceu 9,5% entre agosto de 2019 e julho de 2020, segundo dados do governo brasileiro. Foi o maior percentual em uma década. A derrubada da mata é acompanhada por um crescimento das queimadas na região. Bolsonaro e membros de sua equipe costumam minimizar o problema, além de fazer críticas ao trabalho de ONGs. Em 2019, Bolsonaro disse que elas eram suspeitas de incendiar a floresta, sem apresentar provas.


ÍNTEGRA DA CARTA

CARTA DA SOCIEDADE CIVIL BRASILEIRA AO GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Brasil, 6 de abril de 2021.

Em 20 de janeiro, em seu discurso de posse, o presidente Joe Biden elencou como principais desafios de seu governo a luta contra a pandemia, o combate ao racismo estrutural, a mudança climática e o papel dos EUA no mundo. O país, afirmou Biden, deveria liderar não pelo exemplo da sua força, mas pela força do seu exemplo.

Tal discurso está sob teste agora, enquanto a administração Biden trava conversas com o governo de Jair Bolsonaro, do Brasil, sobre a agenda ambiental. As negociações ocorrem longe dos olhos da sociedade civil, que o presidente brasileiro já comparou a um "câncer". O governo brasileiro comemora tais negociações, que envolveriam recursos financeiros. O presidente americano precisa escolher entre cumprir seu discurso de posse e dar recursos e prestígio político a Bolsonaro. Impossível ter ambos.

O líder extremista do Brasil justificou o putsch de 6 de janeiro nos EUA repetindo as mentiras de Donald Trump sobre fraude na eleição. Dentro de casa, ele ataca os direitos humanos e a democracia. Cooperar com tal governante seria um ato inexplicável. Bolsonaro está promovendo a destruição da floresta amazônica e outros biomas, aumentando as emissões do Brasil. Compromete o Acordo de Paris ao retroceder na ambição da meta climática brasileira. Negacionista da pandemia, transformou seu país num berçário de variantes do coronavírus, condenando à morte parte da própria população.

Sua política antiambiental desmontou órgãos de fiscalização, promoveu o enfraquecimento da legislação e incentiva invasões de territórios indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e áreas protegidas. A presença de invasores leva ao aumento da violência e de doenças como a Covid junto aos habitantes da floresta. Recentemente, Bolsonaro foi denunciado por indígenas ao Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade.

Não é razoável esperar que as soluções para a Amazônia e seus povos venham de negociações feitas a portas fechadas com seu pior inimigo. Qualquer projeto para ajudar o Brasil deve ser construído a partir do diálogo com a sociedade civil, os governos subnacionais, a academia e, sobretudo, com as populações locais que até hoje souberam proteger a floresta e todos os bens que ela abriga. Nenhuma tratativa deve ser considerada antes da redução do desmatamento aos níveis exigidos pela legislação brasileira de clima e o fim da agenda de retrocessos encaminhada pelo governo ao Congresso Nacional. Negociar com Bolsonaro não é o mesmo que ajudar o Brasil a solucionar seus problemas atuais.

Negociações e acordos que não respeitem tais pré-requisitos representam um endosso à tragédia humanitária e ao retrocesso ambiental e civilizatório imposto por Bolsonaro. A eleição de Joe Biden representou a vontade dos EUA de estar do lado certo da história. Fazer a coisa certa pelos brasileiros seria uma grande demonstração disso.

Assinam esta carta:

Coletivos nacionais

Agentes de Pastoral Negros do Brasil - APNs
Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil
Associação Brasileira de Imprensa - ABI
Associação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib
Associação Nacional de Pós-graduandos - ANPG
Central Única dos Trabalhadores – CUT
Coalizão Negra por Direitos
Conselho Nacional de Seringueiros - CNS
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Quilombolas - CONAq
Fórum da Amazônia Oriental - Faor
Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros - Fonatrans
Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito
Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social
Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores Sem-Teto - MTST Brasil
Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB
Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST
Movimento Negro Unificado - MNU
Observatório do Clima
RCA - Rede de Cooperação Amazônica
Rede GTA
Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas
Uneafro Brasil

Entidades da sociedade civil

342Amazonia
342Artes
350.org Brasil
Abpes - Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária
Ação Educativa
Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade - Afes
Afro-Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica - Aganju
Articulação Negra de Pernambuco - Anepe
ASSIBGE-RR
Associação Alternativa Terrazul
Associação Brasileira de Imprensa
Associação Brasileira de Reforma Agrária
Associação Cultural Educacional Assistencial Afro Brasileira Ogban
Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade - MG
Associação de Defesa dos Direitos Humanos e Meio Ambiente na Amazônia
Associação de Jovens Engajamundo
Associação de Mulheres Mãe Venina do Quilombo Curiau
Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida - Apremavi
Associação dos Moradores e Amigos da Praia Grande (Penha-SC)
Associação Evangélica Piauíense - AEPI
Associação Interdenominacional de Pastores - Assip
Associação para a Gestão Socioambiental do Triângulo Mineiro - Anga
Associação Paulista de Cineastas - Apaci
Atelier Tuim
Avaaz
Baía Viva
BVRio
Carta da Terra Brasil
Casa 8 de Março - Organização Feminista do Tocantins
Casa das Pretas - RJ
Católicas pelo Direito de Decidir
Centro de Convivência É de Lei
Centro de Cultura Negra do Maranhão
Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará - Cedenpa
Centro de Formação da Negra e do Negro da Transamazônica e Xingu - CFNTX
Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Pe. Josimo
Centro de Trabalho Indigenista - CTI
Centro Franciscano de Defesa de Direitos (Belo Horizonte-MG)
CESE Coordenadoria Ecumênica de Serviço
Coletiva DIVERSAS
Coletivo Amazônico LesBiTrans
Coletivo Cara Preta
Coletivo de Mulheres Negras Maria-Maria - Comunema
Coletivo Feminista Classista Maria vai com as Outras - Baixada Santista
Coletivo Filhas do Vento
Coletivo Leste Negra
Coletivo Negro Universitário da UFMT
Coletivo Raízes do Baobá Negras e Negros (Jaú-SP)
Coletivo 660
Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz
Comissão Justiça e Paz da Diocese de Macapá
Comissão Pastoral da Terra - CPT-MG
Comitê Estadual de Educação em Direitos Humanos do Piauí
Comitê Repam Xingu
Comunidade de Roda de Samba Pagode Na Disciplina
Conectas Direitos Humanos
Consciência em Movimento - Cooperativa de Saberes
Conselho Nacional do Laicato do Brasil - Regional Sul 2
CSP-Conlutas (Roraima)
Cursinho Popular Risoflora
Defensores do Planeta
Elo Mulheres da Rede Sustentabilidade Amapá
Eugênia Magna Broseguini Keys
Fase - Solidariedade e Educação
FBDS - Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável
Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense - FMAP
Fórum Marielles
Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno - FMNDFE
Frente Estadual pelo Desencarceramento de Minas Gerais
Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas
Frente Favela Brasil
Frente Nacional de Mulheres do Funk
Fundação Avina
Fundação Tide Setubal
Gambá
Geema - Grupo de Estudos em Educação e Meio Ambiente
Geledés - Instituto da Mulher Negra
Gestos
Greenpeace Brasil
Grupo de Defesa Ecológica Pequena Semente
Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Gênero Feminismos e Interseccionalidade
Grupo de Estudos AFETO
GT Infraestrutura
Ile Igbas Axé Oyá Guere Azan
Iniciativa Sankofa
Instituto 5 Elementos - Educação para a Sustentabilidade
Instituto Afro Cultural da Amazônia - Mona
Instituto Afrolatinas
Instituto Água e Saneamento - IAS
Instituto Aldeias
Instituto Aromeiazero
Instituto Augusto Carneiro
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - Ibase
Instituto Búzios
Instituto Centro de Vida - ICV
Instituto ClimaInfo
Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia - Idesam
Instituto de Energia e Meio Ambiente - Iema
Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc
Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola - Imaflora
Instituto de Mulheres Negras do Amapá – Imena
Instituto de Pesquisa e Formação Indígena - Iepé
Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros - Ipeafro
Instituto de Pesquisas Ecológicas - IPÊ
Instituto de Referência Negra Peregum
Instituto Democracia e Sustentabilidade - IDS
Instituto Ecológica
Instituto Hórus de Desenvolvimento e Conservação Ambiental
Instituto Humanista para Cooperação e Desenvolvimento - Hivos
Instituto Internacional de Educação do Brasil - IIEB
Instituto Mancala
Instituto Mulheres da Amazônia
Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável - Insea
Instituto Nossa Ilhéus
Instituto Pensamentos e Ações para Defesa da Democracia
Instituto Pesquisa Ambiental da Amazônia - Ipam
Instituto Pólis
Instituto Sociedade, População e Natureza - ISPN
Instituto Socioambiental - ISA
Instituto Soma Brasil
Instituto SOS Pantanal
Instituto Talanoa
Instituto Update
International Rivers Brasil
Justiça e Paz Integridade da Criação - Verbo Divino
Mandata Coletiva Quilombo Periférico de Elaine Mineiro - SP
Mandata Quilombo - Erica Malunguinho
Marcha das Mulheres Negras de São Paulo
Marcha das Mulheres Negras de São Paulo - MMNSP
Mater Natura - Instituto de Estudos Ambientais
Movimento Afrodescendente do Pará - Mocambo
Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia - Mama
Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade do Estado
Movimento Negro Unificado – MNU (Acre)
Movimento Nossa BH
Movimento Xingu Vivo Para Sempre
Núcleo de Educação Popular Raimundo Teis - NEP
Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas
Núcleo Estadual de Mulheres Negras do Espírito Santo
Observatório de Justiça e Conservação
ONG Ghata - Grupo das Homossexuais Thildes do Amapá
PAD – Processo de Articulação e Diálogo Internacional
Pastorais Sociais da Arquidiocese de Santarém
Ponto de Cultura Brasil dos Buritis
Pretaria.Org - Coletivo Pretaria
Projeto Hospitais Saudáveis
Projeto Meninos e Meninas de Rua
Projeto Saúde e Alegria
Recanto Sagrado Ubiratan
Rede Brasileira de Conselhos - RBdC
Rede das Mulheres de Terreiro de Pernambuco
Rede de Cooperação Negra e LGBTQI Pretas e Coloridas
Rede de Educação Ambiental de Rondônia - Rearo
Rede de Educadores Ambientais da Baixada de Jacarepaguá
Rede de Organizações Não Governamentais da Mata Atlântica - RMA
Rede Educafro Minas
Rede Fulanas Negras da Amazônia Brasileira
Rede Igrejas e Mineração
Rede Internacional de Pesquisa em Barragens Amazônicas
Rede Nacional da Promoção e Controle Social da Saúde, Cultura e Direitos de Lésbicas e Bissexuais Negras – Rede Sapatà
Rede Pro UC
Rede Ubuntu de Educação Popular
Rede Um Grito Pela Vida-CRB
Renafro Saúde
RPPN Águas Claras I e II
Serviço Franciscano de Justiça, Paz e Integridade da Criação - Província Santa Cruz
Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia - Sinfrajupe,
Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental - SPVS
SOS Amazônia
SOS Mata Atlântica
Tindari
Uiala Mukaji - Sociedade das Mulheres Negras de Pernambuco
Unidos pelos Direitos Humanos Brasil
Unitransd (SC)
Vivat International Brasil


Judith Butler: 'Trump e Bolsonaro são sádicos desavergonhados'

'Bolsonaro e Trump são os rostos da crueldade do nosso tempo, e cada um é responsável por incontáveis mortes', afirma Judith Butler

Filósofa americana, que participa nesta quarta (24) de seminário virtual sobre feminismo, fala sobre as perdas da pandemia agravadas pela desigualdade e o novo livro que chegará ao Brasil, em julho, pela Boitempo

Renata Izaal, O Globo

Na última vez em que esteve no Brasil, em 2017, Judith Butler foi alvo de petições on-line e ações judiciais de grupos conservadores que tentaram impedir sua vinda ao país para um seminário sobre democracia. Ela veio, cumpriu sua agenda, mas, na volta para casa, foi agredida no Aeroporto de Congonhas por quem acredita que a filósofa americana é a fundadora da “ideologia de gênero”.

Mas Butler não fundou coisa nenhuma. O que ela fez, de modo muito resumido, foi teorizar sobre o gênero como algo socialmente construído, uma performance. Sua obra, na verdade, é muito mais extensa e avança sobre política e democracia; violência de Estado; luto; poder, discurso e sexualidade; sionismo e a questão palestina.

Hoje, às 14h, Butler voltará a se encontrar com o Brasil, mesmo que remotamente. Ela vai discutir feminismo, corpo e território com a cantora, compositora e ativista Preta Ferreira, dentro da programação do ciclo de debates on-line “Feminismo para os 99%”, realizado pela Boitempo. O encontro será transmitido no canal no YouTube da editora, que publicará, em julho, o livro mais recente de Butler. Em “A força da não violência”, ela critica o individualismo na ética e na política e defende a “igualdade radical” para que se possa construir algo bom juntos.

Em uma breve entrevista, Judith Butler, que leciona na Universidade da Califórnia, Berkeley, reflete sobre pandemia e luto, o negacionismo de Bolsonaro e de Trump e vibra com o feminismo latino-americano: “Movimentos como o Ni Una Menos e o Las Tesis me tocam e inspiram muito”, afirma.

Seu novo livro defende uma igualdade radical, mas a pandemia tem aprofundado as desigualdades em todo o mundo. Como analisa a crise atual e suas possíveis consequências?

Acho que estamos vendo com mais clareza do que nunca as desigualdades econômicas e raciais que foram geradas pelo capitalismo global, além da situação terrível imposta a mulheres, pessoas trans e não binárias, que foram confinadas nas casas onde sofrem violência e degradação. É ainda mais doloroso ver os lucros das farmacêuticas. Mas, mesmo assim, também vivemos num tempo em que a ação contra as mudanças climáticas é imperativa, em que a luta pelas vidas negras soa mais alto e é mais persuasiva, e em que as várias formas de feminismo conquistam apoio. Não está claro em qual direção o mundo irá, mas a sensação de que as lutas estão entrelaçadas me dá esperança.

O luto é um tema importante em sua obra e tem sido debatido na pandemia, que trancou as relações nos meios digitais e impediu tantas despedidas. Qual o impacto disso?

Tem sido devastador para tantas pessoas não poderem se aproximar dos que estão morrendo, terem apenas o Zoom como um meio para o luto e, ao final, serem deixadas com um isolamento que é insuportável e debilitante. Precisamos uns dos outros para vivermos o luto. É importante estar perto fisicamente e regenerar o sentido de uma vida conjunta a partir dessa perda devastadora e, agora, rápida. A arte pública que marca as nossas perdas vai continuar sendo importante, assim como as pequenas reuniões e, eventualmente, as grandes.

Manifestações, como as do movimento Black Lives Matter, foram ao mesmo tempo atos públicos de luto e protesto. Sabemos que tantas pessoas não precisavam ter morrido, que elas sofreram da perda de cuidado adequado com a saúde e que as razões para isso foram a marginalização social, o racismo e a desigualdade econômica. Então teremos que refletir sobre a morte que poderia ser evitada: quem ou o que deixou tantas pessoas morrerem?

O governo dos Estados Unidos levou muito tempo para organizar sua resposta à pandemia, já o brasileiro ainda não o fez adequadamente. Isso é uma forma de violência?

Talvez tenhamos que revisar o nosso entendimento de assassinato, ou que aceitar que há muitas maneiras de lidar com a morte. Esta última está distribuída por toda a sociedade, e os trabalhadores só têm valor quando são produtivos. É o momento para uma renovação das ideias socialistas, começando com uma renda nacional garantida. Trump e Bolsonaro são sádicos desavergonhados. Com isto, quero dizer: se, em algum momento, eles sentem vergonha, a superam por meio do sadismo. São os rostos da crueldade do nosso tempo, e cada um é responsável por incontáveis mortes.

Trump não se encerra com a eleição de Biden e Kamala.

É ótimo que Trump tenha saído. Mas o que seu governo deixou claro é que a supremacia branca, o masculinismo (ideologia que prega a superioridade dos homens e a exclusão das mulheres), a transfobia, a homofobia e o antifeminismo têm raízes profundas na cultura americana. Nossa luta será longa.

Depois da agressão que sofreu no Brasil em 2017, você ainda acompanha o que se passa no país?

Sim, acompanho a situação política no Brasil e as operações do movimento contra a ideologia de gênero. O incidente comigo foi pequeno se comparado com o que aconteceu com feministas e pessoas LGBTQIA+ que perderam suas vidas para a violência, o abuso sexual, o racismo e a transfobia. A questão é: por que é permitido que essas violências aconteçam? Temos que perguntar sobre polícia e complacência do Estado e sobre as notícias falsas e fomentadoras de ódio geradas on-line.

A América Latina tem sido apontada como o epicentro do feminismo hoje. Você concorda?

Movimentos como o Ni Una Menos (que, desde 2015, organiza manifestações contra a violência de gênero na Argentina) e o Las Tesis (coletivo chileno que criou performance contra a cultura do estupro reproduzida em diversos países) me tocam e inspiram muito. São corajosas, enfurecidas e alegres, e o feminismo precisa envolver todo esse arco afetivo para conseguir apoio e exemplificar a nova forma de vida que substituirá a violência, a exclusão e a desigualdade.


Demétrio Magnoli: O maior erro de Biden

Joe Biden imagina-se, com boas razões, na posição ocupada por Franklin Roosevelt em 1933. Seu pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão aquecerá uma economia que já retomou a expansão, direcionando-a para tecnologias transformadoras. Seus primeiros gestos diplomáticos revitalizam as alianças transatlântica e transpacífica que sustentam a influência global dos EUA. Mas nada disso minimizará as consequências de um pecado capital: seu governo segue o roteiro do nacionalismo vacinal de Donald Trump.

O nacionalismo vacinal é a regra entre os países ricos. O Canadá comprou vacinas para imunizar cinco vezes sua população, mas enfrenta dificuldades com o lento fornecimento de doses. A União Europeia adquiriu vacinas em abundância, mas o fez tarde demais e enfrenta carência de imunizantes. Por isso, em desespero, ameaça invocar o Artigo 122 do Tratado da UE, uma lei extraordinária, para impedir a exportação de doses da Oxford/AstraZeneca produzidas em seu território ao Reino Unido. O governo britânico, que aplicou rapidamente a primeira dose em dois quintos da população, impôs um controle oculto à exportação de vacinas.

“As vacinas são para braços americanos primeiro”, declarou Biden, alinhando-se ao nacionalismo vacinal de Trump. Os EUA utilizam a Lei de Produção de Defesa, instrumento criado durante a Guerra da Coreia (1950-53), para impedir exportações de imunizantes sem autorização federal. O America First não terminou com a troca de comando na Casa Branca, mas retraiu-se à esfera da vacinação.

Há exceções pontuais dignas de nota. O Quad, articulação de segurança patrocinada pelos EUA que abrange Japão, Índia e Austrália, prometeu fornecer um bilhão de doses aos países do Sudeste Asiático, num gesto de contenção da influência regional da China. Há pouco, Washington concordou em remeter suas doses estocadas da Oxford/AstraZeneca ao Canadá e ao México. Nesse caso, a “generosidade” é apenas uma extensão do nacionalismo vacinal: a reabertura da fronteira norte depende da imunização no Canadá, e a pandemia só poderá ser declarada extinta nos EUA quando o México vacinar a maior parte de sua população.

A vacinação em massa nos EUA, além de medida sanitária urgente, é parte da estratégia geopolítica de Biden, que depende de uma pujante retomada do crescimento econômico. Mas o nacionalismo vacinal implica renúncia à projeção de influência americana em vastas áreas do mundo em desenvolvimento. China e Rússia agem, agressivamente, para preencher o vácuo.

Três vacinas de origem chinesa (Sinopharm, Sinovac e Cansino) são os principais imunizantes aplicados em parte do Sudeste Asiático, no Paquistão, na Turquia e em países da África do Norte. A Sputnik V, de origem russa, também difundiu-se por países da Ásia Central e do Oriente Médio, da África e mesmo da Europa Central (Hungria e Sérvia).

Pior para os EUA, do ponto de vista geopolítico, é o sucesso da diplomacia vacinal chinesa e russa na América do Sul. O Brasil vacina essencialmente com o imunizante da Sinovac, algo que obrigou o governo Bolsonaro a desistir da aventura insana de barrar a chinesa Huawei do leilão de 5G. No Chile, único país que imuniza velozmente na região, mais de 90% das doses aplicadas são da vacina da Sinovac, sobrando à da Pfizer/BioNTech cerca de 8%. A Argentina, por sua vez, depende principalmente da Sputnik V.

A vacina da Pfizer/BioNTech é quase exclusivamente aplicada em países ricos. A vacina da Moderna não foi nem sequer oferecida a países em desenvolvimento. A África do Sul adquire o imunizante da Oxford/AstraZeneca por mais de duas vezes o preço pago pela União Europeia. A África inteira, com população de 1,3 bilhão, só garantiu 300 milhões de doses para os próximos meses.

Tedhros Adhanom, da OMS, descreveu o cenário como um “fracasso moral catastrófico”. Na hora decisiva da pandemia, o abandono do mundo em desenvolvimento pelos EUA e por seus aliados europeus tende a provocar, ao lado do “fracasso moral”, uma marcante redução da influência global das potências ocidentais. A sombra destrutiva de Trump ainda pesa sobre a Casa Branca.


Christophe Cloutier-Roy: 'Joe Biden apresentou o programa mais progressista dos últimos tempos'

Por ocasião da posse de Joe BidenAlternatives Économiques decifra as orientações do novo inquilino da Casa Branca. Para implementar seu programa, ele contará com maioria nas duas casas do Congresso, mas uma maioria muito pequena. E se ele ganhou 7 milhões de votos a mais que Donald Trump, o grosso dessa vantagem (5 milhões de votos) está concentrado apenas na Califórnia, o que confirma a profundidade das divisões que atravessam a sociedade americana, que só aumentaram durante o mandato do republicano.

Christophe Cloutier-Roy, pesquisador residente do Observatório sobre os Estados Unidos da Universidade de Québec em Montreal (UQAM) e autor de um artigo recente intitulado Le Parti démocrate en 2020: Joe Biden et l’hydre à quatre têtes (O Partido Democrata em 2020: Joe Biden e a hidra de quatro cabeças), analisa as razões dessas divisões e as opções que o novo presidente tem para tentar reduzi-las.

A entrevista é de Yann Mens, publicada por Alternatives Économiques, 20-01-2021. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

São as divisões que cindem a sociedade americana e que Joe Biden terá que tentar superar antes de tudo socioeconômicas ou sobretudo identitárias e culturais, raciais entre outras?

A sociedade americana é palco daquilo que nos Estados Unidos se chama de “guerra cultural”. Este não é um fenômeno recente, embora tenha se intensificado durante o mandato de Donald Trump.

Do que se trata? Desde o final da década de 1960 e a ascensão dos movimentos conservadores, as questões em torno das quais se dão os principais conflitos na sociedade têm sido amplamente ligadas à identidade, à moral, aos valores... São duas visões, duas representações do que deveria ser a sociedade americana, que se confrontam e se materializam através dos dois grandes partidos, o Democrata e o Republicano.

Certamente há um pano de fundo econômico nessas visões, mas ele se combina com outras dimensões. Por um lado, entre os democratas, encontramos os partidários da nova economia implantada nas regiões costeiras, mas mais amplamente as populações das grandes cidades e as minorias étnicas em grande maioria. Por outro lado, os operários vítimas do declínio das indústrias tradicionais no Centro-Oeste e na região dos Grandes Lagos, mas de maneira mais geral as populações das áreas rurais e das pequenas cidades, populações principalmente brancas.

Além daqueles que às vezes são chamados de perdedores da globalização e que conseguiu trazer para o rebanho republicano, Donald Trump conseguiu capitalizar sobre a idealização do passado e a necessidade de o país reconquistar sua supremacia (“Make America Great Again”).

Qual é o papel do racismo nesta visão?

A visão retrógrada dos partidários de Donald Trump tem sido frequentemente interpretada como um desejo de fazer da “brancura” (“whiteness”) um elemento central da identidade americana. Esse racismo ideológico, inspirado na tradição escravista do sul do país, permeia algumas delas. Ao invés, entre os trabalhadores brancos decaídos em termos econômicos, é mais um racismo de ressentimento que se expressa. Eles têm o sentimento de que o Estado, as elites políticas e especialmente os democratas, que durante muito tempo foram os defensores do mundo operário, abandonaram-nos em favor dos afro-americanos e latinos.

Nessa visão altamente estereotipada, os primeiros se beneficiam das ajudas sociais, embora não trabalhem ou mesmo sejam criminosos, e os últimos imigram em massa para viver nas garras dos trabalhadores americanos. Esses trabalhadores brancos têm o sentimento de que são os perdedores em uma competição entre grupos sociais.

Como as divisões cada vez mais intensas na sociedade americana se refletem no cotidiano?

Por uma polarização preocupante de toda a sociedade. Até a década de 2000, a polarização afetava principalmente as elites dos dois principais partidos e a mídia. Hoje, nas pesquisas de opinião, os cidadãos de um campo político descrevem os do outro não apenas como adversários, mas como ameaças à segurança nacional e até mesmo traidores da nação.

Canais de notícias e redes sociais republicanas costumam se referir aos democratas como comunistas, e a mídia democrata retruca chamando os republicanos de nazistas. Todos vivem cada vez mais em uma bolha ideológica que alimenta seus preconceitos. Isso favorece o ativismo das minorias mais radicais dentro de cada partido e muitas vezes permite que obtenham a vantagem durante as primárias.

Essa desconfiança na opinião pública é tanto mais forte quanto na vida cotidiana os eleitores dos dois partidos têm cada vez menos oportunidades de se confrontar, mesmo porque vivem em diferentes áreas geográficas: litoral versus interior, metrópoles versus áreas rurais e pequenas cidades... Porém, quanto menos as pessoas têm a oportunidade de se conhecerem, mais os estereótipos se radicalizam e se solidificam.

Em um contexto onde as divisões são sensíveis, o que Joe Biden pode fazer para reconciliar a sociedade e, em particular, para apaziguar a raiva dos trabalhadores brancos decaídos economicamente?

Joe Biden se apresentou nas eleições de novembro com a plataforma mais progressista da história moderna do Partido Democrata. Muito mais progressista do que as de Bill Clinton e até mesmo de Barack Obama.

Claro, a esquerda de seu partido, liderada especialmente por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, julga-o muito tímido. E é verdade que ele não aceitou explicitamente algumas de suas propostas, como o seguro-saúde público obrigatório ou o Green New Deal. No entanto, na primeira área (saúde), prevê que todo americano tenha a possibilidade de ter acesso a seguro saúde público, se não puder pagar um privado. E no segundo campo, seu plano para o meio ambiente prevê grandes investimentos em energias renováveis, a reconversão de empregos de indústrias poluentes para os setores verdes...

Não acredito, entretanto, que Joe Biden deva enfrentar frontalmente a questão das divisões culturais e identitárias. Certamente, ele deve combater a discriminação racial, mas seus poderes são relativamente limitados porque, nessa área, muitas políticas públicas (polícia, educação, habitação, etc.) são principalmente de responsabilidade dos Estados federais e dos municípios. Penso que seria perigoso para o novo presidente americano reabrir o debate sobre assuntos como a ação afirmativa porque, por definição, tais políticas beneficiam exclusivamente as minorias étnicas e, portanto, correm o risco de alimentar o ressentimento dos brancos economicamente decaídos.

Por outro lado, pode combater esse ressentimento ao implementar programas econômicos e sociais universais, como no caso do seguro saúde. Se tais programas cobrirem brancos, afro-americanos ou latinos desfavorecidos da mesma maneira, os primeiros não sentirão que os outros dois grupos são favorecidos.

Deve-se notar também que os trabalhadores brancos estão muito mais apegados aos programas sociais do que à redução dos déficits públicos ou à redução dos impostos, dois grandes eixos de luta das elites tradicionais do Partido Republicano.

Joe Biden escolheu como futuros ministros, que ainda não foram confirmados pelo Senado, vários membros de minorias étnicas. Essas personalidades pertencem à esquerda do partido?

Não, a maioria dessas figuras é centrista, como o próprio Joe Biden. O Partido Democrata é formado por uma aliança circunstancial entre as minorias étnicas, sensíveis ao seu discurso sobre os direitos civis, e a esquerda progressista, voltada para as questões sociais e ambientais. No entanto, as minorias étnicas, e em particular os afro-americanos, costumam ser muito conservadoras no nível moral, especialmente por causa de sua forte religiosidade. Elas não têm automaticamente as mesmas prioridades que a esquerda do partido.

Muitos progressistas sonhavam em ver Bernie Sanders nomeado para o Ministério do Trabalho, mas a confirmação pelo Senado teria sido impossível. Eles continuam insatisfeitos porque sua corrente não tem representantes no governo. No entanto, isso não é surpreendente. Joe Biden certamente inclinou seu programa à esquerda depois das primárias, nas quais os progressistas tiveram bom resultado, mas ele acredita que, para superar as divisões na sociedade americana agravadas pela presidência de Trump, deve agora fazer um governo de centro.

Graças à vitória dos candidatos democratas na eleição parcial na Geórgia em 06 de janeiro, Joe Biden tem apoio da maioria, embora muito apertada, em ambas as casas. Mas os republicanos têm os meios institucionais para atrapalhar seus projetos?

Em teoria, sim, na maioria das áreas legislativas em que a aprovação do Senado é necessária. Nesta Casa, os parlamentares podem de fato recorrer ao que se chama de técnica de “filibuster” (obstrução parlamentar): um parlamentar ou um grupo parlamentar toma a palavra e a mantém o tempo que quiser para impedir a aprovação de um texto. Esse obstáculo só pode ser superado com o voto de 60 senadores entre 100 da casa. Hoje, porém, os democratas têm apenas 50 eleitos para o Senado, aos quais se somará a voz da vice-presidente Kamala Harris, caso houver empate.

Deve-se acrescentar, no entanto, que o uso de “filibuster” pode ter um custo político para o partido que a utiliza com demasiada frequência, porque a opinião pública pode ter uma visão muito obscura de uma obstrução sistemática do processo legislativo.

Eu acrescentaria que também na Câmara dos Representantes a atual maioria democrata é muito apertada, sendo apenas quatro votos a mais do que a maioria necessária, que é de 218 votos. Joe Biden, portanto, teria de estabelecer vínculos com republicanos moderados para ter certeza de que poderia aprovar suas reformas. Ao mesmo tempo, essas reaproximações correm o risco de alienar a esquerda de seu próprio partido.

Quando a decisão é bloqueada na esfera federal, é mais fácil atuar na esfera local (Estados federados, condados, municípios...) para superar as divisões da sociedade?

Em algumas partes do país, a polarização da sociedade e das elites políticas é pelo menos tão forte quanto no nível nacional, e é muito difícil superá-la. Especialmente em Estados como Pensilvânia, Flórida, Ohio, Illinois ou Maryland, a divisão das circunscrições eleitorais é da competência do Congresso local. O partido que o controla pode, portanto, traçar um mapa que lhe assegure futuras vitórias, dificultando alternâncias políticas em nível estadual, mas também em nível federal. Porque esses Estados, na maioria dos casos republicanos, têm um grande número de representantes no Congresso Nacional.

Em uma minoria de Estados (Washington, Califórnia, Havaí, Arizona, Idaho, Colorado, Michigan, Nova Jersey), por outro lado, os regulamentos locais atribuem a divisão das circunscrições a uma comissão independente, o que permite um melhor equilíbrio na distribuição dos eleitores.

Além das questões de divisão eleitoral, notamos que em VermontMassachusettsMaine ou New Hampshire, as divisões partidárias são menos rígidas do que na Flórida ou em Ohio. Como resultado, mesmo que o Congresso local seja repetidamente dominado por um partido, os eleitores às vezes escolhem um representante do outro lado para o cargo de governador, ou seja, o chefe do executivo local. Dito isso, trata-se geralmente de um moderado em seu próprio campo.

Há um ditado político que diz que os Estados são o laboratório da democracia americana. É verdade que muitas vezes é no nível local que as reformas são experimentadas, as quais são então adotadas por outros Estados e, depois, possivelmente estendidas ao nível federal.

Por exemplo, foi em Massachusetts, sob o governador republicano Mitt Romney (2003-2007), que foi implementada uma reforma do seguro saúde que serviu de modelo para o Obamacare. Da mesma forma, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, autorizado em vários Estados a partir de 2003, acabou sendo generalizado em 2015 por decisão da Corte Suprema. E a legalização da maconha recreativa, em vigor desde 2014 no Colorado, agora está se espalhando para muitos outros Estados, embora ainda não seja o caso no nível federal.

Apesar do ataque ao Capitólio que chocou muitos americanos, o Partido Republicano pode se distanciar de Donald Trump se a base permanecer leal ao presidente em fim de mandato?

O sucesso de Donald Trump ao ser eleito em 2016 foi atrair às urnas muitos cidadãos que antes não participavam ou participavam raramente das urnas, mas que votaram nele nas primárias e depois nas eleições presidenciais. Se ele não participar das próximas eleições, não é certo que esses cidadãos voltem a votar.

Nas “midterms” [eleições de meio de mandato] de 2018 e durante o segundo turno da recente eleição para o Senado na Geórgia, vimos que, quando Donald Trump não está nas cédulas, a taxa de participação cai entre os republicanos.

A retirada dos eleitores mais leais a Donald Trump daria uma chance a figuras mais moderadas dentro do partido. Claro, Donald Trump pode permanecer ativo na vida política e assim influenciar o partido. Muita gente pensa que ele voltará a concorrer em 2024 – pelo menos se o processo de impeachment lançado nos últimos dias pela Câmara dos Deputados, que deve levar a um processo no Senado, não o impedir. Mas mesmo se ele tiver a oportunidade, o cenário político pode mudar muito em quatro anos.

A única certeza hoje é que em breve uma grande batalha será travada dentro do Partido Republicano. Em teoria, uma divisão não pode ser descartada, mas os dois grandes partidos são muito resilientes. Seu domínio sobre a vida política remonta a meados do século XIX.

As próximas eleições legislativas ocorrerão em 2022. Os líderes republicanos não têm interesse em bajular a base trumpista para vencê-las?

Nas eleições legislativas presidenciais de meio de mandato (“midterms”), os eleitores republicanos tradicionalmente votam mais do que os democratas, o que, a priori, dá uma vantagem ao Grand Old Party (apelido do Partido Republicano) para 2022.

Por outro lado, os “midterms” são vistos sobretudo como uma espécie de referendo sobre a ação do presidente, uma oportunidade para sancioná-lo. Para vencê-las, os republicanos têm mais interesse em criticar Joe Biden do que em defender Donald Trump e seu histórico polêmico. Seu objetivo será forçar Joe Biden a coexistir com um congresso de maioria republicana, como fizeram em 2010 com Barack Obama.

É concebível suprimir o Colégio Eleitoral que elege o presidente, na medida em que este método de votação indireta confere uma vantagem eleitoral indevida ao Partido Republicano, que regularmente tem uma minoria na população, mas maioria nesta instância?

Para suprimir ou reformar o Colégio Eleitoral, a Constituição teria que ser alterada. Isso pressupõe que a emenda seja aprovada por maioria de dois terços em cada uma das duas câmaras do Congresso Nacional e, em seguida, seja ratificada pelas legislaturas locais de pelo menos três quartos dos Estados federados. Essas maiorias supõem o apoio do Partido Republicano. No entanto, a supressão do Colégio Eleitoral seria um suicídio garantido para esse partido, pois os democratas são claramente maioria em toda a população, especialmente nas áreas urbanas mais populosas.

De fato, desde 1992, os republicanos conquistaram o sufrágio popular apenas uma vez, em 2004, em uma eleição presidencial. Dificilmente podemos contar com seu apoio para uma supressão ou uma reforma profunda deste sistema.

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Novas relações do Brasil e EUA estão “apenas no início”, diz Rubens Barbosa

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, presidente do Irice analisa relação diplomática entre os dois países

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e embaixador aposentado, Rubens Barbosa, diz que o presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, adotou atitude de não confrontação com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). A análise foi publicada em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de março.

A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

Biden e Bolsonaro, segundo Barbosa, iniciaram conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Entre os assuntos estão diferenças em relação a clima, direitos humanos e democracia podem prejudicar o Brasil.

De acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática, a divulgação de uma série de documentos cobrando medidas duras contra o Brasil procurou influir na política externa do governo Biden.

Crítica à política ambiental

“O documento assinado por ex-altos funcionários e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e reclama medidas contra o Brasil, caso não haja mudança nas políticas de proteção à Amazônia e de mudança de clima”, escreve o presidente do Irice.

Segundo ele, o trabalho “Recomendações sobre o Brasil para o Presidente Biden e Para a Nova Administração”, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos a política ambiental, direitos humanos e democracia.

Além disso, de acordo com Barbosa, o documento pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas como Defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O autor do artigo na revista da FAP lembra que o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao Ministro Ernesto Araújo, pedindo explicações e retratação de declarações, julgadas favoráveis a invasão do Congresso de Washington.

Correspondência ao Senado

Por fim, segundo o embaixador, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado requisitando a suspensão de alguns programas de cooperação na área de defesa pelos problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara.

“O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com a divulgação da política ambiental do presidente Biden, com referência específica à Amazônia, gerou preocupação pelos eventuais impactos sobre o Brasil”, observa o presidente do Irice.

Na avaliação de Barbosa, “as relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021”. “Estamos apenas no início”, analisa.

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RPD || Rubens Barbosa: Biden e o Brasil

De forma pragmática, Biden adotou uma atitude de não confrontação com o governo Jair Bolsonaro, iniciando conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Diferenças em relação a clima, direitos humanos e democracia podem prejudicar o Brasil 

A divulgação de uma série de documentos cobrando medidas duras contra o Brasil procurou influir na política externa do governo Biden. O documento assinado por ex-altos funcionários e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e reclama medidas contra o Brasil, caso não haja mudança nas políticas de proteção à Amazônia e de mudança de clima. O trabalho “Recomendações sobre o Brasil para o Presidente Biden e Para a Nova Administração”, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos a política ambiental, direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas como Defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao Ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações, julgadas favoráveis a invasão do Congresso de Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado requisitando a suspensão de alguns programas de cooperação na área de defesa pelos problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com a divulgação da política ambiental do presidente Biden, com referência específica à Amazônia, gerou preocupação pelos eventuais impactos sobre o Brasil.

Do lado do governo brasileiro, houve três ações concretas para tentar evitar medidas contra o Brasil. A carta do presidente Bolsonaro a Biden em que manifesta “disposição a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”. O telefonema do Ministro Araújo com o Secretário de Estado Blinken e a reunião telefônica entre o Chanceler e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com John Kerry. O setor privado também se manifestou com Nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis para o intercâmbio comercial.  

A forma como Biden no início de sua gestão vai tratar o Brasil foi definida pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado, segundo as quais “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro em questões em que haja Interesse Nacional comum pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não vai se limitar apenas a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”.  

Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, demandada pela ala progressista do Partido Democrata, e iniciar as conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Foi uma atitude pragmática, vista pelo governo brasileiro como um avanço positivo na relação bilateral. Durante os meses de março e abril, a convite do governo norte-americano, o Brasil deve participar, a nível presidencial, nas conferências sobre Clima e sobre Democracia (com forte ênfase nos Direitos Humanos), além da Cúpula das Américas, na Florida. Nesses encontros, todos os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados.

Dependendo das posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial. Vão surgir, também, com força, nessa fase, as diferenças na área de mudança de clima e preservação da floresta Amazônica. Tudo vai depender da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e em anúncios de medidas com resultados verificáveis). A posição defensiva – que tem mais chances de prevalecer – poderá ter “consequências econômicas”, como disse Biden.

No telefonema com John Kerry, Araújo e Salles concordaram em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua e como transferir recursos ao Brasil para preservação da floresta amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Ernesto Araujo acreditarem em que a situação está sob controle e que avançará “business as usual”, como mencionado na carta a Biden, o que não deverá acontecer, na minha visão. Assim, os desdobramentos das políticas de Biden devem começar pelo meio ambiente, em relação à preservação da Amazônia e das comunidades indígenas, passando para as questões de Direitos Humanos, comércio (SGP e restrições a produtos brasileiros), defesa (Alcântara) e outras áreas de cooperação. 

As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos apenas no início.  

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE).  


Rubens Barbosa: O governo Biden e o Brasil

As relações com os EUA começaram de forma tranquila, mas estamos apenas no início

O tom das relações entre o Brasil e os EUA, no início do governo Biden, foi definido pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado de que “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro nas questões em que haja interesse nacional comum, pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não se vai limitar a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”. A atitude do governo dos EUA pode ser explicada pela decisão da Casa Branca de adotar uma postura inicial firme e assertiva em termos de política interna (combate à pandemia, vacinação, imigração) e uma posição cautelosa em política externa (acordo nuclear com o Irã, China, Rússia) para não confrontar seus críticos republicanos.

Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, até mesmo na resposta de Joe Biden a Jair Bolsonaro, e iniciar conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Não deixa de ser uma atitude pragmática de ambos os lados e, do ponto de vista do governo brasileiro, a percepção de algum avanço. O governo americano, no entanto, não está alheio às manifestações públicas de grupos de pressão pedindo medidas duras contra o Brasil. O documento assinado por ex-ministros e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e pede medidas contra o Brasil caso não haja mudança nas políticas de proteção da Amazônia e de mudança de clima. O trabalho Recomendações sobre o Brasil ao Presidente Biden, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos à política ambiental, a direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas, como defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações julgadas favoráveis à invasão do Congresso em Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado pedindo a suspensão de programas de cooperação na área de defesa por problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com o anúncio da política ambiental pelo presidente Biden, com referência específica à Amazônia, causou preocupação pelos eventuais impactos no Brasil.

Do lado do governo brasileiro houve três ações para tentar evitar medidas concretas contra o País: a carta de Bolsonaro a Biden em que manifesta a “disposição” de continuar “nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”; o telefonema do ministro Araújo com o secretário de Estado Blinken; e a reunião telefônica entre o chanceler, o ministro do Meio Ambiente e John Kerry, responsável pelos EUA. O setor privado também se manifestou com nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis do intercâmbio comercial.

Uma segunda fase dos entendimentos começa a esboçar-se com os convites para a participação do Brasil, em nível presidencial, das conferências sobre clima e sobre democracia (em que terá destaque a questão dos direitos humanos), em abril, além da Cúpula das Américas. Nesses encontros, os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados e, dependendo da posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial em mudança de clima e preservação da Floresta Amazônica.

Na terceira fase de negociação bilateral, Washington deverá reagir à posição brasileira, em especial quanto ao pedido de recursos financeiros para controlar o desmatamento. No telefonema entre Kerry, Araújo e Salles houve concordância em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua para preservação da Floresta Amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Araújo desejarem acreditar que, a partir das políticas apoiadas por Donald Trump, o diálogo com os EUA evoluirá com Biden em “atmosfera de total confiança e entendimento recíproco” e “as boas relações começaram pela discussão sobre meio ambiente e mudança de clima”. E que a “parceria vai continuar”, como mencionado na carta a Biden, o que poderá não ocorrer, dependendo da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e algumas medidas, com resultados positivos verificáveis) às propostas americanas.

Todd Stern, um dos negociadores dos EUA, antecipou a posição de Washington nos próximos meses. “Os EUA usarão toda a força da diplomacia para conseguir atingir a meta: parar o desmatamento”. E mais: “Sem a Amazônia intacta o Acordo de Paris é impossível”.

As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos só no início.

PRESIDENTE DO IRICE


Vinicius Torres Freire: Entenda a recaída do Brasil e por que os EUA afetam dólar e juros por aqui

Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre, mas convém olhar para os EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil

Em um país distante do Norte da Terra, que baniu o Ogro Laranja e vai distribuir poções medicinais para seu povo inteiro até maio, há um negócio em que os mercadores de dinheiro do mundo prestam a maior atenção. É a taxa de juros dos títulos de 10 anos do governo dos Estados Unidos.

Grosso modo, é o custo de o governo americano tomar empréstimos por dez anos. Define o custo do crédito para outros negócios, desde comprar casa no Texas a emprestar para o governo do Brasil. Pelo menos desde 25 de fevereiro, a alta dos juros de longo prazo americanos tumultua a finança mundial, em particular nos países “emergentes”.

O Brasil, um país submergente nas profundas dos infernos, padece em especial do remelexo americano. A gente precisa prestar atenção nisso. “Estruturalmente, a questão americana é a mais relevante, é central”, como diz em termos sóbrios Armando Castelar, pesquisador do IBRE/FGV, professor de economia da UFRJ.

A alta da taxa de juros nos EUA é motivo da alta do dólar pelo mundo. A economia americana se recupera com rapidez. Vai receber US$ 1,9 trilhão de impulso de gasto do governo (35% mais que o PIB brasileiro anual). Conta ainda com o estímulo do Banco Central deles, o Fed, que continua comprando mais de US$ 100 bilhões por mês em títulos públicos e privados. Para resumir uma conversa enrolada, na prática isso significa que o Fed reduz as taxas de juros pagas por governo, empresas e mesmo indivíduos: o Fed subsidia, banca, parte da conta dos juros. Até maio, a população americana deve estar vacinada. Parte da dinheirama do mundo corre, pois, para os EUA.

Considerada ainda a volta a alguma normalidade sanitária no segundo semestre, a economia americana tende a acelerar. Haveria perspectiva de volta da inflação e, assim, de alta das taxas de juros de curto prazo, se diz.

Jerome Powell, o presidente do Fed, disse nesta quinta-feira que não, sem convencer “o mercado”. Não seria neste ano que estariam satisfeitas condições para alta de juros: mercado de trabalho recuperado, inflação a 2% e expectativas de inflação que fiquem por aí, ou algo mais, por alguns anos.

O efeito mais imediato dos EUA por aqui é a alta do dólar e dos juros brasileiros de prazo mais longo. Mas dólar mais caro por mais tempo sedimenta expectativas de inflação mais alta. Além do mais, houve aumento grande do preço de commodities (petróleo, grãos) e pressão em preços de bens de consumo por causa dos auxílios emergenciais. O IPCA deve ficar na casa dos 6% entre abril e setembro. A renda do trabalho está sendo carcomida.

A fim de deter essa inflação, o BC brasileiro deve elevar a taxa de juros básica (Selic), ora em 2%, a partir de 17 de março, embora ainda exista controvérsia sobre a persistência dessa carestia. Para Castelar, a Selic tem de ir a 5,5% no final do ano. Para os economistas do Itaú, a 5%. Pela opinião visível no custo do dinheiro na praça financeira brasileira, para algo entre 5,5% e 6%.

Seria uma paulada. Um aperto na atividade econômica. Um aumento no custo de financiamento da dívida pública já enorme, custo extra que ficará notável em 2022. Vai para o vinagre a ideia de que poderíamos ficar com juros reais perto de zero até bem entrado o ano que vem.

morticínio crescente e o semiparadão também não estavam nas contas econômicas. As restrições oficiais e voluntárias a movimento e comércios não serão tão grandes como no início de 2020. Mas devem ter efeito por pelo menos até abril. É menos crescimento, se algum, até meados do ano. O PIB paulista caiu em janeiro, primeira baixa ante mês anterior desde abril de 2020 (no indicador PIB+30 do Seade). O indicador Cielo de vendas no varejo se recuperou bem até outubro, quando estava em queda de 7,7% ante igual mês do ano anterior. Em janeiro, estava em baixa de 12,6%.

O mundo de novembro de 2020, que deu um alento ao PIB do final do ano, se esfumaçou. Fevereiro foi fraco, março será pior. Sim, Jair Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre. Mas convém prestar atenção nos EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil.


Eliane Brum: Governo Bolsonaro decreta a morte de um pedaço da Amazônia

Ao autorizar Belo Monte a secar a Volta Grande do Xingu, o Ibama mudou de lado e assinou a permissão para um ecocídio na maior floresta tropical do mundo

A Amazônia é hoje a principal razão para o Brasil manter alguma relevância internacional. É da conservação da maior floresta tropical do planeta, o maior sumidouro terrestre de carbono do mundo, que dependem os principais acordos internacionais, como o maior de todos eles, o do Mercosul com a União Europeia. É também da sobrevivência da floresta que cada vez mais dependem a autorização e a aceitação dos produtos brasileiros nos mercados europeus e nos Estados Unidos de Joe Biden. Estratégica para controlar o superaquecimento global, a Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno, como têm repetidamente alertado cientistas com reconhecimento global, como Carlos Nobre. No momento em que a floresta se converter numa savana, o Brasil será apenas um país com desigualdade abissal, racismo criminoso, miséria em expansão e um presidente que virou piada no mundo. Terá também cometido um suicídio econômico, ao matar a floresta que regula o clima que permite a agricultura, afetando toda a cadeia de produção de alimentos e alguns dos principais produtos de exportação.

Nesse contexto, e num momento de progressiva recessão, o que o Governo Bolsonaro fez, pressionado por setores da política e do mercado interessados em manter o controle do sistema elétrico e faturar com ele? Autorizou a Norte Energia SA, empresa concessionária da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a liberar um volume de água para a Volta Grande do Xingu que comprovadamente, tanto pelos estudos científicos quanto pela experiência prática, é insuficiente para manter a vida. O que está acontecendo agora, nesse momento, é o que o direito internacional chama de “ecocídio” e que consiste no extermínio de um ecossistema inteiro. O que mata a natureza, como a emergência climática e também as pandemias já provaram, mata também a possibilidade de sobrevivência da espécie humana.

A autorização para o ecocídio aconteceu em 8 de fevereiro e foi celebrada nas páginas de economia de alguns dos principais jornais do Brasil. Nenhum outro acontecimento é mais grave e nenhum é mais escandaloso, com possível exceção da escalada da covid-19 sem confinamento nem plano de vacinação responsável. Uma semana antes de autorizar Belo Monte a reduzir drasticamente a água para a Volta Grande do Xingu, o mesmo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) considerou a vazão proposta pela empresa para a Volta Grande do Xingu inaceitável por não haver estudos confiáveis capazes de comprovar a segurança socioambiental de uma das regiões mais biodiversas da Amazônia.

Em linguagem dura, a área técnica do Ibama determinou que a Norte Energia S.A. refizesse os estudos e voltasse a apresentá-los: “Faltou dados de base para testes e comprovação dos resultados, faltou esclarecimento como fontes e origem de dados, faltou clareza na redação do texto, citações sem resultado e sem discussão. (...) A presente análise também discorda da suposta validação do modelo. (...) Essa análise NÃO considerou satisfatória as respostas dadas aos questionamentos 1,2 e 4. (...) Por fim, verificou-se conclusões baseada em especulações sobre garantia de manutenção de ambientes aquáticos sob vazões do hidrograma de testes sem dados dos estudos bióticos”.

Percebam que não são minhas as palavras, mas do próprio Ibama. Desde 2020, a Norte Energia luta na Justiça contra as decisões do órgão ambiental pela quantidade de água na Volta Grande. O parecer técnico citado tem a data de 1º de fevereiro de 2021 (leia na íntegra). Apenas uma semana mais tarde, em 8 de fevereiro, o diretor-presidente do Ibama, o advogado Eduardo Fortunato Bim, ignorou a avaliação técnica e autorizou a Norte Energia a liberar quase SETE VEZES MENOS a quantidade média de água que o Ibama havia determinado anteriormente como o mínimo essencial ―e quase NOVE VEZES MENOS a quantidade média de água da vazão natural do rio em fevereiro, época da cheia. A Norte Energia agora está oficialmente autorizada a liberar insuficientes 1.600 metros cúbicos de água por segundo, em vez dos 10.900 metros cúbicos por segundo determinados anteriormente pela área técnica do Ibama e dos 14.000 metros cúbicos por segundo da vazão natural média do Xingu nessa época do ano.

Para “compensar” a destruição da Volta Grande, a presidência do Ibama fez um “Termo de Compromisso Ambiental” com a Norte Energia, pelo qual a empresa “investe” 157,5 milhões de reais em ações de mitigação ao longo de três anos (leia na íntegra). Por exemplo: já que vão exterminar os peixes, que já não conseguem nem se alimentar nem se reproduzir, peixes que neste exato momento deveriam estar fazendo a piracema, mas em vez disso estão morrendo por falta de água, a empresa faz um projeto de reprodução de peixes em laboratório. É sério, não é piada. Antes fosse. Troca-se um pedaço da floresta por uma série de projetos artificiais que já se mostraram pouco viáveis nas compensações anteriores da Norte Energia que, na maioria das vezes, só enriquecem as empresas contratadas para executá-las.

Vale lembrar que a Norte Energia S.A. comprovadamente ainda não concluiu a totalidade das ações de mitigação necessárias para ter a licença de operação da usina ―e já opera desde 2016. A licença para operação foi dada pelo Ibama no final de 2015 sem que a empresa tivesse cumprido as condicionantes que condicionavam a operação. O que condicionava deixou de condicionar, num dos grandes escândalos de uma trajetória repleta deles.

As novas medidas supostamente compensatórias vão para essa conta de fiado que nenhum mercadinho de esquina aceitaria, mas o Governo brasileiro, sim. Inclusive porque quase metade (49,98%) das ações da Norte Energia é hoje composta pelo Grupo Eletrobras, um grupo composto por estatais. O segundo maior grupo de acionistas são fundos de pensão (20%), Petros e Funcef, o que significa que são fundos de previdência complementar dos funcionários da Petrobras e da Caixa Econômica Federal. Seria interessante saber o que os servidores pensam de sua previdência estar conectada com um desastre ecológico na Amazônia. A compensação, além de impossível na prática, é apenas uma promessa, já que o passivo da empresa é enorme, como provam mais de 20 ações do Ministério Público Federal (confira aqui).

Na prática, o presidente do Ibama autorizou que a empresa altere completamente o ciclo biológico da Volta Grande do Xingu, atingindo pelo menos dois povos indígenas, os Yudjá (também conhecidos como Juruna) e os Arara, o que é inconstitucional, assim como comunidades de ribeirinhos, de pescadores e de agricultores familiares. Autorizou também a degradação do Xingu, um dos maiores rios da Amazônia, além de toda a fauna e a flora da Volta Grande, uma das regiões mais extraordinárias da floresta, com algumas espécies endêmicas, como o acari zebra, o que significa que só existem naquele bioma e desaparecerão com ele. O presidente do principal órgão ambiental do Governo brasileiro autorizou uma empresa a controlar a água de um dos grandes tributários do Amazonas e destruir um pedaço da maior floresta tropical do mundo e engana a população afirmando que seria possível compensar a tragédia ecológica provocada. A floresta é um organismo integrado, complexo e interdependente, assim como o próprio planeta. O que acontece na Volta Grande do Xingu repercute em todo o sistema e vai acelerar a escalada da Amazônia rumo ao ponto de não retorno, no qual a floresta se converte numa savana.

O que aconteceu para que a área técnica do Ibama diga não e a área política diga sim? Pressão do que se chama setor elétrico e de seus agentes. E pressão com o apoio das editorias de economia de alguns dos grandes jornais do país ―sendo a principal exceção o repórter André Borges, de O Estado de S. Paulo, que tem feito uma cobertura irretocável. Desde janeiro há um cerco intenso sobre o Ibama e também sobre a opinião pública. As notas vazadas para a imprensa e, na maioria das vezes, reproduzidas sem crítica, anunciavam a ameaça de colapso do sistema elétrico do país caso o Ibama recusasse o volume de água demandado pela Norte Energia que, vale repetir, é comprovadamente incompatível com a manutenção do ecossistema da Volta Grande do Xingu.

Em 15 de dezembro, o Ministério de Minas e Energia já havia afirmado em ofício: “Conclui-se que as alterações no Hidrograma definido para a UHE Belo Monte, avaliadas pela ótica da geração de energia elétrica, se traduzem em relevantes impactos negativos ao setor elétrico brasileiro, com efeitos diversos, sistêmicos e coletivos, de planejamento, comerciais e operacionais, afetando, inclusive, a segurança energética”.

Em 27 de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) enviou um ofício ao Ibama, assinado pelo diretor-geral, André Pepitonne da Nóbrega, afirmando: “Sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto, o impacto estimado da medida aplicada nos dois primeiros meses de 2021, janeiro e fevereiro, seria próximo a 1,3 bilhão de reais para o consumidor final de energia elétrica”. O ofício (leia aqui) foi reproduzido como matéria por parte da imprensa sem mencionar o impacto socioambiental de uma vazão de água enormemente reduzida para a Volta Grande nem explicar como o diretor-geral da Aneel chegou a esse cálculo, para além da mera afirmação de que isso se deveria ao custo do “aumento da produção em usinas termelétricas”, mais caras e poluentes.

Em 28 de janeiro, o Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, enviou uma nota técnica ao Ibama, afirmando: “Em resumo, sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental que foge das atribuições desta Secretaria, e assumindo as consequências energéticas apresentadas pelo ministério setorial responsável (Ministério de Minas e Energia), a manutenção pelo IBAMA do referido hidrograma pode atrapalhar a necessária retomada do crescimento econômico do país após crise sanitária sem precedente, importando riscos à ordem e à economia pública”. (O grifo é por minha conta, leia aqui)

Percebam que tanto o Ministério da Economia como a Aneel usam a malandragem de uma ressalva: “sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto”, caso da Aneel, ou “sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental”, caso do Ministério da Economia. Como é possível fazer uma análise, no ano de 2021, sem abarcar a questão ambiental, isso em qualquer região do globo, e ainda com mais ênfase, na Amazônia? Não é preciso ter curso rápido de economia para compreender que isso é ou má fé ou incompetência ou ambas. Meio ambiente não é um tema paralelo, mas a linha que atravessa todos os outros temas. Tratar o meio ambiente como tema tangencial é de uma ignorância imperdoável e inaceitável neste momento histórico. Meio ambiente é a nossa casa, essa que a juventude climática denuncia que está em chamas ―e está. E, graças ao Brasil governado por Bolsonaro, também literalmente.

Vale lembrar que o fundo soberano da Noruega, o maior do mundo, excluiu a Eletrobras em 2020 devido às violações humanas e ambientais ocorridas na construção e operação de Belo Monte. “Risco inaceitável de que ela [Eletrobras] contribua para violações graves ou sistemáticas dos direitos humanos” foram as palavras usadas. Hoje, são os setores econômicos internacionais que mais pressionam pela conservação da Amazônia, não porque seus dirigentes repentinamente tenham se transformado em ecologistas, mas porque não são burros. E porque têm mais de dois neurônios são capazes de compreender que, sem a floresta não há futuro para a espécie e, portanto, também não haverá nem consumidores nem lucro. Se algum funcionário, mesmo de baixo escalão, fizesse qualquer análise de impacto sem “adentrar o tema ambiental” em qualquer organismo internacional ou em qualquer grande empresa com competividade hoje estaria demitido. O mesmo vale para jornalistas de economia. Aparentemente, os dirigentes brasileiros se formaram no século 20 e nunca mais leram nada. Ou, talvez, ficaram retidos ainda nos primeiros tempos da revolução industrial.

É também por violações ambientais, especialmente na Amazônia, que o acordo da União Europeia com o Mercosul naufraga nos parlamentos de países europeus. Nesta sexta-feira, por exemplo, o Fridays For Future, movimento liderado pela sueca Greta Thunberg, fará um tuitaço global pedindo que os parlamentos dos países europeus não ratifiquem o acordo da União Europeia com o Mercosul por causa da destruição da Amazônia. Duas de suas líderes vieram ao Brasil de barco à vela no final de 2019 para conhecer a floresta e conversar com lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas no evento Amazônia Centro do Mundo, que aconteceu na Terra do Meio e em Altamira, no Pará, com a presença de Raoni e Davi Kopenawa, entre outros intelectuais da floresta.

Não há nada mais imbricado com o tema ambiental hoje, num mundo em colapso climático, que a economia. Mas os dirigentes da área no Brasil acham perfeitamente normal fazer a análise de um fato que resultará em enorme impacto ambiental sem “adentrar na questão ambiental”. A pasta de Paulo Guedes também achou apropriado usar expressões típicas de governos autoritários, sempre sacadas do coldre quando é necessário apavorar a população: “riscos à ordem e à economia pública”.

Nenhuma análise pode ser levada a sério sem o custo socioambiental. O Brasil tem sido fortemente pressionado e vem perdendo investimentos e mercado para seus produtos por conta do aumento da destruição da Amazônia, mas abre 2021 decretando o fim de um pedaço da floresta. Ao contrário dos impactos da alegada redução da produção de energia por Belo Monte, os impactos socioambientais sobre a Volta Grande do Xingu são bem acompanhados e documentados pelos melhores cientistas há anos. Basta ler as pesquisas e documentos. No mais recente, datado de 28 de janeiro e apresentado ao Ministério Público Federal, alguns dos principais pesquisadores brasileiros afirmam (leia na íntegra):

“Considerando que as populações indígenas e ribeirinhas moradoras da Volta Grande do Xingu têm como fundamento de seu modo de vida a codependência com os processos ecossistêmicos da região, quaisquer alterações imponderadas, imprudentes e/ou precipitadas desses processos levam a cenários de fragilização desses povos num sentido amplo da expressão. Trata-se da imposição irreversível de perda da soberania alimentar das famílias locais que tende a ser agravada para as próximas gerações, de fragilização econômica associada à perda de biodiversidade vegetal e animal, além da perda de qualidade de vida e de saúde dessas e das próximas gerações”.

Desde antes de sua construção, especialistas no setor elétrico já denunciavam que Belo Monte serviria mais para produzir propina do que energia, já que o rio Xingu vive uma estação de seca por metade do ano. Mesmo assim, a obra foi construída: orçada em 19 bilhões de reais no leilão, em 2010, o custo hoje já ultrapassou os 40 bilhões de reais, a maior parte financiado por dinheiro público do BNDES. A corrupção foi finalmente exposta pela Operação Lava Jato, ao revelar propinas pagas pelas empreiteiras que construíram a obra ao PMDB e PT, partidos no poder durante a construção.

Grande parte dos alertas feitos pelo painel de especialistas que analisou o impacto do projeto de Belo Monte sobre o ecossistema antes mesmo do leilão da usina se confirmaram. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do Estadão, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, EL PAÍS e The Guardian já tinham revelado que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.

Além da inviabilidade técnica da usina, da corrupção e da destruição ambiental com efeitos em todo a região amazônica, a construção de Belo Monte foi determinante para converter Altamira, a principal cidade do Médio Xingu, na mais violenta da Amazônia. Em julho de 2019, a cidade foi também palco do segundo maior massacre carcerário da história do Brasil, com 62 mortos, a maioria decapitados ou queimados. Hoje, a cidade enfrenta, em plena pandemia, uma série de suicídios de crianças e adolescentes. A usina também foi determinante para tornar a região epicentro de desmatamento e de queimadas. Causou ainda grande impacto na saúde da população. O próprio Ministério da Saúde apontou o enorme aumento da desnutrição infantil de crianças indígenas durante a construção. Profissionais da saúde mental ligados à Universidade de São Paulo documentaram o impacto da expulsão do território produzida pela usina sobre a população ribeirinha no projeto Refugiados de Belo Monte. Obra totalmente paradoxal no cenário político do Brasil, a primeira turbina foi orgulhosamente inaugurada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e a última orgulhosamente inaugurada pelo atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), em 2019.

O atual e avançado capítulo de destruição é o que a Norte Energia e parte do governo, do mercado e da imprensa chamam de “Hidrograma de Consenso”, um nome digno da distopia de George Orwell. Na nota técnica do início de fevereiro, o próprio Ibama diz que não há consenso algum. Nas palavras literais: “Consideradas as evidências documentais de que os cronogramas A e B [vazões alternadas] NÃO foram oriundos de discussões técnicas envolvendo o Ibama, mas de uma decisão unilateral por parte do empreendedor, esse parecer se restringe aos mesmos como HIDROGRAMAS DE TESTE, e não de consenso”. (A caixa alta é do Ibama, não minha).

O “teste” mostrou o que já era antecipado pelos cientistas, a incompatibilidade entre uma quantidade tão reduzida de água e a reprodução da vida. O juiz federal que deu decisão favorável ao Ibama em detrimento da Norte Energia, no ano passado, baseou sua sentença no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”. Assim, “impôs ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”. Como afirmou a área técnica do Ibama, a Norte Energia não conseguiu provar: “Esse parecer não considera adequada a abordagem dada pelo relatório técnico [da Norte Energia], sugerindo sua DEVOLUÇÃO e readequação”. (mais uma vez, a caixa alta é do Ibama, não minha).

E então veio a motosserra da área que se diz econômica, com a ameaça do colapso energético, do risco à segurança nacional e do enorme “ônus aos consumidores”. Na prática, o Governo Bolsonaro rifou a Volta Grande do Xingu por supostos 157,5 milhões de reais para uma usina que custou mais de 40 bilhões, cuja principal acionista é a Eletrobras. E qual é o plano para a Eletrobras? A privatização, no qual o enorme passivo ambiental e humano de Belo Monte, consolidada no cenário internacional como uma catástrofe ecológica na Amazônia, é um sério entrave, porque isso que se costuma chamar de “mercado” é ávido e inescrupuloso, mas não é burro. Quem ganha? Quem perde? Os interesses em torno de Belo Monte, desde antes do seu controverso leilão, têm se mostrado bem pouco republicanos.

Aceitando por um momento, apenas como exercício mental, que os interesses são pelo bem público, que existe uma preocupação genuína com a questão energética e que os dirigentes podem provar aquilo que afirmam: colapso energético, ameaça à segurança nacional, 1,3 bilhão de ônus para os consumidores etc. Aceitando, apenas hipoteticamente, que essas afirmações estariam corretas e foram proferias de boa fé, o que temos do outro lado? O colapso já em curso de uma região de 130 quilômetros de floresta tropical habitada por povos indígenas, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, além de espécies de fauna e flora ainda não totalmente conhecidas, em um dos rios mais biodiversos do mundo. E isso num momento em que as principais autoridades do mundo, em todas as áreas, afirmam que a crise climática é o maior desafio da trajetória humana e que, para enfrentá-la, a Amazônia é estratégica. Este colapso, por sua vez, está totalmente documentado pelos cientistas mais respeitados para quem quiser se informar e estudar.

Aceitando ainda, apenas hipoteticamente, que a redução da produção de Belo Monte significaria um risco real de colapso energético, é importante assinalar que isso tornaria o planejamento brasileiro para o setor um arcaísmo incompatível com o atual momento global. Enquanto outros países, com muito menos potencial que o Brasil, têm feito enormes investimentos em energia solar e eólicas, o Brasil destrói a floresta e planeja destruir ainda mais, como já mostrou ao anunciar recentemente a retomada dos projetos hidrelétricos na Amazônia. Nenhum profissional sério hoje considera hidrelétrica na Amazônia “energia limpa”. Essa visão já foi totalmente superada pelas evidências bem documentadas da realidade e da ciência.

Aceitando apenas hipoteticamente que as duas premissas (e não apenas uma) são verdadeiras ―a do colapso ecológico, amplamente documentado, e a do colapso energético, essa apenas na boca de algumas autoridades do atual governo e suas visões ultrapassadas―, não seria sensato seguir o princípio básico da precaução? Algo dessa magnitude e impacto na maior floresta tropical do mundo não deveria ser ao menos amplamente discutido e com toda a sociedade? É assim, numa canetada, que o Governo de Bolsonaro condena um pedaço da Amazônia?

Destruir a floresta é destruir os padrões de chuva e do clima. É destruir a produção de alimentos, a renda dos agricultores e a competitividade e aceitação dos produtos brasileiros no mercado internacional. É impactar as condições de vida dos moradores de São Paulo e do Rio de Janeiro. É atingir o futuro de todos os habitantes do planeta. É disso que se trata. E, como o Governo é o agente da destruição, resta a nós impedir que mais um crime, esse de enormes proporções, aconteça. Ou a sociedade brasileira e global se mobiliza ou o ecocídio será consumado. Se a Volta Grande do Xingu morrer, estaremos dando mais um passo rumo ao nosso próprio suicídio como espécie.


Nesta quarta-feira, 17 de fevereiro, o guerreiro indígena Aruká Juma morreu de covid-19. Ele era o último homem dos Juma, povo amazônico exterminado ao longo das últimas décadas por sucessivos ataques genocidas. O risco da pandemia para um povo de recente contato era conhecido e a construção de uma barreira sanitária foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal. O Governo de Jair Bolsonaro não a fez. E o último Juma morreu. Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), no início do século 20 o povo Juma contava com 15.000 pessoas. Em 2002, estavam reduzidos a cinco ―um, dois, três, quatro, cinco. Hoje, não resta nenhum homem. O Governo Bolsonaro terminou de extinguir um povo e acaba de determinar a morte da Volta Grande do Xingu. Se seguirmos calados, é melhor sepultar logo isso que chamamos de Brasil. Numa vala comum, já que estão faltando covas nos cemitérios para tantos mortos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


RPD || Dawisson Belém Lopes: A política externa brasileira num labirinto borgiano

Pária mundial “por opção”, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo, o governo Bolsonaro é responsável por um dos piores momentos da política externa brasileira, deixando de perseguir interesses concretos do país

Não faz muito tempo, o Brasil jactava-se de seu universalismo. Era o país que não conhecia inimigos. Alcançava praticamente todo recanto do planeta com sua rede diplomática. Chefiava organismos prestigiosos, como a OMC e a FAO, e cedia seus nacionais para tribunais e cortes internacionais. Orgulhava-se de sua chancelaria. Tinha no Ministro das Relações Exteriores um signo da melhor tradição intelectual. Liderava agendas centrais, como a do meio ambiente, e era consultado em assuntos de direitos humanos, governança da internet, paz e segurança. Nossa República Federativa fazia boa figura no teatro global.

Esse tempo de bem-aventurança, contudo, ficou para trás. O Brasil, hoje, é “pária por opção” – invocando aqui palavras do chanceler Ernesto Araújo. Num contexto de desafios, em que despontam a rivalidade sino-americana e o arrasamento pandêmico, o governo federal vê diminuir a margem para manobrar. Opções estratégicas sobre a mesa vão minguando, à medida que nos indispomos com potências e abdicamos de pretensões de liderança no entorno geográfico, deixando de perseguir interesses concretos do país.

Responsável por mais de 30% do comércio externo brasileiro, a China é quem ajuda a manter as contas no azul. A despeito disso, Jair Bolsonaro e asseclas hostilizam Pequim sem cessar, desde a campanha eleitoral, em 2018, até o presente. Xi Jinping já emite, por meio de seus representantes empresariais e diplomáticos, ameaças de represália. Segundo lugar entre parceiros comerciais, além de maiores investidores no Brasil durante a década de 2010, os Estados Unidos também são fundamentais no grande esquema das coisas. Porém, como o incumbente do Planalto amarrou os destinos da nossa nação a Donald Trump, não se deve esperar atitude benevolente de Joe Biden no porvir.

Entre europeus, nada muito distinto. Terceira parceira comercial, a Holanda rejeitou, pela via parlamentar, o acordo UE-Mercosul, sob argumento de defesa da Amazônia. A Espanha, quinta no ranking do comércio externo, é governada pela esquerda, o que dificulta interlocução mais profícua. A Alemanha vive às turras com o maior país da América do Sul; além do desgaste da imagem, negócios permanecerão parados enquanto as práticas ambientais não forem revistas. A França, outra investidora no Brasil, faz objeção vocal à política ambiental e, como os chineses, planeja deixar de comprar os grãos que movem o agronegócio pátrio.
Na América Latina, a configuração não é menos dramática. Por quase um ano, os chefes de Estado de Brasil e Argentina (esta, a nossa quarta maior parceira comercial) não trocaram uma palavra sequer. O silêncio foi rompido recentemente, por iniciativa de Buenos Aires, mas os canais seguem obstruídos. Já o oitavo lugar no ranking de parceiros comerciais, o México, também é liderado pela esquerda, o que inviabiliza o diálogo – segundo a lógica sectária bolsonarista. México e Argentina coordenam entre si as iniciativas regionais, na ausência do Brasil. Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano, resume o imbróglio: “o Brasil ficará isolado em seu autoritarismo.”

Uma nota sobre a pandemia. O enfrentamento brasileiro ao novo coronavírus foi considerado, numa amostra de 98 países, o pior de todos, segundo think tank australiano. Parte dessa desastrosa condução deveu-se à incompetência nas mediações com o restante do mundo. Com uma indústria farmacêutica que importa 90% de seus insumos e diante da opção por não investir na fabricação de imunizante nacional para controlar o espalhamento da covid-19, o Brasil tornou-se refém de suprimento externo. Em tempos de escassez, porém, cada estado favorece primeiramente a população local. De exemplo em políticas públicas para vacinação em massa, passamos a figurar entre os que, pela incapacidade de lidar com a doença, sabotam o esforço de contenção do vírus.

Diante de fracassos retumbantes na política externa, como reagem o presidente da República e seu chanceler? Em gestos que exemplificam um descolamento de fatos e estatísticas, Bolsonaro e Araújo reúnem a fina flor da direita populista – de Andorra à Ucrânia, passando por Hungria e Índia – para clamar por “liberdade” e “família”, ao mesmo tempo em que flertam com monarquias teocráticas do Oriente Médio. Talvez seja o que lhes tenha restado no tabuleiro geopolítico. Como num conto de Borges, fica para o observador a incômoda sensação de que, quanto mais avançamos por estas sendas, mais se bifurcam os caminhos do labirinto.

*Dawisson Belém Lopes é Professor Associado de Política Internacional e Comparada na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e, desde março de 2018, Diretor-adjunto de Relações Internacionais da UFMG.


Dorrit Harazim: Cidadão radioativo

A vida pós-presidencial de Donald Trump não será menos desviante das normas e da tradição política do que seus anos no poder. Com apenas 13 meses de intervalo, encerrou-se ontem o segundo processo de impeachment que o alcança na aposentadoria em Mar-a-Lago. Desta vez, a acusação foi por “incitamento à insurreição” de sua horda de militantes armados, que desembocou na selvagem invasão do Capitólio de 6 de janeiro. Atiçado pelos longos meses de retórica incendiária do comandante-em-chefe, o bando tentara impedir a ratificação burocrática, pelo Legislativo, da vitória eleitoral de Joe Biden. Naquele surto de terrorismo messiânico a peito aberto, com torcida na Casa Branca, viu-se a face do horror possível.

Os democratas que impulsionaram esse impeachment nº 2 sabem fazer contas. Sabiam, portanto, da dificuldade de obter junto à geleia desfibrilada de senadores republicanos os votos necessários para a condenação de Trump. Talvez por isso, ao longo de 14 horas, apresentaram seus argumentos de acusação visando a atingir também duas audiências cruciais, ambas fora do plenário: a opinião pública mundial e os anais da história. É essa minuciosa reconstituição dos fatos que passará a constar como registro oficial, indelével, da primeira tentativa de sedição de um presidente dos EUA contra as leis democráticas do país.

Absolvido de impeachment pela segunda vez, o cidadão Trump ainda é capaz de causar grandes estragos à nação, avalia seu sucessor. Biden já sinalizou que quebrará uma norma de cortesia e confiança republicana em vigor desde o século passado: não franqueará ao antecessor aposentado o privilégio de receber o boletim diário ultrassecreto reservado ao chefe da nação. O famoso PDB (sigla para President’s Daily Briefing) é a compilação de informações e análises sobre segurança nacional preparada a cada 24 horas para o presidente. Entre as centenas de relatórios diários produzidos pelas 19 agências de inteligência dos EUA, apenas o PDB é elaborado para um único cliente — o comandante-em-chefe. E não chega a 10 o número de altos funcionários com acesso a seu conteúdo.

Talvez o mais célebre PDB de todos os tempos, tornado público em 2004, tinha por título “Bin Laden determinado a atacar nos Estados Unidos”. Fora dirigido ao republicano George W. Bush, 43º ocupante do cargo, com data de 6 de agosto de 2001. Deveria ter recebido a atenção que merecia. Pouco mais de um mês depois, os ataques de 11 de setembro derrubariam as Torres Gêmeas e colocariam o país de joelhos.

Além do PDB convencional, um analista em carne e osso também aponta ou esclarece algum outro elemento-chave do boletim, na suposição de que o informe já tenha sido lido. Suposição frustrada no caso de Trump. Ao longo de seus quatro anos no poder, ele nunca demonstrou interesse pela papelada. Simplesmente não tinha paciência para ler, além de não distinguir o que vinha assinalado com um “S” (de secreto). Colocava-se acima das picuinhas de segurança nacional para poder impressionar seus pares mundiais, arrostando segredos.

Suas transgressões foram inúmeras. Certa vez, no próprio Salão Oval, compartilhou com o chanceler russo uma peça de inteligência ultrassecreta sobre o Estado Islâmico, produzida por Israel; doutra vez, copiou com celular não criptografado a raríssima imagem obtida por satélite de uma base de lançamento de foguetes do Irã. Sem contar as célebres reuniões com a raposa russa Vladimir Putin, sem a presença de qualquer assessor. Numa delas, Trump chegou a confiscar as anotações dos intérpretes, fazendo com que os EUA não tenham qualquer registro do que ali foi falado.

Biden avaliou tudo isso, além do que chamou de “comportamento errático” do antecessor, para não estender ao cidadão Trump acesso a esses briefings, tradicionalmente disponibilizados a todo ex-ocupante do cargo. Atualmente, tanto Jimmy Carter como Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama têm passe livre aos PDBs. Isso porque a utilidade da cortesia e da confiança interessa às duas partes. Não é incomum a Casa Branca recorrer a presidentes aposentados para missões especiais no exterior, conferindo-lhes uma representatividade oficiosa, sem precisar ser oficial. E, quando a viagem é de caráter privado, todo ex tem interesse em saber se marcou encontro com alguém que anda sabotando a política dos EUA. Também lhe interessa estar atualizado com os bastidores de negociações em curso, para não dizer besteira.

À luz do currículo que deixou na Casa Branca, o cidadão Trump não preenche nenhum requisito dessa confiabilidade. “Todo ex-presidente é, por definição, um alvo e representa um risco. Mas o ex-presidente Donald Trump é particularmente vulnerável a más intenções por parte de maus atores”, alerta Susan M. Gordon, que, na qualidade de vice-diretora de Inteligência Nacional entre 2017 e 2019, participou de incontáveis briefings com o chefe.

Pela primeira vez na história dos EUA, um ex-presidente é visto como risco potencial à segurança do país. Sua teia mundial de negócios e dívidas o tornam tão vulnerável a chantagem quanto um espião com esqueletos brabos no armário. Sem falar no risco de ele fazer uso indevido por conta própria, com material tão valioso em mãos.

Melhor não arriscar. O cidadão Trump continua radioativo em seu próprio país. Sua militância radical também.