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Alon Feuerwerker: E se der Biden?

A pouco mais de duas semanas para a eleição presidencial nos Estados Unidos, as pesquisas são unânimes ao apontar larga vantagem (em torno de dez pontos percentuais) para o democrata Joe Biden. Mais importante: elas indicam também boa folga para o desafiante sobre o republicano Donald Trump no colégio eleitoral.

Dirão o leitor e a leitora que em 2016 as pesquisas também projetavam isso, e no final deu Trump.

Verdade, mas só até certo ponto. Em primeiro lugar, porque a dianteira de Biden agora é bem maior que a de Hillary Clinton na época. Em segundo, porque as empresas de pesquisa aperfeiçoaram seus métodos. E em terceiro, porque os levantamentos nos estados-chave confirmam até o momento a tendência.

Mas sempre é bom esperar a urna, pois o velho ditado sempre nos lembra que dela pode sair qualquer coisa. De todo modo, diante dos números, é bom começar a especular o que pode mudar para o Brasil, para melhor ou para pior, caso a tendência das pesquisas se confirme e Donald Trump seja mandado de volta para casa, em Nova York ou na Flórida.

As relações especiais entre o Brasil e os Estados Unidos, mais particularmente entre Jair Bolsonaro e Donald Trump, parecem ser um eixo organizador da atual política exterior brasileira. E desde janeiro de 2019 o Brasil vem abandonando a política externa construída a partir de meados do regime militar, de um certo não-alinhamento.

Os resultados econômicos por enquanto não chegam a ser estimulantes, ao contrário, mas esta parece ser uma preocupação secundária em Brasília. Os aspectos ideológicos e geopolíticos têm falado mais alto. O Brasil vem aceitando sofrer por enquanto nas relações econômicas desde que Trump se reeleja e assim reforce-se o apoio dele por aqui.

O que pode mudar com Biden? Bem, talvez seja precipitação imaginar um confronto aberto e definitivo. Se as relações com os Estados Unidos são importantes para o Brasil, e mais ainda para o atual governo, boas relações com o Brasil também são essenciais para a Casa Branca. Inclusive porque se o Brasil “cuida” das redondezas é um problema a menos para Washington.

E no principal desafio atual para os americanos, a tendência a serem deixados para trás pela China, não consta que Biden vá ser mais, digamos, relaxado. Talvez mudem algumas táticas, mas o objetivo permanecerá. E garantir que o Brasil não seja estimulado a trocar Washington por Beijing nas preferências continuará sendo vital para a potência do norte.

O nó mais complicado talvez esteja mesmo na questão ambiental, em que Biden quererá mostrar serviço para 1) agradar à base e 2) garantir que outros países não se aproveitem de uma eventual rigidez ambiental dos Estados Unidos para ganhar espaço econômico sobre os americanos. Mas será que isso vai ser suficiente para deteriorar as relações com o Brasil?

Improvável. Há um amplo leque de possibilidades intermediárias para um acordo, especialmente porque chegar a um acordo interessará a ambos. E o governo brasileiro, inclusive e antes de tudo Jair Bolsonaro, tem mostrado inusitado apetite por recuos e acordos quando o que está em jogo é a sobrevivência política.

Dificilmente o governo vai dormir no ponto e abrir espaço para que outros, nos mais diversos pontos do espectro político, apresentem-se como mais capazes de bem conduzir as relações por aqui com os Estados Unidos. Inclusive porque não faltam candidatos a desempenhar esse papel na improvável alternativa Jair Bolsonaro desejar abandoná-lo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Marcus Pestana: Trump, Biden e o Brasil

Os americanos irão às urnas no próximo dia 3 de novembro. Será a 59ª. eleição presidencial da maior democracia das Américas. Os impactos irão muito além das fronteiras dos EUA.

O ambiente que cerca as eleições é dramático. São quase 8 milhões de infectados pela Covid-19 e mais de 216 mil mortes, diante de um Trump negacionista, que desafiou permanentemente a ciência, deseducou e desmobilizou a população em relação à prevenção e ao distanciamento social e confrontou prefeitos e governadores.

São mais de 16 milhões de desempregados e uma perspectiva de queda do PIB americano que deve superar 4%. Além disso, a questão racial explodiu nas ruas com uma radicalidade que há muito não se via, desde a morte de George Floyd.
Com seu estilo populista-autoritário, diante de tão grave situação econômica, sanitária, social e racial, Trump não refrescou, não buscou unir o país, ao contrário, jogou lenha na fogueira do dissenso, da discórdia e da polarização.

Desde a sua independência em 1783 e da Constituição americana de 1789, os EUA, ao lado da Inglaterra e França, são os grandes esteios da democracia moderna. Um abalo na dinâmica e nas instituições democráticas americanas em pleno século XXI seria um péssimo exemplo e estímulo para outros líderes populistas autoritários confrontarem os valores permanentes da liberdade e da democracia.

Nunca se gastou tanta tinta e papel para discutir a crise da democracia representativa contemporânea. Donald Trump foi disruptivo em relação ao que Steven Levistsky e Daniel Ziblatt em seu "Como as Democracias Morrem" (Zahar) chamam de princípios não escritos: o reconhecimento público da legitimidade do opositor e a autocontenção no uso do poder. Para TRUMP a desqualificação deselegante e agressiva dos oponentes e a falta de limites no uso do poder são traços permanentes.

E agora, diante de uma possível derrota, em precedente inédito e perigoso, preventivamente inocula uma interrogação sobre a legitimidade do resultado e as fraudes na futura eleição, insinuando que poderá questionar os resultados apostando em grave impasse. As instituições americanas serão testadas. Creio que este será o maior impacto no Brasil da eleição americana, até pelos laços próximos erguidos entre Trump e Bolsonaro: o fortalecimento ou o enfraquecimento da ideia de democracia.

No plano dos direitos humanos e das políticas ambientais também uma vitória de Biden impactará fortemente as relações Brasil/EUA. Biden, como vice-presidente de Obama, entregou à época farta documentação ao Brasil sobre o período do regime ditatorial e a prática da tortura e provavelmente valorizará o tema dos direitos humanos. No plano ambiental, o Brasil terá que mostrar serviço no compromisso com a sustentabilidade para poder exigir o apoio internacional a que faz jus.

Nas negociações econômicas, será necessário retomar o velho e bom pragmatismo brasileiro. Incluindo aí a licitação do 5G nas telecomunicações e a negociação das barreiras comerciais que obstruem o comércio externo bilateral.

Apesar da amizade dos presidentes Trump e Bolsonaro, o comércio entre os dois países deve ser 25% menor em 2020 em relação ao ano anterior. Ou seja, “amigos, amigos, negócios à parte”.

A eleição de Biden parece provável, mas não é certa. Se ocorrer, o governo brasileiro vai ter que realinhar sua postura.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Política Democrática Online mostra falta de transparência no combate à corrupção

Destruição do Pantanal e estratégias de discurso de Bolsonaro também são analisadas na edição de outubro da publicação da FAP

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Brasil menos transparente no combate à corrupção, Pantanal destruído em meio ao desmonte de políticas ambientais no governo Bolsonaro, a retórica do ódio nas pregações do guru do Bolsonarismo e politização do combate à pandemia frente a perspectivas filosóficas dos governantes brasileiros. Esses são os principais destaques da revista Política Democrática Online de outubro, lançada nesta sexta-feira (16).

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza acessos gratuito a todos os conteúdos da revista em seu site. No editorial, a revista Política Democrática Online chama atenção para a urgente necessidade de “retomar o processo de convergência em torno de objetivos comuns: a defesa da democracia e a construção de uma plataforma mínima de reconstrução nacional”.

“Está em curso a consolidação da aliança entre o presidente da República e o bloco de deputados e senadores que responde pelo nome de ‘centrão’”, observa o texto. “Repudiada, no primeiro momento, pelos núcleos duros do bolsonarismo como capitulação frente à velha política, a aliança já rende frutos significativos ao governo e promete colheita ainda maior de resultados no futuro”, critica.

Em entrevista exclusiva para a nova edição da revista, o economista Gil Castello Branco, fundador e atual diretor executivo da Associação Contas Abertas, diz que o Brasil está menos transparente. A entidade fomenta a transparência, o acesso à informação e o controle social no país. Ele alerta que o país pode perder cerca de R$ 18 bilhões de recursos federais usados no combate à pandemia por conta da corrupção.

A reportagem especial, por sua vez, analisa como a destruição do Pantanal confirma retrocessos da política ambiental no governo Bolsonaro, o que, de acordo com o texto, é refletido também na declaração do próprio presidente e de seus ministros em defesa do “boi-bombeiro”. “A versão do governo não sinaliza, positivamente, para qualquer medida eficaz de preservação do meio ambiente no país”, afirma um trecho.

'Ética do diálogo'

Ao analisar a retórica do ódio e bolsonarismo, o professor titular de Literatura Comparada da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e ensaísta João Cezar de Castro Rocha aponta para a necessidade de se abraçar “a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes”. Segundo ele, esse é o primeiro passo para a superação da problemática.

A política nacional na pandemia é analisada pelo professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio. Segundo ele, Bolsonaro notabilizou-se, dentro e fora do país, porque politizou a pandemia da forma mais equivocada possível. “Desdenhou de suas consequências e principalmente dos mortos; recusou-se a colaborar com governadores e prefeitos no combate à pandemia, alegando falsamente suposta obstrução do STF [Supremo Tribunal Federal]”, exemplificou.

Aggio também avalia que Bolsonaro impediu a comunicação e a transparência a respeito do avanço e do combate à pandemia. “E, por fim, buscou, a todo custo, ‘abater’ politicamente seus supostos concorrentes às futuríssimas eleições presidências de 2022. Assim se comportou com dirigentes democraticamente eleitos e com ministros que ele próprio convocou como seus auxiliares”, lamenta.

Além desses assuntos, a revista Política Democrática Online também tem conteúdos sobre economia e cultura. A publicação é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado e tem o conselho editorial formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

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Yascha Mounk: Modelos mais sofisticados ainda dão a Trump uma chance em cinco de vencer

Tendência geral é de que populistas conseguem se manter no poder, e vitória de Biden seria exceção

Muitos americanos estão olhando para o próprio país e sentindo vergonha. O que revela sobre os EUA alguém como Donald Trump não apenas ter vencido uma eleição presidencial como conservado o apoio de tantos, não obstante suas falhas evidentes?

Quando mais uma declaração cruel ou racista do presidente aparece no meu feed, sinto essa vergonha. Mas como cientista político que estuda a ascensão de populistas autoritários, sei que a atração exercida por Trump está mais perto de constituir a regra que a exceção.

Nos últimos anos, populistas conquistaram o cargo mais alto em democracias de várias partes do mundo, de Jair Bolsonaro no Brasil a Narendra Modi na Índia. A atração exercida pelos dois mostrou ser surpreendentemente resiliente.

Modi conquistou um segundo mandato por maioria 
inequívoca. Bolsonaro é visto nas pesquisas com grande chance de fazer o mesmo.

Em novembro, porém, os EUA podem se mostrar excepcionais: se as pesquisas de opinião se comprovarem acertadas, será a primeira grande democracia na memória recente a afastar um governante populista ao término de seu primeiro mandato.

Quando Trump foi eleito, muitos de seus adversários se deixaram levar pela fantasia de que ele deixaria o cargo muito antes do término de seu mandato. Talvez se cansasse de suas responsabilidades políticas.

Talvez fosse impichado. Seja qual fosse a forma de sua queda, uma centena de artigos nos garantiu que essa maluquice não poderia se prolongar por quatro anos.

Essa espécie de pensamento veleidoso é típica dos adversários dos populistas autoritários. Mas longe de terem probabilidade especial de perder o poder repentinamente ou antes do previsto, os presidentes e primeiros-ministros populistas se conservam no cargo em média pelo dobro do tempo que os não populistas: seis anos e meio, comparados a três no caso destes últimos.

Como Jordan Kyle e eu demonstramos, essa discrepância chama a atenção especialmente quando comparamos governos que se mantêm no poder há mais de dez anos. Um chefe de governo populista tem cinco vezes mais 
probabilidade de permanecer no cargo após uma década do que um não populista.

E encontramos poucos exemplos de populistas que perderam o poder após apenas um mandato. Os eleitores tendem a reconhecer seu erro apenas depois que os líderes populistas causaram danos graves às instituições democráticas.

Embora as sondagens coloquem Biden na dianteira, os modelos mais sofisticados ainda dão a Trump uma chance em cinco de vencer a eleição. Considerando o que está em jogo, essa chance está longe de ser tranquilizadora.

Para agravar as coisas, o contexto internacional também mostra que os poucos populistas que não são reeleitos para um segundo mandato tendem a conservar uma presença grande e prejudicial em seus países.

Silvio Berlusconi, por exemplo, tornou-se o premiê da Itália pela primeira vez em 1994. Perdeu a maioria governante em menos de um ano, mas não tardou a se recuperar, passando a dominar a política italiana pelas duas décadas seguintes.

Mesmo assim, a lição principal que tiro do contexto internacional é inspiradora. Depois de quatro anos durante os quais os EUA mostraram o que têm de pior, é muito 
possível que em breve os americanos contrariem a tendência global, afastando um governante populista na primeira oportunidade possível.

E se Trump de fato se tornar um presidente de um mandato só, uma nova administração pode ajudar a liderar a luta internacional contra as forças ascendentes do iliberalismo.

*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".

Tradução de Clara Allain


Eliane Cantanhêde: Zumbi internacional

Vitória de Biden rompe a dupla 'Deus' e 'mito' e joga o Brasil no isolamento e no limbo

Contagem regressiva para as eleições americanas, em 3 de novembro, com o presidente Donald Trump dando sinais de desespero, perdendo o rumo, aprofundando a arrogância, incapaz de tirar do centro da pauta o seu maior calcanhar de Aquiles: a pandemia. Mais do que as pesquisas, é o próprio Trump quem sinaliza ao mundo que caminha para uma derrota histórica na maior potência do planeta.

Isso deixa o Brasil, e diretamente o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e o chanceler Ernesto Araújo, numa enrascada. Em seu artigo mais chocante, ou delirante, intitulado “Trump e o Ocidente”, Araújo prega que o Ocidente está em perigo e depende de Deus. Em seguida, nomeia: “só Trump pode ainda salvar o Ocidente”. Trump é Deus. Logo, coitado do Ocidente, estará perdido sem Trump.

São visões confusas, que põem o Brasil numa situação difícil com a perspectiva de um governo democrata, com Joe Biden e Kamala Harris. Onde esconder os textos de Araújo? O boné “Trump 2020” do ex-quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro? A subserviência de Jair Bolsonaro a Trump?

Resta a eles orar para o “Deus” Trump conseguir um milagre e repetir 2016: perder no voto popular, mas vencer no colégio eleitoral. Não é o que as pesquisas indicam, pois Trump perde não só em Estados-pêndulos, que historicamente podem ir para um lado ou outro, mas até em bases republicanas. Eleição não se ganha ou perde de véspera e Trump surpreendeu em 2016, tem estratégia e truques diabólicos – inclusive massificar que Joe Biden, de 77 anos, está senil, desorientado. Logo, nunca é demais botar um pé atrás, mas tudo aponta a vitória democrata.

O momento decisivo foi quando Trump pegou a covid-19. A reeleição já estava difícil, com tendência clara pró-Biden, e Trump não soube transformar limão em limonada, humanizar sua imagem, captar alguma empatia e estancar os consistentes ataques a ele. De outro lado, tentar levar o debate para o seu estado de saúde e para seus eventuais trunfos, tirando do centro das atenções seu gravíssimo descaso na pandemia. Ele fez o oposto.

Trump dobrou a aposta na arrogância, com notícias médicas duvidosas, a retirada abrupta da máscara em público e a patética saidinha de carro para acenar aos militantes na porta do hospital. Que candidato resiste a erros tão grosseiros? Assim, ele jogou ainda mais o foco na sua grosseria, prepotência, ignorância e irresponsabilidade no combate ao vírus, que já matou perto de 215 mil americanos e tornou os EUA exemplo do que não se faz.

Esse é o eixo de um debate que desaba em princípios. De humanidade, compaixão, empatia, justiça e honestidade, que levam ao sentido oposto de Trump: a “Black Lives Matter”, combate à violência policial, um sistema de saúde inclusivo. Na política externa, multilateralismo, sustentabilidade, liderança com generosidade, firmeza sem confronto com a China. E um freio na arrancada da extrema direita internacional.

O desafio de Bolsonaro é o que fazer em caso de dar Biden. Com o decantado pragmatismo dos EUA, a previsão é de frieza nas relações diplomáticas, mas mantendo as negociações econômicas e comerciais e os programas de cooperação em diferentes setores – como ocorreu até com Dilma Rousseff. O risco é numa área específica: a bélica, militar. Biden vai aumentar o arsenal de Bolsonaro?

A maior perda para o Brasil será na área internacional. Ao se isolar da Europa, gerar desconfiança na China, jogar fora a natural liderança na América Latina, Bolsonaro apostou em “Deus” e “mito”. Sem esse “Deus”, o País pode virar uma ilha, sem credibilidade, parceiros e, portanto, investimentos. Para o ministro da Educação, jovens sem fé são “zumbis existenciais”. Sem Trump, Brasil pode ser um zumbi internacional.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Raul Jungmann: Qual o projeto nacional para a Amazônia?

No primeiro debate nacional com o Presidente Trump, o candidato democrata Joe Biden disse que amealharia 20 bilhões de dólares para em conjunto com outros países “resolver” (sic) o problema do desmatamento da Amazônia. Falou bobagem, naquele que foi um dos piores debates televisivos já vistos.

A soberania do Brasil sobre o seu território é intocável, inegociável e não está em discussão ou aberta a quaisquer negociações. Desde o início do fim do neo-colonialismo, após a 1ª guerra mundial, o direito internacional não admite o mandato de outros países sobre nações e territórios soberanos – caso do Brasil.

Já após a II Grande Guerra, alguns temas e questões ganharam status de direito internacional positivo, como é o caso do fundo dos oceanos, espaço, o Ártico e Antártida, refugiados e direitos humanos, em graus variados de extensão e adimplência.

Mesmo o direito internacional que sustenta a imposição da paz e/ou a estabilidade das nações pela ONU, não incide sobre a tutela do território das nações em conflito ou em guerra civil. Entretanto, é inequívoco, o direito internacional tem evoluído, sobretudo numa era de globalização acelerada, para a mitigação, compartilhamento e/ou responsabilização da soberania das nações, em temas como, por exemplo, o direito das gentes e o meio ambiente.

Em especial nesse último caso, e no que toca as mudanças climáticas, a internacionalização do direito e as responsabilidades comuns, ainda que assimétricas, têm sido progressivas e inexoráveis.

A forma que temos de harmonizar essa tendência global com a nossa soberania é assumirmos, integralmente, nossa responsabilidade pela preservação da Amazônia, que é impossível de ser assegurada sem um projeto de desenvolvimento sustentável integral. O que é o mesmo que dizer, sem desenvolvimento sustentável não há como preservar a Amazônia.

A questão de fundo é que, entre nós, não há consenso sobre que projeto, que desenvolvimento sustentável será esse. O que existe são projetos em disputa, sem que haja uma estratégia nacional, um rumo definido para a região. Enquanto não definirmos o que queremos para a Amazônia, é preciso e urgente conter e reprimir a sua devastação.

Toda ajuda e apoio externos, desde que por nós definidos em razão dos nossos interesses e soberania, devem ser bem-vindos. Igualmente, é inequívoco que a exploração desenfreada de reservas indígenas e/ou ambientais e o desmatamento em curso desservem à nossa soberania e aos interesses do Brasil.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


César Felício: Relações carnais

Eleição nos EUA mexe no jogo político brasileiro

Se alguma evidência ainda precisava ser apresentada para comprovar a extrema importância da eleição americana no processo político brasileira, essa necessidade desapareceu com o debate da última terça-feira entre Joe Biden e Donald Trump.

Sem ser provocado, Biden de moto próprio afirmou que faria uma proposta para o Brasil na área ambiental, que mais soa a um ultimato. Ou Bolsonaro aceita US$ 20 bilhões de ajuda para preservar a Floresta Amazônica, ou arcará com consequências econômicas.

Foi um aceno de Biden à ala mais radical do Partido Democrata, que precisa ser compensada de alguma maneira por todos os gestos centristas já feitos pelo candidato. Mas sinalizou para um isolamento maior do governo brasileiro no futuro. Será o fim das relações carnais entre Brasil e Estados Unidos, como o próprio Bolsonaro deixou claro ao refutar no dia seguinte a proposta de “plata o plomo” feita pelo democrata. Afora Rússia e China, o Brasil foi o único país mencionado no debate.

A reeleição de Trump empoderaria o bolsonarismo não pelo que as relações com os Estados Unidos poderiam proporcionar ao país do ponto de vista comercial, econômico. Há uma sintonia política que não passa por isso, e motiva o Brasil a se submeter a uma equação desigual, em que o alinhamento brasileiro claramente não tem retribuição.

Por Trump, o Brasil aceita condições menos favorecidas no comércio de etanol e o chanceler se abala até Roraima para servir de escada a um gesto político do secretário de Estado.

A similaridade entre Trump e Bolsonaro é assustadora, como ficou nítido no debate. Trump demonstrou na lancinante hora e meia de refrega com Biden que não titubeia em deixar no ar o risco de uma ruptura institucional, caso não consiga permanecer no poder. Também exaltou as forças armadas e policiais. Militarizou a pandemia, ao dizer que vai acionar a tropa para distribuir doses da vacina contra Covid-19.

Bateu e rebateu na tecla do anticomunismo. Agrediu a imprensa. Recusou-se a condenar a extrema-direita. Responsabilizou os governadores por dois males que afligem os Estados Unidos: a desaceleração da economia, supostamente produto de um fechamento exagerado de atividades por conta da pandemia e a escalada da insegurança,

Para completar, colocou em dúvida a qualidade do sistema de votação no seu país e flertou com o negacionismo sanitário, ao relativizar a importância do uso de equipamentos individuais de proteção, como a máscara.

Torna-se difícil citar pelo menos uma diferença entre ambos. Talvez seja possível dizer que o discurso religioso, tão preponderante na retórica bolsonarista, não marcou a fala de Trump na noite da terça-feira. Não houve as citações de João, capítulo 8, versículo 32.

Bolsonaro converteu-se, de certo modo, em uma franquia de Trump. Um dos arquitetos da vitória republicana em 2016, Steve Bannon, também foi um conselheiro na eleição do presidente brasileiro dois anos depois.

Grandes influenciadores bolsonaristas nas redes sociais fazem parte do ramo endinheirado da colônia brasileira no país, que atua nos setores financeiro e imobiliário. Estes brasileiros estão profundamente vinculados a estrategistas da direita radical americana. Olavo de Carvalho, de longe o principal agitador cultural, não tem este tipo de ligação, mas de seu bunker no sul dos Estados Unidos recebe a influência da direita americana e dá lógica e coerência interna para todo o discurso extremista brasileiro.

É para os Estados Unidos que correm os bolsonaristas que, por um motivo ou por outro, estão preocupados com a reação da Justiça brasileira às suas demasias. Não à toa Bolsonaro quis nomear um operador político- seu próprio filho, Eduardo- para ser embaixador no País. Ficou óbvio que o que guia o bilateralismo americano não é comércio e economia. É ideologia.

Há uma mesma faixa. Trump e Bolsonaro estão na mesma frequência modulada. O possível descarrilamento nos Estados Unidos da estrada da direita radical abre perspectivas perturbadoras para políticos como o brasileiro.


A eleição paulistana, como mostra a pesquisa da XP/Ipespe divulgada com exclusividade pelo Valor, mostra que Celso Russomanno nunca teve uma chance tão boa de chegar ao segundo turno como agora. Está colado ao presidente Jair Bolsonaro, que conta com 28% de aprovação na cidade, e se beneficia do recall das eleições passadas, que o situam acima do patamar de 20%. Precisamente 24% no XP/Ipespe. O desafio é o que acontece depois. A posição de Russomanno para disputar o segundo turno é ruim.

Bruno Covas tem 21% na pesquisa. Se enfrentar o tucano no segundo turno, como tudo no momento indica, será difícil para Russomanno herdar os votos da esquerda. Boulos, Tatto, Orlando Silva,, Vera Lúcia e Marina Helou no momento somam 15%. Covas consegue 37% na simulação de segundo turno. O voto do centrista Marcio França, por ora, parece estar dividido, mas pende mais para o candidato bolsonarista. Russomanno obtém 35% no embate direto contra Covas. A soma do seu caudal com os 6% de Arthur do Val, Matarazzo, Levy Fidelix e Joice Hasselman e Felipe Sabará, todos matizes de direita, agrega 30%.

Russomanno só consegue vantagem clara se enfrentar Boulos no segundo turno, porque aí é possível restabelecer o vigorosíssimo discurso antiesquerdista. Seria a repetição do cenário do segundo turno carioca em 2016, em que Crivella teve a sorte de chegar ao segundo turno contra o único candidato que conseguia sobrepujar.

Um levantamento no mês de setembro com a análise de 31,5 milhões de posts no Twitter e no Facebook, feito pela consultoria ponto Map, indica que o debate nas redes está longe da zona de conforto bolsonarista.

A saúde lidera as menções, com 17% de participação. Menos debatida, a Economia deu um salto de 5% para 9% das menções. E não se fala mais tanto de auxílio emergencial, mas de desemprego, inflação dos alimentos e perda de renda.

Bolsonaro não tem porque se envolver profundamente em uma eleição que corre o risco de perder. É bom Russomanno torcer para Boulos.


William Waack: Lição do debate americano

Disputa indica uma crise constitucional, já que Donald Trump só aceita um resultado: sua vitória

Não são nada boas as evidências trazidas pelo debate entre Donald Trump e Joe Biden sobre o estado geral da política americana. O debate trouxe a cara feia do que até há pouco era impensável: uma crise constitucional provocada por uma eleição de resultados contestados. Com Trump dizendo que só aceita um: o da sua vitória.

O que acontece no sistema político americano pesa de forma desproporcional no resto do mundo. Especialmente quando o país que serviu de referência – “a cidade de luzes no topo da colina”, na clássica definição – vai deixando de ser exemplo positivo.

Os Estados Unidos são um país muito grande, muito rico, muito poderoso e que exerceu grande atração como modelo de vida pública e virtudes civis (há séculos, por sinal). Mas o debate da terça feira fez saltar aos olhos como se acelerou essa “virada para dentro”, o “deixa prá lá” em relação ao que se assumia como sendo o papel dos Estados Unidos de “nação líder” (pode-se gostar ou detestar esse papel, mas não dá para ignorar).

Nota-se na falta de conteúdo substantivo do debate a presença de uma espécie de doença infecciosa espalhada de tal maneira a ponto de grandes temas de formulação de políticas domésticas e internacionais mal receberem menções – uma das poucas foi sobre desmatamento da Amazônia, provavelmente pela sensibilidade que Joe Biden julga detectar no eleitorado democrata. É como se fosse uma “amnésia” em relação ao resto do planeta, assinalam comentaristas americanos.

Um deles é Adam Garfinkle, fundador e editor da imperdível publicação “The American Interest” (que tem no seu quadro de colaboradores nomes como Francis Fukuyama, Walter Russel Mead, Robert D. Kaplan, Niall Ferguson). Ele vai ao ponto de dizer que a sociedade e política americanas vivem um “estado geral de loucura” do qual Donald Trump não foi o iniciador. Mas que ajudou a acelerar, passando a representar a “quintessencia” de um tipo de desorientação geral típico de quem se perde numa sala de espelhos.

Para Garfinkle, constatar que Trump está ativamente empenhado em solapar as instituições democráticas americanas (seu destaque favorito é a politização do Departamento de Justiça) não significa dizer que o outro lado é “bom”. “Os democratas podem parecer relativamente menos perigosos para normas e princípios americanos, mas suas divisões internas e seus julgamentos equivocados não os tornam admiráveis. Por serem meramente incompetentes em vez de imorais não os torna bons na linha do tradicional provérbio de que dois erros não compõe um acerto”, escreveu.

Já é lugar-comum afirmar que no ambiente político americano (no brasileiro também, diga-se de passagem) as pessoas não conseguem concordar em sequer quais são os fatos. Não é de hoje que a política se tornou um espetáculo de imagens rápidas, mais compatíveis a eventos de esportes brutais, nos quais o entretenimento tem total precedência. Quando tudo vai se limitando a 140 toques, e ao “joinha” no pé da postagem, esse tipo de debate acaba sendo o espelho da perda do hábito da leitura e, sobretudo, da reflexão.

É o tipo da situação na qual tanto democratas quanto republicanos colocam o “sound bite” (a “sonora”, na gíria televisiva brasileira) adiante de qualquer substância, as teorias conspiratórias na frente de qualquer abordagem racional ou de substância. De novo, não é Trump o “inventor” desse tipo de fenômeno – muito conhecido também na nossa política. Mas é ele quem se esmera em tirar todo partido possível do desrespeito às regras não escritas de convivência dentro da civilidade e do respeito à opinião alheia e, sem dúvida, da mentira descarada.

A julgar pelo que ele mesmo disse no debate, Trump terá de ser forçado para fora da Casa Branca, mas mesmo uma clara e inequívoca derrota dele não fará o relógio voltar para trás. O que pareceu perdido no espetáculo do debate de terça à noite foi o que tanto fascinou sobretudo comentaristas europeus desde o século 18: o espírito de comunidade, de virtudes civis e de dedicação ao bem comum da tal “cidade das luzes no alto da colina”.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


Monica De Bolle: As eleições nos EUA

Uma eventual vitória dos democratas nos EUA trará imensos desafios para o trumpismo de Bolsonaro

Esse artigo será publicado no dia seguinte do primeiro debate presidencial entre Trump e Biden. Portanto, escrevo sem poder dizer quem foi melhor ou pior, sem poder discorrer sobre eventuais gafes e mentiras, sem nada poder falar sobre o comportamento de cada um. Contudo, algo me parece quase certo nesses tempos em que a polarização não mais se dá no plano político, mas no plano das realidades: o debate pouca diferença fará nos resultados de novembro.

A polarização da realidade, tema de estudo recente a ser publicado no prestigiado periódico American Economic Review (ver Alesina, Alberto, Miano, Armando, e Stefanie Stantcheva (2020) “The Polarization of Reality”), está entre nós. Não mais se trata de posicionamentos políticos e/ou ideológicos distintos e dos juízos de valor a eles associados. Esse tipo de polarização foi atropelado por outro bem mais nefasto, aquele em que cada pessoa tem o seu mundo, a sua realidade. Para alguns indivíduos, a realidade é que não existe covid-19 – trata-se de uma grande conspiração do “Estado profundo” (“deep state”) para, bem, não se sabe articular muito bem para o quê. Parte dos que não acreditam na existência do vírus condenam o uso de máscaras e identificam nos democratas o maior perigo para a estabilidade norte-americana: “vão invadir os subúrbios!”; “vão roubar nossas casas!”; “armemo-nos contra a investida dos comunistas!”. Para ser honesta, o outro lado não é muito melhor. Vivo nos EUA, em Washington DC, uma bolha democrata. Republicanos são vistos como seres inferiores, de intelecto comprometido, vis e desalmados. Exagero um pouco, mas não muito.

Quando a polarização se dá no plano das ideias, ainda é possível ter a esperança de que consensos se formem. Afinal, boa parte das ideias têm algum tipo de convergência ou algum elemento em comum. Nesses casos, tais elos servem para trazer à mesa pontos de vista aparentemente inconciliáveis. Contudo, quando a polarização se dá na realidade que cada um vê como a verdadeira, não há possibilidade de consenso, convergência, ou qualquer tipo de trégua no embate permanente. Realidades distintas necessariamente colocam “o outro” como um alienígena, ser estranho que merece ser tratado com suprema desconfiança. Assim está a sociedade norte-americana. O Brasil está chegando lá com velocidade assustadora.

A polarização da realidade não permite que eleitores cruzem fronteiras, ainda que não gostem muito do candidato que representa melhor sua visão do universo – universo mesmo, não mundo. Por essa razão, o debate entre Trump e Biden não haverá de mexer muito nos votos de certa maneira já pré-determinados. O mesmo vale para a vultosa série de reportagens administrativas sobre as manobras de Trump para não pagar seu imposto de renda nos últimos vários anos. Para os democratas, essa é mais uma prova do que já decidiram a respeito da personalidade do atual presidente dos EUA. Para os republicanos, trata-se de nada mais do que mais uma caça às bruxas dos “progressistas”, a somar-se às investigações sobre o envolvimento de Trump com os russos e ao impeachment decidido pela Câmara e rejeitado no Senado.

Resta, portanto, observar a inédita convulsão política em torno das eleições de novembro. Haverá crise constitucional? Será que Trump vencerá na noite da apuração dos votos apenas para perder dias mais tarde após serem contados os votos por correio? E os votos por correio, serão eles usados por Trump para declarar fraude eleitoral? Será a Suprema Corte – que acaba de perder a grande Ruth Bader Ginsburg, afetuosamente RBG – incumbida de dar a palavra final sobre o vencedor das eleições? E será que até lá Trump terá conseguido emplacar sua juíza indicada, provocando reviravolta ideológica na Corte?

É impossível exagerar o grau de incerteza, de turbulência política e social, associados a essas eleições. O que dá para afirmar é que, sem sombra de dúvida, a vitória dos democratas, seja para a presidência dos Estados Unidos, seja na conquista da maioria no Congresso, seja em ambas, trará imensos desafios para o trumpismo de Jair Bolsonaro.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Ricardo Noblat: Trump põe em xeque a confiança dos americanos na democracia

Biden venceu o debate, segundo pesquisa de rede de televisão

Nunca antes na história dos Estados Unidos um presidente da República pôs em xeque a confiança popular no sistema eleitoral e na própria democracia como Donald Trump, ontem, no primeiro dos três debates que travará com o senador Joe Biden, candidato do Partido Democrata, e vice de Barack Obama durante 8 anos.

Trump denunciou que as eleições de novembro próximo estão sendo fraudadas para impedi-lo de se reeleger, culpou os democratas e recusou-se a antecipar sua posição caso seja derrotado. Biden afirmou que aceitará o resultado, qualquer um. Trump calou-se mesmo quando provocado mais de uma vez.

Pesquisa da Rede de Televisão CBS apontou Biden como vencedor do debate – 48% a 41%. A diferença de sete pontos percentuais é a mesma das pesquisas mais recentes de intenção de voto. Na prática, isso pode significar que o debate não mexeu com a pequena parcela dos eleitores que ainda se dizem indecisos.

Seguramente, foi o pior debate entre candidatos à presidência dos Estados Unidos desde o primeiro transmitido pela televisão entre John Kennedy (Democrata) e Richard Nixon (Republicano) no início dos anos 60 do século passado. Nixon perdeu. Kennedy não completou o mandato porque morreu assassinado a tiros.

Trump comportou-se como um moleque de rua disposto a ganhar a briga aos gritos ou na mão. Biden, como um senhor respeitável e idoso, desacostumado com o estilo agressivo do adversário. Mas, em alguns momentos, Biden também bateu em Trump, a quem acusou de racismo, chamou de palhaço e mandou fechar a boca.

Durante uma hora e meia, enquanto Biden falava olhando para a câmera, Trump falava olhando para ele. Interrompeu-o o tanto que pôde, e quando advertido pelo mediador do debate, bateu boca com o mediador. Poucas vezes, Biden conseguiu completar seu raciocínio. E perdeu as melhores chances de encurralar Trump.

Uma delas foi quando o mediador perguntou sobre quanto cada um pagou de Imposto de Renda no ano passado. Biden respondeu que pagou US$ 299,3 mil. Trump negou-se a responder. Segundo o jornal The New York Times, Trump pagou apenas US$ 750 em 2016 e 2017, menos do que um professor de ensino médio.

O debate de pouco serviu para que os americanos façam uma ideia de como será um segundo governo Trump ou o primeiro de Biden. O Brasil entrou em cena por causa da devastação da Amazônia. Biden prometeu US$ 20 bilhões para combater a devastação e disse que haverá retaliações se ela continuar.

Trump, de quem o presidente Jair Bolsonaro se diz amigo e admirador, preferiu o silêncio.


Hélio Schwartsman: Trump e o espírito santo

Ou ele é um dos piores empresários do país ou um sonegador contumaz

Num furo histórico, o jornal The New York Times obteve as declarações do imposto de renda de Donald Trump, que, contrariando uma tradição de décadas entre candidatos e presidentes, ele sempre recusara mostrar. O resultado é arrasador.

Em 2016, ano em que foi eleito, ele pagou US$ 750 em impostos federais, uma ninharia não apenas para um suposto bilionário, mas para qualquer contribuinte. Eu próprio, no ano em que passei como "fellow" numa universidade americana, recebendo uma bolsa, gastei mais do que ele em tributos federais.

E fica pior. Trump pagou tão pouco porque alega sofrer enormes prejuízos em seus negócios. Se diz a verdade, é um dos piores empresários do país; se mente, é um sonegador contumaz. Não obstante, analistas não prognosticam nenhum efeito devastador sobre a corrida eleitoral. O presidente já disse que a reportagem é "fake news", e seus apoiadores tendem a acreditar nisso.

Parece haver uma classe de políticos que é quase invulnerável a escândalos e declarações absurdas. São às vezes chamados de candidatos teflon, pois nada grudaria neles. Trump está nessa categoria, assim como Bolsonaro, Lula, Maluf, Ademar de Barros. Eles sobrevivem a coisas como fama de ladrão, condenações judiciais e podem sem temor defender o indefensável. Não raro transformam tais passivos em ativos, que vão compondo uma espécie de mitologia pessoal. Por quê?

O primeiro a ensaiar uma resposta foi o sociólogo alemão Max Weber. Para ele, algumas lideranças, que chamou de carismáticas, são postas à parte do universo das pessoas comuns e passam a ser tratadas, ao menos por seus seguidores, como se tivessem poderes especiais ou mesmo sobre-humanos. Não é coincidência que Weber tenha ido buscar o termo "carisma" na teologia cristã. Só o espírito santo explica por que alguns "escolhidos" se livram tão facilmente de pecados que seriam fatais para políticos mais normais.


Pablo Ortellado: E se Trump decidir ficar?

Presidente americano quer deslegitimar voto pelo correio que pode dar vitória a democrata

Faltando pouco mais de um mês para as eleições presidenciais, os Estados Unidos podem ver o atual presidente não reconhecer eventual derrota e se negar a fazer uma transição pacífica caso a eleição se decida com os votos pelo correio.

Trump foi questionado duas vezes, recentemente, se se comprometia com uma transição pacífica de poder se vier a perder as eleições; uma em entrevista à Fox News, em julho, e outra em entrevista coletiva na Casa Branca, na última quarta-feira (23). Nas duas ocasiões, preferiu não se comprometer. Na convenção do partido Republicano, em agosto, disse que só perderia a eleição se houvesse fraude.

Em 2016, mesmo tendo vencido, Trump acusou Hillary Clinton de ter se beneficiado de milhões de votos de imigrantes ilegais —alegação feita sem nenhum embasamento.

Nas últimas semanas, Trump tem dado em média quatro declarações diárias colocando em dúvida a confiabilidade do voto postal. Esse tipo de voto, no qual o eleitor recebe as cédulas com antecedência e as envia pelo correio, é utilizada desde o século 19 e tem um nível de segurança aceitável.

Na verdade, esse ou qualquer outro tipo de fraude eleitoral é muito infrequente nos Estados Unidos.

Levantamento do Centro Brennan, ligado à Universidade de Nova York, mostrou que fraudes apuradas variam de 0,0003% a 0,0025% dos votos, o que, no universo de uma eleição presidencial, com cerca de 155 milhões de eleitores, equivale a menos de 3,9 mil votos —uma quantidade quase certamente incapaz de afetar o resultado final.

Apesar disso, o fantasma da fraude no voto postal pode gerar um perigoso impasse.

Em tempos normais, não há diferença significativa na opção pelo voto por correio entre eleitores democratas e republicanos, mas durante a pandemia pesquisas têm mostrado que democratas --que consideram a Covid mais grave —pretendem fazer mais uso do voto pelo correio.

A diferença é tão grande que simulações da empresa de dados Axios dão como altamente provável que a apuração com os votos presenciais dê vitória parcial a Trump, mas, após a contagem dos votos pelo correio, Biden saia eleito.

A incerteza é como Trump vai agir no intervalo entre a publicação do resultado parcial e do resultado final.

Reportagem da revista The Atlantic mostra que líderes do partido Republicano estudam, em alguns cenários, declarar suspeição das eleições, de modo que deputados estaduais determinem qual vai ser o voto de todo o Estado —uma possibilidade prevista na Constituição, mas jamais colocada em prática, e que pode jogar o país numa crise sem precedentes.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.