joe biden
Ligia Bahia: A saúde sai do limbo nos EUA
Trump insistiu nas declarações sobre a disposição de Biden para fechar a economia seguindo a ciência
As estratégias para enfrentar a Covid-19 ocuparam o centro das atenções nas eleições nos EUA. O apreço ou desprezo pela ciência, a incapacidade para coordenar o enfrentamento da pandemia ou a defesa da economia e os defeitos ou qualidades atribuídos ao Obamacare orientaram a definição dos votos.
Joe Biden declarou que apoiaria, em vez de difamar, pesquisadores e especialistas. Disse ainda que incentivaria o uso de máscaras sempre, garantiria avanços para a testagem por meio de investimentos em testes rápidos e se certificaria sobre padrões nacionais seguros para a abertura de escolas e empresas.
Donald Trump afirmou que considera ter nota A+ no gerenciamento da pandemia e apenas um D em divulgação, “porque são produzidas notícias falsas”. O atual presidente insistiu nas declarações sobre a disposição do adversário para fechar a economia seguindo recomendações científicas, disse que tinha testado positivo e retomou a campanha por ter recebido tratamento com anticorpos e outros medicamentos. Contudo o que está em jogo é mais do que a condução política contra a pandemia. O resultado das eleições decide o destino da Lei de Cuidados Acessíveis (ACA, na sigla em inglês) — o Obamacare —, aprovada em 2010 pelos democratas e que, segundo Trump, é “muito cara e não funciona.”
O sistema de saúde nos EUA, que se baseia em planos privados e programas governamentais, vai descer do muro. O plano apresentado por Biden propõe a expansão de coberturas por meio da organização de um seguro público e da redução na idade (de 65 para 60 anos) para ingresso. Enquanto o atual governo atua junto à Suprema Corte defendendo a inconstitucionalidade do Obamacare.
Embora uma decisão jurídica contrária ao aumento da proteção à saúde fosse improvável (houve sentenças que acataram a legislação em 2012 e 2015), a morte da progressista Ruth Bader Ginsburg e a indicação de Amy Coney Barrett, reforçando uma maioria de juízes conservadores (6 a 3), aumentariam as chances de anular a lei. Os republicanos apoiam e prometeram conservar garantias para pessoas com doenças preexistentes, contidas na ACA, mas não apresentaram normas para obrigar que as empresas vendam planos para quem tem mais probabilidade de risco. Outros temas, como direitos reprodutivos e a atenção à saúde para imigrantes, provocaram polêmicas laterais.
Trump cortou recursos para clínicas de planejamento familiar que realizam ou oferecem orientação sobre aborto, permitiu que as empresas empregadoras excluíssem o acesso a anticoncepcionais e programas para pacientes LGBTQ e expandiu a “Política da Cidade do México” (datada de 1984, gestão Reagan), que bloqueia assistência internacional a organizações envolvidas com a interrupção segura da gravidez.
O republicano quer reverter a decisão da Suprema Corte de 1973 (Roe versus Wade) sobre direito ao aborto. Biden tem posicionamentos opostos, prometeu reverter políticas discriminatórias de gênero. Assim como propôs mudar as regras de separação entre pais e filhos na fronteira e instituir um roteiro rumo à cidadania para imigrantes ilegais, incluindo a permissão de adesão a planos privados e a remoção do tempo de espera de cinco anos para o ingresso em programas governamentais de saúde dos legalizados.
Oportunidades de expor programas para a saúde foram bem aproveitadas por Biden. Trump não é um candidato convencional, atacou constantemente a burocracia e recentemente os médicos, a quem acusou de receber dinheiro para registrar indevidamente mortes por Covid-19. Seu admirador no Brasil tenta com afinco parecer igual, mas não consegue. O governo federal organizou uma burocracia militar dispendiosa e ineficiente na saúde e cultiva uma base de médicos militantes. Para Biden, Trump não soube proteger a América. A frase teria que ser adaptada para fazer sentido entre nós, onde a pandemia também segue ceifando vidas. Ficaria assim: Bolsonaro não soube proteger o Brasil, mas conseguiu arrumar a vida de um monte de gente ao bagunçar a saúde pública.
Alberto Aggio: EUA no centro do mundo … uma vez mais
É indiscutível a importância dos EUA para o mundo. O século XX foi caracterizado, com razão, como o “século americano”. Depois do fim do comunismo, no início da década de noventa, isso ficou ainda mais claro. Depois de percorridas duas décadas do século XXI, nem mesmo o protagonismo assumido pela China conseguiu deslocar a importância dos EUA no mundo, se considerarmos as dimensões tecnológicas, econômicas, culturais, etc.. Ainda que se possa falar de um relativo arrefecimento do poder dos EUA, não resta dúvida a respeito do papel hegemônico que os EUA ainda jogam na cena mundial.
Mesmo não sendo eleitores, nós brasileiros, assim como boa parte da população mundial, não temos como não expressar grande interesse sobre o embate que se trava nas eleições presidenciais norte-americanas. Depois dos quatro anos de Trump, há uma grande expectativa sobre o resultado destas eleições. Há muitas razões para ser assim, a começar pelo fato de que já se espera que o resultado não seja conhecido de imediato em razão tanto da polarização confrontacional que Trump instituiu ao processo eleitoral, com acusações de fraude e ameaça de não respeitar os resultados, que fica difícil antever quando se dará a conhecer o vencedor da eleição.
De toda maneira, é inegável que os EUA ocupam o centro do sistema mundial atualmente existente. Direta ou indiretamente, as escolhas políticas feitas nos EUA invariavelmente repercutem de maneira global. E isso vale para problemas que os EUA acabaram gerando – como se observou na grave crise global de 2008-9, cujas repercussões ainda sentimos – quanto para decisões de governança que, sem a presença norte-americana, perdem em credibilidade e até mesmo em eficácia.
Por outro lado, os EUA exercem um papel pedagógico sobre o mundo que não tem padrão de comparação com outros países. Assim, o que ocorrer lá repercute positiva ou negativamente numa dimensão global. A vitória de Trump em 2016 foi sinal verde para o avanço de lideres e governantes iliberais em diversos países, com o destaque infeliz de Bolsonaro não só para os brasileiros. É de se esperar, como apontam as pesquisas, que uma derrota de Trump nessas eleições corresponda a um efeito inverso, abrindo espaço para se restituir ou restaurar uma nova situação no cenário internacional de caráter mais colaborativo e de afirmação do multilateralismo.
Isto porque, com Trump se pôde observar com mais clareza a fragilidade da ordem internacional. Nos últimos 4 anos houve um visível déficit de governança mundial, aprofundando uma lacuna entre a globalização e as instituições responsáveis por dirigi-la e governa-la. E isto gerou contradições e tensões bastante perigosas, voltando-se a favar em uma “nova guerra fria”. Como diz Mario del Pero, cientista político da CienciPo, de Paris, com Trump abriu-se um “fosso entre globalização e a globalidade”. Estas eleições são importantíssimas uma vez que a superação dessa situação demanda um empenho ativo dos EUA no interior da ordem mundial.
Trump contaminou o cenário internacional com uma orientação reacionária inteiramente extemporânea. Enfraqueceu o lugar hegemônico dos EUA aos olhos do mundo, mas não a vitalidade da sociedade norte-americana em defesa de valores democráticos, humanistas e igualitários. Quis restituir os termos do antigo imperialismo a partir da lógica de “única potência”, coisa que já não é mais possível no mundo de hoje. O resultado é que, depois de 4 anos, lhe faltam tanto aliados sólidos e importantes, quanto um horizonte de futuro que possa ser compartilhado pelos demais países, especialmente pelos aliados tradicionais dos EUA como foram os países europeus desde o pós-guerra.
Ao futuro de sociedades democráticas de perfil ocidental, em sentido gramciano, interessa vivamente uma recomposição da aliança entre EUA e União Europeia (UE), não o seu enfraquecimento como objetivou Trump. O conflito econômico mundial não foi abolido com o fim da URSS, ele apenas ganhou novos contornos que precisam ser governados a partir de critérios de interdependência, multilateralismo e democracia. Os problemas da EU, tais como um novo padrão de crescimento econômico, a imigração descontrolada, a luta contra o jiradismo mulçumano, o desemprego, etc., têm demonstrado uma resiliência muito grande e tudo o que a UE não precisa é da confrontação de tipo unilateral que Trump instituiu nos últimos anos. Por tudo isso que estas eleições se apresentam ao mundo todo como históricas. Serão dias e noites que europeus, latino-americanos e boa parte da população mundial estarão atentos ao que vai se passar nos EUA. O clima é de que se possa ultrapassar os descaminhos dos últimos anos.
*Alberto Aggio, historiador, professor titular da Unesp
Ricardo Noblat: Ganhe Trump ou Biden, a eleição de hoje já passou à história
Nunca tantos votaram tão cedo
A eleição presidencial norte-americana de 2020 já garantiu seu lugar na história. Em um país onde o voto não é obrigatório, até o final da tarde de ontem, pessoalmente ou pelo Correio, 97,6 milhões de pessoas já haviam votado. Isso significa mais de dois terços do número total de votos apurados na eleição de 2016.
No último dia de campanha, na maioria dos cinco comícios que fez em quatro Estados, o presidente Donald Trump atacou a Suprema Corte onde 6 dos 9 ministros são conservadores. Trump disse que tribunal pôs o país em perigo ao permitir que a Pensilvânia aceite votos que chegarem pelo Correio após o dia da eleição.
Segundo Trump, a decisão da Suprema Corte foi política e poderá estimular manobras fraudulentas dos seus adversários. No Twitter, escreveu que ela seria capaz até de induzir “à violência nas ruas”. De imediato, o Twitter classificou as afirmações do presidente como potencialmente falsas e alertou os seus usuários para isso.
A segunda-feira foi um dia de muitas queixas feitas por Trump. Além da Suprema Corte, foram alvos delas a mídia, o ex-presidente Barack Obama, a senadora Hillary Clinton e a investigação sobre a interferência russa nas eleições de 2016. O coronavírus foi mencionado apenas de passagem. Trump tentou desacreditar as pesquisas que apontam a vitória do Democrata Joe Biden.
Parecia claramente nervoso. Em Kenosha, cidade do Estado de Wisconsin, Trump reclamou até das falhas do microfone que lhe deram. “Este é o pior microfone que já usei na vida”, disse segundo o jornal The New York Times. Prometeu devolver a todos que ali compareceram metade do preço que pagaram pelo ingresso.
Os institutos de pesquisa, menos um, concordam que Biden deverá vencer Trump com uma larga vantagem no voto popular, e uma vantagem menos expressiva no Colégio Eleitoral. O instituto que discorda da eventual vitória de Biden também no Colégio Eleitoral foi o único que há 4 anos previu a eleição de Trump.
Em cinco ocasiões, o presidente que ganhou no voto popular perdeu no Colégio Eleitoral, que é o que vale de fato. A última vez foi o próprio Trump. Cada Estado tem sua própria legislação. Há Estados menos populosos com mais votos no Colégio Eleitoral, e Estados mais populosos com menos votos. É uma zorra total.
Falta aos Estados Unidos um órgão como o nosso Tribunal Superior Eleitoral para coordenar a apuração dos votos. É a mídia, com base nas pesquisas de boca de urna, que antecipa o nome do provável vencedor. Isso poderá acontecer na madrugada desta quarta-feira. Ou arrastar-se por mais um dia.
Cristina Serra: O mundo sem Trump
Sua derrota ajudaria a resgatar um pouco de esperança
Nunca uma eleição foi tão crucial para os EUA, o mundo e o Brasil. A derrota de Trump é a única opção para os que se preocupam com a democracia e o bem-estar da civilização. Sua política criminosa de separar crianças de seus pais imigrantes já seria motivo suficiente para desejar não só seu malogro como sua prisão por crime de lesa-humanidade.
Mas ele vai além, ao corroer a democracia aos poucos e por dentro, como cupim. Trump desacredita eleições, regras e instituições. Mente e agride. Estimula grupos racistas e milícias, investe na violência e no caos, semeia ódio. Esticou a corda a tal ponto que se aventa a possibilidade de conflitos armados nas ruas caso não vença. Quem diria, os EUA com vapores de república bananeira?
Um segundo mandato do republicano teria o impacto de um meteoro para a democracia nos EUA e fortaleceria projetos de ditadores mundo afora. Aqui, seria um reforço colossal à pretendida reeleição do clone mal-ajambrado que ocupa o Planalto.
Em se tratando de EUA, é verdade que não se deve ter grandes ilusões. Os interesses norte-americanos já levaram o país a cometer barbaridades em diferentes lugares e épocas: Hiroshima, Nagasaki, Vietnã, Iraque. No Brasil, apoiaram o golpe de 1964 e em 2013, no governo Obama-Biden, estavam a nos espionar, como revelou Edward Snowden.
Portanto, a eventual eleição de Joe Biden não significaria, em absoluto, a paz mundial. Mas, se as pesquisas estiverem certas, o fracasso de Trump trará a restauração de algum patamar de civilidade no ainda maior centro irradiador de poder do planeta. O negacionismo científico, o racismo, a xenofobia e a aversão ao multilateralismo deixariam a Casa Branca junto com ele.
Sua derrota ajudaria a resgatar um pouco de esperança num mundo ainda sob o impacto de um vírus terrível que —com a ajuda de governantes como ele— fez de 2020 um ano inimaginável. Para o Brasil, o fim da era Trump seria também o primeiro lance da queda de Bolsonaro daqui a dois anos. Ou, quem sabe, até antes.
Pablo Ortellado: Eleições nos EUA pautam o futuro da esquerda
Vitória de Biden deve dar alento a estratégias eleitorais mais centristas; derrota vai estimular correntes à esquerda
Joe Biden construiu sua carreira política promovendo o diálogo bipartidário no Congresso —ficou conhecido como um político de centro que sabia compor com os republicanos quando necessário. Sua candidatura à Presidência é uma aposta do Partido Democrata de que é mais viável uma candidatura de centro que tenha apelo a uma base mais larga de eleitores do que uma candidatura mais à esquerda que mobilize e estimule o eleitorado.
Por isso, uma vitória de Joe Biden terá grande repercussão sobre as estratégias eleitorais da esquerda, inclusive fora dos Estados Unidos, reorientando o debate que teve início quando Hillary Clinton foi derrotada por Trump em 2016.
A esquerda do Partido Democrata argumenta que a vitória de Trump em 2016 se deveu à concorrência com uma candidata centrista e pró-establishment, fria e sem grande apelo com o eleitorado. Ela argumenta que Bernie Sanders, o principal adversário de Hillary nas primárias, oferecia melhores respostas para os problemas sociais e ambientais do país e que o engajamento que sua campanha produziria aumentaria o comparecimento às urnas.
Já a ala tradicional do Partido Democrata atribuía o sucesso de Trump não ao programa centrista de Hillary, mas a uma combinação de regras eleitorais arcaicas, jogo sujo do adversário e pequenos erros na condução da campanha.
Debate semelhante ocorreu também em outros países. Nas eleições francesas de 2017, discutiu-se se a melhor via para derrotar a extrema-direita de Marine Le Pen seria uma candidatura centrista, como a de Macron ou Fillon, ou se seria mais efetiva uma candidatura radical de esquerda, como a de Melénchon. O mesmo debate se deu no Reino Unido em 2019, quando o Partido Trabalhista entrou na disputa com um programa de esquerda, tentando recuperar o terreno perdido desde o Brexit.
Uma vitória de Biden deve estimular estratégias mais centristas em outras partes do mundo e também no Brasil. Por aqui, ela confirmaria o entendimento produzido pelo resultado de eleições na região que mostraram que uma acomodação um pouco mais ao centro permitiu ao MAS recuperar o poder na Bolivia e à esquerda peronista retomar a Presidência na Argentina.
Por outro lado, uma nova vitória de Trump, ainda que por pequena vantagem no colégio eleitoral ou por manobra na computação dos votos, deve dar fôlego às correntes de esquerda que esperam que uma considerável ampliação dos gastos sociais ou uma tomada de posição mais clara nas guerras culturais seja o melhor caminho para engajar o eleitorado e derrotar o populismo de direita.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Míriam Leitão: Negros, latinos e jovens decidem
A eleição americana, que hoje tem seu dia D, está sendo marcada pelo acirramento do conflito racial. Foram mortes em série, desde George Floyd, e manifestações constantes. O que agravou a tensão foi a atitude do presidente Donald Trump de não manifestar solidariedade às vítimas e ainda se recusar a condenar grupos supremacistas brancos. O voto dos negros sempre foi majoritariamente contra os republicanos. Negros, latinos e jovens serão decisivos, indo ou não indo votar.
Os latinos também votam mais azul que vermelho, mas numa proporção menor que os negros. O banco de dados da Universidade de Cornell registra que, em 2016, 89% dos eleitores negros votaram na candidata democrata e 66% dos latinos. Juntos, negros e latinos são 34% do eleitorado. O grupo latino é tratado como unidade apenas para efeito estatístico, mas é muito heterogêneo. Há uma enorme diferença entre um brasileiro que foi para Nova York, um cubano de Miami ou o mexicano da Califórnia.
A tendência demográfica é de crescimento dos latinos. Para se ter ideia, 52% do acréscimo da população americana na última década foi de latinos. Eles são hoje 61 milhões, 10 milhões a mais do que em 2010, segundo o Census Bureau. E é o grupo étnico mais jovem, de idade mediana mais baixa. Os aptos a votar chegam a 32 milhões de eleitores, 18% do eleitorado. Nem todos votam, e nem todos os que podem votar estão interessados em fazê-lo. Uma pesquisa do Pew Research Center revela que apenas 54% da comunidade latina estava “extremamente motivada a votar”, enquanto no resto da população esse percentual chegou a 69%.
O que isso significará numa eleição em que o presidente é defensor dos valores mais radicais dos brancos não latinos, e que aprofundou a divisão racial, produzindo um movimento contrário de estímulo ao comparecimento às urnas?
Alguém pode concluir que, como sempre votaram mais nos democratas, isso não fará diferença. Mas nesta dramática eleição em que se joga o futuro do mundo, cada voto conta. Na Flórida, onde o eleitor latino tem mais inclinação republicana, houve um aumento de meio milhão de eleitores registrados em relação à última eleição, saíram de 2 milhões para 2,5 milhões. Porém há mais eleitores democratas entre os que se registraram. Há quase um milhão de eleitores latinos democratas na Flórida contra 640 mil republicanos. Flórida é um dos estados decisivos e é o terceiro em voto latino, depois da Califórnia e do Texas.
O eleitorado jovem deve bater este ano o recorde de comparecimento às urnas. O grupo etário não se dispõe muito para o ato de votar, mas as pesquisas feitas pelo Center for Information and Research on Civic Learning and Engagement (Circle) da Universidade de Tufts, mostravam, no dia 30, que em oito estados os eleitores jovens (18-29 anos) que anteciparam o voto já tinham superado o total de comparecimento desse grupo etário em 2016. Ao todo, sete milhões a mais do que os eleitores que compareceram às urnas na última eleição. Em 14 estados-chave eles podem decidir tanto a presidência quanto a disputa para o Senado. Um seminário em Harvard com vários especialistas chegou à mesma conclusão. Desta vez, os jovens estão indo às urnas.
Se não fossem todos os motivos para considerar que a derrota de Trump é o melhor desfecho para esta eleição, há ainda o fato de que a diversidade americana se amplia e o candidato republicano não consegue representar essa sociedade. Se os democratas vencerem, o posto de vice-presidente será ocupado pela primeira mulher, a primeira negra, a primeira pessoa descendente de mãe asiática e pai jamaicano a chegar nessa posição. E pela primeira vez haverá um second gentleman no país. Doug Emhoff será o primeiro judeu nesse quarteto, de presidente, vice-presidente e seus cônjuges. Emhoff deu uma pausa na sua carreira de advogado para se dedicar à campanha e é considerado uma das armas secretas por atrair também a comunidade judaica. O jornal “Washington Post” fez uma divertida matéria sobre ele, contando da amizade entre Kamala Harris e a ex-mulher dele, uma produtora de cinema de Los Angeles, Kerstin Emhoff. A matéria mostrava que ele tem feito perfeitamente o papel do “homem por trás de uma grande mulher”, invertendo a expressão sempre usada sobre as mulheres de homens públicos.
Merval Pereira: Relações carnais
Acompanhei de Nova York a eleição em 2008 que fez de Barack Obama o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Me lembro da festa nas ruas, do clima de esperança que a eleição de Obama transmitiu. O candidato republicano, John McCain, um herói de guerra, teve comportamento exemplar durante a campanha.
Oito anos depois, com a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton, Obama fez um belíssimo discurso, uma aula de democracia. “Esta é a natureza da democracia. Às vezes é duvidosa e barulhenta, muitas vezes não é inspiradora. Quando o povo vota e perdemos a eleição, aprendemos com nossos erros, fazemos reflexões. E voltamos ao jogo. O importante é que sigamos em frente, com a presunção de boa-fé dos nossos cidadãos. (…) Vou fazer tudo para que o próximo presidente tenha sucesso, porque, no final, estamos no mesmo time”.
Nada parecido espera-se para esta eleição de hoje, que o mundo inteiro acompanha com tanta ou mais expectativa de quando o primeiro negro foi eleito presidente dos Estados Unidos. Quebrou-se ali simbolicamente uma barreira racial, embora na prática o racismo continue sendo um dos maiores dramas da maior potência mundial, causa de assassinatos que, de tempos em tempos, horrorizam o mundo e indignam a comunidade negra, que se sente ameaçada e perseguida pela polícia.
Hoje, mais do que em 2008, está em jogo a própria democracia americana, com o presidente Donald Trump ameaçando não reconhecer uma provável vitória de Joe Biden, o candidato democrata que foi vice de Barack Obama. Uma derrota de Trump terá reflexos na política de meio-ambiente internacional, na política de direitos humanos, na própria economia mundial.
Biden, se apoiado por uma maioria na Câmara e no Senado, uma possibilidade, fará uma reorientação da política econômica, com aumento de impostos, regulação antitruste e controle de preços dos medicamentos. O setor de energias não renováveis seria também afetado pela nova política verde do governo americano. Ambos os candidatos anunciam, pacotes de estímulos econômicos de cerca de US$ 2 trilhões, por volta de 10% do PIB americano, o que faz os analistas preverem boas perspectivas para a economia americana.
Mas o cenário mais provável, segundo analistas dos meios financeiros, é a vitória de Biden com a persistência da divisão do Congresso, com republicanos mantendo a maioria do Senado e os democratas na Câmara. Uma vitória de Biden terá efeito imediato na política externa brasileira. Ou damos uma guinada para nos adequar à nova era americana, que terá o meio-ambiente e as energias renováveis como pontos prioritários, ou estaremos mais isolados ainda no planeta.
Muito se falou sobre as proximidades entre a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos, em 2008, e a de Lula em 2002, e o próprio ex-presidente brasileiro via semelhanças na trajetória de vida dos dois. Eleger um operário no Brasil teve quase o mesmo significado para nós que eleger o primeiro presidente negro nos Estados Unidos. Além de ter chamado Lula de “o cara”, porém, nada mais aconteceu na relação pessoal entre os dois.
Se a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação, se não de amizade, também especial, nasceu entre Lula e Bush, que teve uma convivência mais amistosa com ele do que com Fernando Henrique.
A suposta “relação carnal” entre o presidente Bolsonaro e Trump não tem trazido vantagens para o país, ao contrário. Estamos isolados, assim como os Estados Unidos estão perdendo a liderança moral do mundo ocidental. Os vídeos com tapumes sendo colocados nas principais avenidas das principais cidades do país para evitar saques e quebradeiras em protesto contra o resultado da eleição, mostram que a democracia americana corre perigo se esse tipo de político como Trump continuar dando as cartas.
Da mesma maneira nós, no Brasil, também corremos sério risco de vermos nossa democracia subjugada pelo espírito autoritário do presidente Bolsonaro. Com uma vantagem para os americanos: têm instituições democráticas mais sólidas e perenes.
A parecença de Trump com Bolsonaro é um fato, tanto ideológica quanto de mau comportamento. Uma derrota de Trump será um freio no autoritarismo de Bolsonaro. O contrário exacerbará a tendência autoritária da extrema-direita no mundo.
Celso Ming: Tamanho da vitória nos EUA importa
Impacto das eleições nos EUA não se restringirá à vitória de um dos dois candidatos, mas às proporções dessa vitória
A percepção que hoje prevalece, não só entre os administradores de empresas, mas também junto às classes médias dos EUA (e, portanto, no eleitor que agora vai escolher seu presidente) é a de que o ambiente de negócios está se estreitando e os empregos minguam. Os juros praticamente no campo negativo vêm destruindo também o futuro, na medida em que provocam o encolhimento do patrimônio dos fundos de pensão e das reservas familiares aplicadas no mercado financeiro.
O cidadão médio dos EUA parece ter dificuldade de entender que toda a economia mundial – não só a americana ou a de sua família – passa por enorme transformação. O mercado de trabalho não enfrenta apenas a concorrência do produto asiático, obtido com mão de obra mais barata. Reflete, também, a incorporação do trabalho feminino, que, em apenas três gerações, duplicou a concorrência com os homens por um mesmo posto de ocupação.
Há a revolução provocada pela tecnologia da informação, que, em praticamente todos os segmentos da economia, dispensa mão de obra ou tira importância de anos de estudo e de treinamento na obtenção de uma profissão que agora passa por sérias mutações. Além disso, há a revolução energética: o movimento irreversível em direção ao abandono dos combustíveis fósseis e de aumento da participação da energia limpa na matriz energética global, que muda os transportes, o uso do carro e a maneira de trabalhar.
Nessas horas de aflição e de baixa lucidez, procura-se mais um culpado do que uma solução. E o culpado da hora para o qual nestes últimos quatro anos o presidente Donald Trump apontou seu nervoso indicador foi a China. Com essa paisagem de fundo, o impacto das eleições nos EUA não se restringirá à vitória de um dos dois candidatos, mas às proporções dessa vitória. Isso não é válido apenas do ponto de vista político interno e externo, mas também do ponto de vista da condução da economia global.
Se o novo presidente arrebatar também maioria nas duas casas do Congresso, aumentará a capacidade de levar adiante seus projetos destinados a enfrentar a desarrumação provocada pelas transformações acima apontadas. Uma vitória por larga margem de Trump seguida com maior apoio dos representantes, encorajaria um reforço das decisões unilaterais, o acirramento dos conflitos comerciais e tecnológicos com a China, o aumento do protecionismo comercial, maior repulsa ao Acordo de Paris e maior rejeição de medidas de proteção ambiental.
Uma vitória expressiva do democrata Joe Biden, por sua vez, favoreceria a outra ponta da corda nesse cabo de guerra. Não se espera pelo desaparecimento dos conflitos com a China. Mas um governo Biden tenderia a assumir uma posição mais inteligente e mais estratégica em relação a Pequim. Provavelmente deixaria de hostilizar aliados históricos, como a União Europeia e o Japão; abandonaria políticas comerciais unilateralistas; e voltaria a fortalecer organismos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Mundial.
*CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA
José Casado: O custo do amadorismo
Brasil nunca foi e dificilmente será prioridade na agenda americana
O resultado da eleição americana vai moldar a segunda metade do mandato de Jair Bolsonaro. A embaixada em Washington tem procurado líderes republicanos e democratas para reafirmar o interesse num amplo acordo econômico e de defesa com Donald Trump ou Joe Biden.
Isolado, com seu chanceler já oficializando a condição de “pária” no mundo, Bolsonaro tenta garantir nos EUA uma apólice de seguro na travessia da crise global. Além disso, passa noites insones devaneando na crendice de que as colunas da Casa Branca ocultam o portal de “salvação do mundo” — como define o Itamaraty — da força da China.
O Brasil nunca foi e dificilmente será prioridade na agenda americana. Mas Bolsonaro se oferece, propenso a pagar o sobrepreço inerente ao notável amadorismo diplomático.
O problema é a realidade. Trump e Biden coincidem no essencial à defesa da hegemonia diante da ascensão chinesa, baseada na inovação em computação quântica e em novos padrões de consumo da classe média de 400 milhões, mais que a população dos EUA. Divergem sobre forma e meios de manter o domínio.
A receita de Trump é a das negociações conflituosas (com o México e o Canadá, no Nafta; a Europa, na Otan; e a China) para acordos protecionistas. Bolsonaro já tem um roteiro. Por ele, atravessaria a campanha de reeleição determinando quem vai perder mercados, empregos e lucros para a concorrência americana.
Com Biden, a quem elegeu adversário, o jogo será ainda mais duro no comércio, nas “consequências econômicas significativas” da antipolítica ambiental, em eventual socorro na crise e no acesso a tecnologias de guerra, a miragem militar bolsonarista.
Bolsonaro conseguiu a proeza de assumir um alto custo antes do resultado das urnas. E as perdas tendem a ser maximizadas, porque o seu esteio político-empresarial continuará refém de Pequim, provedor de um terço das receitas na mineração, no agronegócio e na banca financiadora. Nunca estiveram tão dependentes da China. O amadorismo vai custar caro para todos.
Celso Rocha de Barros: Grande porre mundial dos anos 2010 está passando?
Ao que tudo indica, nesta terça-feira (3) Donald Trump se tornará um presidente de um mandato só. As pesquisas são favoráveis a Biden, e, se elas errarem só o que erraram em 2016, Biden ainda ganha. O site 538, do estatístico norte-americano Nate Silver, dá a Trump pouco mais de 10% de chance de vencer a eleição. Não é zero. É o risco de morte de quem faz roleta-russa com uma arma de dez tiros. Mas é pouco.
É possível que Trump não aceite a derrota e tente ganhar no tapetão. Grande parte da votação já ocorreu por correspondência, por causa da pandemia. Trump pode sair em vantagem no início da contagem, quando os votos por correspondência ainda não tiverem sido totalmente contados.
No cenário golpista, declararia vitória enquanto estivesse na frente e montaria uma ofensiva jurídica para interromper contagens estaduais por um motivo ou outro. Para isso contaria com sua recém-adquirida maioria na Suprema Corte e com os juízes federais que nomeou nos últimos anos. Temendo conflitos de rua em caso de impasse, a rede de supermercados Walmart interrompeu a venda de armas até a confusão passar.
Não é o cenário mais provável, até porque há uma chance razoável de Biden vencer por margem incontestável. Mas o fato de que uma eleição possa terminar em conflito civil generalizado mostra o tamanho do dano que Donald Trump já causou ao ambiente cívico americano. Se a roleta-russa der errado e Trump vencer nesse clima de radicalização, o dano pode ser ainda maior.
A vitória de Trump em 2016 foi um marco decisivo da onda populista reacionária que já havia começado antes, em lugares como a Hungria e a Polônia, mas que chegou ao centro do capitalismo internacional com o brexit.
As negociações do brexit vão mal. E, sem o Reino Unido, deve crescer a pressão por uma federação europeia mais centralizada, o que não é boa notícia para os radicais poloneses e húngaros.
A maré está virando? O grande porre mundial da década de dez está passando?
Mesmo se virar, nenhum dos problemas que criaram a onda populista terá sido resolvido. A desigualdade continua alta. A desindustrialização de áreas inteiras do mundo desenvolvido (e do Brasil) continuará difícil de reverter. Como as crises da pandemia deixaram claro, a desconfiança com relação aos especialistas não vai embora da noite para o dia.
As notícias falsas, a política difícil das redes sociais, tudo isso ainda continuará existindo. A tensão entre Estados-nação e capitalismo global não desapareceu, muito pelo contrário.
Por outro lado, é possível ter esperança, ao menos alguma esperança, de que certas soluções idiotas para esses problemas serão descartadas. Não, não foi o encanador polonês que tirou o emprego do mineiro britânico.
Não, Trump não tinha uma alternativa ao Obamacare que preservava tudo que o programa tinha de popular e descartava tudo que tinha de impopular. Não, Bolsonaro não era inimigo da corrupção, nem a corrupção era a causa da crise econômica brasileira.
De qualquer maneira, ao que tudo indica, amanhã a democracia americana vai para o rehab. Lá os grandes partidos sobreviveram, a volta ao normal deve ser mais fácil. Nós, que decidimos não derrubar Bolsonaro em 2020, seguimos fincando pé na cracolândia por mais dois anos, agora como párias internacionais.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Carlos Pereira: A hora da moderação
Incerteza e insegurança trazidas pela pandemia abrem caminho para moderação política
Já é possível observar claros sinais de arrefecimento da polarização política que varreu o mundo, especialmente a partir da crise financeira internacional de 2008.
A disputa entre grupos polarizados estava em relativo “equilíbrio” com cada polo se nutrindo da oposição radicalizada de identidades e preferências políticas. Grupos polares, tanto à esquerda como à direita, se retroalimentavam. Não dialogavam entre si e tendiam a consumir informações que só reforçavam suas crenças anteriores. Ao mesmo tempo, rejeitavam qualquer informação que contrariasse seus valores prévios. Portanto não faziam atualizações que pudessem colocar em risco suas respectivas “zonas de conforto” identitárias. O espaço para alternativas moderadas que buscam o eleitor mediano ficou bastante reduzido.
A manutenção de um ambiente polarizado é o ideal para a viabilização eleitoral de candidatos extremos, como o presidente Donald Trump. Entretanto, a grande maioria dos institutos de pesquisa projeta que o candidato democrata, Joe Biden, é o franco favorito, com 90% de chances de derrotar o atual presidente.
Ao contrário de Trump, um outsider com perfil populista e antissistema, Biden é um típico representante da política tradicional americana. Uma espécie de candidato livre de surpresas, representando estabilidade, previsibilidade, segurança e, fundamentalmente, moderação.
Assim como nos EUA, a polarização política tomou conta do Brasil, especialmente a partir das grandes mobilizações de massa que varreram o País em 2013. As eleições de 2018 testemunharam uma escalada da polarização política tanto na grande massa quanto na elite. Naquela ocasião, o número de eleitores que votaram num candidato de um dos polos se aproximou daquele relativo aos que expressaram forte rejeição ao candidato oponente. Os candidatos de centro não tiveram a menor chance e o eleitorado moderado ficou literalmente órfão.
De forma similar ao que vem ocorrendo nos EUA, os candidatos que representam os dois polos extremos, apoiados por Jair Bolsonaro ou por Lula, têm enfrentado grandes dificuldades nas disputas às prefeituras das capitais brasileiras.
Mas por que a política da moderação estaria retornando no exato momento em que a crise da covid-19 estaria aumentando ainda mais as desigualdades sociais?
Parece que os eleitores estão cansados das incertezas causadas pelas opções polares, e por isso começam a procurar por alternativas menos arriscadas e mais seguras. É como se os partidos polares e antissistema tivessem exercido o papel de anticorpos, que ajudaram a construir resistência às desigualdades e injustiças do liberalismo de mercado pós crise financeira de 2008, mas que agora estão causando efeitos colaterais que põem em risco a própria sociedade.
Eleitores ficaram muito alarmados com as ameaças trazidas pela pandemia e podem ter perdido o apetite por um modo de política insurrecional que aumenta ainda mais a instabilidade e a incerteza. Como em tempos de pós-guerra, os eleitores podem almejar estabilidade e garantias efetivas ao invés de mais polarização.
A incerteza contida nos novos desafios gerados pela crise pandêmica tem o potencial de aumentar o apelo emocional das narrativas de moderação política. Em outras palavras, a fadiga da crise pode fazer com que os eleitores rejeitem soluções com consequências desconhecidas e prefiram o tipo de reforma incremental tradicionalmente associada a partidos políticos moderados, posicionados ao centro do espectro ideológico. A hora da moderação parece ter chegado.
*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)
Rubens Ricupero: Maré antidemocrática está em jogo
Nenhum país possui a capacidade de pautar a agenda mundial como os Estados Unidos. A última vez em que isso aconteceu de maneira brutal e instantânea foi em 2016, com a eleição de Donald Trump. Antes, ao menos em duas ocasiões sucedera algo parecido: em 1932, com a eleição de Franklin Roosevelt, e em 1980, com a de Ronald Reagan. O que existe em comum entre personalidades tão contrastantes?
Todos foram homens de ruptura com o que se vinha fazendo até então, todos chegaram ao poder em meio a crises graves, todos tinham total autoconfiança na capacidade de mudar os acontecimentos. Os outros presidentes, mesmo Barack Obama, não foram homens de ruptura, não inauguraram novas eras, não mudaram o mundo.
Roosevelt encontrou um país prostrado pela Grande Depressão e o capitalismo em crise profunda. Reformou com o New Deal o sistema capitalista, inaugurou o Estado do bem-estar e o ativismo do governo em matéria social e econômica. Liderou os aliados na derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.
Sua influência só foi superada com Reagan, que abandonou o keynesianismo, sustentou que o governo era o problema, não a solução, desregulamentou as finanças, acelerou a globalização. Peitou Moscou na corrida armamentista, contribuindo para o fim da Guerra Fria e da União Soviética.
Esse poder americano de definir a agenda não depende só da riqueza ou da força militar. Tem muito a ver com o fato de que, há mais de 100 anos, os americanos fazem a cabeça do mundo com o cinema, a música, a TV, as histórias em quadrinho, o streaming, a internet, as mídias sociais. É um poder para o bem e para o mal, para construir e destruir.
No caso de Trump, tem sido para botar abaixo, destruir tudo, para começar virando pelo avesso as realizações de Obama. De um dia para o outro, a política internacional sofreu um terremoto.
Os EUA saíram do Acordo do Clima de Paris, repudiaram o acordo com o Irã, voltaram atrás no relacionamento com Cuba, atropelaram as regras da Organização Mundial de Comércio. A relação com a China virou confronto permanente, a Organização Mundial de Saúde foi abandonada. A maré populista antidemocrática, antiliberal, atingiu o apogeu.
Uma derrota de Trump agora truncaria a obra de demolição pela metade. Permitiria não voltar a 2016, mas reconstruir o mundo em novas bases com economia verde, mais igualdade, mais cooperação e menos confronto, prevenção de epidemias, avanço em direitos humanos, política de gênero, superação da guerra cultural fomentada pelo fanatismo religioso.
Está em jogo, como se vê, a própria possibilidade de futuro, pois quatro anos mais de negativismo de Trump talvez tornem irreversível a catástrofe do aquecimento global. Sairemos todos perdendo se Trump ganhar. Como não podemos votar nas eleições de 3 de novembro, resta-nos esperar que os americanos tenham sabedoria para salvar seu país e devolver ao mundo um mínimo de esperança.
*Rubens Ricupero é diplomata aposentado, jurista e historiador da política externa brasileira. Foi ministro da Fazenda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.