joe biden

Vera Magalhães: Nova diplomacia

Guinada dos EUA é chance de livrar Itamaraty do ranço ideológico

Os Estados Unidos contam seus votos em ritmo de tartaruga, enquanto o mundo decora seus Estados e condados e aprende sobre seu complicado sistema eleitoral. Trata-se, para os países, de uma oportunidade de projetar a nova ordem mundial, e se preparar. O Brasil deveria estar nessa fase, não estivessem os responsáveis pela nossa política externa de luto pela confirmação da derrota do amigo Donald Trump.

A troca da guarda na Casa Branca deveria ser um alerta eloquente para o Itamaraty. Não vai mais adiantar se contentar com migalhas de atenção do “primo rico” ao “primo pobre”, com a família presidencial satisfeita em ser recebida para um tapinha nas costas.

Os democratas são conhecidos por adotar políticas protecionistas quando estão no poder. Com o republicano Trump não foi diferente nessa seara, bem sabemos. Então, nos obstáculos ao aço e alumínio brasileiros e ao jogo duro com etanol e commodities agrícolas pouco deve mudar.

Mas existe uma boa chance de a relação azedar em outras plagas, seja por uma reação política dos democratas aos excessos de torcida brazuca pelo adversário, seja pela mudança de discurso dos EUA no campo da política ambiental.

Joe Biden já deixou claras as restrições à maneira como o governo de Jair Bolsonaro trata os desmates e as queimadas na Amazônia, e os recuos brasileiros no comprometimento com metas climáticas, por exemplo.

Acenou com a ideia de constituir um novo fundo para a Amazônia, desde que mediante contrapartidas do governo brasileiro com políticas de preservação da floresta e fiscalização efetiva do avanço de atividades econômicas clandestinas na região.

Ainda entregue à paixão trumpista e imbuídos da crença mística de que ele venceria, não só o Itamaraty de Ernesto Araújo como o Meio Ambiente de Ricardo Salles se apressaram em recusar o dinheiro e dizer que quem manda aqui somos nós.

O prenúncio das relações entre os dois países com esse time dos terraplanistas ideológicos à frente é o pior possível. É por isso que, se fosse minimamente prático e racional, Jair Bolsonaro deveria considerar seriamente a possibilidade de trocar as peças no Ministério das Relações Exteriores (no Meio Ambiente não há nem o que falar, dado o desastre continuado que a presença de Salles provoca).

Um breve retrospecto do “legado” de Araújo, um diplomata obscuro até ser pinçado por Bolsonaro dado a seu fervor olavista, já seria suficiente para ele levar um bilhete azul num reality-show como O Aprendiz, do ídolo Trump.

Araújo se colocou à frente da tentativa de tirar Nicolás Maduro da presidência da Venezuela, e o Brasil foi um dos primeiros a reconhecer Juan Guaidó como “presidente autoproclamado”. Quase dois anos depois, Maduro se diverte com as agruras de Trump e não arreda pé da ditadura que impôs aos venezuelanos. Sob o comando do chanceler, o Brasil também torceu nas eleições da Argentina e da Bolívia e no plebiscito do Chile, sempre levando de 7 a 1.

Na questão do Oriente Médio, o clã Bolsonaro e seu fiel representante no Itamaraty também fizeram balbúrdia à toa: Benjamin Netanyahu, outro “parça” do Jair, enfrenta contestações internas por acusações de corrupção enquanto se fia nos acordos de paz costurados com a ajuda de Trump para se manter como primeiro-ministro de Israel. Anunciamos com estardalhaço uma mudança de embaixada que nunca se efetivou e vamos ficar falando sozinhos, agora que Trump está de saída. Para quê? Absolutamente nada.

É hora de devolver Araújo à sua carreira obscura e o Itamaraty a alguma racionalidade, que é a tradição da nossa antes reputada diplomacia. Mas esperar algo assim de Bolsonaro é como acreditar que Trump fará uma transição decente e democrática para Biden: não vai rolar.


Ricardo Noblat: Bolsonaro escolheu sair derrotado das eleições americanas

O risco do isolamento

Deu no The New York Times, o mais importante jornal do planeta: “Enquanto os líderes da América Latina e do Caribe se apressaram em parabenizar Biden por sua vitória e prometeram trabalhar em estreita colaboração com seu governo, os governos do México, Brasil e El Salvador permaneceram em silêncio”.

O presidente Jair Bolsonaro custou a acreditar que Donald Trump pudesse ser derrotado pelo democrata Joe Badin, “esse cara”. Ao perceber que isso seria possível, passou a acreditar que ao fim e ao cabo as ações movidas por Trump e pelo Partido Republicano acabariam sendo acolhidas pela Suprema Corte.

Ao dar-se conta nas últimas 48 horas de que não serão, decidiu ainda assim que tão cedo enviará a Biden uma mensagem de parabéns. O que ele pensa em ganhar com isso? Até Boris Johnson, o primeiro-ministro do Reino Unido, mais ligado e mais dependente de Trump do que é Bolsonaro, parabenizou Biden.

Não falta vida inteligente ao lado do presidente brasileiro ou ao alcance de um telefonema dele em busca de conselho. Falta vida inteligente em Bolsonaro, bem como disposição de ouvir o que o contrarie. Nisso ele e Trump são iguaizinhos: querem que todos que os cercam digam amém às suas ideias e as exaltem.

Há os que imaginam que existe método na loucura de Bolsonaro. Ocorre que nem sempre há. Sobra estupidez. O que Trump fez por ele ou pelo Brasil para merecer tamanha admiração e vassalagem por parte dele? Nada. O que Bolsonaro fez para que Trump pelo menos se interessasse por ele? Tudo que pode.

Nem assim Trump se interessou. A única coisa em Bolsonaro que chamou a atenção do presidente americano foi o fato de ele ser apontado pela imprensa internacional como o Trump do Brasil. Trump achou curioso e mais de uma vez falou a respeito. Uma coisa, de fato, os aproximava: eram presidentes acidentais.

Bolsonaro é bem capaz de bater o pé e de resistir às evidências de que terá de rever suas posições em relação a vários temas se quiser se entender com Biden depois que ele tomar posse. A questão ambiental é um desses temas, mas não é o único. O respeito aos direitos humanos é outro. A situação da Venezuela, outro.

O que é bom para os Estados Unidos nem sempre é bom para o Brasil, mas algumas coisas podem ser. As apostas internacionais feitas por Bolsonaro deram erradas. O país que ele governa perdeu conceito no exterior. Bolsonaro arrisca-se a se tornar um presidente cada vez mais isolado, o que é péssimo para o Brasil.


Merval Pereira: Efeito Orloff

Certamente o fator decisivo para a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump foi a capacidade do ex-vice-presidente de encarnar o que mais os Estados Unidos precisam hoje, um conciliador. O caminho para derrotar um extremista de direita não é um extremista de esquerda, e por isso Bernie Sanders se perdeu pelo caminho durante as primárias, e Biden recuperou sua vantagem moral com os votos dos negros na Carolina do Sul.

O mesmo pode acontecer entre nós. O famoso efeito Orloff, eu sou você amanhã. Se em 2018 o eleitorado queria sangue nos olhos, e por isso o PT ainda conseguiu levar seu candidato Haddad ao segundo turno, menos por ele, que é um moderado, mais pela história do partido, radicalizado pela prisão do ex-presidente Lula, talvez não seja esse o cenário em 2022.

Essa tensão permanente que Trump impunha aos Estados Unidos e ao mundo cobra seu preço, assim como aqui entre nós Bolsonaro já teve que dar uma meia trava em sua beligerância. Trump e Bolsonaro têm os mesmos arroubos autoritários que acabam sendo uma ameaça à democracia que lhes proporcionou chegarem onde chegaram.

Ambos se batem contra as instituições democráticas que limitam os poderes de um presidente da República, como sói acontecer na democracia ocidental. Ambos se colocam contra a imprensa livre e tentam constrangê-la com ataques e críticas. Agora, nos Estados Unidos, Trump viu-se na condição de censurado a bem da verdade pelas três redes de televisão aberta do país, uma atitude drástica que mostrou a que ponto de conflito as relações do presidente com os órgãos de imprensa chegaram.

Os conflitos estimulados, a violência tolerada, como Trump com os supremacistas brancos e Bolsonaro com os radicais que cercaram o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaçavam o fechamento do Congresso, acabam cansando os cidadãos comuns, que não estão em guerra com o mundo e buscam um ambiente pacífico para viver, especialmente empregos para trabalhar.

Ser popular não requer usar camisas de times de futebol, nem oferecer pão com leite moça a uma autoridade que o visita. Nem fazer piada homofóbica, estimulando pelo exemplo um hábito brasileiro que deveria ser erradicado. Seria preciso uma política econômica que gerasse empregos, uma atitude séria diante da pandemia da Covid-19, um governo sólido que desse aos cidadãos confiança no futuro.

A popularidade de Trump levou o Partido Republicano a ter uma votação histórica, com a possibilidade de manter a maioria no Senado. Mas para Trump, a perda da presidência é uma dor pessoal, não partidária, assim como Bolsonaro já pertenceu a cerca de 10 partidos e continua à disposição de qualquer legenda que lhe ofereça submissão total. Não são políticos a serviço do país, mas deles mesmos.

Diz-se em política que presidência é destino. No Brasil, temos exemplos vários disso, com Collor, Itamar, Sarney, Temer, o próprio Bolsonaro, que nunca sonharam em ser presidente e chegaram lá por caminhos diversos. Com Joe Biden, essa premissa se confirma. Concorreu três vezes dentro de seu partido, quatro anos antes deveria ter sido o candidato natural após os oito anos de vice-presidência, mas as forças políticas dos democratas levaram Hillary Clinton a ser a candidata contra Trump.

Biden chegou a presidente quando menos se esperava, aos 78 anos, mas com o perfil talhado para derrotar o arrogante autoritário que havia chegado à Casa Branca também fora de qualquer possibilidade previsível. Populistas escrachados como Trump ou Bolsonaro apenas aproveitam-se das fragilidades da população para vender ilusões e alimentarem seu autoritarismo. Falta-nos, no momento, uma figura que represente o político de centro-esquerda que Biden encarna, um político confiável como já tivemos, que represente a solidez de uma carreira dedicada à conciliação e ao combate à desigualdade.


Míriam Leitão: Vitória da causa da humanidade

'A causa da América é, em grande medida, a causa de toda a humanidade.' A frase escrita por Thomas Paine em 1766 amanheceu ontem como nova. “O sol jamais brilhou sobre uma causa com maior importância”, escreveu Paine, o incandescente fundador da pátria, no “Senso Comum”. A vitória de Joe Biden e Kamala Harris tem múltiplos significados. O presidente eleito Joe Biden avisou no seu primeiro comunicado: “O trabalho adiante de nós vai ser duro.” E será. Ninguém expressou melhor o sentimento de deixar para trás um governo que pregou a intolerância e praticou a mentira do que o comentarista Van Jones. E o fez aos prantos. “É mais fácil ser pai esta manhã. Mais fácil falar aos filhos que ter caráter é importante.”

Quando Donald Trump, no primeiro debate, se negou a condenar um grupo que prega a supremacia branca, o negro Van Jones, comentarista da CNN, perguntou o que dizer às crianças, ao filho. Agora há muito a contar aos jovens sobre velhas lutas contra preconceitos. O homem mais velho a ocupar a Casa Branca vem junto com uma mulher negra, filha de imigrantes. “We did it, Joe”, disse ela, rindo no telefonema ao vencedor. Tudo é simbólico. Há 100 anos as mulheres americanas conquistaram o direito de voto. Kamala Harris é água desse rio que corre há um século e que abrigou em seu leito outros rios. Será lindo vê-la assumindo a vice-presidência do país escolhido por sua mãe indiana e pelo seu pai jamaicano. É o momento em que se pensa que não há impossíveis, não há “isso não é para você”.

O dia 7 de novembro é histórico para Joe Biden por lembrar sua posse como senador há 48 anos. Mas para toda a sua geração e as que vieram depois serve como quebra de outro preconceito, o que recai sobre os velhos. Nunca é tarde para um sonho. Essa é a mensagem.

Há, em qualquer eleição, duas direções para olhar o evento. Olha-se para o que virá e o que se deixa para trás. O passado agora é Donald Trump. Ele é o líder que exibiu os piores sentimentos como se fossem normais. “Há muita gente que não consegue respirar, acorda, vê os tuítes, vai a uma loja e vê que as pessoas que antes tinham medo de mostrar seu racismo estão ficando cada vez mais desagradáveis”, disse Jones. Um presidente sempre amplifica suas mensagens. Quando mente, ofende, discrimina, ele autoriza esse comportamento. Trump, certa vez, debochou de um jornalista por ter um defeito físico. Foram quatro anos expostos ao governante do país mais forte do mundo estimulando as piores atitudes. Como ensinar às crianças que ser decente vale a pena se o presidente debocha de valores, desrespeita códigos civilizatórios, descumpre as leis?

Em uma vitória há também o olhar para o futuro e esse é o mais relevante. O futuro não será azul. Será uma transição hostil para um governo que assumirá no meio de uma pandemia e de uma crise econômica. Há ainda as fraturas da América para serem curadas. Todos terão trabalho a fazer para reatar o país partido. Alguns republicanos cumprimentaram o novo presidente, como fez Jeb, da casa Bush, que por 12 anos governou o país. “Eu tenho orado pelo nosso presidente em grande parte da minha vida adulta. Eu vou orar por você e seu sucesso.” Um protestante republicano estava dizendo a um democrata católico que oraria por ele.

Filadélfia foi o berço da Constituição e foi simbolicamente o ponto do recomeço. O ex-presidente Fernando Henrique ressaltou a coincidência e lembrou que em dois séculos e meio nenhum presidente havia atacado os alicerces da democracia. “O atual o fez sistemática e deliberadamente”. No mundo, inúmeros líderes cumprimentaram Joe Biden. O primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, falou da aliança na luta contra a mudança climática.

“Vejo as águas que passam e não as compreendo (…) Como poderia compreender-te América?”, Drummond lançou essa pergunta há 75 anos. A dúvida amanheceu ontem como nova. Como entender tudo o que houve nesses dias? Como entender os últimos quatro anos e os 70 milhões de votos em uma pessoa nefasta? “Tantas cidades no mapa… nenhuma porém tem mil anos.” O poeta parecia ver o que vivemos esta semana investigando a geografia americana para adivinhar a cor de cada cidade. É forçoso entender tudo o que houve porque, como ensinou Paine, essa é a causa da humanidade.


Eliane Cantanhêde: O Trump tupiniquim

Com derrota externa e interna, Bolsonaro está abatido, isolado e sem referências

É estarrecedor que o presidente dos Estados Unidos acuse adversários e o próprio sistema eleitoral de fraude e corrupção, atiçando seus apoiadores para uma guerra campal e achincalhando a maior democracia do planeta. Mas Donald Trump é Donald Trump, sai da Casa Branca como entrou e leva o raro troféu de presidente que perde a reeleição, pensando sempre nele, só nele.

Biden prega união nacional, Trump mente, agride e é cortado do ar pelas três maiores redes de TV dos EUA, aprofundando a polarização do País e a divisão no Partido Republicano, que começou quando ele impôs sua candidatura no grito. Cara a cara com a derrota, ele expõe desespero e atrai críticas dos próprios republicanos e parte da direita americana que não é belicosa, mentirosa, autoritária e ignorante. Mas ele tem mais de 70 milhões de votos…

No Brasil, o voto é obrigatório com o sistema de um cidadão, um voto, seja ele banqueiro ou pedreiro. Nos EUA, é opcional e o candidato com mais voto popular pode perder a eleição no colégio eleitoral, como os democratas Al Gore e Hillary Clinton. Se o candidato republicano tem 51% em Iowa, todos os votos do Estado vão para o republicano. Se você votou no democrata, seu voto vai para o lixo.

Quanto à votação, o Brasil tem coordenação nacional e regras do TSE e, desde 1996, a urna eletrônica, segura, fácil, rápida, que permite o anúncio do novo presidente no dia do pleito. Já nos EUA cada estado tem suas regras e as cédulas são de papel, do século passado. A apuração é manual, voto a voto, envolve milhões de pessoas, gera incertezas, disputas judiciais e o resultado pode demorar semanas.

Bolsonaro, porém, insiste na volta da cédula impressa, depois de criar uma figura inédita no mundo: a do eleito que denuncia fraude na própria eleição – sem prova nenhuma, aliás, como o Trump real nos EUA. E as semelhanças não param aí. Trump se nega a coordenar a reação nacional à pandemia, diz que é só uma gripe, desdenha de máscaras e isolamento social e fez propaganda da cloroquina. Você já viu esse filme aqui? Mas isso não é brincadeira, é brincar com a vida.

Trump lá e Bolsonaro cá vivem numa realidade paralela, como velhos populistas convencidos de que podem falar e fazer qualquer coisa, espancar a China, aliar-se ao que há de pior e promover retrocessos em gênero, direitos humanos e meio ambiente na ONU. Bolsonaro só não saiu do Acordo de Paris, como fez Trump no dia da eleição, por falta de condições políticas.

Há, porém, diferenças entre o “mito” Bolsonaro e o “Deus” Trump, que não rasga dinheiro e manteve o slogan “America First” com o Brasil. Ganhou todas, inclusive ao derrubar um brasileiro em favor de um americano no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e ao impor cotas de aço, alumínio e etanol para o Brasil. Logo, usou os produtores brasileiros para comprar votos desses setores nos EUA.

Apesar da ridícula convocação de manifestações pró Trump em cidades brasileiras, até o mercado financeiro avalia como positiva a vitória de Joe Biden, que defende princípios, não é dado a maluquices e vai manter o decantado pragmatismo da política externa americana. Os dois presidentes podem se bicar, mas Brasil e EUA manterão acordos comerciais, programas de cooperação e a negociação em prol dos interesses de cada um. E quem discorda da pressão em defesa da Amazônia?

A troca de Trump por Biden é saudável para o mundo, os EUA e o Brasil, mas Bolsonaro tem razão em estar abatido. Ele perde o único grande parceiro internacional e seus candidatos às eleições municipais afundam como Trump. Com derrota externa e interna e a obsessão por 2022, será cada vez mais engolido pelo Centrão, quicando de um palanque a outro e falando besteira.


Carlos Melo: O desafio de Joe Biden

Ao longo dos últimos dias, a maior parte do mundo civilizado se pôs entre perplexa e desolada diante da hipótese concreta de mais uma vitória de Donald Trump. Para quem prefere ver o mundo com valores humanísticos, seu desempenho foi assustador. Goste-se ou não, é um forte. Agiu de modo oposto ao recomendável e ao razoável e ainda assim foi longe. Governou com vistas a desunir, não a agregar; se indispôs com a arte, com a ciência com a Grande Política; plantou a discórdia, colheu o desprezo de boa parte do planeta. E, ainda assim, por pouco não foi reeleito.

Já fiz essa pergunta em outro artigo, nesse Estadão, mas ela ainda vale: qual a razão de sua força? Ela não brota de qualidades pessoais, certamente. Trata-se de um homem grosseiro, de carisma duvidoso; rude nos gestos, estreito intelectualmente. Um canastrão, no palco da História Mundial, um Quixote da direita, franco atirador movido pela vaidade pessoal, pelo hedonismo dos novos ricos, inebriado pelo poder. Fosse brasileiro, seria comparada aos barões decadentes que estacionam seus carrões em vagas proibidas, exigem mesas especiais nos restaurantes e ameaçam chamar “o seu delegado” particular.

Por décadas, a humanidade especulará em torno dessa força – como faço agora. O fato é que, após Barack Obama, a maior democracia da história deu vida política a Trump e quase o reelegeu. Quem, no início da década de 1990 assistiu ao cult movie “Um dia de fúria”, sabe que o mal-estar ronda o mundo – como disse Tony Judt – há muito tempo. A revolução tecnológica deu saltos, mas nem todos a puderam alcançar: restaram milhões de deserdados – os “invisíveis” que somente agora o ministro Paulo Guedes percebeu existir.

Eles não têm formação, não têm profissão, não têm emprego; sem futuro, agarram-se a algum tipo de uber, num processo de precarização aparentemente sem fim.

Foi dessa decadência que se fez a noite, desse pântano que emergiu o monstro que deu vida ao Brexit, a Donald Trump e às mancheias de genéricos que carregam o mesmo princípio ativo: a demagogia, posto que há muita espuma em barulho, mas nenhuma providência concreta para resolver problemas reais. Quais as grandes medidas adotadas por Trump – ou por Bolsonaro ou pelo Reino Unido, pós Brexit – capazes de alterar a rota de exclusão e desalento, catalisada pela covid-19?

Da estagnação econômica e da desigualdade brota a degeneração política – e se o original traz essa degenerescência, o que dizer das cópias espalhadas pelo mundo? Enfim, são ecos do desespero, é a nostalgia de um passado idealizado – make America great again –, são a ignorância e o ressentimento que apelam à violência e ao oportunismo que invade a religião e assenhora-se de um deus, como se Deus fosse só seus.

O iluminismo de Barack Obama foi incapaz de estabelecer vínculos e diálogos com essa população brutalizada pela desigualdade cuja arrogância do liberalismo radical e dogmático apenas ampliou. Hillary Clinton foi vítima da própria presunção, natural dos bem-nascidos formados na Yve League, que acreditam poder passar ao largo do mal-estar que espreita pelas janelas e ocupa as esquinas, presa fácil de todo tipo de milícias.

Donald Trump é o líder demagogo surge nos balcões do desemprego e da cabeça baixa dos invisíveis — assim como aquele outro que surgiu dos balcões das cervejarias de Munique, na Alemanha dos anos 1920. Ele expressa o mal-estar da civilização contemporânea. É isso que o levou tão longe. Se é verdade que tem contas a pagar, verdade também são os saldos que tem a recolher se a dívida social não for liquidada. Por detrás de si, há uma horda de desvalidos a procura de um fiapo qualquer de esperança. É preciso ter atenção para isso e qualificar essa esperança.

Esse será o grande desafio de Joe Biden: compreender os problemas de seu país e do mundo; não fugir à responsabilidade de governar para todos; somar e não mais dividir, incorporar os destroços do século 20 aos melhores sonhos do século 21. Estabelecer vínculos e políticas públicas com e para os rejeitados pela 4ª. Revolução. Retirar-lhes do sanatório, abrir-lhes a porta de um abrigo seguro e as janelas das oportunidades. Terá no seu encalço, se não Donald Trump, o seu fantasma. Se fracassar, do caudaloso lago da desigualdade e da ignorância, outro monstro da demagogia poderá surgir. Inviabilizá-lo é seu desafio e o desafio do mundo todo.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Marcus Pestana: Os ventos que sopram do norte

Quase tudo já foi dito sobre as eleições americanas. Escrevo ainda no calor da apuração depois da postagem de mensagens dos dois candidatos à presidência dos EUA no Twitter que dão a dimensão do impasse que assistiremos nos próximos dias. Donald Trump lançou em letras garrafais: “Parem a contagem!”. Em direção oposta o democrata Joe Biden afirmou: “Todos os votos devem ser contados”. Mas, as primeiras iniciativas de judicialização das eleições demonstram que o conflito político se arrastará por dias, semanas.

Nunca houve na história americana um presidente que confrontasse de tal forma as instituições, tradições e práticas democráticas. Trump não tem nenhuma contenção na instrumentalização do poder e não reconhece legitimidade em seus adversários e críticos. Foi apontado por estudo da Universidade de Cornell como o maior disseminador de desinformação sobre a COVID e tornou prática cotidiana a promoção de fakenews “chapa branca” contra adversários.

A vitória de Biden tem dimensão histórica e universal em dois sentidos. O primeiro é o fortalecimento da democracia nos EUA e no mundo, revertendo a onda que se convencionou chamar de “populismo autoritário”. A postura agressiva e antidemocrática de Trump ecoa e estimula a radicalização de setores de extrema-direita em escala global. A eleição de Biden vai permitir que ele se alinhe a estadistas como Angela Merkel e Emmanuel Macron na defesa dos fundamentos do sistema democrático, do valor da tolerância e do diálogo, e do compromisso com a liberdade em todas as suas facetas. O segundo sentido é, em substituição ao unilateralismo do “América first”, a retomada do multilateralismo e a valorização da integração global para o enfrentamento conjunto dos desafios sociais, econômicos, sanitários, ambientais, militares e de combate ao terrorismo. Acordos, como o de Paris em favor do desenvolvimento sustentável, serão revalorizados e organismos multilaterais receberão o prestígio que merecem.

Aqui no Brasil temos muito a aprender e mudar. Dissolver o clima de contaminação ideológica das teorias da conspiração reinantes. Não há plano macabro e secreto da China de implantar o comunismo em escala global através da vacina, do 5G, ou seja lá do que for. Não há uma armação diabólica e um fio condutor ligando a nova constituição do Chile, a vitória da esquerda na Bolívia, o moribundo governo Maduro e o fracasso peronista na Argentina. É preciso urgentemente recuperar as melhores tradições diplomáticas brasileiras que sempre advogaram uma postura independente, profissionalizada, pragmática e sem alinhamentos automáticos. Não deveríamos ter saído da ideologização introduzida pelo petismo de um “terceiro-mundismo equivocado” para o extremo oposto de um alinhamento político e ideológico absoluto e sem resultados com Donald Trump.

Por último, o processo eleitoral jogou luzes sobre aspectos em que o Brasil está muito melhor que os EUA. Isto é uma verdadeira vacina contra o nosso suposto “complexo de vira-lata” ou de “pária internacional”. Temos um sistema público de saúde (SUS) mais bem resolvido que o americano, apesar de nosso investimento público por habitante ao ano ser nove vezes menor do que nos EUA (US$ 500 dólares aqui e US$ 4.500 lá). E, sem dúvida, o nosso sistema de eleição do presidente da República e de apuração é muito superior.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB- MG)


João Gabriel de Lima: A comédia Donald Trump pode estar perto do fim

Se previsões se confirmarem, americanos interrompem peça enquanto se pode ir dela

Comédias têm três atos, ensinam os clássicos da dramaturgia. Tragédias têm cinco. Se as projeções se confirmarem num país dividido, a comédia Donald Trump terá chegado à última cena com o esperneio final – e patético – do presidente dos Estados Unidos.

É possível delinear os três atos da comédia Trump a partir da leitura de O Povo Contra a Democracia, do alemão Yascha Mounk. O livro disseca esse tipo de político que, sem ser propriamente de esquerda ou de direita, fustiga uma e envergonha a outra: o populista.

O primeiro ato de um populista típico é vender soluções simples – e erradas – para problemas complexos. No mundo globalizado, governar não é trivial. Não é possível, por exemplo, criar empregos por decreto, tampouco evitar que eles migrem para outros países. Nem combater pandemias com poções mágicas. Líderes modernos – como Angela Merkel, Emmanuel Macron ou António Costa, para citar exemplos de vários lados do espectro político – são aqueles que conseguem explicar os limites de um governo a seus eleitores. Tratam-nos como adultos.

Um populista, por seu turno, infantiliza os que votaram nele. Trump prometeu tornar os Estados Unidos novamente grandes – e, ao longo de sua presidência, tratou os cidadãos americanos como crianças a quem se promete um chocolate para que parem de chorar. Inventou um muro para evitar que imigrantes mexicanos disputassem postos de trabalho nos Estados Unidos – e seu governo acabou sendo aquele em que mais americanos perderam seus empregos desde a Segunda Guerra. Eis o segundo ato da comédia populista. Os embustes vendidos na campanha eleitoral são esmagados pela realidade.

No terceiro ato, o populista diz que a culpa não é dele. Se algo deu errado, é porque os inimigos não deixaram o governante trabalhar. Por “inimigos” entendam-se a ONU, o Congresso, os “comunistas”, a imprensa, os chineses, os mexicanos. Ou, ainda, os cientistas que sugeriam medidas sensatas contra o coronavírus. Se as projeções se confirmarem, será porque a maioria dos americanos não engoliu a fake news dos inimigos e escolheu Joe Biden presidente da República, encerrando o terceiro ato. Fim da comédia. Cai o pano.

Trump já é, e continuará sendo, um caso de estudo em ciência política. Poucos o entenderam melhor que Mounk, intelectual que milita contra o populismo. Suas trincheiras são o site “Persuasion”, uma rede de defesa da democracia, e um podcast com o nome sugestivo “The Good Fight”, “O Bom Combate”. Nos episódios, Mounk entrevista expoentes da reflexão política num gradiente amplo de convicções, de Anne Applebaum a Francis Fukuyama.

O maior risco de um país governado por um populista é a reeleição. Neste cenário, o ciclo continua: o governante diz que a culpa não é dele, os eleitores acreditam e o reconduzem ao cargo. A peça evolui para um quarto ato, em que o populista dobra a aposta nas soluções simples e erradas. As cenas finais mostram a corrosão das instituições. Temos aí os cinco atos de uma tragédia. As cortinas da democracia se fecham.

Se as projeções se confirmarem, será porque a maior parte dos americanos, cansados de ser tratados como crianças, decidiram que a América deveria ser, novamente, gente grande no mundo. Se as projeções se confirmarem, os americanos terão evitado que a comédia se transformasse em tragédia, ao interromper a peça enquanto ainda era possível rir dela.

*Jornalista, escritor e professor da Faap e do Insper


Ascânio Seleme: O fim de um pesadelo

A iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade

A iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade. Esta talvez seja a única boa notícia de 2020 até aqui. Melhor do que isso, quem sabe, pode ser o desenvolvimento final de uma vacina eficiente contra o coronavírus. Mas ainda assim, e apesar de a vacina ter o poder de salvar milhares de vidas que seriam perdidas prematuramente, a saída de cena do megalomaníaco Trump produz um grau também muito elevado de relaxamento, porque era grande o risco dele permanecer infernizando o mundo por mais quatro anos.

A saída de Trump representaria um recomeço para o mundo. Desaparecera a espada que pairava sobre o globo presa apenas nas mãos de um líder errático, egocêntrico e mentiroso. Se o mundo respirar aliviado com a vitória de Biden, os Estados Unidos terão de procurar entender o recado das urnas. O mais importante deles talvez seja a mensagem de respeito absoluto à democracia, onde quem manda é o eleitor, e ponto final. Mesmo com as imperfeições do modelo eleitoral americano, quem votou e deve eleger um novo presidente foi o eleitor.

Outra vencedora desta eleição foi a verdade. O maior mentiroso que já ocupou o Salão Oval deve deixar o poder acumulando extraordinárias 20 mil mentiras contabilizadas pelo jornal “The Washington Post” até agosto. Embora metade do país tenha votado em Trump, e destes muitos compraram e seguirão comprando as lorotas do presidente derrotado e seus alucinados seguidores, o fato é que a maioria foi às urnas e votou também massivamente num partido que absolutamente não é socialista, como Trump insistia em proclamar.

Restabelecida a verdade, falta ainda aos EUA recuperarem sua dignidade. Trump transformou o país numa chacota global, como Bolsonaro fez com o Brasil. A diferença entre os dois é que um é periférico e outro comanda a maior potência econômica e militar do planeta. Joe Biden é muito bem talhado para esta tarefa. Não importa como seja a saída de Trump, confirmada sua derrota, se esperneando como um menino mal-educado ou de modo civilizado, quem deverá mandar a partir do dia 20 de janeiro de 2021 será um homem educado, tolerante e conciliador.

Mesmo que Trump bata o pé e faça birra, insistindo com suas diversas ações nos tribunais regionais e na Suprema Corte, o resultado final será mais uma derrota para ele. Sem qualquer evidência que sustente as acusações de fraudes eleitorais que fez, as ações são ridículas e serão desconsideradas pela Justiça. Nesta empreitada, Trump já perdeu o apoio da sua maior aliada na mídia, a Fox News, que condenou a iniciativa. Falta perder o suporte do seu partido.

Ao ser retirado do ar na noite de quinta-feira por emissoras de TV americanas, quando fazia um pronunciamento na sala de imprensa da Casa Branca, Trump mentia descaradamente sobre como as alegadas fraudes se processavam. Os veículos que o silenciaram disseram que não podiam permanecer trazendo ao público americano mentiras que desinformavam quando sua missão é exatamente o contrário, bem informar a população.

Se a onda azul esperada não aconteceu, é verdade também que a vitória desenhada de Biden não será por pequena margem como se chegou a imaginar. O número de delegados no Colégio Eleitoral de Biden pode ser exatamente igual àquele que levou Trump para a Casa Branca em 2016. As filas de votação em plena pandemia, onde pessoas passaram até dez horas para votar, provam que os americanos entenderam o que estava em jogo. Por isso também esta eleição teve recorde de eleitores e o vencedor passa a ser o presidente com o maior número de votos da História.

No Brasil temos um problema interessante a ser considerado a partir de agora. Confirmada a vitória de Biden, o presidente Jair Bolsonaro terá de se adaptar aos novos tempo. Vai ser difícil. Por ora, o governo do Brasil pode se tornar em adversário das duas maiores potências globais, a China e agora os EUA. Para se reposicionar globalmente, terá de dar uma guinada de 180° na política externa e demitir o aloprado chanceler Ernesto Araújo. São novos tempos, absolutamente diferentes do que vivemos até aqui. Quem não se recolocar rapidamente, vai comer poeira.

Escapamos, Lenin

“A democracia alimenta os germes da sua própria destruição”. A frase é de Vladimir Ilyich Ulyanov, o Lenin, líder máximo da revolução soviética de 1917. “A democracia dá a cada um o direito de ser o seu próprio opressor”. Esta é do poeta, escritor, diplomata e abolicionista do século XIX James Russell Lowell. O que ambos queriam dizer é que é bem possível transformar uma democracia numa outra coisa qualquer através do voto. Basta votar errado. Os Estados Unidos tiveram tempo e clareza e estão prestes a impedir que o erro cometido em 2016 seja consolidado este ano.

Não sonhe

Quem acha que o presidente Jair Bolsonaro vai se reagrupar globalmente se Donald Trump for derrotado é melhor colocar as barbas de molho. Se internamente houve um reagrupamento, ele se deu em razão da habilidade do centrão e da fraqueza política do capitão. No plano externo, o Brasil vai precisar retomar o caminho da lucidez e do bom senso, no caso de Biden vencer. Além de demitir o chanceler Ernesto Araújo, o Brasil terá também de rever sua política ambiental, se quiser construir um entendimento com a nova Casa Branca. Neste caso, Ricardo Salles também terá de pirulitar.

Era da lorota

Eles se parecem até nisso. O filho de Donald Trump é tão primário quanto os três zeros de Bolsonaro. Não é necessário citar as besteiras que Eric Trump escreveu no Twitter, que as apagou por atentarem contra a democracia. No Brasil, você viu, o zerinho Eduardo Bolsonaro atacou a eleição americana e acusou Biden de fraudá-la. Claro que sem provas. O que os iguala é a impressão que têm de que as pessoas vão engolir todas as mentiras e invenções que colocam nas suas redes sociais. Pelo que se viu nos EUA, a era da lorota parece estar chegando ao fim.

Biden e as artes

Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos a arte não precisa necessariamente do dinheiro de empresas privadas e muito menos de dinheiro público para sobreviver. Os negócios da cultura são muito bem consolidados, e o público americano é mais maduro que o brasileiro. Mas ainda assim, é reconfortante saber que o provável presidente eleito Joe Biden é um entusiasta e um estimulador da arte. Segundo reportagem de Graham Bowley, do jornal “The New York Times”, Biden sempre viu a arte como “um instrumento importante para a economia, um gatilho para a ação política e um agente de construção comunitária”. De acordo com depoimento ao “NYT” feito por Robert L. Lynch, presidente do movimento “Americans for the Arts”, a atitude de Biden em relação à arte “é menor do ponto de vista do consumidor de cultura e mais de acordo com os valores inspiracionais e de transformação” que ela pode produzir na sociedade.

O que vale mais

“Em campanha eleitoral não importa apenas o que você apoia, mas também o que você é contra”. A frase é do personagem Eli Gold, um estrategista político da série “The Good Wife”. Ele explica a Alicia Florrick, a estrela da série e candidata a um cargo eletivo, que não basta apenas você apontar os bons caminhos que pretende percorrer se eleito, mas também os caminhos que vai necessariamente evitar na jornada. Biden deve ganhar porque disse claramente aos eleitores americanos que não seguiria pela trilha do moribundo Trump.

Bom para o Brasil

A eleição dos Estados Unidos prova a força do eleitor. Mesmo em meio a uma pandemia letal, milhões de eleitores bateram recorde e foram às urnas para julgar o governo de Donald Trump. O mesmo vigor que rejeitou Hillary Clinton há quatro anos, pode sabotar agora o homem que a derrotou. O exemplo americano precisa ser observado mundo afora, e especialmente aqui, porque todos sabem que o que é bom para os EUA é bom para o Brasil.

Gota a gota

Você pode dizer tudo sobre a eleição presidencial americana, menos que ela não foi emocionante.


Míriam Leitão: O inesperado caminho de Biden

Joe Biden parecia a pessoa errada mas passou todo o tempo provando ser a pessoa certa. Era preciso saber escalar quem enfrentaria nas urnas o presidente mais perigoso da história para a democracia americana. O Partido Democrata o escolheu. Joe Biden não tem a popularidade de Bernie Sanders, a combatividade de Elizabeth Warren, é um homem branco, o mais velho a postular o cargo, sem carisma, sem o dom da oratória e, como ele mesmo tornou público, foi gago. Além disso, foi acusado durante as primárias — época de explicitar divergências partidárias internas — de ser próximo demais de republicanos. Ele venceu as eleições contra o presidente que mais usou a presidência para os seus propósitos eleitorais. Onde foi que ele acertou?

Ele acertou em chamar Kamala Harris para a sua chapa. Ela representa um outro patamar no nível de representatividade que toda democracia deve almejar. Primeira em muitos quesitos. Mulher, negra, filha de um latino e uma asiática, casada com um judeu. Quando ela se sentar na sala de vice-presidente dos Estados Unidos muitas barreiras estarão sendo superadas. Com Kamala se retoma também a caminhada dos negros para uma sociedade de iguais. À eleição de Barack Obama se seguiu um movimento radical no sentido oposto. O presidente Donald Trump é supremacista, como tornou evidente.

Joe Biden acertou em ser ele mesmo. A empatia que todos dizem ser da sua natureza foi mostrada na campanha. E esse era um elemento que faltava na política do país mais atingido pela pandemia de Covid-19. Seus dramas pessoais foram muitos e são conhecidos. Ele os expôs na medida certa. A morte da mulher e da filha bebê, seu esforço para ser pai e mãe dos filhos pequenos na viuvez e manter seu mandato de senador, o golpe da morte do filho Beau de câncer no cérebro. Até o fato de ser gago foi mostrado na história de um menino a quem ele tem estimulado na superação da dificuldade. Enfim, ele não era o super-homem que enfrentaria o mal. Era mesmo o Joe.

Ser normal diante de tanta anomalia trumpista foi um ativo. Mas houve outros improváveis caminhos do sucesso. Na primeira vez que tentou disputar as primárias, era jovem, pouco mais de 40 anos. Na segunda vez, perdeu para Barack Obama e virou seu vice e amigo. Agora não seria tarde demais? Os avanços da ciência nos trouxeram a longevidade, mas a pandemia, subitamente, mostrou aos mais velhos o quanto eles são vulneráveis. O candidato expôs esse sentimento misto. É um veterano ainda em busca do seu sonho maior, mas ao mesmo tempo fez uma campanha cuidadosa, sem aglomerações, com uso insistente de máscara. Foi até alvo de deboche de Donald Trump por usar supostamente máscaras enormes. Joe Biden mostrou saber que a vida é frágil. Um sentimento que compartilha com tantos num país em que o vírus contaminou 10 milhões, atinge mais de 100 mil todos os dias e matou 240 mil pessoas. Só na semana passada, os EUA tiveram 650 mil novos casos, mais do que a Alemanha durante toda a pandemia.

Biden acertou em costurar uma coalizão agregando forças dentro do partido e na sociedade. Sua campanha atraiu independentes e até republicanos, o que mostrou uma capacidade de diálogo que será muito exigida nos próximos e difíceis anos que os Estados Unidos têm pela frente no trabalho de reconstrução. Destruir é fácil, e foi a essa tarefa que se dedicou Donald Trump. Ele demoliu muitas pontes com países aliados. Hostilizou o Canadá, tratou de forma arrogante países europeus, a tal ponto que a chanceler Angela Merkel disse que até agora não entendeu como os americanos escolheram Trump. Biden terá que buscar os organismos multilaterais maltratados e acordos abandonados por Trump. E, nesse caminho, nós sempre teremos Paris. O Acordo de Paris.

No primeiro debate, Trump parecia ter engolido Joe Biden. Era o comunicador agressivo que impunha sua hora de falar, contra o homem que parecia travar em certos momentos. Quem estava certo? Qual é a melhor estratégia na eleição e na vida? A vitória eleitoral de Joe Biden inverte a avaliação sobre o que é sucesso. A vitória não é impor-se. É convencer. Sem a capa da invencibilidade que o seu adversário exibe, Joe Biden derrotou o maior perigo que já rondou a América.


Marco Aurélio Nogueira: Uma vitória para resgatar a democracia

Se confirmada, vitória de Biden mudará o estado de espírito do mundo

O processo é longo, os resultados demoram a sair, o sistema é intrincado e arcaico. A incerteza o acompanha até as últimas urnas. Ao final, o vitorioso carrega consigo o galardão da legitimidade, dada pelo povo, mas referendada de fato pelos 538 delegados do Colégio Eleitoral. É uma batalha democrática, mesmo que impregnada de seletividade e restrições.

Hoje em dia, as eleições norte-americanas tornaram-se um show televisionado, seguido por todos. Têm forte efeito simbólico, repercutem na política internacional, alteram o humor mundial. Especialmente numa época como a nossa, em que a democracia está sob o assédio de líderes e movimentos autoritários (nacionalistas, populistas) em diversos países. Donald Trump é um deles, o que mais longe levou a corrosão democrática da democracia, quer dizer, a problematização da democracia mediante a manipulação das regras de um sistema que se mantém formalmente democrático.

As eleições de 2020 não foram entre democratas e republicanos, por mais que os dois partidos tenham sido protagonistas. Tratou-se de uma disputa em torno da democracia, do seu significado, da sua defesa e valorização ou de sua desmoralização.

O caso Trump ainda será objeto de estudos sequenciais. Nunca um presidente norte-americano agrediu tanto o sistema democrático de seu país, nunca rompeu tantas regras de conduta, nunca mentiu tão cínica e compulsivamente. Valeu-se de falcatruas constantes, explorando o ressentimento, o medo e a raiva que se acumularam nos EUA com a “desindustrialização”, a vida digital, a perda de força relativa da economia americana diante do avanço implacável do dragão chinês e da mudança dos termos do comércio internacional. Encontrou à disposição uma população preparada para a charlatanice, cortada pelo desespero e pela desilusão, levada pela perda de referências a desconfiar do sistema democrático e a se atirar nos braços de personagens “heterodoxos”, abertamente demagógicos. As redes sociais fizeram com que o rastilho se espalhasse e adquirisse status de verdade.

O personalismo populista e raivoso de Trump, sua agressividade permanente, mobilizou parte importante dos norte-americanos. Apesar de tudo – a resposta pífia à pandemia, as mentiras, o desprezo pela vida, o abandono do meio ambiente, o egocentrismo narcísico, os maus tratos com imigrantes, o racismo, a misoginia explícita – ele conseguiu conquistar mais 4 milhões de votos quando comparado com as eleições de 2016. Tem milhões de seguidores no Twitter, no Facebook e no Instagram. É um poder de fogo não desprezível, que lança torpedos tóxicos a cada minuto, minando a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.

Chega a impressionar que tal torrente de pessoas tenha aderido a uma plataforma tão mesquinha e reacionária.

Se confirmada, a vitória do democrata Joe Biden mudará o estado de espírito do mundo, impulsionará uma troca de oxigênio, afetará o modo como os cidadãos enxergam a democracia. O movimento em favor de uma internacional de extrema-direita, dita “conservadora”, perderá gás para se viabilizar. Depois do descaso e do reacionarismo antidemocrático de Trump, poderá haver novamente política democrática. Mas nada será automático. Primeiro porque os EUA estão polarizados de cima a baixo. Segundo, porque a democracia norte-americana enveredou por uma senda enviesada, torta, que distanciou o povo das instituições e da confiança nos procedimentos democráticos – uma senda que permanecerá aberta mesmo com Trump derrotado. Muito trabalho terá de ser feito para repor as coisas no lugar, abrindo espaços para as novas gerações, os movimentos de contestação e antirracistas, as mulheres. O momento pede um esforço articulado para neutralizar o populismo e repor a confiança dos cidadãos na política democrática. Sistemas, afinal, precisam saber se atualizar e cuidar de suas válvulas de escapa, para que não se inviabilizem quando as águas subirem e o vapor aumentar.

Os EUA são uma democracia mais imperfeita do que se imagina. Seu sistema político foi desenhado para beneficiar certos grupos da população mais do que outros, os estados em detrimento do poder federal. Tem um corte oligárquico acentuado. Sempre houve, por exemplo, manobras para dificultar o voto dos mais pobres, dos negros, dos menos instruídos. O próprio sistema é elitista, os votos populares não pesam como deveriam, os delegados ao Colégio Eleitoral são escolhidos de forma restrita. Com o trumpismo, o quadro piorou. O movimento conservador atual maltrata os fundamentos da democracia e mais recentemente passou não só a restringir a votação e a corromper a lógica política, como a judicializar o processo democrático, agindo em nome de um projeto que hostiliza a ideia de justeza das escolhas populares, que precisam ser acatadas. Como se vê nas eleições deste ano, faz-se o possível para roubar legitimidade dos resultados eleitorais.

A judicialização não é exclusividade norte-americana. Está instalada no mundo, reflete a crise da política em que se vive. Não é comum, porém, que se ponha em xeque a lisura das eleições ou que se as leve a decisões judiciais. Governantes autoritários e de extrema-direita é que costumam fazer isso. Bolsonaro mesmo, no Brasil, vive dizendo que teria havido fraude na sua própria eleição em 2018. A extrema-direita faz uso intenso e sistemático da deslegitimação dos processos políticos. Levanta suspeitas, faz acusações e ameaças para que se possa confundir e assustar os eleitores. A ideia é desconstruir a democracia liberal, implodir e manipular as regras e os procedimentos democráticos. É uma espécie de “golpe branco”, que interdita o diálogo, o pluralismo, a vigência de direitos e políticas sociais. Tudo contra o “sistema”, mas por dentro dele, usando-o contra a democracia.

O discurso de Trump na noite de 05/11, no qual ele acusou os democratas de estarem inventando “votos ilegais” para “roubar as eleições”, foi uma demonstração clara disso. Uma admissão dissimulada de derrota para o “sistema”.

A derrota de Trump não será o fim do trumpismo, que se enraizou na sociedade norte-americana. Será preciso acompanhar para ver como ela repercutirá no Partido Republicano e como será processada pela população. Perde a pessoa, não necessariamente o movimento por ele representado e por ele ativado. Também não é um recado a governantes que com ele se alinharam e que ajudaram a incensá-lo. Mas é uma indicação clara de que enquanto houver democracia, regras do jogo e eleições competitivas, a extrema-direita não poderá se proclamar dona do universo.

A presidência Biden não terá impacto imediato no Brasil, sobretudo porque o governo Bolsonaro agarrou-se ideologicamente a Trump e optou por seguir uma política externa obscurantista, de isolamento e auto-exclusão das negociações multilaterais. O País deixou de ter voz ativa no cenário internacional. O governo brasileiro poderá optar pelo aprofundamento da condição de “Estado-pária”, manter-se indiferente ao mundo, numa espécie de suicídio nacional. Biden é um democrata pragmático e que seguirá a via diplomática. Deverá, porém, exercer pressões não desprezíveis sobre a política ambiental brasileira e levar o ministério de Relações Exteriores a corrigir o discurso e buscar um realinhamento. Poderá contribuir para mostrar a farsa que o bolsonarismo montou no País.

A vitória democrata nos EUA não é boa notícia para Bolsonaro. Mas poderá ser ótima para o Brasil.

Terá impacto sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2022? É difícil dizer, há dois anos de distância e sem considerar os resultados das eleições municipais de 2020. Com a derrota de Trump, o bolsonarismo tenderá a perder parte da “narrativa” e sofrer algum abalo; as correntes democráticas ganharão um fôlego adicional e serão instigadas a procurar maior unidade e coordenação. Mas tudo continuará dependendo das políticas que o governo vier a praticar até 2022 e da capacidade que tiverem os democratas brasileiros de avançarem de fato em termos de articulação. Sem que se forme uma rede sólida de entendimentos unindo liberais, conservadores democráticos, socialistas e socialdemocratas o processo político seguirá curso errático e tenderá a se inclinar em sentido não democrático.

Agora, é preciso esperar o fechamento completo das urnas, o desfecho dos questionamentos judiciais e a posse do novo presidente.

Bolsonaro está obrigado a telefonar para Biden e lhe desejar sorte. O presidente brasileiro, porém, não é dado a tais cordialidades, é mais tosco e bruto. Fará algo protocolar, mas por baixo do pano deverá mergulhar na nostalgia de um tempo em que podia se vangloriar de ser “amigo de Trump”.


Alon Feuerwerker: Vai e volta

A polarização nas eleições americanas é permanente, e facilitada por um fato singelo. Ali só dois partidos disputam o poder. É como se todas as eleições fossem um segundo turno. Há situações de candidatos independentes, e mesmo de certo partido lançar mais de um candidato. Mas são residuais, e vão para um segundo turno quando ninguém alcança metade mais um.

Joe Biden é um candidato dito moderado, apoiado por uma ampla aliança que vai do dito liberalismo progressista (ou progressismo liberal, conforme a vontade do freguês) a uma esquerda de raiz. Igualmente do outro lado. Donald Trump é apoiado por uma ampla gama que vai da direita que não se envergonha de si mesma a um conservadoriamo mais liberal (ou um liberalismo mais conservador).

A isso misturam-se recortes de classe, ideologia, gênero e raça. Além da condução errática e desastrosa da Covid, Trump poderá debitar suas dificuldades eleitorais à condução que deu na trágica morte de George Floyd. Acessoriamente, os resultados no Arizona certamente refletem seu tratamento desrespeitoso a John McCain. Tudo que vai, volta.

Descasamento
Enquanto estamos entretidos com o vai-não vai das eleições americanas, nossos problemas permanecem estacionados aguardando solução. Uma delas é alguém dizer concretamente, e de modo factível, como o governo vai cumprir o teto de gastos constitucional em 2021.

O buraco primário em 2020 ficará em mais ou menos dez vezes o previsto no orçamento federal, por causa dos gastos com a pandemia. Eles evitaram uma catástrofe econômica mas deixam um problema: como recolocar o gênio dentro da garrafa assim de repente?

Agora um estudo acrescenta algo novo. Por causa do descasamento entre o índice previsto de correção das despesas e a taxa real de inflação, só por causa disso, o governo precisará cortar uns 20 bilhões de reais do orçamento (leia). Que aliás aguarda a solução da pendenga entre o presidente da Câmara e o centrão.

Em matéria de tecnologia para rolar problemas com a barriga, as exóticas apurações da eleição nos Estados Unidos não dão nem para o começo se confrontadas com o know-how desenvolvido por aqui no quesito de deixar as coisas para depois.

Realidade brincalhona
A principal poêmica sobre as eleições de terça-feira nos Estados Unidos se dá em torno do voto antecipado e do voto pelo correio. Promete pano para manga e uma novela de vários capítulos. O número cresceu exponencialmente este ano por causa do medo da Covid-19.

Ali quem quis votar votou, de um jeito ou de outro. Já por aqui, o único jeito de dar o voto nas eleições municipais deste mês será ir à seção eleitoral e apertar os botões na maquininha. É muito mais seguro no aspecto eleitoral, um modelo a ser copiado, mas exigirá rigor nas medidas sanitárias.

Cada um com seu sistema e seus problemas. Ali, está a confusão a que todos assistimos. Aqui, corremos o risco de um maior absenteísmo, gente deixando de votar, com medo no SARS-CoV-2. As pesquisas mostram que pode ser quase metade do eleitorado.

Mas é melhor esperar para ver antes de concluir qualquer coisa apressadamente. A realidade costuma ser brincalhona com as conclusões muito antecipadas. Eleição após eleição, essa é uma verdade que sobrevive bem com o tempo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação