joe biden
Bernardo Mello Franco: Meninos mimados. O chororô de Trump e Bolsonaro
Jair Bolsonaro quer bajular Donald Trump até o fim. Em Washington, o republicano se recusa a admitir que foi derrotado por Joe Biden. Em Brasília, seu imitador se finge de morto para não cumprimentar o presidente eleito.
A birra de Bolsonaro expõe o país a mais um vexame diplomático. Ao ignorar a vitória de Biden, o Brasil aprofunda seu isolamento no mundo. Outras nações governadas pela ultradireita, como Hungria e Polônia, já reconheceram a derrocada de Trump.
Por aqui, todos os ex-presidentes vivos deram os parabéns ao democrata: Sarney, Collor, FH, Lula, Dilma e Temer. A galeria reúne políticos de esquerda, de direita e de centro. Só o extremista Bolsonaro, atual inquilino do Planalto, insiste na tática do avestruz.
Não é por falta de oportunidade. Ontem o capitão conversou com eleitores, discursou numa solenidade e fez propaganda para candidatos a prefeito de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Fortaleza, Manaus, Santos e Parnaíba. Pediu voto até para Wal do Açaí, que foi apontada como sua funcionária fantasma e agora quer ser vereadora em Angra dos Reis.
Bolsonaro falou de tudo, menos do que interessa. Na cerimônia oficial, repórteres tentaram saber quando ele pretende cumprimentar Biden. O presidente ouviu as perguntas, mas desviou o olhar e saiu de fininho.
Um chanceler com juízo teria evitado o novo desastre diplomático. Mas o Itamaraty permanece nas mãos de Ernesto Araújo, que vê comunistas embaixo da cama e enxerga em Trump o salvador do Ocidente.
O capitão insiste em pôr paixões ideológicas acima do interesse nacional. Ele já havia hostilizado a China, provocado os países árabes e boicotado líderes eleitos na Argentina e na Bolívia. Agora comete outro erro grave para não melindrar seu ídolo americano.
Os dois presidentes se comportam como meninos mimados. O americano sai de cena como mau perdedor, e o brasileiro mostra, mais uma vez, que é incapaz de ser pragmático e agir como um adulto. As relações de Biden e Bolsonaro já seriam difíceis sem esse chororô. Agora devem começar sob tensão ainda maior.
Míriam Leitão: Política externa perdida no mundo
O Brasil fica mais distante da OCDE, do acordo com a União Europeia e do mundo, enfim, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris. Isso porque o governo brasileiro deveria ter a esta altura uma estratégia de como mover suas peças no tabuleiro do xadrez mundial. Mudaram as circunstâncias, e o erro bolsonarista ficará mais caro. Estados Unidos e União Europeia estarão mais juntos a partir de agora na questão ambiental, e Jair Bolsonaro é o vilão óbvio, com sua política de desprezo à preservação ambiental, de desrespeito aos indígenas, de afronta aos negros.
O governo Biden tem uma lista imensa de urgências. A pandemia é a primeira delas e por isso ontem já estava sendo anunciado o grupo de transição que vai preparar o plano de combate ao coronavírus. A crise econômica é outra emergência. O plano de socorro terá que ser maior do que o programado, e no meio do caminho tem o Senado. A campanha de Biden, muito energizada pela vitória, está jogando tudo para garantir as duas cadeiras do Senado da Geórgia que foram para segundo turno. Caso se confirme o controle dos republicanos no Senado, tudo será mais difícil.
Na área ambiental, contudo, o avanço está garantido. O governo Biden já avisou que voltará ao Acordo de Paris. E poderá também desfazer ordens executivas e regulações infralegais que foram impostas pelo governo Donald Trump, que entregou a Environmental Protection Agency (EPA), a agência de proteção ambiental, a um lobbista da indústria do carvão. Nesse contexto de volta aos princípios do acordo e às regulações ambientais mais severas, os Estados Unidos ficarão mais próximos da Europa, que já tem pressionado o Brasil. Portanto, Bolsonaro estará mais sozinho com a sua política insensata na área do meio ambiente.
A política externa atual tenta apagar o Brasil do mapa-múndi. É um esforço diário para nos tornar irrelevantes. Demorar a cumprimentar o presidente eleito Joe Biden e não enviar autoridade para a posse de Luiz Arce na vizinha Bolívia são decisões obtusas. Caberia a Ernesto Araújo avisar a Bolsonaro: pode já ir se acostumando. Mas ficaram os dois velando o falecido governo Trump, erro que nem o autocrata Viktor Orban cometeu. Fazer pirraça com a Bolívia é ridículo. O país vizinho escolheu em eleições livres trazer de volta o partido de Evo Morales e não nos cabe desgostar.
O Brasil tem muito a perder com os erros da dupla. Primeiro, porque Bolsonaro com suas falas rudimentares sobre a Amazônia é um alvo fácil. Se fosse só ele, tudo bem. O problema é que empresas brasileiras também podem ser prejudicadas por essa política externa e ambiental sem sentido. Por isso, se Bolsonaro insistir em não ter um plano convincente de preservação ambiental, aumentarão as pressões aqui dentro. Empresas e o terceiro setor, a imprensa, os especialistas, lideranças políticas estão cada vez mais se alinhando numa coalizão pela preservação. Sem Trump, Bolsonaro ficará mais só e entre dois fogos. Caberia ao Itamaraty traçar uma estratégia. Mas o Ministério não pode fazer seu trabalho porque está sendo dirigido por um dos mais medíocres diplomatas que a Casa já produziu.
A ditadura militar no Brasil nasceu no contexto da guerra fria. Naquele momento, havia países comunistas, e os militares eram, por suposto, adversários da ideologia. Pois o Brasil de Ernesto Geisel foi o primeiro a reconhecer o governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), apesar de ser comunista.
O mais elementar em política externa é saber a distância entre as preferências pessoais do chefe de Estado e o seu papel de representante do país. Bolsonaro pode ter torcido muito contra Joe Biden e Luis Arce, mas em processos eleitorais legítimos Biden é hoje o presidente eleito dos Estados Unidos e Arce acaba de assumir a Bolívia. É um erro não mandar um alto representante para a posse do governante da Bolívia, país com o qual o Brasil tem a sua maior fronteira (3.423km). Os bolivianos escolheram a volta do partido de Evo Morales e não nos cabe desgostar. Com o país vizinho temos um acordo do gás e antigas tradições de amizade. Com os Estados Unidos, inúmeros interesses. A demora dos cordiais parabéns ficou ridícula para o Brasil. A descortesia com a Bolívia não faz qualquer sentido.
A OCDE tem regras de conformidade ambiental que ficarão mais fortes com o governo Biden. A União Europeia não ficará sozinha exigindo do Brasil mudança da política ambiental. O projeto de Ernesto Araújo de transformar o Brasil num grande pária avançou ainda mais nos últimos dias.
José Casado: Cresce pressão sobre o Brasil
Bolsonaro tem 71 dias para escolher se muda ou fica refugiado nas cinzas da era Trump
A realidade bate à porta do insone Jair Bolsonaro. O delírio da “reinvenção do Brasil” numa “nova ordem mundial” sob comando de Donald Trump, como repetia seu chanceler, acaba na quarta-feira 20 de janeiro, quando Joe Biden assume com o plano de mudar o rumo dos Estados Unidos. Aos 78 anos, ele terá pressa em abrir um “caminho irreversível” para a inovação tecnológica em saúde, comunicações e energia limpa.
Se conseguirá, é outra história. Mas sinaliza o fim de uma tragicômica sintonia de negação da ciência: enquanto Trump considerava a mudança climática uma conspiração chinesa, Bolsonaro reduzia a pandemia a gripezinha.
Outra consequência é o impulso ao cerco legislativo ao Brasil. Democratas e republicanos atravessaram os últimos 12 meses apresentando um novo projeto a cada 50 dias para forçar Brasília a conter o desastre na Amazônia e proteger os indígenas.
Bolsonaro se enrolou na bandeira da soberania nacional quando viu Biden acenar com US$ 20 bilhões (R$ 104 bilhões) para “deixar de destruir” a Amazônia. Mas aceitou, em silêncio, uma interferência externa bem mais barata. No Orçamento de 2020, o Congresso americano separou US$ 15 milhões (R$ 78 milhões) para financiar “assistência estrangeira na Amazônia”, condicionados a provas de respeito aos direitos humanos. Também não reclamou da repetição da ajuda em 2021, com veto ao uso do dinheiro na remoção de indígenas (emenda nº 6395, já aprovada na Câmara).
O cerco legislativo à antipolítica ambiental antecede Biden. Desde o ano passado, avançam projetos como a “Lei da Amazônia” (HR nº 4263), com punições como bloqueio de ativos e de importação de algumas commodities, além de restrições militares — entre elas a revogação da recente designação do Brasil como aliado militar dos EUA fora da Otan.
Bolsonaro tem 71 dias para escolher se muda o rumo ou atravessa a segunda metade do mandato, e a campanha de reeleição, refugiado na saudade e nas cinzas da era Trump.
Rubens Barbosa: Notas sobre a eleição presidencial nos EUA
A sociedade americana optou por um presidente moderado e conciliador
A histórica vitória de Joe Biden será analisada por muitos anos. O resultado da eleição foi surpreendentemente equilibrado, refletindo a profunda divisão do país. A onda azul, democrata, não se concretizou, mas a sociedade americana preferiu eleger um presidente moderado e conciliador, que promete reduzir o ódio e unir os EUA. O resultado das urnas mostrou que o eleitor separou a figura do presidente falastrão do seu partido. O Partido Republicano, que teve desempenho muito melhor que Trump, saiu fortalecido, com maior número de deputados na Câmara dos Representantes e com a possibilidade de manter a maioria no Senado.
A polarização política nos EUA vem se acentuando nas últimas décadas e esse quadro não se deve alterar no futuro previsível, em razão, entre outros fatores, do aprofundamento, com a pandemia, dos contrastes existentes no país mais rico e mais avançado do mundo. A crescente concentração de renda acentuou as desigualdades entre as pessoas, as regiões e entre os centros urbanos e as áreas rurais, fato agravado pelas consequências econômicas. O impasse, se o Senado continuar republicano, dificultará a execução das reformas prometidas por Biden nas áreas de saúde, economia, energia, imigração, meio ambiente e no fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.
Os EUA estão deixando de ser um país com maioria branca e calvinista para se tornarem uma democracia multirracial e multicultural. Quase 75 milhões de eleitores se manifestaram contra um presidente com abordagem não convencional na política, negacionista, percebido como egoísta, mentiroso, vaidoso e que põe seus interesses pessoais e eleitorais acima dos interesses do país. Trump impôs políticas que favoreceram o populismo, o protecionismo, o racismo e o isolacionismo, sempre ressaltando que isso ampliaria o emprego do trabalhador norte-americano e reforçaria a ideia de que os EUA sempre estariam em primeiro lugar. As políticas seguidas por Trump acentuaram o divórcio racial e os conflitos relacionados à imigração. Em alguns Estados, porém, os votos de jovens negros, latinos e muçulmanos foram acima do esperado para o Partido Republicano, apesar de algumas políticas de Trump terem sido claramente contrárias aos interesses dessas minorias. Acentua-se, assim, a divisão em torno de temas culturais, enquanto há mais convergência em torno das políticas econômicas, menos conflitivas por estarem voltadas para o crescimento do emprego e da renda.
Apesar da rejeição pessoal, as bandeiras que Trump levantou deverão permanecer. O movimento populista, nacionalista e conservador se fortaleceu com o voto nas áreas rurais, mais pobres, de maioria branca, sem instrução superior e de menor renda. Os republicanos emergem estranhamente como o partido da classe trabalhadora, mais afinado com os anseios da nova composição social e racial da sociedade norte-americana.
Outro aspecto relevante que ficou claro com os resultados eleitorais é a questão do uso político da religião. O recado das urnas aos políticos foi claro: igreja e Estado não devem ser misturados e confundidos. Os eleitores manifestaram-se a favor de discussões sobre questões práticas que afetam diretamente seus interesses e refutaram uma guerra religiosa, em especial contra imigrantes muçulmanos.
As incertezas que as transformações internas na sociedade norte-americana acarretam deixam também uma lição sob o ângulo das relações externas. O alinhamento político e econômico com os EUA é perigoso. Depender dos EUA não representa um apoio estável de médio e longo prazos, dadas as modificações que pode haver nas tendências dos eleitores em eleições seguintes. As políticas de Trump em relação aos aliados dos EUA, no tocante aos organismos internacionais, ao grau de confrontação com a China, à política de meio ambiente, deverão, como já anunciado, ser modificadas no governo Biden. O que poderá acontecer em 2024? Serão mantidas as políticas do governo democrata? Voltarão as políticas isolacionistas?
Uma vez que são muito fortes as instituições no país, as acusações de fraude e a judicialização do processo eleitoral promovidas por Trump, que tantas incertezas despertam e de certo modo representam um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral, não chegarão a ameaçar a democracia, nem a credibilidade das eleições, mesmo com eventuais violências isoladas.
Os institutos de pesquisa voltaram a se equivocar de maneira grave. Os meios de comunicação (TVs, jornais e rádios) tornaram-se, na prática, braços dos dois partidos políticos, estimulando a divisão. O papel da mídia social foi menor do que na eleição de 2016.
Ficam no ar algumas perguntas. Dada a força de Trump como líder de uma parte do Partido Republicano, e sobretudo pelo peso dos mais de 70 milhões de votos, qual será o papel do atual presidente a partir de 20 de janeiro? Trump vai se recolher, como fizeram todos os seus antecessores, ou continuar ativo no Twitter, mantendo-se como uma presença forte no cenário político norte-americano? A Constituição dos EUA determina que nenhuma pessoa poderá ser eleita mais de duas vezes para o cargo de presidente. Trump poderá muito bem querer se apresentar novamente em 2024. Como o Partido Republicano vai reagir ao trumpismo?
*Presidente do IRICE
Cacá Diegues: A última que morre
Biden, sem consciência disso, representou, por sua serenidade diante do que lhe favoreceu, a face positiva da mudança
A democracia não é uma ciência. Muito menos exata, como a matemática. Você pode somar ou subtrair seus elementos sem provocar os mesmos resultados, dependentes de onde, quando e com quem o fizer. Isso, em qualquer lugar do mundo. Imagine então num espaço de grande mudança étnica e cultural em curso que, por sua vez, produz novos conceitos éticos, religiosos e cívicos, que mexem com a vida diária de uma população, como nos Estados Unidos da América de hoje. Hoje, a maior contribuição dos EUA ao mundo contemporâneo não são o capitalismo financeiro, as viagens ao espaço ou os craques da NBA. Mas a ideia de um país com entrada para outros povos, capaz de absorver peles de outras cores, línguas de outras origens, costumes dos outros. Um país que será sempre novo, porque tem como se renovar.
Mudanças radicais produzem sempre consequências para o bem e para o mal. Nesse caso, para o bem, acho que é sobretudo a excitação do que ainda pode nos surpreender, os rumos inéditos que a humanidade toma em qualquer canto da Terra. Para o mal, é sem dúvida o medo do que não se conhece, traduzido em providências de impedimento e rejeição, quando professamos um nacionalismo de direita oportunista, que nos diz que o que é diferente de nós não pode prestar. Nessa recente eleição americana, Joe Biden, sem consciência disso, representou, por sua serenidade diante do que lhe favoreceu, a face positiva da mudança. Quanto ao mal, ficou, mais uma vez, com Donald Trump e seu horror ao que não entende, ao diferente e ao inesperado, ao com o que não contava.
Na terceira noite de apuração, quando as coisas já iam mal para ele, Trump fez, no salão da Casa Branca, um discurso cheio de mentiras e falsidades tão revoltantes que as equipes de televisão que cobriam o evento desligaram as câmeras e se retiraram revoltadas, antes que o presidente encerrasse sua intervenção hedionda.
Durante seu mandato, Trump separou filhos pequenos de seus pais imigrantes, sem nenhuma compaixão. Centenas de crianças centro-americanas estão até hoje em cárceres coletivos, sem que os pais saibam onde se encontram. O mais estranho é que Trump, nesta eleição, ganhou votos importantes em centros de imigrantes, hispânicos e negros, como a Flórida. Durante seu mandato, o presidente ainda protegeu e incentivou grupos neofascistas, como os Proud Boys e os Patriot Players, que, em suas camisetas com o slogan trumpista costurado(Make America Great Again), esfaquearam à morte dois membros do movimento Black Lives Matter em Portland. E Trump ainda assustou seus eleitores mais ingênuos, com a notícia de que, do outro lado, estava o fantasma do socialismo, como se o Muro de Berlim ainda estivesse de pé.
É claro que não é essa a nova América que surge dessa eleição e que queríamos saudar. Mas a América que sai dela gloriosa pela confirmação de uma outra nação que se constrói aos poucos, na mistura de tudo. Não é possível esquecer a gigantesca militância de Nova York ou da Califórnia, mas também não se pode desprezar a importância das minorias, protagonistas nos resultados da Geórgia ou da Pensilvânia, redutos clássicos do voto conservador.
Nosso coração ficou mais leve quando comecei a me dar conta das forças políticas que animam o novo, quando jovens americanos vibraram porque Joe Biden se referiu, em sua curta fala de menos de dois minutos, à “hora de ouvir um ao outro, de ver, respeitar e cuidar um do outro, ficar juntos como uma nação”. Conforta saber que foi esse o discurso que fez a Miragem Vermelha (os Republicanos de Trump) esbarrar na Muralha Azul (Democratas de Biden), fazendo uma diferença de cerca de 5 milhões, entre uns e outros, no voto nacional.
Ao longo de sua história, os Estados Unidos não são um país que se caracteriza por ter sofrido muito, embora tenha feito tanta guerra. Já o Brasil quase não fez guerra, mas é muito louco, como diz Nelson Motta: “De tanto sofrer, ficou pirado”. Podemos dizer que, em vez de ciência, a democracia é um desejo que cada povo alimenta como pode e quer, em nome de sua liberdade e da liberdade do outro, em benefício de um novo mundo a construir. Vivemos da esperança nesse novo mundo.
Bruno Carazza: Trump 2024
Engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho: Biden venceu, mas o trumpismo sai fortalecido
“I’ll be back”, teria dito o presidente Grover Cleveland ao deixar a Casa Branca depois de perder a reeleição em 1888. E ele cumpriu a promessa. Ao dar a volta por cima em 1892, Cleveland ainda é, até hoje, a única pessoa na história americana a governar o país em dois mandatos não consecutivos (1885-1888 e 1893-1896). Donald Trump pode lhe fazer companhia em 2024.
Cleveland era democrata - e o vínculo partidário não é a única característica que o diferencia de Trump. Discreto, fez da austeridade e da retidão seus principais ativos políticos. Na sua primeira eleição, sofreu uma intensa campanha difamatória na imprensa, com os adversários acusando-o de ter um filho ilegítimo. Ao ser questionado por seus apoiadores sobre qual deveria ser a sua estratégia de defesa, respondeu com uma frase que marcou época: “Tell the truth”. Ao assumir que caiu em tentação e admitir a possibilidade de ser pai da criança, Grover Cleveland mereceu um voto de confiança do puritano eleitorado americano no final do século XIX.
Mas à parte a coloração partidária, a discrição e a postura em relação ao dilema “fato ou fake”, há pontos em comum entre eles. Ambos tiveram uma carreira política meteórica: em apenas dois anos, Cleveland elegeu-se prefeito de Buffalo, governador de Nova York e presidente da República, enquanto Trump… bem, todos sabemos o quão rápida foi sua ascensão.
Os dois presidentes também viveram em mundos muito polarizados. Cleveland chegou ao poder derrotando seu adversário James Blaine por apenas 0,3% dos votos nacionais e se não fosse uma diferença de apenas 1.200 votos no estado de Nova York, teria perdido a disputa no Colégio Eleitoral - assim como Donald Trump venceu Hillary Clinton com margens apertadas e ainda perdendo nacionalmente.
Ao tentarem a reeleição, tanto Cleveland quanto Trump ampliaram seu eleitorado, mas por um triz não conseguiram manter o domínio sobre Estados relevantes, e acabaram sendo derrotados. Em 1888, Nova York e Indiana representaram para Grover Cleveland o que Georgia, Pensilvânia e Michigan foram para Trump em 2020.
Quatro anos depois, o retorno de Cleveland à Casa Branca foi possível pelo agravamento da situação econômica, o acirramento das disputas raciais no país e a ausência de alternativas no seio de seu partido - condições que podem contribuir para a volta de Trump em 2024.
A vitória de Joe Biden vem sendo efusivamente comemorada como o fim de uma era. Analistas chegaram a dizer que “a aventura populista norte-americana chegou ao fim” e que a razoabilidade e a sensatez se impuseram de modo definitivo sobre a truculência das táticas de Donald Trump. Calma lá.
Deixando de lado a teatralidade das acusações de fraude e as ameaças de judicialização do resultado das urnas, Trump poderá deixar a presidência de cabeça erguida. Ele conseguiu mobilizar seu eleitorado para fazer frente à onda azul que se mobilizou desde os protestos em resposta ao assassinato de George Floyd, manteve o domínio republicano em suas bases tradicionais e ainda angariou votos em redutos antes considerados monopólio democrata, como parcelas relevantes do eleitorado latino - tudo isso em meio a uma pandemia e uma crise econômica sem precedentes na história recente.
A derrota trumpista se deu em margens tão apertadas quanto as de 2016, o que evidencia que os Estados Unidos continuam tão divididos quanto antes, tanto geográfica (litoral x interior, cidades grandes x zonas rurais) quanto demograficamente (brancos x não brancos, homens x mulheres, alta x baixa escolaridade). Não é por outro motivo que tanto Joe Biden quanto Kamala Harris, em seus discursos da vitória, usaram a mesma expressão: “curar o país”, como se ele sangrasse em função de tantas divisões.
Amainar diferenças tão acirradas até 2024 será uma tarefa hercúlea, ainda mais se os democratas não conseguirem o controle do Senado. É bom lembrar que nem Barack Obama, com todo o seu carisma e contando com oito anos de mandato, conseguiu vencer resistências, unificar o país e fazer sua sucessora.
Como a Emenda nº 22 da Constituição americana não impede um ex-presidente que perdeu a eleição de candidatar-se de novo, Donald Trump tem à sua frente quatro anos para fazer campanha e azucrinar o governo de Joe Biden pelas redes sociais e manipulando as atenções da mídia.
Outra circunstância que o favorece é a ausência de novas lideranças em ambos os partidos. Do lado republicano, ainda que existam críticas às suas postura e personalidade, nenhum nome lhe faz sombra. Entre os democratas, as primárias deste ano, com um número recorde de pré-candidatos e a escolha recaindo sobre um senhor de 77 anos, dizem muito sobre o deserto de alternativas.
É verdade que o atual presidente tem um passado nebuloso e a perda da imunidade presidencial abre flancos para processos judiciais que podem inviabilizar um plano de retorno ao centro máximo do poder nos Estados Unidos. Nesse caso, ainda lhe restaria um plano B, que atende pelo nome de Donald Trump Jr.
Clãs sempre fizeram parte da política americana: John & John Quincy Adams, no alvorecer da República, e George H. & George W. Bush são duplas de pais e filhos que chegaram à presidência. Outro exemplo é William Harrison (1841-1844) e seu neto Benjamin Harrison, que derrotou Grover Cleveland em 1888. Também tivemos os Dead Kennedys na década de 1960 e o casal Clinton mais recentemente, todos com grande protagonismo. E ainda há Michelle Obama - que nega interesse em entrar no jogo, mas parece ser uma carta guardada na manga dos democratas para o futuro.
Com um perfil super ativo nas redes sociais, papel de comando nas campanhas do pai e tendo participado como consultor na administração que se encerra, não seria surpresa ver Trump Jr., 43 anos, sendo preparado para assumir o bastão do pai caso ele não possa concorrer em 2024.
É muito cedo para especular sobre o que vai acontecer nos EUA daqui a quatro anos. Mas engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho. Sua campanha, aliás, já começou.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Ana Cristina Rosa: Yes, we can'
Kamala Harris tem significado enorme em termos de representatividade
As Américas estão vivendo em 2020 um ano memorável para as mulheres na política. Depois das conquistas femininas na Bolívia e no Chile, pela primeira vez uma mulher, negra de ascendência asiática, chega à Vice-Presidência de um dos países mais influentes do planeta.
A vitória da chapa Biden-Harris é um marco dos mais significativos na luta pela igualdade de gênero e de raça não só nos Estados Unidos, mas também no mundo. Como vice-presidente, Kamala será também a pessoa que irá presidir o Senado.
O ineditismo da eleição de Kamala Harris para Vice-Presidência dos Estados Unidos tem significado enorme em termos de representatividade. Por representatividade, entenda-se permitir que as pessoas, sobretudo as que integram grupos que estão à margem das esferas de poder e de decisão, se reconheçam no outro.
E isso não diz respeito necessariamente a minorias quantitativas, mas também a grupos numerosos que são minorizados em termos de representação. É sentir-se capaz a partir da linha do exemplo, independentemente de rótulos e preconceitos.
A mensagem é clara por si, mas foi reforçada e explicitada por Kamala em seu primeiro discurso como vice-presidente eleita ao dirigir-se às crianças do país e recomendar que "sonhem com ambição, liderem com convicção e se vejam onde os outros podem não ver, simplesmente porque eles nunca viram antes".
Esta não é a primeira vez que Kamala Harris desbrava e conquista espaços, ajudando a abrir o caminho para as mulheres que seguramente virão depois. Como ela mesma afirmou, "serei a primeira vice-presidente dos Estados Unidos, mas não serei a última". Ela foi a primeira pessoa negra a assumir a procuradoria-geral da Califórnia e uma cadeira no Senado por aquele estado.
A eleição de uma mulher negra para o segundo mais alto cargo eletivo da maior potência do mundo ocidental traz à memória o slogan de campanha do primeiro negro eleito presidente dos EUA: "Yes, we can".
Celso Rocha de Barros: Trump perdeu, falta Bolsonaro
Contraste com democracia dos EUA voltando ao normal faz situação brasileira parecer ainda mais triste
Joe Biden é o novo presidente dos Estados Unidos. Em seu discurso da vitória, defendeu a união de todos os americanos, inclusive dos que não haviam votado nele, e prometeu que governaria para todos. Perdi o trecho seguinte porque comecei a rir lembrando que teve gente com fama de sério apostando que Bolsonaro um dia faria o mesmo.
Biden fez belas citações bíblicas e mencionou os transexuais entre os americanos que quer defender. Agradeceu especialmente aos negros americanos, que foram decisivos para sua vitória.
Só esclarecendo, não agradeceu apenas o Hélio Negão que estava ali do lado, agradeceu Kamala Harris, primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente, agradeceu seu antigo companheiro de chapa, o ex-presidente Barack Obama, e agradeceu o poderoso movimento de organizadores negros que lhe deram vitórias decisivas em cidades como Detroit e Filadélfia.
Biden também anunciou que nesta segunda-feira (9) vai indicar uma força-tarefa de cientistas para lidar com a pandemia. Duvido que chame o Osmar Terra, duvido que alguém ali seja demitido ou humilhado publicamente se decidir trabalhar, como aconteceu com Mandetta, Teich e Pazuello. Biden deve trazer os Estados Unidos de volta para o Acordo de Paris, que proíbe ministros como Ricardo Salles.
Enfim, o contraste com um país voltando ao normal fez a situação brasileira parecer ainda mais triste. As pessoas dançando nas ruas da Filadélfia não estão comemorando porque Trump foi “moderado pelo centrão”.
A única coisa na eleição americana que me lembrou o Brasil de 2020 foi a tentativa de Donald Trump, o candidato derrotado, de dar um golpe de Estado. Mas é aquilo, se Trump não fosse golpista, Bolsonaro não gostaria tanto dele.
Até o momento de entrega dessa coluna, Trump ainda não havia reconhecido sua derrota. Mentiu que a eleição foi fraudada, mentiu que teve mais votos do que Biden, enfim, “went full Jair”. Torce para que haja protestos de rua que forcem uma judicialização da eleição, e já escalou Rudolph Giuliani, o genro do Borat, para conduzir a batalha legal.
Deve dar errado. Lá não há hipótese dos militares aceitarem um golpe. O Partido Republicano é, no geral, um partido sólido que tem certo interesse na manutenção das regras do jogo. A rede conservadora Fox News não bancou a palhaçada.
Mas esse último crime de Trump contra a democracia pode ter consequências. O artigo de Patrícia Campos Mello publicado neste sábado (7) mostrou que o discurso da “eleição roubada” pode manter a base trumpista permanentemente radicalizada, com cada vez menos fé nas instituições. Os próximos dias devem ser importantes para medirmos a viabilidade desse discurso. Talvez o trumpismo sem poder pareça patético demais para sobreviver.
É possível repetir no Brasil de 2022 a fórmula vencedora dos democratas americanos? O governador Flávio Dino propôs exatamente isso, uma aproximação da esquerda e do centro para derrotar Bolsonaro. Dino tem razão, mas ainda não bolamos uma forma de fazer isso funcionar dentro do multipartidarismo brasileiro.
No Partido Democrata americano estão os equivalentes ideológicos de boa parte do PSDB brasileiro, toda a centro-esquerda e quase toda a esquerda. Sem a estrutura partidária para forçar a união, teremos que ser mais hábeis politicamente do que os americanos.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Alex Ribeiro: Derrota de Trump não afeta bolsonarismo
Mercado se anima com falso declínio do populismo de direita
As eleições americanas animaram o mercado financeiro na semana passada, com alta da Bolsa e queda dos juros e do dólar. Boa parte dos ganhos se deve à esperança de um comando dividido nos Estados Unidos, com Biden na presidência e o Senado sob controle republicano, que limita extravagâncias da esquerda democrata. Mas analistas citam uma força adicional: a derrota de Trump seria um revés para a onda global populista de direita, incluindo o bolsonarismo.
Embora tenha apoiado a eleição de Bolsonaro em 2018, o mercado financeiro, em geral, não gosta de populismo. A retórica ideológica do governo em áreas como meio ambiente, relações exteriores e saúde causa preocupação dentro da própria equipe econômica. Também gera inquietação a aproximação do presidente com o populismo fiscal. Por isso, o enfraquecimento do populismo de direita seria positivo para a economia e para os mercados financeiros.
O cientista político Christopher Garman, managing director para as Américas da Eurasia Group, discorda da tese de que a derrota de Trump representa um enfraquecimento do populismo de direita. Ele pondera que Trump superou as expectativas. As forças que, em primeira instância, levaram à ascensão do populismo de direita seguem presentes. E são independentes nos Estados Unidos e Brasil, por isso Bolsonaro não será afetado.
“O Trump se saiu bem, superou as pesquisas, demonstrou ser mais resiliente do que as pessoas estavam antecipando”, diz Garman, que cita a melhora de sua performance no votos dos latinos e dos afroamericanos nas cidades. A eleição foi decidida por alguns pontos percentuais em favor de Joe Biden em estados competitivos, em que se alternam vitórias democratas e republicanas. “Se não fosse pela forma desastrosa que lidou com a Covid 19, Trump teria sido reeleito.”
Uma pesquisa feita pelo Ipsos Public Affairs, uma empresa de opinião publica, mostra que às vésperas do pleito 28% dos eleitores consideravam o combate à pandemia como o principal tarefa do próximo presidente. Biden estava 14 pontos percentuais à frente de Trump quando se pergunta quem está mais preparado para lidar com a pandemia
O fato de Trump ter sido um candidato competitivo a despeito da sua incapacidade no tema prioritário para o eleitorado mostra como é forte a sua base de apoio. Garman diz que as forças que levaram à ascensão do populismo nos EUA seguem presentes.
“É o desencanto profundo de boa parte da população com o chamado sistema, com a mídia, com o judiciário, com a política tradicional”, afirma. “Os fatores que levaram a isso são o aumento de desigualdade de renda, cada vez maior, o distanciamento entre o desempenho econômico dos centros metropolitanos com a velha economia industrial e os centros mais dinâmicos, com a nova economia.”
A perspectiva não é muito animadora. A pandemia da Covid-19 deverá exacerbar essas desigualdades. A recuperação econômica se desenha no formato em “K”, com a volta mais forte da nova economia e o desempenho mais fraco do setor de serviços.
As enquetes de opinião pública mostram que os americanos estão muito divididos. Uma pesquisa da Ipsos revela que cerca de um quarto dos americanos (26%) apoiaria a continuidade de Trump no cargo no caso de ele perder a eleição e declarar que o resultado não é legítimo.
“Vejo mais polarização, não moderação. O partido Democrata está migrando para uma base mais liberal, progressista e, no partido Republicano, temos o recrudescimento da base trumpista e um presidente que permanece como uma sobra.”
Não deixa de ser paradoxal o fato de que Biden é a moderação em pessoa - um presidente multilateralista, inclinado ao diálogo e à convergência. Mas seria um erro tomar sua vitória como um sinal de crescimento dos moderados, assim como muitos acharam que Emmanuel Macron, na França, seria um sinal nessa direção. Macron foi um candidado de fora do sistema político convencional.
O Brasil é uma história completamente independente do que acontece nos Estados Unidos. A eleição de Bolsonaro está ligado a fatores locais que levaram a uma profunda descrença nas instituições e na política tradicional. A tese de Garman é que esse terreno fértil ao populismo surgiu com a ascensão da nova classe média, que ficou frustrada com a péssima qualidade de serviços públicos, como saúde, educação e segurança.
“É claro que o presidente Bolsonaro pode imitar, tomar lições do trumpismo, e teve muito disso”, afirma Garman. “Mas o fenômeno bolsonarista foi um desencanto profundo por razões domésticas, e não será o Trump fora do poder que vai mudar isso.” Ele propõe um contrafactual: se Hillary Clinton tivesse derrotado Trump em 2016, o presidente Bolsonaro não teria sido eleito?
Não se deve esperar uma moderação, no Brasil, do discurso ideológico do presidente. Bolsonaro migrou para o centro recentemente, mas foi apenas um recuo tático, diz Garman. “Ele não vai demitir o ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) nem o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) só porque o Biden foi eleito. Acho muito improvável que vá se acovardar para uma liderança mais de esquerda nos Estados Unidos e desagradar a base ideológica.”
O futuro eleitoral de Bolsonaro, diz Garman, dependerá do custo político que terá que pagar com o fim ou redução do auxílio emergencial e de como vai manejar o abismo fiscal no ano que vem, quando os estímulos fiscais que mantém a economia viva terão que ser retirados para retomar o ajuste das contas públicas. “O presidente Bolsonaro deve encontrar um quadro eleitoral bastante competitivo”, afirma. “Qual é a perspectiva de melhora dos serviços públicos em dois anos, com uma crise fiscal em Estados e municípios? O presidente Bolsonaro vai ter que lidar com a falta de melhora desses serviços público e a economia recuperando. O futuro político dele depende disso, não do que aconteceu com Trump.”
Fernando Gabeira: Uma ponte com o mundo
Vitória de Trump representaria a perda de esperança na sobrevivência da própria humanidade
Na noite das eleições pensei em ver um jogo da Copa do Brasil para não passar a noite em claro, sofrendo com algo que não posso influenciar. Trump ou Biden, Botafogo ou Goiás? Este último duelo tinha funcionado para embalar meu sono na semana anterior.
No entanto passei mais uma noite em claro. Afinal, há tanta coisa em jogo. Minha ideia dos Estados Unidos não se alterou. Como nunca fui lá, conecto-me pela cultura, e alguns pontos importantes do mapa são Nova York e a Califórnia. Nesses lugares, Trump foi derrotado de forma acachapante. Continuam, de certa maneira, familiares para mim.
O problema são as decisões tomadas em Washington. No dia anterior, os EUA formalizaram sua saída do Acordo de Paris, deixando os outros países com a enorme tarefa de adaptação ao aquecimento global.
Para os estrategistas, uma solução pró-Trump seria interessante para a China, pois acentuaria a decadência americana no mundo. Para mim, ela representaria a perda de esperança na sobrevivência da própria humanidade, deixando-nos com a alternativa de apenas lutar para que isso seja mais lento.
No meu país, seria um estímulo para que Bolsonaro e Salles acelerem a destruição dos recursos naturais e reduzam as chances de encontrarmos nossa moderna vocação econômica: a exploração sustentável da Amazônia, das fontes renováveis de energia, a abertura de milhares de empregos num projeto de recuperação verde.
Alguma coisa não funcionou na primeira noite. As pesquisas se equivocaram, e Biden não conquistou uma vitória esmagadora. Aconteceu o que todos anunciavam; Trump tumultuaria o processo e buscaria uma saída no tapetão. Ele, como todo mundo, sabia que a maioria dos democratas votou pelo correio e que esses votos demoraram a ser contados.
Independentemente do resultado, tudo isso me faz pensar no Brasil. Lá como aqui, a polarização domina o país. Lá como aqui, o populismo é muito mais resiliente do que pode parecer quando nos referimos apenas aos círculos intelectuais.
Antes de criticar as pesquisas que falharam, é importante registrar que algumas pessoas têm medo de revelar seu voto; outras o escamoteiam porque veem nos institutos de pesquisa um braço do sistema e de dominação, denunciado pelos populistas.
E, antes de criticar os democratas por terem esperado uma onda azul que não arrebentou na praia, é preciso estudar se existem alternativas para certas tendências humanas.
Como não se importar com os imigrantes ilegais, inclusive centenas de crianças separadas dos pais? Nem sempre os latinos legalizados são solidários com os ilegais. Nem sempre os negros se compadecem dos seus irmãos asfixiados até a morte pela polícia.
Na medida em que a vitória de Biden se anunciava de forma mais lenta que o esperado, Trump optou por entrar na Justiça e, de certa forma, tumultuar o processo. Isso preocupa não só pelos Estados Unidos. Trump é uma inspiração para Bolsonaro, que tem uma tendência a questionar resultado das eleições, até mesmo quando as vence.
Ha tantas lições a tirar deste momento que ele nos deixa uma tarefa para muito tempo. Mas é claro que o populismo de direita é enraizado na visão de mundo de seus seguidores, e não podemos subestimá-lo, mesmo diante da derrota eleitoral.
Aliás, a vitória nesse caso lembra-me a fala de um oficial no filme “A Guerra da Argélia”: “É muito difícil chegar ao governo, mas as dificuldades começam de verdade quando se chega lá”.
Biden é um homem com recursos oratórios modestos, mas realizou a tarefa de ser o candidato mais votado da história americana. O panorama que encontra diante de si é minado não só pela pandemia, crise econômica, mas também pelo legado do populismo. Desconfiança nas instituições, notícias falsas, teorias conspiratórias, divisão profunda na sociedade, tudo isso modela um caminho muito difícil de transpor.
Muito mais que a paciência e a unidade necessárias para derrotar o populismo de direita, será necessário construir pontes, apesar dos sabotadores que as explodem com frequência.
A primeira e grande ponte será com o próprio mundo, voltar ao esforço multilateral, reconhecer a importância do trabalho conjunto para enfrentar o grande desafio planetário. A volta ao Acordo de Paris e a reconstrução verde da economia americana seriam um grande começo.
Alon Feuerwerker: O que decidiu: a pandemia e George Floyd
Donald Trump ainda não aceitou a derrota, é possível que a luta nos tribunais se arraste, mas a contagem puramente numérica dos votos aponta vantagem decisiva de Joe Biden, o presidente aritmeticamente eleito dos Estados Unidos. A surpresa foi, e ainda vem sendo, a tensão nas apurações, tensão de origem mais política que aritmética. Causada principalmente pelo ineditismo do número de votos pelo correio. “Culpa” da Covid-19.
A luta pelo poder nos Estados Unidos interessa ao mundo, por razões óbvias. Para nós aqui, será particularmente útil tentar fazer alguma análise mais aprofundada, dado o sabido paralelismo entre as duas correntes atualmente no governo nos dois países. Saber o que aconteceu, ou não, por ali, pode dar algumas pistas de eventuais desdobramentos no Brasil nas eleições presidenciais de 2022.
Em primeiro lugar, deve-se notar que Donald Trump não sofreu erosão na sua base desde que se elegeu. Ao contrário, está recolhendo algo da ordem de sete milhões de votos a mais do recebido quatro anos atrás. A maciça campanha democrata pelo voto parece, curiosamente, ter atingido positivamente também o adversário. O problema de Trump: Biden vem recebendo cerca de nove milhões de votos a mais que Hillary Clinton em 2016.
Esse é outro sinal de que Donald Trump caminhava para uma reeleição, se não tranquila, ao menos bastante provável, antes de dois acontecimentos: a pandemia da Covid-19 e a morte de George Floyd. Ambos desencadearam dois movimentos no eleitorado: uma imparável onda pelo registro eleitoral de votantes pretos e um sentimento de urgência que ajudou a convergência de todos os potenciais adversários do incumbente.
As pesquisas ao longo do ano sempre registraram uma tendência dominante de desaprovação, da ordem de 50%, mas um contingente sólido entre 40% e 45% de aprovação para Trump. Bastaria ao presidente, portanto, manter coesa sua base e impedir que a maioria desaprovadora se agrupasse em torno do adversário. Era possível, mas a maneira como enfrentou a pandemia e a morte de Floyd catalisaram com violência a convergência dos opositores.
Poderia ter acontecido sem esses dois fatos? A dúvida ficará. Há alguns meses, o Partido Democrata vinha dividido, pulverizado numa disputa interna sem luz no fim do túnel e com suas alas divididas. Ao final, convergiu para uma solução convencional, contra uma alternativa que se dizia abertamente de esquerda. Mostrou-se adequado. Teria sido assim não fossem os acontecimentos extraordinários que se seguiram? De novo, jamais se saberá.
E no Brasil? Jair Bolsonaro chegará a 2022 com um desafio parecido ao de Trump em 2020: impedir a convergência dos votos que não são em princípio bolsonaristas. Ao contrário dos Estados Unidos, a dispersão partidária por aqui ajuda. E é possível, provável, que até lá a pandemia tenha sido em grande medida controlada. E os conflitos raciais não parecem ter por aqui, até agora, o impacto eleitoral dali.
Qual será o fator decisivo daqui a dois anos? Uma candidata forte vai ser a economia. Mas, como os Estados Unidos acabam de comprovar, nunca é bom subestimar o imprevisível. Ele é sempre muito difícil de prever.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Dorrit Harazim: O despejo
É quase humilhante constatar que, por quatro anos, mundo civilizado conviveu com um delinquente na Presidência dos EUA
Foram 1.460 dias. É quase humilhante constatar que, por quatro anos, o mundo civilizado sobreviveu e conviveu com um delinquente cívico na Presidência dos Estados Unidos. E essa eternidade não acabou: ao se confirmar sua derrota, Donald Trump dispõe de outras 11 semanas para minar com ferocidade vingativa o funcionamento da máquina governamental até a posse de Joe Biden em janeiro. Esse serviço de porão já foi iniciado. Na última semana de outubro, de forma atipicamente silenciosa, Trump lascou sua assinatura num documento de nome quase esotérico: “Ordem Executiva sobre a Criação do Nível F no Serviço Protegido”. Tradução: pelo novo decreto, uma vasta gama de postos federais passam a ser designados como “cargos de confiança e de formulação de políticas”. Poderão perder o direito à estabilidade que sempre tiveram como servidores de carreira. Esses milhares de funcionários que trabalham e analisam fatos — cientistas e juristas, médicos, economistas — seriam repassados a essa nova categoria F. Inversamente, os nomeados políticos de Trump passam a integrar a classe dos funcionários, com estabilidade e tempo para travar a máquina do futuro governo Biden.
Mas isso são meras migalhas. Atual e alarmante é a combustão do ocupante da Casa Branca, entrincheirado com sua bílis por ter acreditado nas próprias fake news. Na última “New Yorker”, a jornalista Jane Mayer escreve sobre a possibilidade de Trump, quando perder a imunidade, vir a ser preso. Mayer inicia a reportagem com uma cena histórica — a de um presidente dos EUA em pânico dando ordens descontroladas e exigindo dos assessores uma lista de escapatórias. Sem ser particularmente religioso, o chefe da nação cai de joelhos e passa a rezar alto; soluça, bate com os punhos no tapete e grita “O que que houve?”. O chefe de gabinete acha prudente chamar a equipe médica e ordena o confisco de todos os tranquilizantes, para afastar a possibilidade de suicídio. Tudo isso aconteceu de fato na Casa Branca de Richard Nixon, no verão de 1974, e está narrado con gusto pela dupla Bob Woodward-Carl Bernstein em “Os últimos dias”.
Mas Trump não é Nixon — nem na formação intelectual (sim, Nixon tinha sólida formação, o que não deve ser confundido com caráter), nem na índole, nem no reconhecimento da existência de um estado de direito. Nixon nunca foi mimado, tinha medo da vergonha, do opróbrio público. Trump tem medo da humilhação social. São coisas muito distintas. Para o Narciso-em-Chefe na Casa Branca, a ideia de ser perdedor, ou de parecer perdedor, o obrigaria a desprezar a si mesmo — e essa possibilidade inexiste. Parecem nulas as chances de Trump jamais vir a “vestir calça de menino que cresceu e congratular o vencedor”, como sugeriu Jim Kenney, o prefeito democrata da Filadélfia. Mesmo que, ao final da tortuosa apuração dos votos, o resultado lhe tenha sido desfavorável, Trump quer parecer indestrutível aos olhos de seus devotos.
A nação de quase 63 milhões de eleitores que o elegeu em 2016 cresceu e se multiplicou para 70 milhões em 2020. “Me sinto seguro ao garantir que Donald Trump estará entre os candidatos à eleição em 2024”, lançou de Dublin o seu ex-chefe de gabinete e atual enviado especial à Irlanda do Norte, Mick Mulvaney. Não sem razão: em quatro anos Trump conseguiu moer a cúpula partidária em massa de manobra. À exceção de John McCain, que já morreu, não sobrou nenhuma figura de porte nacional. Viraram moluscos. O vice-vassalo Mike Pence só existe enquanto Trump existir. Mesmo derrotado, Donald Trump pretende continuar representando o partido que já teve “Honest Abe” (apelido e sinônimo de Abraham Lincoln) como primeiro presidente republicano.
Ainda assim, e independentemente de quando e como o resultado for referendado, a extraordinária catarse democrática que deu a Joe Biden a maior votação da história do país — mais de 4 milhões acima da de Trump — será um marco indelével. O colosso americano parece ter despertado de uma longa noite de quatro anos para redescobrir o valor de cada voto e o júbilo de votar.
Recompor uma nação separada por duas realidades, duas visões de si e dois conjuntos de fatos poderá levar uma geração inteira. Perdeu-se o conhecimento básico que um cidadão americano acreditava ter do outro. O escritor e colunista Anand Giridharadas, americano nascido na Índia, aponta para a oportunidade de os Estados Unidos aprenderem a real história do país. Hora de aceitar que a visão de James Baldwin da sociedade americana nunca foi radical. Se para nada mais serviu o ano de 2020, ele ao menos consolidou a urgência dos Estados Unidos se reconhecer como nação onde não basta ser não racista. É preciso aprender a ser antirracista.
O radical de hoje é Donald Trump. Por quatro anos, ele comandou uma nação incapaz de deliberar seu futuro baseada numa mesma fonte de fatos. Joe Biden chega para iniciar a longa jornada de retorno, senão à normalidade, pelo menos à sensatez quando diz: “Não cabe a mim nem a Donald Trump declarar quem venceu a eleição. Esta é uma decisão do povo americano”.
Para Trump, a questão do despejo é inconcebível. A única transição de poder que aceita é dele para ele mesmo. Talvez precise de monitoramento.