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Sergio Fausto: Lições para o Brasil da eleição nos Estados Unidos

A mais óbvia: há que construir uma ampla coalizão e tirar votos do campo adversário

O título deste artigo deve ser lido com um pé atrás. As características do sistema partidário e do processo eleitoral são muito diferentes nos dois países. Ainda assim, a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump deixa lições úteis para as forças de oposição ao governo Bolsonaro.

A mais óbvia delas é a necessidade de construir uma ampla coalizão e subtrair votos do campo adversário. Quando o país está praticamente dividido em duas metades iguais, não basta contar com todos os votos do seu próprio campo político para assegurar a maioria eleitoral. Nos Estados Unidos, a questão se colocou de imediato e influenciou as próprias primárias do Partido Democrata. Aqui, imagina-se que esse seja um problema para o segundo turno. Trata-se de um engano. Em sociedades destrutiva e perigosamente polarizadas, é preciso construir uma alternativa já para o primeiro turno.

Como a chapa Joe Biden-Kamala Harris conseguiu obter apoio maciço de sua base política e, ao mesmo tempo, captar votos de quem havia votado em Trump quatro anos atrás? A escolha dos personagens importa. A soma das características políticas e pessoais dos candidatos democratas explica em boa medida o sucesso da campanha do partido para a Casa Branca: ele, um político capaz de ser aceito, mesmo sem entusiasmo, por um amplo contingente de eleitores; ela, uma mulher negra que, sem puxar a chapa muito para a esquerda, acrescentou à dupla a marca identitária valorizada pelos eleitores mais jovens e “progressistas”. E mais: ele, um homem crivado pela tragédia, pai amoroso, querido pela mulher, pelos amigos e mesmo por muitos adversários, por sua simpatia natural; ela, uma filha de imigrantes que se integrou ao establishment por trabalho e mérito, ex-procuradora geral da Califórnia, “liberal” nos costumes, porém “firme” em matéria de lei e ordem.

Mas na política, como nas artes cênicas, não basta escolher os personagens, é preciso criar o enredo. Ou melhor, é necessário que atores e narrativa sejam congruentes entre si e adequados ao momento. A campanha democrata produziu uma mensagem feliz para definir o que estava em jogo: a battle for the soul of America (uma batalha pela alma dos Estados Unidos). Feliz porque permitiu uma conexão emotiva dos eleitores com a campanha e estabeleceu o terreno onde o Partido Democrata pretendia jogar o jogo: o campo dos valores e do caráter. A ressonância religiosa do slogan é evidente. Bela sacada num país, como o nosso, em que o sentimento religioso é estendido e profundo.

Ao contrário dos republicanos, os democratas não mobilizaram a religiosidade para demonizar o adversário, mas sim para convocar “our better angels” (os nossos anjos bons, em tradução livre) a enfrentar os desafios do país. Não foi uma campanha, como a de Trump em 2016, para insuflar a raiva e o ressentimento, e sim para assoprar a chama do “melhor lado de todos os americanos e americanas”. Foi uma campanha contra Trump, mas não contra os seus eleitores, referidos sempre como “fellow americans” (compatriotas), e não como “a basket of deplorables” (um monte de gente deplorável, como disse Hilary Clinton em 2016).

A batalha pela alma dos Estados Unidos pôs na linha de frente alguns poucos valores básicos – decência, civilidade, solidariedade, etc. – e os traduziu em termos concretos nas propostas de fortalecimento da proteção social (saúde, em particular), transição para uma economia de baixo carbono (com geração de renda e empregos) e luta contra o racismo estrutural (apresentada como uma luta pela igualdade). Dessa maneira projetou uma visão contrastante com a de Trump sobre o que são e o que podem ser os Estados Unidos, capaz de ser compreendida e reproduzida pelo eleitor comum.

Cada país é um país, cada eleição é uma eleição. Faltam dois anos para a próxima eleição presidencial no Brasil. É muito ou pouco tempo? Depende para quê. Para escolher os personagens é muito, mas para criar o enredo está mais do que na hora de começar. Num país com vários e pouco estruturados partidos, onde o personalismo impera, a escolha dos personagens consome tempo e energia excessiva em prejuízo do que deveria ser o essencial, principalmente a esta altura: com base em que valores, em torno de que propostas e por meio de que mensagem política é possível formar uma aliança de forças suficientemente ampla e consistente para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo e governar o País a partir do próximo mandato presidencial?

Para ajudar na resposta recorro à sabedoria alheia. Perguntado num jantar com “representantes da sociedade civil”, cada qual com sua bandeira, sobre como deveria ser o programa de uma “frente progressista” em 2022, um governador de Estado, relativamente jovem, mas macaco velho na política, respondeu: deve ser mínimo, conter apenas o essencial e falar aos corações e mentes do brasileiro comum, homens e mulheres, pretos e não pretos, cristãos e não cristãos, homo e heterossexuais, na condição de cidadãos brasileiros.

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP


O Estado de S. Paulo: Pessimistas sobre luta jurídica, aliados de Trump já falam em volta em 2024

Assessores admitem privadamente que batalha judicial é uma miragem e oficialização da vitória de Biden é uma questão de tempo; para arrecadar fundos, presidente criou comitê que deve ser usado para manter o Partido Republicano em suas mãos 

WASHINGTON - Enquanto o presidente eleito dos EUAJoe Biden, recebe ligações de líderes mundiais e monta seu gabinete, Donald Trump segue encastelado na Casa Branca. Após seis dias sem ser visto publicamente, ele foi ontem a um evento no Cemitério de Arlington, no Dia do Veterano, mas não falou com a imprensa. Privadamente, seus aliados mais próximos admitem que a batalha legal é uma miragem e muitos já falam em lançá-lo como candidato em 2024

Trump desafia sua derrota na Justiça em seis Estados – até agora, nenhuma ação relevante foi adiante. O fracasso levou seus principais aliados, entre eles Ronna McDaniel, presidente do Partido Republicano, Corey Lewandowski, ex-chefe de campanha, e Mark Meadows, seu chefe de gabinete, a reconhecerem, em conversas privadas, que a oficialização da vitória de Biden é menos uma questão de “se” do que de “quando”.  

Por isso, alguns republicanos importantes já apoiam a ideia de uma nova candidatura em 2024, apesar de insistirem publicamente que a eleição “não acabou”. A 22.ª Emenda da Constituição diz que um presidente só pode ser eleito duas vezes. Na história recente, dois perderam a reeleição, mas não se candidataram de novo: Jimmy Carter, em 1980, George Bush pai, em 1992. 

Após Joe Biden ser declarado vencedor das eleições, Trump criou um comitê de ação política, uma espécie de fundação autorizada a arrecadar fundos que podem ser gastos em viagens, pesquisas e propaganda política. O objetivo é garantir sua influência e manter o Partido Republicano em rédeas curtas, mesmo fora da Casa Branca. 

“O presidente sempre planejou fazer isso, ganhando ou perdendo”, afirmou Tim Murtaugh, porta-voz de sua campanha. “A ideia é apoiar candidatos e questões que lhe interessam, como o combate à fraude eleitoral.”

Muitos aliados já sugerem abertamente que Trump concorra novamente. “Eu o encorajaria seriamente a pensar no assunto”, disse o senador Lindsey Graham à Fox News Radio. Mick Mulvaney, ex-chefe de gabinete da Casa Branca, disse não “ter dúvidas” de que ele será candidato em 2024. “Acho que o presidente continuará envolvido na política e estará na lista de candidatos que concorrerão em 2024”, disse. Segundo o site de notícias Axios, dois assessores teriam ouvido do próprio Trump a intenção de se candidatar outra vez. 

O desafio, no entanto, é grande. Paul Waldman, colunista do Washington Post, acredita que Trump deixará sempre subentendida a chance de se candidatar para não perder a atenção da mídia e da base de eleitores. No entanto, ele precisará vencer vários obstáculos. 

O primeiro é a Justiça. O presidente enfrenta investigações criminais em Nova York por fraude e sonegação. O segundo são as dívidas. Ele tem centenas de milhões de dólares em empréstimos que vencem no ano que vem – e suas empresas devem precisar de dinheiro. Por fim, haverá concorrentes dentro do partido, esperando para herdar o espólio de Trump, que terá 78 anos em 2024. / W.Post 


RPD || Rubens Ricupero: Decifrando as lições da eleição americana

A extrema direita sofreu um golpe notável ao perder o controle do poder na maior potência do mundo e a união de todas as forças progressistas e de centro foi o que permitiu a derrota da Trump, avalia Rubens Ricupero

Muito do que se predisse da eleição americana não se realizou. Mais uma vez as pesquisas se enganaram feio, a mídia voltou a subestimar Trump, a onda Democrata se revelou uma marolinha. Os Democratas não conquistaram o Senado (até agora), perderam espaço na Câmara, não ganharam na Flórida nem no Texas.  

Qual foi o efeito eleitoral do alinhamento de Trump ao programa Republicano de reduzir impostos para os ricos e tentar derrubar o Obamacare? Essa traição das promessas da campanha explicaria sua derrota em Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. Como entender, então, que, em West Virginia, bastião de brancos pobres, ele tenha vencido por 7 a 3?    

Teremos de esperar análises da classe social dos eleitores para ver até que ponto se manteve fiel a Trump o setor de operários industriais brancos prejudicados pela globalização.

Biden afirma que a eleição foi uma disputa pela alma da América. Nesse caso, o resultado indica que o país teria duas almas. Uma, urbana, moderna, educada, das grandes cidades das costas Leste e Oeste, foi conquistada por Biden. A outra, conservadora, com menor grau de educação, das zonas rurais e pequenas cidades do Oeste, Sul e Meio-Oeste, permaneceu com Trump.  

O crescimento da economia e do emprego antes da pandemia ajudou o governo. Já o fiasco em lidar com a Covid-19 o prejudicou amplamente, embora não seja claro que tenha alienado os idosos, como se antecipava na Flórida.  

O acirramento do conflito racial em torno dos protestos do “Black Lives Matter” mobilizou o eleitorado negro. Ao mesmo tempo, a violenta destruição de estátuas e as demandas radicais de corte nos recursos das polícias ocasionaram reação adversa de medo e ressentimento.    

Essa enumeração incompleta dos fatores que influíram sobre os resultados serve para mostrar o risco de extrapolar para realidades diferentes o que deriva das especificidades americanas. Feita a ressalva, que lições de interesse geral seria possível extrair da derrota de Trump?

A primeira talvez seja sobre o autoritarismo de extrema direita, que dava a impressão de onda irresistível do futuro. Embora tenha revelado resistência insuspeitada, é indiscutível que sofreu golpe notável ao perder o controle do poder na maior potência do mundo. Movimentos similares na Europa, no Brasil e outras regiões tampouco se saíram bem na pandemia, o que sugeriria que o pico da tendência está ficando para trás.  

A segunda conclusão decorre do exemplo. O que permitiu derrotar o apelo populista de Trump foi a união de todas as forças progressistas e de centro. Sem o apoio de Bernie Sanders e de Elizabeth Warren, num extremo, e de Republicanos desiludidos, no outro, teria sido difícil vencer. Esse é um dos méritos do bipartidarismo americano, que obriga a concentração de forças rivais no seio de coligações heterogêneas.  

Em comparação, o sistema brasileiro de múltiplos partidos e eleição em dois turnos atua em sentido oposto, estimulando a dispersão de candidaturas no primeiro turno, o que dificulta e deixa pouco tempo para a união no segundo.  

Uma terceira observação tem a ver com o tipo de vínculo quase religioso que une o líder carismático a seus fiéis fanatizados. Trump não trouxe de volta empregos industriais perdidos para a China, não reduziu o déficit comercial, não reverteu o declínio do carvão, fracassou na luta contra a pandemia.  

Nada disso impediu que seu núcleo de apoio continuasse leal. É que o carisma depende muito mais da identificação entre líder e seguidores que dos resultados concretos das políticas. Haveria nisso alguma lição para os que descansam na crença de que o fiasco econômico de Bolsonaro bastará para derrotá-lo?

A conclusão mais importante para nós de fora se refere ao potencial que a eleição de Biden tem para mudar o mundo, muito mais que mudar os Estados Unidos. Na esfera interna, não será fácil, sem controlar o Senado, aumentar impostos das corporações, aprovar pacote trilionário de estímulo, alterar a ideologia da Suprema Corte.

Já na área externa, Biden terá mais latitude para voltar ao Acordo de Paris, converter o meio ambiente em prioridade central, liderar a busca de vacina na OMS, convocar a prometida Cúpula em favor da Democracia, restituir à diplomacia e ao multilateral o papel central na política externa. Se não fizer mais nada, já terá transformado a agenda mundial de modo decisivo.  

*Rubens Ricupero é jurista, historiador e diplomata brasileiro com proeminente atividade de economista. É presidente honorário do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, sediado em São Paulo.


Roberto DaMatta: Uma vitória da democracia

Donald Trump foi derrotado pelo seu desprezo pelos valores democráticos – diferenças devem igualar e não construir muros

Na véspera de minha primeira viagem aos Estados Unidos, em 1963, recebi de Dick Moneygrand – que iniciava suas pioneiras pesquisas no Brasil – um conselho inesquecível. “Na América – recomendou – faça sempre o contrário do que manda o seu brasileiro coração. Coma a pizza com a mão; não se preocupe com desodorantes, mas pinte o cabelo; obedeça ao que estiver escrito, jamais encoste a mão no seu interlocutor e não olhe fixamente para uma mulher bonita. Seja compulsivamente pontual e, acima de tudo, note bem – recomendou meu amigo com ênfase –, acalme-se quando sua reclamação for importante. Quanto mais difícil for o seu problema, mais calmo você deve ficar. Lembre-se de que, nos Estados Unidos, não existe o vosso nervoso e recorrente ‘Você sabe com quem está falando?’”

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O narcisismo e a base teatral da arrogância de Donald Trump me fez supor que Joseph Biden seria derrotado. Afinal, dizia meu julgamento cultural brasileiro, ele é idoso, é muito controlado e enfrenta uma dura polarização. Puxando, porém, pela memória, me lembrei de como os americanos enfrentaram polarizações muito mais tenebrosas como, em 1860, a Guerra Civil; na década de 50, o macarthismo fascista; em 1960, o movimento pelas liberdades civis, e outros eventos nefastos com decisiva serenidade democrática.

Talvez a quietude seja um traço cultural puritano que obriga a aprender com os erros, convoca calma diante da pressa, resistência diante da agressão e controle diante do nervosismo. Um otimismo e uma confiança que a nossa ética da malandragem e do jeitinho trata como ingenuidade. Mas foi como eles reagiram a Pearl Harbor, ao assassinato de John Kennedy, ao terrorismo das Torres e, agora, diante da presidência etnocêntrica e antiglobalista de Donald Trump.

Trump sabe agora que não foi eleito rei, mas presidente. Conforme os recém-eleitos enfatizaram nas suas falas inaugurais, eleitos recebem periodicamente mandatos. Tarefas legitimadas pelo voto.

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Algo jamais discutido no Brasil, onde os eleitos literalmente não inauguram, mas “tomam posse” de cargos que garantem a impunidade e facilitam o enriquecimento. No Brasil, os eleitos pelos pobres ficam imensamente ricos. Além disso, esquecem seus compromissos e atuam pessoalmente. Tal como Bolsonaro, eles se comportam de modo absolutista, olvidando que mandato não é fidalguia.

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Donald Trump foi derrotado pelo seu desprezo pelos valores democráticos – diferenças devem igualar e não construir muros e, acima de tudo, a preocupação com o planeta e não apenas com o seu poderosíssimo país.

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Essa vitória da democracia americana renovou em mim a crença nos ideais perdidos. Os únicos, aliás, pelos quais vale a pena lutar. Foi como um escutar da inteligência. Sobre isso, diz Thomas Mann: “O intelecto humano é fraco comparado com a vida instintiva do Homem. Mas há algo especial nessa fraqueza – a voz do intelecto é suave, mas ela não descansa antes de ter adquirido ouvidos. No fim, depois de inúmeras e repetidas rejeições, ele os encontra”.

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Tive a tentação de chamar essa crônica de “Mister Biden goes to Washington” (O senhor Biden vai a Washington) porque a vitória de Biden&Harris tem sido valorizada pelo recalcitrante narcisismo de um Trump que rejeita o princípio da realidade e não aceita a derrota. A dramaticidade da vitória levou-me ao filme de Frank Capra, realizado em 1939. No filme Mr. Smith Goes to Washington conta-se como um ingênuo senador suplente chega à capital das tramoias e dos cínicos realistas para derrotar com sua inocente integridade (toda integridade é inocente) um político corrupto e restabelecer valores adormecidos.

Quando ouvi o emocionante discurso de Kamala Harris – negra, filha de imigrantes, mãe indiana e pai jamaicano, educada naqueles Estados Unidos que reencarnavam a América –, veio-me a lembrança de um rapaz de Niterói que, graças à filantropia, foi estudar em Harvard e lá foi tratado como um igual. Daí ao filme de Capra foi um passo, pois rememorei o seu espírito e, na sua obra, a marca democrática dos que torcem pela igualdade como eu. Aquele momento foi, não tenho a menor dúvida, editado por Capra. Era a vida imitando no campo sujo da política, a arte; ou era o ideal democrático fundado em eleições a afirmar que existem ideais?

*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’


Monica De Bolle: O governo Biden

Há razões para ver no governo Biden o começo de um ciclo de restauração do conhecimento das ciências

Sim, já devemos pensar no governo de Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos, independentemente dos esperneios de Trump e da hipocrisia do Partido Republicano. Sim, a tentativa de judicialização e contestação das eleições estarão conosco por um tempo. Mas as margens alcançadas por Biden em todos os Estados onde venceu são largas demais para serem revertidas. A matemática é inexorável. Também não é razoável supor que no complicado sistema norte-americano, em que as eleições para presidente são indiretas, haverá revoltas no colégio eleitoral que culminarão na decisão das eleições por parte da Câmara. A margem de Biden no voto popular e a solidez institucional dos Estados Unidos – ela ainda existe a despeito de Trump – tornam esse cenário quase fantasioso. Portanto, a pergunta é pertinente e oportuna: o que se deve esperar do governo Biden?

O discurso da vitória que o presidente eleito proferiu de Wilmington, sua cidade natal, na noite do último sábado, à nação fornece-nos algumas pistas. Nele, Biden deixou claro que não haverá recuperação econômica caso não exista um plano de combate à pandemia. Além de afirmar a predominância da crise de saúde pública sobre qualquer outro tema, a declaração do presidente eleito deixa em evidência, assim, quais serão as prioridades de seu governo e a ordem delas. Essas impressões se confirmam pelos próprios atos do presidente eleito no pouco tempo que se seguiu. Após a vitória declarada no fim de semana pondo fim a dias de apuração sob escrutínio e ansiedade de todo o mundo, a primeira ação de Biden foi nomear um conselho de especialistas e cientistas para ajudá-lo a reverter o descalabro norte-americano. Há vários dias são registrados aqui nos EUA mais de 120 mil casos diários de covid-19, os hospitais em algumas localidades do país estão chegando à sua capacidade máxima, os óbitos superam a marca de 1.000 por dia. Nesse ritmo, não tardará para que se alcance a marca de 200 mil casos por dia, como têm advertido vários infectologistas de renome.

Biden assumirá a Presidência em 20 de janeiro de 2021, momento em que, por força do descaso do governo Trump, a epidemia provavelmente estará em seu ápice – e isso contando as duas ondas anteriores de disseminação do vírus no país. A boa notícia, entretanto, é que até lá é provável que se tenha clareza sobre o sucesso das vacinas no último estágio de ensaios clínicos, antes que elas possam ser autorizadas para a comercialização. O recente anúncio da Pfizer sobre os resultados preliminares de sua vacina em colaboração com a BioNtech é promissor por várias razões. A principal delas é o uso de uma parte da mesma proteína do vírus – codificada no material genético da vacina – que vem sendo usada para o desenvolvimento de outras vacinas. Ou seja, se a vacina da Pfizer de fato tiver a eficácia comprovada nas próximas semanas, é razoável supor que outras vacinas também apresentarão eficácia, ainda que em níveis diferenciados. Portanto, a primeira metade do governo Biden pode vir a ser marcada pela resposta bem-sucedida à pandemia, com o auxílio das vacinas que serão distribuídas ao longo de 2021 e 2022. Caso tudo corra bem, o presidente eleito chegará no meio de seu mandato com um legado definitivo.

Tal legado terá grande influência nas eleições para o Congresso em 2022, com ou sem trumpismo residual ou escancarado. Nos EUA, há eleições a cada dois anos, e em 2022 será eleita nova Câmara e um terço do atual Senado. Se Biden conseguir dar cabo do vírus até lá, a chance de que obtenha um Congresso de maioria democrata será concreta. Nesse cenário, poderá pôr em andamento sua agenda legislativa com vistas aos planos de infraestrutura verde, fortalecimento das redes de proteção social nos EUA, reconfiguração do sistema de saúde, cujas falhas ficaram tão visíveis ao longo da pandemia.

Soa bom demais para ser verdade? Talvez. Mas a política e, por conseguinte, a história não são feitas apenas de obscurantismo, negacionismo, terraplanismo e outros “ismos” nefandos. A política e a história também são espaço do imprevisto, do imponderável, de grandes construções, de avanços e do término de ciclos de horror cujo fim muitas vezes não vemos e temos mesmo dificuldade de imaginar. Há razões para crer que o ciclo do trumpismo esteja no início do fim . Há razões para ver no princípio do novo governo o começo de um ciclo de restauração do conhecimento, das ciências – todas as ciências –, da verdade, isto é, a promessa que a política também nos oferece, para além do horror. Torçamos para que essa promessa também retorne ao Brasil em pouco tempo.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Sérgio C Buarque: E agora, Jair?

Trump se foi, você ficou só, a fonte ideológica secou, e você já não sabe o que dizer. E agora, Jair? As mentiras falharam, o grito murchou e você ficou mudo. Jair, o seu grande líder esperneia, ameaça e protesta, mas o povo, Jair, o povo norte-americano mandou Trump embora. Ele tentou, Jair, tentou desmoralizar as instituições norte-americanas, como você gosta de fazer no Brasil, atacou e caluniou a imprensa durante todo o seu governo, como você também faz aqui, Jair. Ele tentou desqualificar o processo eleitoral com denúncias falsas de fraude, tudo que ele sabe fazer. Mas ele fracassou, Jair. E tudo indica que este fracasso sinaliza o seu próprio futuro. E agora, Jair?

O ciclo desastroso de Trump acabou, Jair, a manifestação democrática do povo norte-americano desmontou o obscurantismo trumpista e desmanchouo caricato topete do arrogante ex-presidente. Com a vitória de Biden, acabou a inspiração para o seu negacionismo e os seus discursos debochados e reacionários. Jair, você é órfão político de um ídolo de pés de barro, um santo de pau oco cheio de dinheiro falso, um ídolo que nunca deu a menor atenção às suas desvairadas pretensões. Você imitou uma caricatura de líder político que se alimenta do confronto e do ressentimento, destilando ódio e distribuindo ameaças com os adversários e, mesmo, aliados.

Como fica agora a sua política externa, Jair, baseada que foi na obediência cega e na reverência humilhante ao pesadelo norte-americano, como fica agora que seu ídolo despencou. Você está só, Jair, seus alicerces ruíram. Como dizia Drummond no poema que inspira este artigo, “tudo acabou, tudo fugiu, tudo mofou, e agora” Jair? Qual será a posição do seu governo em relação à China, maior parceiro comercial do Brasil que você esnobou, que você agrediu, preferindo apoiar e imitar Trump nas acusações levianas culpando a China pela propagação do vírus?

E o Acordo comercial do MERCOSUL com a União Europeia que você ignorou, enquanto se entregava às promessas de um mentiroso contumaz? Como vai lidar com esta grande oportunidade comercial? E agora, Jair, como seu governo tratará o meio ambiente e a Amazônia uma vez que a sua irresponsabilidade ambiental já não encontra amparo nos Estados Unidos? Parece que você vai ficar falando sozinho, Jair, contra o globalismo e a ciência, contra o fantasma do comunismo, contra as instituições da República e, principalmente, contra a imprensa brasileira. Você está só, Jair.


Francisco Góes: Biden traz os EUA de volta ao ‘velho normal’

Brasil corre o risco de ficar isolado se não rever suas posições de política externa

A vitória de Joe Biden nos Estados Unidos criou a expectativa de uma nova abordagem do governo americano em relação às instituições multilaterais e aos acordos de comércio. Se espera que o presidente eleito ajude o país a voltar a uma situação de “normalidade” quando se trata da inserção dos EUA em um sistema de cooperação internacional que eles mesmos ajudaram a criar e que foi sistematicamente torpedeado por Donald Trump nos últimos quatro anos.

O papel ativo de Biden em favor do multilateralismo, para fortalecer o trabalho conjunto dos países em áreas como sustentabilidade ambiental, saúde e comércio, não vai evitar, porém, que os Estados Unidos continuem a aplicar medidas pontuais de proteção para setores da economia americana.

“É preciso ter clareza de que, independentemente de o governo ser republicano ou democrata, os EUA sempre vão defender o que é percebido como interesse comercial do país, o que leva em conta lobbies de setores”, diz a economista Sandra Rios, diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes).

Uma diferença importante agora, no entanto, é que os EUA vão fazer a transição de um governo declaradamente protecionista e antiglobalização, sob o comando de Trump, para uma administração que tem apreço pelos mecanismos de concertação internacional, visão essa reforçada nos próprios discursos de Biden.

“Não é que o Brasil e o comércio exterior brasileiro vão ter vida fácil com Biden”, diz Sandra. Mas, na visão dela, o presidente eleito americano pode ajudar a criar novas condições para o sistema multilateral e para o comércio global, mudanças essas que também podem ser positivas para o próprio Brasil.

Historicamente, nos EUA, os democratas sempre foram vistos como mais protecionistas em matéria de comércio que os republicanos. Essa ideia se vincula ao fato de que a visão de economia dos republicanos sempre foi mais liberal e menos intervencionista, o que combinava com uma política mais “pró-comércio”, diz Sandra. Mas mesmo em governos republicanos houve medidas de proteção a determinados setores como no caso do alumínio e do aço. Também houve casos de aplicação de medidas antidumping e de direitos compensatórios para setores independentemente do viés político (democrata ou republicano).

A novidade com Trump foi ter incorporado o protecionismo ao discurso. Passou a ideia de que exportar era bom e importar era ruim, uma vez que contribuía para destruir empregos da indústria americana. Houve também a adoção de medidas unilaterais, muitas delas em desacordo com compromissos assumidos na Organização Mundial do Comércio (OMC). Prevaleceu o uso da força, do poder econômico, para implementar essa agenda, diz Sandra.

Com Biden, espera-se uma guinada a começar, por exemplo, pelo retorno dos EUA ao Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, do qual o país saiu por decisão de Trump. Outro tema pendente é a reforma da OMC, que deve avançar a partir da chegada de Biden ao poder. Os americanos têm interesse em mudar alguns dos instrumentos da organização com os quais não se sentiam confortáveis já no fim da administração de Barack Obama, como é o caso do Órgão de Solução de Controvérsias.

Também há expectativa de que os EUA voltem ao Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês), o que pode ter impactos negativos para os produtos brasileiros uma vez que a exportação do Brasil para os países do acordo, sobretudo no agronegócio, concorre com itens vendidos pelos EUA.

Ainda será preciso ver como o Brasil se posiciona frente a essas mudanças esperadas pela comunidade internacional e também diante da própria administração Biden, sobre a qual Bolsonaro “calou” desde que os resultados eleitorais mostraram a vitória do democrata no fim de semana. Desde o início da gestão, em 2019, o governo Bolsonaro adotou retórica antiglobalista, seguindo os passos de Trump.

“O Brasil deveria fazer a releitura das suas posições de política externa à luz dos novos desdobramentos [a eleição de Biden]. Em contexto em que se fica isolado, não faz sentido manter a posição. Só faz sentido quando se está seguindo um líder, do contrário seremos conduzidos a uma posição de isolamento ainda maior. O Brasil vai tocar essa música sozinho agora?”, questiona o embaixador Marcos Caramuru, que esteve à frente da embaixada brasileira em Pequim entre 2016 e 2018.

Caramuru acredita que ainda há muitas indefinições. Por exemplo, os EUA, na gestão Biden, vão retirar de forma seletiva tarifas impostas a países na administração Trump? Vão reduzir tarifas para produtos chineses, o que poderia levar a China a fazer o mesmo? Qual será a postura em relação à tecnologia e ao 5G? O que está claro, diz o embaixador, é que com Biden haverá mais espaço para diálogo e cooperação incluindo temas como ambiente e proliferação de armas nucleares.

O embaixador José Alfredo Graça Lima pensa de forma semelhante. Diz que, com o tempo e com maior respeito para com os organismos multilaterais, existe a esperança de que os EUA se insiram novamente em uma “normalidade” dentro desse sistema em que foram cofundadores. “Sustento que os americanos não se tornaram protecionistas nos últimos quatro anos, mas recorreram via presidente e USTR [representante comercial dos EUA] a medidas que eram típicas da pré-rodada Uruguai do GATT [instância que antecedeu a OMC] em que os Estados Unidos aplicavam medidas unilaterais e não tinham propensão para o diálogo sobre regras multilateralmente acordadas”, diz Graça Lima.

O embaixador vê as mudanças de forma positiva para o Brasil porque obrigam o governo a tratar com a contraparte americana dando prioridade a relações institucionais. “Leva a atuar de forma protocolar, o que é bom na relação entre Estados. Relação entre Estados tem que ser feita por estadistas, indivíduos que tenham objetivos específicos, o que é feito por diplomacia. A diplomacia presidencial pode dar muitos frutos, mas depende de como o diálogo é tocado”, diz Graça Lima. Um dos desafios do Brasil será se inserir mais no comércio global. “Ainda somos muito voltados para dentro”, diz o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro.


Pedro Fernando Nery: Nosso norte

A Amazônia é fundamental para a economia, mas ganhos precisam ser compartilhados

Saindo de São Paulo, leva-se menos tempo para chegar em Tel-Aviv do que a Ipixuna – a cidade brasileira com o pior nível de desenvolvimento no índice Firjan. É localizada no Amazonas, mas o aeroporto de médio porte mais próximo fica no Acre, de onde partem barcos para a longa viagem para a cidade. A precariedade da infraestrutura no Norte do Brasil vai muito além da rede elétrica do Amapá, às escuras depois de um incêndio que chamou a atenção do resto do País nos últimos dias.

Na Região Norte, 1 milhão de brasileiros não correm risco de apagão: eles já não têm acesso a energia elétrica, segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema). Outros milhões estão em um sistema ainda vulnerável, como mostra o caso do Amapá, cuja solução definitiva levará dias e depende da chegada de balsas.

O País ainda tem um Estado inteiro – Roraima – desconectado do sistema elétrico nacional. A ligação é historicamente polêmica, pelas questões ambientais e indígenas envolvidas. Elas também aparecem na polêmica da pavimentação da BR-319, ligação de uma das maiores cidades brasileiras – Manaus – com o restante do País.

No Norte do Brasil, 40% dos cidadãos vivem abaixo da linha da pobreza – número quase igual à taxa do Nordeste. Mas a pobreza amazônica não ocupa ainda muito espaço no imaginário do Centro-Sul como a pobreza nordestina. É preciso admitir uma verdade inconveniente: esse baixo PIB per capita é um complicador para a preservação da floresta. A influente revista Science publicou este ano um artigo sobre as obras da BR-319: o título é “Estrada para o desmatamento”. Mas estamos falando de uma conexão terrestre com a 7.ª maior cidade do Brasil, ou a nossa Filadélfia.

E se a detestável política ambiental que temos tiver o apoio da população local? Nas eleições de 2018, somente quatro Estados entregaram votação para algum candidato acima de 70% (todos para Bolsonaro). À exceção de Santa Catarina, eles estão na Amazônia: Roraima, Rondônia e o Acre – este com a maior votação. Bolsonaro teve 77% no Estado de Marina Silva e Chico Mendes. Se tivéssemos um colégio eleitoral como o americano, esses não seriam battleground states.

Como convencer tantos brasileiros que devem ter aspirações menores e conviver com infraestrutura de país subdesenvolvido? A floresta de pé se justifica claramente pelos seus ganhos econômicos, seja por limitar a mudança climática que ameaça a atividade econômica de diversas regiões do planeta, seja pela biodiversidade da selva – que guarda informação valiosas geradas por milhões de anos de evolução. Mas quase todos esses potenciais benefícios, futuros e difusos, não são auferidos hoje pelos habitantes locais.

É momento de discutir pagamentos à população nortista como compensação pelos serviços ambientais? Se aceitamos que a região não pode se urbanizar como o resto do País, devem receber recursos federais para que as famílias não sejam tão vulneráveis à pobreza? O PIB da área é tão incipiente que, apesar da crise severa deste ano, a arrecadação em quase todos os Estados da região cresceu – por conta dos efeitos no consumo do pagamento do auxílio temporário aos mais pobres.

Afinal, a ideia simpática de que a Região Norte pode se desenvolver normalmente apenas com empreendimentos verdes esbarra em uma dificuldade: ali moram 18 milhões de pessoas. É mais que a Pensilvânia e a Geórgia somadas.

A ciência pode orientar a política pública nas escolhas para desenvolvimento da região. Publicado na Nature Sustaintability em 2018, um estudo literalmente mapeia tanto as áreas da floresta de maior biodiversidade quanto aquelas em que sua conservação pode resultar em mais produtos (madeira, borracha, castanha) e serviços (como chuvas para hidrelétricas e agropecuária) – onde a necessidade de preservação é portanto mais inquestionável. O trabalho é assinado por pesquisadores brasileiros apoiados pelo Banco Mundial e pela Noruega (Strand et al.).

Enquanto os votos nos Estados Unidos indicavam a eleição de Joe Biden, o que pressionará para uma mudança dramática na nossa política ambiental, centenas de milhares de brasileiros não acompanhavam o resultado porque não havia como fazer chegar energia elétrica ao Amapá. A Amazônia preservada é fundamental para a economia do País e do planeta, mas ganhos precisam ser compartilhados com a população local – e não há clareza sobre solução inteligente e efetiva para fazer isso.

A agenda de conservação precisa do apoio de habitantes que ainda vivem com carências que não existem no resto do Brasil. Os eventos da última semana são alegóricos de uma tensão que deve existir nos próximos anos na definição sobre o nosso norte.

*Doutor em economia


Eliane Cantanhêde: O impacto em 2022

Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar

Derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, fragilidade do presidente Jair Bolsonaro nas eleições municipais e total falta de estratégia para enfrentar a crise econômica e social. É nesse ambiente que viceja a articulação de uma chapa alternativa de centro para 2022, com participação de Luciano Huck, João Doria, Rodrigo Maia, Luiz Henrique Mandetta e agora Sérgio Moro, além de Fernando Henrique Cardoso. O cerco vai se fechando contra Bolsonaro.

Mais à centro-direita do que propriamente ao centro, a ambição é atrair a direita moderna, que votou em Bolsonaro, mas agora só pensa em se descolar dele, e a parcela da esquerda que cansou da hegemonia e dos erros do PT, mas tem como prioridade livrar o País de Bolsonaro. Os ventos favoráveis vêm de fora, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris, e de dentro, com as eleições municipais e as investigações sobre rachadinhas no Rio.

Como sempre, Bolsonaro vai na contramão do mundo democrático e se recusa a cumprimentar o vitorioso nos EUA, até mesmo a explicar por que não, o que só piora as perspectivas para a relação com o novo governo. Tão negacionista quanto Trump na pandemia, ele também nega os votos e a realidade, como ele. Bolsonaro acha que Trump venceu? Foi tudo fraude?

Assim, ele repete a campanha de 2018 só na forma, animando claques com muita antecedência pelo País afora, mas vai ter de inventar um novo conteúdo. O de dois anos atrás caducou: “nova política”, combate à corrupção, apoio à Lava Jato, reformas e carta-branca para o “Posto Ipiranga”, caneladas no mundo árabe e alinhamento automático com os EUA de Trump.

No governo, ele mergulhou no Centrão, derrubou Moro, botou a mão em PF, Coaf e Receita, abandonou as reformas tributária e administrativa, tirou gás de Paulo Guedes e agora fica sem Trump – e sem política externa. É bem mais complicado dar caneladas na China. Sem falar da pandemia…

Logo, Bolsonaro precisa, para se reeleger, muito mais do que fazer piadas de profundo mau gosto com Guaraná Jesus, assim como precisa mais do que Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio para escapar da derrota no domingo. Dificilmente a onda bolsonarista de 2018 se mantém agora e em 2022. O PSL foi um meteoro e passou.

O quadro que se desenha também é outro. Pela esquerda, o ex-presidente Lula, sem viço e sem discurso, já não é o mesmo. E as eleições municipais são um bom presságio do que vem pela frente, com o PT perdendo espaço para PSOL, PDT e PSB, pela ordem, em São Paulo, Rio e Recife e projetando que em 2022 é cada um por si, ou todos por um – que não será o PT.

Pela direita, Bolsonaro reina sozinho, agarrado ao mesmo Centrão que não deu para o gasto com o tucano Geraldo Alckmin em 2018. Mas ele, Bolsonaro, não é mais novidade, sofre o desgaste do poder e não tem o que mostrar. As “qualidades” eram falsos brilhantes, os defeitos se tornam mais e mais evidentes.

Há, portanto, um cenário que favorece o centro conhecido, confiável, que não dará cambalhotas, com surpresas e choques. Os articuladores de uma chapa alternativa veem insegurança por toda parte – na economia, na política, no meio ambiente, na política externa… – e chegaram a uma conclusão: a palavra de ordem de 2022 será estabilidade.

Reunir tanta gente, com tantos interesses e divergências ideológicas, porém, não será fácil. Rodrigo Maia se opõe à integração de Moro, que tenta incluir até o general Hamilton Mourão, rifado da chapa de Bolsonaro. De concreto, portanto, só é possível dizer que a derrota de Trump é um forte baque no bolsonarismo e terá impacto na eleição presidencial de 2022. Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar. Alguém acredita que seja capaz?


Joel Pinheiro da Fonseca: O jornalismo deveria fazer oposição ao populismo?

Derrota de Trump anima, mas é desmotivador ver a imprensa se tornar tão parcial

Biden venceu, viva! Uma vitória da democracia, da ciência, das instituições, da imprensa. Mas espere um momento: por acaso a imprensa deveria ser torcedora, ou até participante, nessa disputa?

Todo mundo sabe que não existe veículo completamente imparcial e objetivo. Há sempre valores, ideologias, narrativas, interesses, que inevitavelmente influenciarão as decisões sobre o que e como publicar. Nesse sentido, vejo muitas vozes defendendo que, como a imparcialidade perfeita é impossível, cada veículo de imprensa deveria assumir seu lado. Discordo.

A imprensa é relevante justamente na medida em que não é apenas mais um porta-voz de um campo político. A perfeita objetividade e imparcialidade pode ser uma utopia, inatingível na prática, mas é importante que siga como ideal operante na conduta institucional. A partir do momento em que aceitamos abrir mão de um valor em nome da defesa de um grupo político, é inevitável que a prática seja contaminada e que os padrões rigorosos sejam sacrificados ao partidarismo. À “opinião” do jornal basta o editorial; o jornalismo deve mirar a verdade e objetividade como valores superiores a qualquer causa política, mesmo as desejáveis.

A situação da imprensa não é fácil. Num momento de polarização, em que qualquer conteúdo que não seja feito sob medida para um dos lados da disputa é imediatamente rechaçado por ambos, publicar informações com objetividade não conquistará o amor de ninguém. Por mais que um lado possa estar mais próximo da verdade e dependa menos da fabricação sistemática de mentiras para se viabilizar, a realidade não costuma estar perfeitamente alinhada a ninguém. Assim, um jornalismo objetivo raramente encantará a torcida de qualquer lado. Mesmo quando confirma nossas crenças, não é com a ênfase e na medida que realmente gostaríamos. E aí reside seu valor para alimentar o debate público responsável.

As redes sociais participam desse debate também. Todas buscam alguma maneira de limitar o alcance de fake news. Não tenho a resposta para como fazê-lo, mas sei o tipo de medida que definitivamente não desce: suprimir notícias que prejudicavam o candidato democrata na semana da eleição.

As notícias envolvendo o filho de Joe Biden, veiculadas para tentar manchar a reputação do pai às vésperas do pleito, eram vazias. No entanto, quantas reportagens igualmente irresponsáveis em suas especulações e acusações contra Trump não foram compartilhadas livremente sem qualquer entrave do Twitter? O conluio com a Rússia, o caso com a atriz pornô, o abuso sexual. Se o site decidir que notícias bombásticas, sem o devido rigor jornalístico, devem ser limitadas perto das eleições, então que essa regra seja formulada abertamente e aplicada com transparência. Caso contrário, vira apenas sabotagem contra a direita, ao mesmo tempo em que se toleram todos os excessos do progressismo.

Populistas como Trump fazem do ataque à imprensa parte de seu jeito de governar. É muito fácil para a imprensa reagir conforme o esperado e transformar a oposição ao governo parte de seu ideário. Ao agir assim, apenas confere legitimidade aos ataques sem base de que é alvo. Considero a derrota de Trump um dos melhores eventos deste ano difícil que tem sido 2020. Mesmo assim, é desmotivador ver o The New York Times ou a CNN se tornarem tão abertamente parciais em sua cobertura.

O valor de uma fonte confiável de fatos relevantes para o debate público é muito maior do que o de uma militância de discursos louváveis.

*Joel Pinheiro da Fonseca,economista, mestre em filosofia pela USP.


Cristina Serra: A democracia nas Américas

A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar

As imagens de celebração nos Estados Unidos mostram um carnaval incomum. Uma explosão de alegria e alívio por se verem livres do governante que exerceu o poder com doses extremadas de ódio, mentira e violência.

Biden venceu porque conseguiu convencer a maioria dos eleitores de que será capaz de restaurar a civilidade no jogo político. O jogo é bruto, mas para ter sua legitimidade reconhecida precisa ser exercido com algum nível de lealdade e respeito às regras. Fora isso, é a barbárie, que seria aprofundada num segundo mandato de Trump.

Sua derrota é o triunfo de uma percepção de sociedade em que se espera que haja lugar para todos, em que pese a profundidade do abismo que separa as classes. Por isso, a palavra "possibilidade" tão presente nos discursos de vitória da dupla Biden-Harris.

Mais do que palavras, porém, a poderosa figura de Kamala Harris é a tradução concreta dessa possibilidade. Mulher, negra e filha de imigrantes, ela chegou lá, na chapa com o político branco e rico, há 50 anos no mainstream da política.

A dupla vencedora é a imagem síntese das contradições e das possibilidades na sociedade norte-americana. Se isso vai se refletir em políticas de redução ou contenção das desigualdades, só os próximos quatro anos vão dizer.

A chapa eleita também encarna a vitalidade da política identitária. No seu discurso, Biden deu ênfase à necessidade de erradicar o racismo sistêmico e destacou a participação de gays, transgêneros, latinos, asiáticos e populações nativas na aliança que o alçou à vitória. Um contraste notável com seu oponente.

A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar, bem como os acontecimentos recentes no Chile e na Bolívia. A extrema direita conta com a apatia e o cansaço da população com a política. É contra esse desânimo que as forças progressistas no Brasil têm que lutar. Não inventaram nada melhor que a democracia para derrotar a barbárie.


Hélio Schwartsman: Sem Trump, o normal volta?

Assim como Trump sucedeu Obama, nada impede que Biden seja sucedido por um neo-Trump

Derrotado Donald Trump, a política nos Estados Unidos volta ao normal? É difícil fazer previsões, mas acho que há duas afirmações que podemos fazer desde já.

A primeira é que, embora a iminente demissão de Trump nos poupe das cenas mais constrangedoras do populismo, as condições socioeconômicas que favoreceram a eleição do magnata laranja em 2016 estão longe de superadas. Assim como Trump sucedeu Obama, nada impede que Biden seja sucedido por um neo-Trump.

A segunda é que está nas mãos dos republicanos definir qual será o jogo daqui para a frente. Não gosto de pintar a história em termos de heróis e vilões, mas é forçoso reconhecer que os republicanos levaram bem mais longe do que os democratas a ideia de que vencer é mais importante do que manter o "fair play" democrático. O Partido Republicano (GOP) precisa decidir se seguirá nessa rota ou tentará algo diferente.

A demografia conspira contra o GOP. As populações que mais crescem nos EUA (hispânicos e negros) costumam votar em democratas. A crescente urbanização reforça a tendência. Ao apostar na tática de guerrilha, os republicanos ampliam seu poder por um tempo, mas não evitam a asfixia demográfica.

Faria mais sentido, creio, modificar o ideário do partido para torná-lo mais convidativo para as minorias que vão ganhando espaço. Os recentes avanços da legenda com latinos da Flórida mostram que isso é factível.

No mais, o posicionamento ideológico de partidos não é algo inscrito em pedra. Inicialmente, o GOP é que era a legenda progressista, defendendo a abolição e reformas econômicas. A troca de posições só ocorreu a partir do início do século 20 e foi lenta. Até os anos 60, os democratas é que representavam o conservadorismo racista no sul do país.

A dificuldade para mudar é que alguém precisaria pensar na sobrevivência do partido além dos dois ou quatro anos que são o horizonte de operação dos políticos.