joe biden
Merval Pereira: Paciência histórica
Mais fácil imaginar um país como o nosso, em uma região com uma triste história de golpes militares e ditaduras, temer uma intervenção militar do que os Estados Unidos. Mas vivemos em tempos tão estranhos que a insistência do presidente Donald Trump em não reconhecer a derrota na eleição presidencial para Joe Biden está levando os americanos a uma situação nunca vista, a de temer um golpe para Trump continuar no poder.
A disputa não vai apenas pelo lado da Justiça, onde se decidem os embates político-eleitorais nos Estados Unidos, mas também no campo militar. A demissão do Secretário de Defesa Mark Esper, e a nomeação de assessores leais no Pentágono trouxeram para a cena política um temor que não combina com a tradição democrática americana, mas com a atuação política de Donald Trump, que não gosta dos limites que as instituições democráticas impõem ao presidente da República.
A demonstração de desapreço pela liturgia democrática não deve passar disso, uma arrogância sem resposta institucional favorável. Protagonista de memes nas redes sociais que o transformam em bobo da corte, não no rei que gostaria de ser, Trump vai se deteriorando pessoalmente, mas também a maior democracia do mundo sofre com seus arroubos.
O fato de o país continuar seu cotidiano sem grandes alterações pode ser uma demonstração, mais adiante, de que a democracia tem meios de neutralizar as bazófias de Trump sem torná-las uma ameaça real. Aqui no Brasil, à custa de crises e ameaças à democracia, conseguimos controlar o nosso Trump tupiniquim.
Bolsonaro ensaiou passos agigantados em direção a um golpe militar, fomentou um ambiente tensionado contra os outros poderes da República, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), mas foi obrigado a recuar. Não teve apoio dos militares, nem conseguiu uma mobilização popular que o pusesse em condições de desafiar as instituições.
Os inquéritos das “fake news” e sobre a tentativa de desmoralizar o Supremo e o Congresso para subjuga-los, acabaram acuando o nosso aprendiz de feiticeiro, e a prisão do famigerado Queiroz teve o dom de convencê-lo de que a cadeia era uma possibilidade real. Nos Estados Unidos, Donald Trump foi alvo de um processo de impeachment que acabou bloqueado no Senado de maioria republicana. Aqui, Bolsonaro tem dezenas de pedidos de impeachment guardados na gaveta do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia.
Já houve clima político para tal decisão drástica, agora já não há mais. Apoiado pelo Centrão, o presidente Bolsonaro já não precisa temer um processo político, mas parece inevitável que venha a ter problemas políticos-policiais em relação a seus filhos, já que o presidente da República não pode ser processado no cargo, a não ser por fatos que tenham a ver diretamente com seu mandato.
As “rachadinhas” nos gabinetes dos filhos na Assembléia Legislativa do Rio, na Câmara de Vereadores e na Câmara dos Deputados estão sendo investigadas, e cada vez mais as apurações levam a desvendar uma armação financeira que fez da família Bolsonaro beneficiária de remunerações ilegais. Assim como Trump, cuja resistência maior em deixar a Casa Branca tem a ver com os problemas judiciais que vai enfrentar nos seus negócios particulares ao perder a imunidade presidencial, também Bolsonaro e os filhos têm contas a prestar com a Justiça.
Em meio a mais uma onda de protestos contra a postura de Bolsonaro diante da pandemia, que poderia resultar teoricamente em um processo de crime de responsabilidade, uma voz experiente se levanta para apoiar a cautela com que Rodrigo Maia vem tratando o assunto.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso classificou como “um desastre” a comemoração de Bolsonaro após a interrupção dos testes da vacina que o Instituto Butantan está realizando com a CoronaVac chinesa. Mas receitou “paciência histórica” para aguentar Bolsonaro no governo por mais dois anos, e derrotá-lo nas urnas, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.
Correção
Ontem, cometi um erro na coluna pelo qual me penitencio. Bolsonaro era tenente, não major e, indo para reserva, virou Capitão. Já corrigi ontem mesmo na edição digital.
Míriam Leitão: Além da moeda instantânea
No dia da eleição americana, havia uma animação no Banco Central brasileiro. Nada a ver com o que se passava nos condados azuis e vermelhos. Era o primeiro dia de testes de um sistema de pagamentos que começou a ser arquitetado há cinco anos. Para o cliente, o pagamento instantâneo, chamado de PIX, pode parecer apenas uma comodidade, mas, segundo o diretor do BC João Manoel Pinho de Mello, ele levará a mais competição, menores custos e mais inclusão no sistema financeiro. A nova forma de pagar começa a operar na segunda-feira com a expectativa de mudar a relação que o brasileiro tem com o dinheiro. Se conseguir diminuir a concentração do nosso mercado bancário já terá provocado um efeito importante.
O objetivo do PIX, como todo mundo entendeu, é que o dinheiro e a informação trafeguem de forma imediata. Cerca de 10 segundos, em média, segundo o Banco Central. E sem custos para pessoas físicas. Os clientes que pagam taxas em transferências terão redução de despesas, os credores terão menos riscos porque saberão na hora que as dívidas foram quitadas.
— Imagine uma carga no porto que precisa de várias guias de pagamento para ser liberada, com diversos órgãos de governo. Esse processo pode levar dias. Com o pagamento instantâneo, será na hora. O dinheiro chega em uma ponta e a informação de quitação volta na outra. Isso vale para tudo, é ganho de produtividade na economia — explicou Pinho de Mello.
As mudanças microeconômicas no sistema financeiro vêm buscando há muitos anos o mesmo objetivo: spreads menores. No BC, eles garantem que os juros caíram muito e em algumas linhas já são compatíveis com níveis internacionais. Ainda não é o que todo tomador sente. Com mais participantes nesse mercado de transação financeira, pode haver, num segundo momento, um custo do crédito menor. Com mais gente oferecendo empréstimos, a aposta é que os juros possam cair.
Para o pequeno empreendedor, por exemplo, espera-se o incentivo ao chamado nanocrédito, pequenas e rápidas operações de financiamento. Como a transferência não tem custos ou um custo bem menor do que o atual nas transações entre firmas, um comerciante pode, por exemplo, adiantar a passagem de ônibus de um fornecedor que lhe venda produtos mais baratos e de melhor qualidade. Hoje, o preço do TED e do DOC inviabiliza a margem dessas operações menores. Esse é só um pequeno exemplo de como o pagamento instantâneo pode ter efeito na ponta da economia.
Os bancos perderão as receitas com o TED e o DOC. O Banco Central não tem uma conta fechada, mas estima que somente o TED de pessoas físicas chegue a R$ 500 milhões por ano. João Manoel acredita que eles não vão fazer o truque de sempre — elevar outra tarifa para compensar a perda. Acha que também terão uma forte redução de custos.
— O dinheiro ainda é o principal meio de pagamento do país, e isso custa muito para os bancos, em termos de transporte, logística, segurança. Quanto mais o pagamento eletrônico instantâneo for usado, menores serão os custos para os bancos — explicou.
Há um problema. Somente os 35 maiores bancos terão acesso à conta de liquidação financeira do Banco Central, onde as informações serão processadas. As menores instituições, como as fintechs e cooperativas de crédito, terão que pagar uma taxa para usar esse sistema através dos bancos maiores, e o receio é que eles imponham custos que inviabilizem a competição. João Manoel diz que o Banco Central estará atento para evitar esse risco:
— O grande banco é o chamado participante direto, que tem acesso ao sistema do Banco Central. É assim porque é caro acessar o BC e não faria sentido impor isso a todos. Mas o grande não pode ter preços diferentes para os clientes indiretos. O próprio BC vai fazer essa fiscalização para que haja competição entre eles.
A “guerra das chaves” que acontece hoje, ou seja, as campanhas publicitárias pelo cadastro dos clientes, tem explicação. O que está em jogo agora é conseguir os dados, para que os clientes sejam fidelizados depois. Outra aposta do BC é que essas informações deem mais segurança aos bancos, que poderão reduzir os juros.
Há outras modernizações sendo feitas. O Cadastro Positivo entrou em operação em fevereiro, e o Banco Central tem acelerado os testes e os estudos para que o chamado open banking — quando o cliente permite que várias instituições tenham acesso aos seus dados — entre em vigor em 2022. Essa é a agenda para os próximos anos no sistema financeiro e que pode fazer com que o custo do dinheiro caia de forma estrutural no Brasil.
Rogério F. Werneck: Bolsonaro sem Trump
Planalto sabe que a eleição de Biden tornará descaso com a Amazônia mais custoso
Ainda é cedo para vislumbrar com nitidez todos os complexos desdobramentos da vitória de Joe Biden. Mas, mundo afora, governos de nações democráticas festejam, aliviados, a perspectiva de voltar a contar, em Washington, com um presidente que possa restaurar o papel crucial dos EUA na cooperação multilateral que se faz necessária para a boa governança do planeta. Do combate à pandemia ao aquecimento global. Dos esforços concertados de recuperação da economia mundial ao controle eficaz da proliferação nuclear.
Em Brasília, contudo, o governo não esconde sua contrariedade. Não bastasse já se ter permitido indecoroso alinhamento explícito ao candidato republicano durante a campanha presidencial nos EUA, o Planalto fechou-se em copas. Impôs ao governo silêncio fechado sobre o resultado da eleição. E proibiu que órgãos governamentais divulguem projeções econômicas que levem em conta a vitória do candidato democrata. Até o início da tarde de ontem, Bolsonaro ainda não se dignara a reconhecer a vitória de Joe Biden. Mais constrangedor, impossível.
Não há como subestimar as dificuldades que, tudo indica, o Planalto continuará a enfrentar para lidar com o desfecho da eleição americana. É mais do que sabido que, por anos, Bolsonaro viu em Trump o modelo a seguir, copiando-lhe inclusive a forma peculiar com que transformou o dia a dia do seu governo num interminável reality show, focado no acirramento da polarização política.
Ao macaquear Trump, Bolsonaro viu-se, com frequência, mais à vontade para insistir em posições indefensáveis que desavisadamente adotara. Sem ir mais longe, basta ter em conta quão mais difícil lhe teria sido se agarrar ao negacionismo e ao charlatanismo, diante do avassalador avanço da pandemia, se, nesse papel, não se percebesse em fantasioso dueto com Donald Trump.
A criação, por Biden, de uma força-tarefa de combate à Covid-19, que voltará a pautar a política de saúde pública americana por recomendações científicas, prenuncia que a postura obscurantista que Bolsonaro se permitiu adotar no enfrentamento da pandemia está fadada a se tornar cada vez mais isolada e desgastante.
O Planalto bem sabe, também, que a eleição de Biden tornará o desajuizado descaso do governo com a devastação da Amazônia bem mais custoso do que já vem sendo. Ao desgaste que essa postura irresponsável vem trazendo às relações do Brasil com a União Europeia, deverão se somar inevitáveis atritos com os EUA, fomentados por uma aliança tácita — à primeira vista estranha, por isso mesmo temível — da ala ambientalista do Partido Democrata com o poderoso lobby agrícola americano.
O que está em jogo é o promissor projeto de expansão das exportações brasileiras de produtos agropecuários. E, como já perceberam os segmentos mais lúcidos do agronegócio no país, para que possa fazer face às pressões conjuntas de Estados Unidos e Europa por políticas mais consequentes de preservação da Amazônia, o governo terá de dar demonstrações inequívocas de que sua postura mudou. E de que, na condução da política ambiental, já não haverá mais espaço para figuras como Ricardo Salles.
Com o Itamaraty sob a égide das pregações caricatas de Ernesto Araújo contra instituições multilaterais, o governo encontra-se completamente desequipado para lidar com a revitalização do multilateralismo que a eleição de Joe Biden promete. A defesa eficaz dos interesses brasileiros nas negociações que deverão ter lugar nessas instituições depende de um esforço abrangente de retripulação do Ministério das Relações Exteriores, que Bolsonaro dificilmente estará disposto a patrocinar.
Sem Trump, Bolsonaro se verá privado de uma caixa de ressonância importante para o discurso inconsequente e amalucado que se permitiu manter em ampla gama de questões. Terá menos espaço para demagogia e populismo. E estará bem menos à vontade para dar vazão a sua irrefreável fanfarronice mitômana. Mas não se iludam. Mesmo sem Trump, Bolsonaro não deixará de ser o que sempre foi.
*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
Bernardo Mello Franco: Saliva e pólvora: razões para o descontrole de Bolsonaro
Na terça-feira, Jair Bolsonaro ameaçou trocar a saliva pela pólvora nas relações com os Estados Unidos. Já se passaram três dias e ele ainda não mandou a FAB bombardear a Estátua da Liberdade. A bravata só serviu para expor os militares ao ridículo. Os generais que se associaram ao capitão não podem nem reclamar.
Bolsonaro eleva o tom das sandices sempre que se vê em apuros. É uma tática conhecida. A cortina de fumaça ajuda a desviar a atenção e manter a tropa mobilizada. Na terça, não funcionou. Além de delirar com uma guerra impossível, o presidente marcou gol contra ao escancarar sua politicagem com a vacina. No mesmo dia, ele comemorou um suicídio, chamou os Brasil de “país de maricas” e disse que sua vida é “uma desgraça”.
O capitão tem motivos para exibir descontrole. Na semana passada, o Ministério Público do Rio denunciou o senador Flávio Bolsonaro por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A confissão de uma funcionária-fantasma agravou os problemas do Zero Um com a Justiça.
A derrota de Donald Trump também aumentou as aflições de Bolsonaro. Apesar de endossar a falsa versão de fraude, ele sabe que ficará mais isolado a partir de janeiro. A derrocada do ídolo abalou o sonho do segundo mandato. Em meio ao destampatório, ele admitiu o medo de repetir Mauricio Macri, que não conseguiu se reeleger na Argentina.
O presidente saboreou um aumento de popularidade na pandemia, mas terá meses difíceis pela frente. O governo ainda não sabe o que oferecer a milhões de famílias que deixarão de receber o auxílio emergencial. O ministro Paulo Guedes, que parece tão perdido quanto o chefe, agora se diz “bastante frustrado” e fala em risco de hiperinflação.
Como se não bastassem todos esses problemas, Bolsonaro adotou uma estratégia camicase nas eleições municipais. Não há pólvora nem corrente de WhatsApp que evitem o fiasco da maioria dos candidatos que ele escolheu apoiar. A depender do resultado das urnas, o capitão precisará de muita saliva para se explicar na segunda-feira.
Humberto Saccomandi: Trump leva a negação do outro ao limite
Ao acusar regularmente Joe Biden e os democratas de quererem “destruir tudo o que amamos e estimamos”, Trump preparou o terreno para deslegitimiar o outro lado e contestar, sem provas, o resultado eleitoral
“A esquerda radical está empenhada em destruir tudo o que amamos e estimamos”, disse o presidente Donald Trump num comício na Flórida, em 12 de outubro. O atual ciclo eleitoral nos EUA é mais um exemplo gritante desse tipo de retórica excludente, na qual só um lado se vê legitimado a vencer. É um jogo de soma zero que ameaça a democracia. As próximas semanas serão decisivas.
Trump passou a campanha usando esse tipo de retórica. Biden e os democratas “vão matar nossos empregos, desmantelar nossa polícia, dissolver nossas fronteiras, libertar criminosos estrangeiros, elevar nossos impostos, confiscar nossas armas (…), destruir nossos subúrbios e tirar Deus do espaço público”, tuitou ele em outubro.
O presidente costuma usar uma linguagem hiperbólica. Quase tudo o que ele faz é “tremendous”. O que outros fazem ou fizeram é um “disaster”. É um mundo anedótico em preto ou branco. Mas, à parte o aumento de impostos (que parece inevitável devido ao aumento dos gastos com a epidemia), nada do que ele tuitou constava do programa do democrata Joe Biden, que é basicamente um moderado, que seria um centrista em qualquer país europeu. O objetivo desse tipo de discurso é incutir a suspeita, o medo, o ódio ao outro.
A narrativa por trás disso é perigosamente simples. O outro busca destruir o que somos (algo propositadamente pouco definido). Logo, o outro não pode chegar ao poder, afinal ninguém quer ser destruído. O passo seguinte é que vale tudo para impedir a vitória do outro, como Trump está agora tentando fazer. Um passo ulterior é que, se o outro não pode vencer, porque ele precisa existir? E, pronto, estamos no terreno do autoritarismo. O fascismo italiano via a oposição como desnecessária, já que ele era o portador do bem comum.
Um dos princípios da democracia é a alternância de poder. Se eu não ganhar desta vez, ganharei na próxima ou na seguinte. Essa alternância permite refinar a política com o tempo, como numa concorrência normal, quando um produto predomina até que apareça outro melhor. Isso estimula, ou deveria estimular, os partidos a oferecerem candidatos e políticas melhores. Quem não o fizer acaba punido pelo eleitor. A alternância estimula ainda a colaboração. Se um partido ficar desfazendo tudo o que o outro fez no governo anterior, não se avança.
O discurso da exclusão, porém, visa deslegitimar o concorrente. O desfecho, caso o eleitor opte pelo outro, será apocalíptico. Não haverá retorno possível. É como se a propaganda de um sabão em pó, em vez de mostrar como ele lava melhor, acusasse o concorrente de destruir a roupa, a máquina de lavar. Sem provas.
Não foi Trump que introduziu esse discurso no “mainstream” da política americana. Já em 1996, no livro “A Política da Negação”. Michael Milburn e Sheree Conrad, professores de Psicologia Social na Universidade de Massachusetts, identificaram a ascensão dessa retórica extremista na direita religiosa americana, em figuras como Pat Buchanan e Newt Gingritch. Mas Trump levou essa negação do outro à Casa Branca, ao topo do establishment americano. Ninguém estimulou e explorou o medo e o ódio como ele.
Esse é um discurso comum a qualquer extremismo. Hugo Chávez passou anos dizendo que a oposição de direita destruiria a Venezuela caso voltasse ao poder. Seu sucessor, Nicolás Maduro, repete isso regularmente. O resultado é o impedimento de a oposição vencer, por quaisquer meios necessário. O fim da alternância levou o país à ruína.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro se refere à oposição em termos similares. “Nós temos que acabar com aqueles que querem destruir a família brasileira”, disse em entrevista ao Valor, ainda em dezembro de 2017, como se houvesse um único modelo de família brasileira do qual ele seria o porta-voz. No início deste ano, afirmou: “Não dê chance para essa esquerda. Eles não merecem ser tratados como pessoas normais, como se quisessem o bem do Brasil.” Outra expressão comum no discurso da negação é se proclamar do lado dos “homens de bem”, o que automaticamente coloca o outro fora do campo do bem.
Essa visão revela uma concepção quase religiosa do governo, como se fosse onipotente. Isso é, obviamente, uma falácia. Tudo que um governo faz, dentro das regras do jogo, pode ser desfeito. É improvável, por exemplo que qualquer governo democrático conseguisse fazer nos EUA os propósitos que Trump atribuiu a Biden. Haveria oposição do Legislativo, do Judiciário, da sociedade civil. O próprio Trump sentiu essa impotência na pele. O muro que ele prometeu construir na fronteira com o México, pago pelos mexicanos, nunca saiu do papel. E mudanças que ele fez nas normas ambientais serão agora desfeitas por Biden, por decisão dos eleitores americanos. Assim é o jogo da alternância.
Mas a política da negação tem um forte apelo populista. Ela identifica um culpado, o outro, ao qual pode ser atribuída a responsabilidade por quase qualquer mazela. Tanto na Venezuela chavista como nos EUA trumpiano, a culpa é sempre do outro. E, mesmo quando não há uma culpa, como no caso do surgimento de um vírus, é possível atribuí-la, como Trump faz com a China.
O resultado dessa campanha de deslegitimação e descrédito é que dois terços dos americanos, segundo pesquisa divulgada nesta semana, acreditam que a eleição não foi justa nem livre. Trump contesta o resultado eleitoral no Estado de Nevada, onde as autoridades estaduais, republicanas como Trump, negam qualquer irregularidade.
E, por ora, ele conseguiu que o Partido Republicano o apoiasse nessa aventura política perigosa. Apenas uns poucos senadores e governadores republicanos se dissociaram. “Estou estarrecido de ouvir as acusações sem evidências vindas do presidente, da sua equipe e de muitas outras autoridades republicanas eleitas em Washington”, disse o governador republicano de Massachusetts, Charlie Baker.
O que distingue os EUA da maioria dos países é que há 200 anos os americanos elegem o seu presidente, e o vencedor, seja ele da situação ou oposição, assume. Essa estabilidade certamente ajudou os EUA a se tornarem o que são hoje. Nas próximas semanas ficaremos sabendo se essa tradição continuará.
Simon Schwartzman: Dançando por Biden
Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos jovens
Vendo as imagens do povo dançando nas praças, festejando a derrota de Donald Trump, mais do que a vitória de Joe Biden, é inevitável comparar com 12 anos atrás, quando da eleição de Barack Obama. Tal como agora, Obama derrotou um presidente medíocre e inescrupuloso, que jogou o país numa guerra insensata no Iraque e deixou a economia afundar. Havia a sensação de que algo realmente novo e importante estava acontecendo nos Estados Unidos, com impacto em todo o mundo. Obama era negro, mas foi eleito com a bandeira de uma sociedade pós-racial. Era um intelectual com fortes valores humanistas, que projetava uma política internacional de respeito e consideração para diferentes culturas. No ano seguinte ganhou o Prêmio Nobel da Paz, não pelo que já tinha feito, mas pelo que prometia. Sua eleição parecia indicar que os Estados Unidos, finalmente, haviam rompido as barreira do racismo, do isolacionismo e do descaso com as políticas sociais.
Oito anos depois, sem ter conseguido fazer tudo o que prometia, era normal que Obama não conseguisse fazer seu sucessor. Mas a eleição de Trump não foi uma simples alternância de poder, mas uma indicação de que a nova era anunciada pela eleição de Obama era, em grande parte, uma ilusão, e que coisas piores estavam por vir. Ao tomar de assalto o Partido Republicano, Trump capitalizou uma forte corrente de preconceitos raciais, anti-intelectuais e de xenofobia que pareciam ter sido postos à margem da sociedade americana e subitamente mostraram suas garras. Com ele, a mentira sistemática das fake news, a prevalência descarada dos interesses comerciais privados sobre o interesse público, o desmonte das instituições governamentais e sua ocupação por bajuladores, o racismo, a xenofobia e todos os preconceitos que antes não se manifestavam se tornaram “normais”. O passo seguinte, inevitável, era o ataque às instituições mais centrais do sistema democrático, culminando, agora, com o próprio sistema eleitoral.
A vitória de Biden mostra que nem tudo está perdido, mas deixa um gosto amargo, porque a “onda azul” foi menor do que se esperava e Biden provavelmente terá ainda menos condições de cumprir o que promete do que Obama, tanto pela oposição sistemática que receberá como por um contexto internacional menos favorável, com a ascensão inevitável da China. A democracia americana sobreviverá, mas longe do vigor que a era de Obama parecia prenunciar. A História americana recente é semelhante à de muitos outros países, incluído o Brasil, de surgimento de lideranças radicais que conseguem forte apoio popular e partem para o assalto às instituições democráticas, e da dificuldade dos partidos moderados de prevalecerem. O que explica a força desses movimentos antidemocráticos e a fragilidade das democracias?
A pergunta, na verdade, deve ser posta ao contrário, porque a democracia é uma flor frágil, e é quase um milagre que tenha sobrevivido em tantos lugares até aqui. Em livro recente, O Ocaso da Democracia, a jornalista americana Anne Applebaum, casada com Radosław Sikorski, também jornalista e político de destaque dos governos democráticos da Polônia, conta a história da conversão à extrema direita de muitos de seus amigos e colegas que, como os dois, haviam se engajado na oposição ao stalinismo e na esperança de uma nova era democrática para a Europa e os Estados Unidos, e viram em seu lugar surgir os regimes de Jarosław Kaczynski na Polônia, Viktor Orbán na Hungria e Donald Trump nos Estados Unidos. Cada história é diferente, combinando em diversas doses oportunismo, ambição e impaciência com a lentidão dos regimes democráticos em produzir os resultados esperados. Mas existem problemas mais gerais. A ideia de que a democracia, combinada com a valorização do mérito e da economia aberta e competitiva, é a melhor forma de governo perde força quando ela se torna disfuncional, com muitas pessoas se sentindo excluídas de seus benefícios. E a democracia não consegue dar respostas aos anseios das pessoas por identidade pessoal, comunitária ou nacional. Ao se opor ao surgimento da extrema direita, a oposição liberal, nos Estados Unidos e outras partes, ao invés de tentar reconstruir o consenso nacional ao redor dos valores democráticos e do interesse comum, muitas vezes dá prioridade às políticas de identidade de grupos minoritários e setores marginalizados e discriminados, reduzindo ainda mais o espaço para a democracia consensual.
A democracia, para sobreviver, precisa de lideranças capazes de interpretar o interesse geral, de instituições capazes de resistir aos assaltos dos tiranos de plantão, e de uma população capaz de entender que a política é mais do que a expressão de suas ansiedades e frustrações. Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos eleitores mais jovens.
Anne Applebaum também termina seu livro falando de uma nova geração que busca novos caminhos, além das políticas exauridas da democracia complacente e da extrema direita enlouquecida. O futuro é incerto, mas há esperança.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências
O Estado de S. Paulo: Mourão reconhece vitória de Biden, mas diz não responder pelo governo
Em entrevista à Rádio Gaúcha, vice-presidente afirmou que julga a vitória do democrata como 'cada vez mais irreversível'
Emilly Benhke, O Estado de S.Paulo
O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta sexta-feira, 13, que, apesar de não responder pelo governo, julga a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos como "sendo cada vez mais irreversível".
"Como indivíduo eu reconheço, eu não respondo pelo governo, mas como indivíduo eu julgo que vitória de Biden está cada vez mais sendo irreversível", afirmou em entrevista à Rádio Gaúcha nesta manhã.
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Mourão citou que é responsabilidade de Bolsonaro o possível pronunciamento sobre o pleito norte-americano. O governo brasileiro é um dos poucos que ainda não reconheceu o resultado das eleições norte-americanas. Outros países que não o fizeram são a Coreia do Norte, liderada por Kim Jong-Un, a Rússia, de Vladimir de Putin, e o México, de López-Obrador.
A China, que ainda não havia reconhecido a vitória do democrata, parabenizou Biden nesta sexta. "Respeitamos a escolha do povo americano. Enviamos nossas felicitações a Biden e a Harris", declarou o porta-voz da diplomacia chinesa, Wang Wenbin.
Nesta sexta, a imprensa americana informou que o democrata venceu no Estado do Arizona e consolidou a liderança no Colégio Eleitoral que escolherá formalmente o novo chefe da Casa Branca. Com isso, chegou a 290 delegados, contra 213 de Trump.
O vice-presidente negou que haja uma tensão entre Brasil e EUA e afirmou que os dois países mantêm uma relação de "Estado para Estado". Disse ainda que continuaram buscando pontos em comum nas suas relações diplomáticas. “Independente do momento que for reconhecido resultado da eleição americana, vamos manter diálogo constante”, disse.
Mourão também voltou a minimizar a fala do presidente Jair Bolsonaro de que "quando acaba a saliva tem que ter pólvora". "Vejo a coisa da seguinte forma, o presidente, a gente tem que prestar atenção mais nas ações do que nas palavras (de Bolsonaro)", justificou.
Na última terça-feira, 10, sem citar Biden diretamente, Bolsonaro comentou possíveis barreiras comerciais impostas ao Brasil pelos EUA caso as queimadas na região amazônica não fossem contidas. "Apenas a diplomacia não dá", disse o presidente na ocasião.
Afonso Benites: Bolsonaro insiste na antidiplomacia com os EUA e Brasil pode virar ‘criminoso do clima’
Presidente ignora gestos de aproximação feitos pelo vice, Hamilton Mourão. Clima belicoso poderá levar o país a ser incluído em grupo de vilões ambientais, em estudo pelo Governo Biden
Quase uma semana após os Estados Unidos decidirem quem será o seu presidente a partir de janeiro de 2021, o mandatário brasileiro Jair Bolsonaro segue sem cumprimentar o vencedor Joe Biden. O que era uma diplomacia do silêncio a favor do derrotado Donald Trump tornou-se uma espécie de antidiplomacia com a maior potência mundial, em que Bolsonaro ameaça usar armas contra a maior potência militar mundial para, em seu entendimento, proteger a Amazônia. A declaração feita nesta semana – “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora” – espantou diplomatas que trabalham em Brasília. Para quatro deles ouvidos pela reportagem, a fala demonstra que o presidente está ignorando os gestos de aproximação feito por seu vice, o general Hamilton Mourão, que tenta garantir uma relação mais cordial e plural com diversos países.
Mourão comandou uma comitiva de embaixadores europeus em viagem à Amazônia, na qual ele tentou demonstrar que o governo estaria agindo no enfrentamento ao desmatamento e aos incêndios florestais ilegais. Quando retornou a Brasília, disse a jornalistas que o presidente se pronunciaria quando os votos dos americanos fossem todos contados. Foi desautorizado por Bolsonaro, que disse não estar tratando sobre nenhum assunto com o vice.
A primeira reação aos discursos oficiais pode vir já do governo Biden, que pretende criar uma lista de países “criminosos do clima”, na qual um dos primeiros alvos poderia ser o Brasil. O objetivo é forçar os governos a se empenharem a cumprir a meta do acordo de Paris de impedir um aumento da temperatura global acima de 2ºC. As informações foram reveladas pelo site Vox. Biden pretende renovar os compromissos dos Estados Unidos com acordo climático de Paris, do qual Trump o retirou. Neste contexto, o Brasil tem sido visto como uma espécie de vilão ambiental, que pouco age para impedir desmatamentos ou incêndios na Amazônia e no Pantanal. Ao contrário, enfraquece os mecanismos de fiscalização e de punição aos responsáveis pelos crimes.
Dois dos diplomatas que acompanharam o grupo na viagem à Amazônia relataram ao EL PAÍS que parece haver dois governos distintos: o dos discursos radicais de Bolsonaro e de seu chanceler Ernesto Araújo e o de Mourão, que busca constante aproximação. “O diálogo [com Mourão] flui bem, mas na prática não vemos nada muito efetivo ocorrendo”, disse um deles à reportagem.
E, mesmo sendo desautorizado pelo presidente, o vice segue o defendendo. Nesta quinta-feira, disse a jornalistas que Bolsonaro usou uma “figura de retórica” ao usar o termo pólvora. O próprio Bolsonaro relatou a interlocutores em conversas reservadas, que “exagerou”, mas não se desculpou ou se explicou publicamente.
Desconforto
Para o cientista político da consultoria Dharma, Creomar de Souza, há uma espécie de desconforto simbólico para Bolsonaro, que não consegue sustentar a política externa conservadora. “As declarações do presidente têm mais impacto para público interno do que sobre a política externa como um todo”, disse. Mas até entre seus apoiadores, Bolsonaro sofreu críticas. Em três grupos do WhatsApp que são monitorados pela reportagem houve quem reclamasse da fala do presidente sobre usar a pólvora para enfrentar os EUA. Após apresentar um meme em que, meia hora depois de iniciar um confronto bélico, o Brasil já era rebatizado de “South Hawaii”, membros do grupo disseram que o presidente deveria estar “surtando” para confrontar os americanos ou que ele deveria “ficar calado para não dar munição à esquerda”, que lhe faz oposição.
Nesse contexto, para evitar embates, o presidente já foi aconselhado a trocar seus ministros de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A ideia era fazer uma sinalização positiva aos Estados Unidos, o segundo maior parceiro comercial do Brasil. Até o momento, contudo, o presidente tem sustentado ambos e respaldado os atos de Araújo.
Na sua conta, o mandatário tenta creditar atos que não foram necessariamente seus, mas de burocratas que negociam há anos alguns tratados como o acordo Mercosul União Europeia ou o Acordo de Comércio e Cooperação Econômica (ATEC, na sigla em inglês). Entre outras medidas, esse compromisso prevê a facilitação do comércio e o combate à corrupção. Ainda assim, seu andamento depende da boa vontade do presidente eleito nos EUA. “Como ele não é um acordo tarifário, você deixa vários setores da economia brasileira vulneráveis às políticas públicas que o novo Governo venha a decidir e que o próprio Trump utilizou, como quando ele sobretaxou o aço que comprava do Brasil”, disse Souza.
Bloqueio a Huawei
Ainda na seara econômica, outro ponto que está em jogo é a interferência dos EUA no leilão do 5G. Nesta semana, o Governo brasileiro endossou a iniciativa americana sobre o 5G e sinalizou que pode banir a empresa chinesa Huawei do leilão da banda larga de última geração que ocorrerá em 2021. O gesto ocorreu em na reunião entre o chanceler Araújo e o secretário para Crescimento Econômico, Energia e Meio Ambiente do Departamento de Estado dos EUA, Keith Krach. Na ocasião, o chanceler concordou em apoiar os princípios da Clean Network, que é uma iniciativa para frear as empresas chinesas do setor de telecomunicações, como a Huawei. O Brasil foi o primeiro país da América Latina a demonstrar que aceitará esse veto.
Em conversas com investidores brasileiros, Krach relatou que, independentemente de quem governar os EUA, essa pressão sobre o 5G permanecerá. Segundo ele relatou, esse é um tema bipartidário em uma briga geopolítica entre as duas maiores potências mundiais.
Para o presidente da Federação dos Interestadual dos Trabalhadores e Pesquisadores em Serviços de Telecomunicações, João de Moura Neto, falta visão estratégica ao Brasil ao se aliar automaticamente nessa pauta aos Estados Unidos. “É ignorar que a maior parte dos equipamentos de comunicações no Brasil hoje já é da Huawei. O que farão com eles?”, questionou. Na visão de Neto, há o risco de haver uma demissão em massa de trabalhadores e aumentar os preços dos equipamentos em até cinco vezes, como ocorreu em alguns Estados americanos que viram reduzir a quantidade de fornecedores.
O leilão, contudo, deverá ocorrer apenas no segundo semestre do ano que vem. Até lá, Bolsonaro irá tatear o território para saber se segue esse alinhamento com os americanos ou se radicaliza de vez a estratégia, dando espaço para se tornar, de fato, um pária internacional.
Rubens Ricupero avalia potencial de eleição de Joe Biden para mudar o mundo
Em artigo na revista Política Democrática Online de novembro, diplomata brasileiro diz que presidente eleito terá mais latitude para liderar busca de vacina na OMS
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Presidente honorário do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, sediado em São Paulo, Rubens Ricupero diz que, após a corrida presidencial nos Estados Unidos, “a conclusão mais importante se refere ao potencial que a eleição de [Joe] Biden tem para mudar o mundo”. Em artigo exclusivo que produziu para a revista Política Democrática Online de novembro, ele avalia os impactos do resultado das urnas tanto na esfera interna quanto em nível internacional.
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A publicação mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania, com colaboração de renomados especialistas, professores, pesquisadores e consultores de mercado. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, Ricupero, que também é jurista, historiador e diplomata brasileiro, diz que os efeitos da eleição de Biden devem mudar não somente os Estados Unidos.
“Na esfera interna, não será fácil, sem controlar o Senado, aumentar impostos das corporações, aprovar pacote trilionário de estímulo, alterar a ideologia da Suprema Corte”, observa o jurista. “Já na área externa, Biden terá mais latitude para voltar ao Acordo de Paris, converter o meio ambiente em prioridade central, liderar a busca de vacina na OMS, convocar a prometida Cúpula em favor da Democracia, restituir à diplomacia e ao multilateral o papel central na política externa. Se não fizer mais nada, já terá transformado a agenda mundial de modo decisivo”, destaca.
No artigo publicado na revista Política Democrática Online, Ricupero avalia que o crescimento da economia e do emprego antes da pandemia ajudou o governo de Donald Trump. No entanto, segundo o historiador, o fiasco em lidar com a Covid-19 prejudicou amplamente o atual presidente dos Estados Unidos, embora não seja claro que tenha alienado os idosos, como se antecipava na Flórida.
De acordo com Ricupero, o acirramento do conflito racial em torno dos protestos do “Black Lives Matter” mobilizou o eleitorado negro, que foi importante para eleger Biden e sua vice, Kamala Harris, negra e a primeira mulher a ocupar o posto no país. “Ao mesmo tempo, a violenta destruição de estátuas e as demandas radicais de corte nos recursos das polícias ocasionaram reação adversa de medo e ressentimento”, pondera o autor.
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Com análises sobre política, economia e cultura, edição de novembro foi lançada nesta quinta-feira (12)
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Necessidade de coalizão para se enfrentar a questão da governança das polícias, embate entre favoráveis e contrários à volta às aulas presenciais e a união de forças progressistas e de centro que levaram à derrota da Donald Trump são os principais destaques da revista Política Democrática Online de novembro. Lançada nesta quinta-feira (12), a publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos em seu site, gratuitamente.
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No editorial, a publicação diz que “o país ingressou na reta final de uma campanha eleitoral atípica”. Segundo o texto, tudo indica que prevaleceu no eleitorado a tendência ao pragmatismo, à separação prudente das esferas nacional e municipal da política. “Nessa conjuntura, cabe às forças de oposição prosseguir na convergência programática, no fortalecimento de um amplo leque de alianças para o segundo turno das eleições, em torno do eixo político hoje fundamental: defesa da saúde, da vida e da democracia”, afirma, em um trecho.
Na entrevista exclusiva concedida à Política Democrática Online, o antropólogo e filósofo Luiz Eduardo Soares, defensor da desmilitarização das polícias militares, avalia que somente uma coalizão pode dar ao país as condições políticas para que se faça uma reforma estrutural nessas corporações policiais. "Só uma coalizão pode proteger os governos que se disponham a agir, e não adianta pensar nas forças armadas como uma solução mágica, porque se não o Rio já teria resolvido, por exemplo, o problema com as milícias", diz.
A reportagem especial destaca os efeitos da segunda onda da Covid-19 na Europa sobre a decisão de governadores para retorno, ou não, às aulas presenciais nas redes públicas de ensino no país. Oito meses após o fechamento das escolas por causa da pandemia do coronavírus, em março deste ano, 16 redes públicas estaduais de ensino retomaram parte das aulas presenciais ou têm previsão de retorno às salas de aula, ainda em 2020. Em outros oito Estados, governadores já se posicionaram pela volta dessas atividades somente no ano que vem, diante do risco de a nova onda do coronavírus na Europa aumentar ainda mais o número de casos no Brasil.
Em seu artigo, o diplomata aposentado Rubens Ricupero aponta os principais reflexos das eleições nos Estados Unidos. “Na esfera interna, não será fácil, sem controlar o Senado, aumentar impostos das corporações, aprovar pacote trilionário de estímulo, alterar a ideologia da Suprema Corte”, diz. “Já na área externa, Biden terá mais latitude para voltar ao Acordo de Paris, converter o meio ambiente em prioridade central, liderar a busca de vacina na OMS, convocar a prometida Cúpula em favor da Democracia, restituir à diplomacia e ao multilateral o papel central na política externa. Se não fizer mais nada, já terá transformado a agenda mundial de modo decisivo”.
Além desses assuntos, a revista Política Democrática Online também tem análises sobre economia, cultura e nova composição do STF (Supremo Tribunal Federal). A publicação é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado e tem o conselho editorial formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.
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Fernando Schüler: Estamos mesmo dispostos a não tratar nossos adversários como inimigos?
Isto implica, quem sabe, a parar de pensar que sua posição política corresponda à própria democracia
Joe Biden fez um apelo interessante em seu discurso de vitória. Pediu que as pessoas parassem de demonizar e tratar os adversários como inimigos. Linhas à frente, disse que havia vencido para “restaurar a decência e defender a democracia”.
Observe-se como mesmo um político moderado e boa gente como Biden tropeça. Se um lado “organiza as forças da decência” e expressa, ele mesmo, os valores da democracia, o que sobra exatamente para o outro lado?
Acho que foi apenas uma escorregada de Joe Biden. Sua história o credencia para ajudar a “curar a América” do diálogo de surdos em que se transformou a política americana. Vamos finalmente testar a tese de que basta que o exemplo venha de cima e tudo se ajeita.
Não acho que as coisas sejam tão simples. O processo de polarização nas democracias é mais profundo do que costumamos reconhecer. O discurso radicalizado de quem está no poder ou de quem faz oposição é antes consequência do que causa desse processo.
Apenas um exemplo. O Pew Research Center mostrou que 74% dos eleitores de Biden acham que é “muito mais difícil ser um negro do que um branco neste país”. Entre os eleitores de Trump, apenas 9% concordam com isso.
Estamos tratando de temas que vão muito além dos limites convencionais do debate político. Não apenas a distância entre as visões de mundo duplicou, desde os anos 1990, como se ampliou o arco dos temas sobre o qual se diverge, em um quadro em que tudo ganhou dramaticidade.
Há muitas razões que explicam isso. Piketty vem observando, com base em boa pesquisa acadêmica, como os setores à esquerda do espectro político refletem cada vez mais a mentalidade de elites metropolitanas e bem educadas, e à direita o interiorano, menos culto e tradicional. A clivagem entre “globalistas” (alta educação, alta renda) vs. “nativistas” (baixa educação, baixa renda).
Em grandes linhas, foi o que se viu na eleição americana. É apenas um indicador. As razões do crescimento da polarização política dizem respeito a uma mudança de eixo do debate público em boa medida determinada pelo impacto da revolução tecnológica sobre a democracia.
Ocorre que o ingresso massivo e direto dos indivíduos na cena pública mudou a pauta do debate político. Temas de identidade passaram a definir muito da pauta política e, na direção contrária, a defesa da tradição. Questões por definição menos abertas à argumentação e à geração de consensos relativamente aos temas tradicionais da politica institucional.
Pode-se discutir com alguma frieza e eventualmente chegar a um acordo sobre déficit orçamentário ou política previdenciária, mas não há chance quando a pauta gira em torno de convicções mais profundas envolvendo religião, raça, gênero, o começo da vida ou papel da família.
Além da incomunicabilidade, são temas próprios à atitude típica do ativista digital: a sinalização de virtude, para si, e a regulação da vida e da linguagem, para os outros. Atitude que só gera conformidade fácil, na própria tribo, e raiva, na do vizinho.
John Stuart Mill deu pistas sobre isso, século e meio atrás, em seu livro sobre a sujeição das mulheres. Ele dizia que uma opinião fortemente enraizada nos sentimentos “fica ainda mais sólida quando enfrenta uma massa de argumentos contra ela”. A lógica do diálogo, central na democracia, é estranha e pouco efetiva diante da barreira cultural.
Talvez é disso que Biden esteja tratando quando fala em “abaixar a temperatura” da politica americana. Quem sabe voltar aos termos das eleições de 2008. À época, tanto Obama quanto McCain deixaram claro que não havia questão de “decência” ou de amor ao país entre eles, mas apenas de visões sobre a política.
Vai aí o desafio. Desdemonizar a política significa aceitar seus limites. Aceitar que a falibilidade, a ideia de que em uma democracia ninguém tem monopólio da virtude e da verdade. Na prática, parar de imaginar que a sua posição casualmente corresponda ela mesma à própria democracia.
Um pouco de humildade. Sou meio cético, mas acho que Biden pode, de fato, dar uma grande contribuição aí.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: Na defesa da Amazônia, apenas jogo de cena
Apego a ideias arcaicas impede que o país volte a ter relevância internacional nas questões ambientais
A vitória de Joe Biden abre uma fresta de esperança de que se possa evitar a catástrofe climática provocada pelo aquecimento do planeta. O esperado retorno dos EUA ao Acordo de Paris, a disposição da União Europeia a abraçar uma agenda de recuperação econômica verde e o compromisso unilateral da China com a descarbonização total até 2060 dão margem a moderado otimismo.
Nesse quadro, o Brasil poderia voltar a ser um ator internacional relevante, numa das poucas arenas nas quais tem trunfos consideráveis. Para tanto, porém, o governo teria de abandonar a sua tola atitude negacionista, munindo-se de ânimo e aptidão para conter o desmatamento, a fim de proteger a Amazônia e sua biodiversidade —o cerne de nossa questão ambiental.
Apesar da limitada capacidade estatal de fazer cumprir as regras existentes, o país tem um bom marco legal e bons instrumentos de monitoramento —ainda que deliberadamente debilitados pela dupla Bolsonaro-Salles. Obstáculo tão ou mais importante é a concepção de soberania nacional que enquadra o pensamento dos militares no governo em relação ao meio ambiente.
Há pouco, o Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido pelo vice, Hamilton Mourão, ao lado de uma agenda de temas relevantes —combate aos ilícitos ambientais e estímulo à inovação e à bioeconomia—, debateu um documento revelador. O texto fala da gula das grandes potências e organizações internacionais pelo estoque de recursos hídricos do país e o suposto conluio entre entidades ambientalistas e governos europeus. No mesmo tom, durante a reunião se propôs o controle das ações das ONGs presentes na região, em nome do interesse nacional.
A fantasia de que toda pressão externa visa o acesso a nossos recursos estratégicos e que organizações não governamentais —ou mesmo populações indígenas— estão prontas a servir à ganância estrangeira cria uma linha de defesa contra inimigos imaginários e tolhe a capacidade de mobilização necessária para uma ação eficaz.
Há no Brasil forças valiosas —na opinião pública, na sociedade organizada, no empresariado e nos governos subnacionais— capazes de dar lastro a iniciativas comprometidas com a sustentabilidade, o que transformaria cobranças em apoio externo concreto. Mas, sem aposentar ideias arcaicas, fortalecer os meios de monitoramento e controle, incorporar a experiência das comunidades locais e das organizações ambientalistas enraizadas há décadas na região, e ainda sem recursos internacionais, as vistosas operações militares e os pronunciamentos do vice-presidente serão apenas jogo de cena, em prejuízo do país.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap