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Cristovam Buarque: Dúzia de Trumps

Partidos sem estratégia para o Brasil

Na mesma semana em que Donald Trump afirmou sua vitória contra Biden, dirigentes do PT comemoraram vitória nacional do partido nas eleições municipais. Sofrem da mesma doença: o negacionismo. Mas não são os únicos. Nos mesmos dias, outros comemoraram o fim do PT, negando duplamente a realidade: primeiro, porque este partido tem uma base sólida, está longe de acabar; segundo, porque estes que comemoram a derrota do PT, não têm vitória a comemorar, ao negar a verdadeira dimensão de nossa crise de falta de coesão e rumo, e não terem alternativa para o futuro do país.

O PSOL que se apresenta como vencedor sobre o PT e os partidos conservadores, é uma simpática novidade no nome e na sigla, mas não traz novo rumo para um Brasil sintonizado com o futuro: eficiente na economia, justo na sociedade e sustentável na natureza. Tem a mesma matriz ideológica do PT, sem o ônus de ter passado pelo poder. É a mesma concepção negando as mudanças que ocorrem na civilização industrial: os limites ecológicos ao crescimento, o esgotamento fiscal do Estado, o reacionarismo do corporativismo, a globalização, a instantaneidade nas comunicações, a elitização das classes trabalhadoras do setor formal, a mudança no perfil da pirâmide etária, a robotização e a inteligência artificial. A vitória fez bem ao cenário nacional do presente, mas não aponta uma esperança para o futuro.

Na direita, os que comemoram a vitória são responsáveis, juntos com os democratas-progressistas, pelo Brasil com dramáticos e vergonhosos indicadores sociais, com uma economia ineficiente, sem competitividade, nem inovação, salvo no mesmo setor de 500 anos atrás, agricultura e mineração.

Nenhum dos vitoriosos, na direita ou na esquerda, tem projeto estratégico para o país. Negam responsabilidade nas décadas de atraso e de injustiça, sem vigor transformador, sem olhar para o futuro; imaginando que basta arrumar a sociedade atendendo aos interesses corporativos e identitários, graças a recursos ilimitados do Estado. Negam a realidade e acreditam em mágica. Os centros comemoram vitória sem perceber que são muitos e sem propostas, divididos entre uma parte que quer aderir e outra que quer derrotar o governo.

Não estão vendo a realidade: o estancamento econômico, o tamanho da tragédia social, nem o vazio de propostas para o futuro. Uma dúzia de Trumps.

*Cristovam Buarque foi ministro, senador e governador


Paulo Sotero: Biden não hostilizará o Brasil

Mas o presidente eleito dos EUA não terá tempo para o trumpolavismo de Bolsonaro

O governo de Joseph Biden não hostilizará o Brasil. Mas não terá tempo para o País enquanto arautos do trumpolavismo e passadores de boiada derem cartas em Brasília. Como pouco ou nada se espera em Washington do presidente do Brasil, a ausência dos cumprimentos protocolares ao presidente eleito dos EUA não faz diferença. Já os comentários de Jair Bolsonaro e de membros de seu séquito sobre o processo eleitoral americano pesam e pesarão contra o País.

No momento apropriado, a futura administração em Washington buscará um diálogo construtivo com o Brasil em duas questões prementes de interesse mútuo. A mais urgente é a contenção do vírus que tem aliados em Bolsonaro e Trump e fez dos dois países os maiores necrotérios mundiais de covid-19, com mais de 400 mil mortos entre eles – um número que pode dobrar antes de ser controlado no ano que vem. Os assessores do presidente eleito dos EUA sabem da qualidade da medicina sanitária no Brasil e de sua capacidade na produção de vacinas em escala industrial. Ajudaria, é óbvio, que o País tivesse um ministro da Saúde à altura do desafio posto pela segunda onda do vírus em pleno curso no Hemisfério Norte e que, inevitavelmente, chegará ao Brasil.

O segundo assunto premente de interesse mútuo é a contenção do aquecimento global. Um dos primeiro atos do presidente Biden, em janeiro, será a readesão dos EUA à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, que Trump abandonou. Lançada na Rio-92, a convenção produziu um acordo histórico em Paris, em dezembro de 2015, sobre a redução voluntária pelos países signatários de suas emissões dos gases poluidores a níveis que mantenham o aquecimento da atmosfera abaixo de dois graus centígrados. As emissões brasileiras estão entre as maiores e derivam, principalmente, do desmatamento e da expansão desordenada da pecuária no arco da Amazônia.

De imediato caberá a atores e instituições da sociedade civil brasileira cultivar laços com a nova administração e compensar as faltas do governo, que é obviamente pior que a Nação. Brasília ajudará se não der palpites sobre a crise potencialmente gravíssima provocada pela resistência de Trump a reconhecer a vitória de Biden e sabotar a transição.

“Estou alarmado” com as ações desse “patife e fora da lei”, afirmou à MSNBC o ex-general Barry McCaffrey, ministro do governo Clinton e um dos militares mais condecorados de seu país, referindo-se a Trump. A fúria de McCaffrey, compartilhada por seus colegas ex-generais, foi provocada pela decisão de Trump de exonerar pelo Twitter o secretário da Defesa Mark Esper e trocar o alto comando do Pentágono por ideólogos inexperientes, da mesma laia dos amadores que compõem o gabinete do ódio incrustado no Palácio do Planalto, com o beneplácito de Bolsonaro. Trocas parecidas podem ocorrer no comando da CIA e do FBI, como no Departamento de Segurança Interna. Mudanças imprudentes, desnecessárias e injustificáveis às vésperas da troca do governo alarmam os generais e os especialistas civis em segurança nacional. O temor é que adversários dos EUA usem as oportunidades que elas obviamente oferecem e façam movimentos que requeiram uma resposta militar.

Tendo negado, durante a campanha, comprometer-se com uma transição ordeira de poder caso perdesse a eleição, Trump embarcou numa irresponsável estratégia para alimentar o caos – sua especialidade –, tumultuando a recontagem automática de votos nos Estados onde perdeu por pouco e aprofundando a divisão política e o ódio racial até as vésperas do início da nova administração. O palco da contenda são as acirradas disputas por duas vagas ao Senado federal no Estado da Geórgia, a serem decididas em segundo turno na primeira semana de janeiro. Elas criam espaço para Trump continuar a fazer estragos, com a ajuda da liderança do Partido Republicano, que conseguiu aumentar sua bancada na Câmara dos Representantes, onde é minoritário, e está na briga para manter a maioria no Senado, que perderá se os democratas elegerem dois senadores na Geórgia.

Esse é o tenso contexto no qual o Brasil não se deve meter, pois nada de relevante tem a dizer ou a ganhar e muito perderá dando opiniões em assuntos que não são de sua conta. Declarações de Bolsonaro prometendo “pólvora” se os EUA impuserem sanções contra o Brasil por conta do desmatamento na Amazônia preocupam – sobretudo por revelarem o despreparo do líder brasileiro. Sanções contra o Brasil inevitavelmente virão, mas de países da Europa importadores de nossos produtos agrícolas, e/ou sob a forma do sepultamento do acordo comercial Mercosul-União Europeia, já há tempo nas cordas.

Preocupa também a inclinação do atual comando do Itamaraty, instituição outrora respeitada, a dizer e fazer tolices, como vangloriar-se do novo status de pária internacional do País. Bravatas e declarações estúpidas mostram que a presença do Brasil na cena internacional deixou de ser indispensável.

*JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON


Eliane Cantanhêde: ‘Não levamos nada’

Mário Villalva: ‘A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?’

Depois de ser alvo de todas as críticas e de o Brasil sofrer todo o desgaste, o presidente Jair Bolsonaro está prestes a reconhecer finalmente, talvez ainda hoje, a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Desta vez, porém, os últimos não serão os primeiros, serão os últimos mesmo, para desconforto de diplomatas, militares, empresários, exportadores e analistas. Mas o “capitão” é o “capitão”, o que fazer?

É agora que vai ficar mais evidente ainda a tragédia da política externa brasileira que, segundo o embaixador Mário Villalva, “jogou todas as fichas numa só cesta, transformou os EUA na única referência”. Isso, destaca, “não combina com o nosso DNA, a nossa índole, a nossa tradição de política externa, que sempre foi ecumênica e universal”.

Diplomata de carreira, ex-embaixador no Chile, Portugal e Alemanha, Villalva presidiu a Apex no início do governo Bolsonaro, mas saiu três meses depois, botando a boca no trombone contra o aparelhamento político. Ainda “na ativa”, está licenciado e se soma a ex-chanceleres e a mentes brilhantes da história do Itamaraty na crítica à atual política externa.

Na sua opinião, Biden tem habilidade política, com 36 anos de Legislativo, e vai restabelecer a liderança dos EUA no mundo, não mudando tudo mecanicamente, nem na base do confronto e da agressão, mas sim conversando, articulando, negociando. E, claro, como qualquer líder que se preze, priorizando o interesse do seu País.

Ele, Biden, em algum momento vai olhar para o Brasil, “não com antagonismo, mas com pressões políticas legítimas para que o País mostre resultados no meio ambiente e volte a valorizar o multilateralismo”. Não será fácil, porque Bolsonaro replica Donald Trump até contra OMS (Saúde), OMC (Comércio) e a própria ONU, mas o Brasil não tem o que perder, já que não ganhou nada com Trump: “o governo brasileiro foi extremamente solícito em tudo, o tempo todo, mas os americanos não cederam nada e extraíram o máximo que puderam”.

Resumindo a longa lista de Villalva: suspensão de visto para americanos (sem reciprocidade), cessão de dados de brasileiros para o “Global Entry”, desistir de um brasileiro para os EUA quebrarem a tradição e presidirem o BID, cota livre de tarifa para o trigo, acesso de carne de porco americano sem contrapartida para a carne bovina brasileira, desequilíbrio em etanol, aço e alumínio, abrir mão do tratamento diferenciado na OMC sem entrar na OCDE. E o Brasil nem mesmo saiu da lista negra dos EUA para propriedade intelectual…

“Não levamos nada”, diz o embaixador, apontando o acordo de facilitação de comércio como repetição “bilaterizada” do que foi feito em bloco pela OMC emu 2017. Além disso, “só serve para diminuir a burocracia, a papelada, e não representa redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias, que é o que a gente precisa”. Logo, “é uma política de enxuga-gelo”, diz ele, que é diplomata. E de “engana trouxa”, acrescento eu, que não sou.

Se houve avanço, foi em defesa, mas sem chegar aonde realmente interessa: acesso a financiamento, ou seja, a um naco dos US$ 140 bilhões dos EUA para o setor. E, diante da lista de concessões para lá e nenhum retorno para cá, Mário Villalva pergunta: “A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?” Vale acrescentar: E vai mudar?

Para Villalva, 44 anos de carreira, o Itamaraty “tem uma das melhores burocracias da República, com pessoas bem selecionadas, bem treinadas, que pensam o Brasil 24 horas por dia, mas não é suficiente ter um Boeing, é preciso um bom piloto”. Que tal o atual piloto? Resposta: “Os resultados estão aí…” Não custa lembrar que “o piloto é o executor da política externa, mas o formulador é o presidente”.

Mário Villalva: ‘A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?’

Depois de ser alvo de todas as críticas e de o Brasil sofrer todo o desgaste, o presidente Jair Bolsonaro está prestes a reconhecer finalmente, talvez ainda hoje, a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Desta vez, porém, os últimos não serão os primeiros, serão os últimos mesmo, para desconforto de diplomatas, militares, empresários, exportadores e analistas. Mas o “capitão” é o “capitão”, o que fazer?

É agora que vai ficar mais evidente ainda a tragédia da política externa brasileira que, segundo o embaixador Mário Villalva, “jogou todas as fichas numa só cesta, transformou os EUA na única referência”. Isso, destaca, “não combina com o nosso DNA, a nossa índole, a nossa tradição de política externa, que sempre foi ecumênica e universal”.

Diplomata de carreira, ex-embaixador no Chile, Portugal e Alemanha, Villalva presidiu a Apex no início do governo Bolsonaro, mas saiu três meses depois, botando a boca no trombone contra o aparelhamento político. Ainda “na ativa”, está licenciado e se soma a ex-chanceleres e a mentes brilhantes da história do Itamaraty na crítica à atual política externa.

Na sua opinião, Biden tem habilidade política, com 36 anos de Legislativo, e vai restabelecer a liderança dos EUA no mundo, não mudando tudo mecanicamente, nem na base do confronto e da agressão, mas sim conversando, articulando, negociando. E, claro, como qualquer líder que se preze, priorizando o interesse do seu País.

Ele, Biden, em algum momento vai olhar para o Brasil, “não com antagonismo, mas com pressões políticas legítimas para que o País mostre resultados no meio ambiente e volte a valorizar o multilateralismo”. Não será fácil, porque Bolsonaro replica Donald Trump até contra OMS (Saúde), OMC (Comércio) e a própria ONU, mas o Brasil não tem o que perder, já que não ganhou nada com Trump: “o governo brasileiro foi extremamente solícito em tudo, o tempo todo, mas os americanos não cederam nada e extraíram o máximo que puderam”.

Resumindo a longa lista de Villalva: suspensão de visto para americanos (sem reciprocidade), cessão de dados de brasileiros para o “Global Entry”, desistir de um brasileiro para os EUA quebrarem a tradição e presidirem o BID, cota livre de tarifa para o trigo, acesso de carne de porco americano sem contrapartida para a carne bovina brasileira, desequilíbrio em etanol, aço e alumínio, abrir mão do tratamento diferenciado na OMC sem entrar na OCDE. E o Brasil nem mesmo saiu da lista negra dos EUA para propriedade intelectual…

“Não levamos nada”, diz o embaixador, apontando o acordo de facilitação de comércio como repetição “bilaterizada” do que foi feito em bloco pela OMC emu 2017. Além disso, “só serve para diminuir a burocracia, a papelada, e não representa redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias, que é o que a gente precisa”. Logo, “é uma política de enxuga-gelo”, diz ele, que é diplomata. E de “engana trouxa”, acrescento eu, que não sou.

Se houve avanço, foi em defesa, mas sem chegar aonde realmente interessa: acesso a financiamento, ou seja, a um naco dos US$ 140 bilhões dos EUA para o setor. E, diante da lista de concessões para lá e nenhum retorno para cá, Mário Villalva pergunta: “A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?” Vale acrescentar: E vai mudar?

Para Villalva, 44 anos de carreira, o Itamaraty “tem uma das melhores burocracias da República, com pessoas bem selecionadas, bem treinadas, que pensam o Brasil 24 horas por dia, mas não é suficiente ter um Boeing, é preciso um bom piloto”. Que tal o atual piloto? Resposta: “Os resultados estão aí…” Não custa lembrar que “o piloto é o executor da política externa, mas o formulador é o presidente”.


Monica De Bolle: Estupidez brutal

Brutal e renitente. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso

Daqui dos EUA de onde escrevo, a bruma da estupidez, do negacionismo, da incompetência já começou a se dissipar. Sim, Trump ainda é presidente, mas ele e seus asseclas não dominam mais as páginas dos jornais. De um lado, isso acontece porque Trump, apesar de sua frívola judicialização eleitoral, já desistiu de presidir o país dois meses antes da posse de Joe Biden. De outro porque o presidente eleito tem ocupado os espaços com anúncios sobre quem vai compor o seu governo, quais serão as medidas prioritárias, o que fará para combater a terceira e a mais terrível onda da pandemia, e como pretende resguardar a economia. No Brasil, ao contrário do que ocorre ao Norte, a estupidez brutal corre sem rédeas.

Que a estupidez brutal impere não é uma surpresa. Ninguém espera que esse governo que está aí aprenda o que quer que seja, até porque sua incapacidade já se revelou tamanha que todas as máscaras caíram. As eleições municipais deram sinais – ainda tênues, é verdade – de que a população pode estar começando a se cansar das gritarias, dos absurdos, dos desditos.

As pessoas querem políticas públicas, clamam por uma agenda, uma estratégia, um plano, qualquer coisa, enfim, que permita um vislumbre dos rumos do País e da vida de cada um quando 2021 chegar. E 2021 é o ano em que o Brasil estará lidando com desafios simultâneos: o de uma campanha eleitoral precoce para 2022 e o de uma segunda onda da pandemia. A segunda onda da pandemia é tão certa quanto a existência do vírus que a provoca. Ela já está evidente em vários números: o de leitos ocupados nos hospitais, o de novos casos, o de óbitos. Mesmo assim, há quem a negue.

Claro que há quem a negue e é claro, também, que os negacionistas não poderiam estar em outro lugar senão dentro do Ministério da Economia. Há um quê de março no ar. Lembram-se de março? Mais especificamente, do dia 16 de março? Foi há oito meses. Nesse dia, quando a pandemia já estava presente no Brasil, o ministro da Economia veio a público dizer que a economia cresceria mais de 2,5% em 2020. Perto da mesma data, Paulo Guedes também disse que enxotaria o vírus do País jogando sobre o RNA encapsulado uns R$ 5 bilhões. Não se deu conta de que o RNA encapsulado não reage nem às notas, nem às palavras que profere. A única coisa da qual ele precisa é de uma célula hospedeira para parasitar, replicar e se proliferar. Dito e feito, a primeira onda estourou bem na cara do ministro. Com volúpia.

Passada essa experiência, era, se não razoável, justificado imaginar que o Ministério da Economia não iria deixar-se pegar novamente no contrapé, sobretudo porque o vírus nunca deixou o País. Mas as oportunidades de engolir as ondas sucessivas de um RNA encapsulado e obstinado não podem ser desperdiçadas.

Em pleno alvorecer da segunda onda, um dos secretários de Guedes veio a público dizer que não há onda alguma e que os Estados brasileiros estão muito bem, obrigado, porque muitos já obtiveram a imunidade de rebanho. Lembram-se dela? Lembram-se de como teve gente insistindo que era esse o caminho, o modelo da Suécia? “Deixem a infecção natural acontecer, que logo, logo estará todo mundo imune!”, bradou a estupidez brutal.

É curioso porque a Suécia acaba de abandonar o modelo sueco por causa da segunda onda e acaba de abandoná-lo devido à segunda onda porque já está comprovado, inclusive na Suécia, que imunidade de rebanho é conceito inaplicável a uma situação de infecção natural. Como já escrevi neste espaço, o termo usado por epidemiologistas se refere àquelas situações em que existe uma vacina para uma doença infecciosa com eficácia comprovada.

Por exemplo, se a eficácia das vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna forem comprovadas, quando começarem a ser distribuídas e as campanhas de imunização estiverem em andamento, seremos capazes de dizer algo sobre imunidade de rebanho. Mas não agora. E certamente não será pelo secretário de Guedes, que já revelou não entender nem de pandemia, nem de economia. Trata-se do mesmo secretário que inventou conceitos inexistentes na disciplina, como PIB privado. Melhor nem perguntar o que é.

Portanto, a estupidez brutal. Brutal e renitente, como o RNA encapsulado. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Oliver Stuenkel: Um demagogo mais competente que Trump asfixiaria a democracia nos EUA mais facilmente

O sistema democrático norte-americano sobreviveu, em grande parte, graças à falta de disciplina de Trump. Um populista com ambições autoritárias, que aprendesse com os erros do magnata, representaria muito mais riscos no futuro

Joe Biden venceu as eleições presidenciais americanas de 2020 porque soube transformar o pleito em um referendo sobre Donald Trump. Mesmo a poucas semanas das eleições, o candidato democrata era econômico em suas aparições públicas, dando a seu adversário a maior visibilidade possível. “Trump deve receber corda suficiente para se enforcar. Quanto mais ele fala, melhor para mim”, Biden apostou. Deu certo: acima de tudo devido a sua gestão desastrosa da pandemia, que ceifou a vida de um quarto de milhão de norte-americanos, Trump tornou-se o primeiro presidente dos EUA, desde 1992, a não se reeleger.

O clima festivo nas grandes cidades americanas depois da declaração do resultado final, na semana passada, foi diferente daquele de 2008, quando o jovem senador Barack Obama acabara de se tornar o primeiro presidente-eleito negro da história dos EUA. Doze anos mais tarde, não se celebrava a vitória de Joe Biden, mas o fim da presidência de Donald Trump e a ameaça autoritária que ela representava. “Parece que acabamos de completar um exorcismo”, o cientista político Francis Fukuyama resumiu.

Não há dúvida de que a derrota de Trump pode ser interpretada como prova de resiliência da democracia americana. Numerosas iniciativas do Republicano, ao longo dos últimos quatro anos, foram bloqueadas pela justiça, ele não conseguiu calar jornais ou intimidar acadêmicos e, em uma mensagem pouco sutil na semana passada, o general Mark Milley, oficial militar de mais elevada patente das Forças Armadas dos EUA, alertou: “Não fazemos juramento (...) a um ditador. Fazemos juramento à Constituição. Cada soldado (...) vai defender esse documento, independentemente do preço que tenhamos que pagar.” Vista dessa perspectiva, a principal diferença entre os Estados Unidos e países cuja democracia colapsou ao longo das últimas décadas ―como Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia, Rússia, Zimbabwe, Egito e Filipinas― seria a qualidade de suas instituições.

Porém, enquanto as instituições certamente tiveram papel relevante para explicar o fracasso do projeto autoritário do presidente Trump, há uma outra razão, possivelmente ainda mais importante: a democracia norte-americana sobreviveu, acima de tudo, graças à incompetência e à falta de disciplina do presidente, que muitas vezes atuou visando a pequenas vitórias táticas, em vez de planejar o longo processo de desmonte das estruturas democráticas, como fizeram outras lideranças autoritárias ao redor do mundo.

A pandemia talvez seja o melhor exemplo. Em vez de aproveitar-se da crise sanitária para concentrar mais poder na presidência ―como fez o líder húngaro Viktor Orbán―, Trump optou pelo negacionismo meia-boca, permitindo a permanência de cientistas sérios no seu próprio governo. Em vez de aprovar um grande pacote de estímulo e aumentar gastos públicos para a população mais pobre, o que provavelmente teria aumentado sua taxa de aprovação, Trump não tomou a dianteira no debate.

Diferentemente de muitos líderes autoritários que conseguiram se consolidar no poder, o presidente norte-americano nunca tentou engajar aqueles fora da sua base eleitoral. Suas tentativas de atrair o voto feminino pouco antes do pleito ―dizendo, durante um comício, “Mulheres suburbanas, vocês por favor podem gostar de mim?”― nunca foram sérias. Da mesma forma, apesar da boa vontade inicial no mercado financeiro, Trump jamais tentou controlar seus impulsos nas redes sociais, mesmo ciente de que a incerteza gera frustração em Wall Street.

O presidente poderia ter provocado tensões internacionais alguns meses antes do pleito, tática clássica para impulsionar o sentimento nacionalista e aumentar a aprovação popular. Diferentemente da grande maioria dos líderes autoritários, que entendem que a destruição de um sistema democrático requer foco, dedicação e paciência, Trump aproveitou-se da presidência, até o fim, para lidar com suas ansiedades pessoais. Como a professora Ayse Zarakol observa, “[Trump] não teve o foco de Putin, a coragem de Erdogan ou a crueldade de Rodrigo Duterte.”

A verdade alarmante é que uma versão igualmente autoritária, porém mais disciplinada, mais afável e empática, mais paciente e mais competente de Donald Trump, provavelmente teria sido reeleita com tranquilidade, e há muitos indícios de que o Republicano teria tido mais espaço para implementar medidas antidemocráticas no seu segundo mandato ―como, aliás, costuma acontecer na maioria das vezes quando a democracia morre lentamente.

Não restam dúvidas de que muitos americanos votaram em Biden no último 3 de novembro para defender a democracia. Muito sugere, porém, que a vitória do democrata não se deve tanto à rejeição às tendências autoritárias, mas ao repúdio pela incompetência do presidente Republicano. Como os resultados no Senado mostram, onde aliados de Trump conseguiram defender a maioria republicana e no Congresso, onde a maioria democrata diminuiu, o trumpismo nos EUA veio para ficar. A próxima ameaça autoritária que os EUA poderão enfrentar ―possivelmente já em 2024― dificilmente seria tão amadora quanto a de um tosco apresentador de TV, que pouco se interessa pelo ato de governar. Na hora de enfrentar um caudilho mais competente, o bloco democrático não poderá se limitar a jogar parado e torcer para que o candidato com ambições antidemocráticas se enforque sozinho. Esse risco é um luxo que os democratas não poderão mais ter.

Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Demétrio Magnoli: A eleição que não terminou

Partido Republicano corre o risco de ser reduzido a movimento de contestação do sistema democrático

‘Nós precisamos considerar o antigo vice-presidente como presidente eleito. Joe Biden é o presidente eleito.” A declaração do governador de Ohio, o republicano Mike DeWine, riscou o céu de Washington uma semana depois que a apuração dos votos da Pensilvânia concluiu a disputa pela Casa Branca. O óbvio caiu quase como uma bomba nas hostes republicanas, ainda congeladas pelo negacionismo eleitoral de Donald Trump. A eleição americana não terminou: ela prossegue sob a forma de um conflito existencial no interior do Partido Republicano.

Trump assentou sua estratégia pós-eleitoral em três pilares. O primeiro: a alegação de que o candidato democrata fraudou a vontade popular. O segundo: o Partido Republicano, submetido a sua liderança incontestável, rejeitará de modo monolítico qualquer diálogo com o governo do suposto usurpador. O terceiro: o partido funcionará, desde já, sob o signo de sua candidatura presidencial de 2024.

Trump começa a erguer o Comitê de Ação Política “Save America” (Salvar os EUA), destinado a operar como direção efetiva do Partido Republicano. Simultaneamente, prepara-se para criar uma nova rede de TV, concebida como veículo pessoal e alternativa à direita da Fox News. O projeto trumpiano é subordinar as bancadas republicanas na Câmara e no Senado a suas conveniências, transformando-as em máquinas de sabotagem permanente do governo Biden.

Os tribunais derrubarão, uma a uma, as alegações vazias de fraude de Trump. Biden será, certamente, empossado em 20 de janeiro. Mas Trump planeja jamais reconhecer a legitimidade do novo presidente, esticando até o limite a corda que prende os EUA ao mastro da democracia representativa. Se os republicanos o acompanharem nessa aventura, reduzirão o partido à condição de movimento nacional-populista de contestação do sistema democrático.

A ascensão da direita nacionalista produziu dois tipos de deslocamento nos sistemas político-partidários ocidentais. Países como França, Itália, Alemanha e Espanha experimentaram o declínio de partidos moderados tradicionais e a emergência de um grande partido de direita. Nos EUA, porém, assim como no Reino Unido, o deslocamento ideológico realizou-se no interior de um dos dois partidos históricos, que foi capturado pelo nacionalismo.

No caso do Partido Conservador britânico, verificou-se uma captura parcial, impulsionada pela rejeição à União Europeia e pelo plebiscito do Brexit. Já o Partido Republicano dos EUA conheceu uma cisão mais profunda com seu passado.

O governo de Boris Johnson flerta com a xenofobia e com o nacionalismo, mas não contesta os fundamentos da democracia parlamentar ou os valores básicos do Ocidente. O governo Trump, por outro lado, operou no plano internacional como parceiro de regimes autoritários (Putin, Erdogan, Orbán) e, no plano nacional, como motor de restauração da “nação de colonos brancos”. Nesse passo, os republicanos assumiram as feições de partido da reação.

A resistência republicana a Trump percorreu a campanha presidencial pela voz do Projeto Lincoln, uma dissidência do partido que fez campanha aberta por Biden. O presidente eleito recebeu mensagens de congratulação da velha guarda republicana, representada por figuras como o ex-presidente George W. Bush, o ex-candidato presidencial Bob Dole e o atual senador e também ex-candidato Mitt Romney. Contudo, fora eles e um punhado de parlamentares, o partido segue mais ou menos alinhado ao negacionismo eleitoral trumpiano. É por isso que a declaração do governador de Ohio tem especial relevância.

A encruzilhada diante da qual se encontra o Partido Republicano interessa ao mundo inteiro. Se os republicanos se ossificarem como partido antidemocrático controlado por Trump, será comprometida a estabilidade política da maior potência mundial e se acelerará a tendência ao declínio internacional dos EUA. Se, pelo contrário, a maioria cindir com Trump, restabelecendo a tradição moderada republicana, a nação americana voltará a conversar, e os movimentos populistas de direita, na Europa e no Brasil, sofrerão um golpe devastador. Olho nos EUA.


Marcelo Trindade: Coalizão em torno do centro

Um bom começo é reconhecer a fragilidade da democracia

Menos de 50 mil votos em três estados (Arizona, Geórgia e Wisconsin). Essa foi a real diferença que elegeu Joe Biden presidente dos Estados Unidos, não os mais de cinco milhões de votos de vantagem no resto do país.

Para a maioria dos analistas, essa vitória só foi possível porque Biden é de centro, capaz de atrair eleitores de todas as correntes. Só a coalizão foi capaz de vencer o radicalismo, e por tão pouco. É urgente traduzir essa lição para o ambiente brasileiro, se pretendemos, como nação, voltar a progredir, deixando para trás a ignorância e o ódio.

Um bom começo é reconhecer a fragilidade da democracia e trabalhar imediatamente por uma coalizão em torno do centro, que possa vencer as eleições de 2022.

Depois há que negociar as medidas consensuais nos setores mais urgentes — educação, saúde, segurança, saneamento. Há muita convergência nesses campos, e em outros praticamente só há consenso — meio ambiente, cultura, política externa, liberdades, minorias. Os debates nas trincheiras da divergência ideológica devem ser adiados, pelo bem comum.

Para a conversa evoluir, será também preciso definir, de saída, o modelo para a escolha do futuro candidato a presidente — não necessariamente o nome. Uma ideia seria exigir reputação e experiência, e permitir apenas um mandato de quatro anos, a ser cumprido até o fim. O movimento poderia incluir, ainda, a volta ao regime original da Constituição de 1988, de cinco anos de mandato sem reeleição, a partir de 2026.

Só com ousadia e espírito público será viável uma concertação de centro. O momento é de grave crise institucional, e a polarização só tende a aumentar, em benefício de quem a promove. Quatro anos de pacificação política, gestão profissional, retomada de fôlego e preparação para o futuro são essenciais antes de uma nova disputa eleitoral dividida, sob pena de um radical prevalecer. Foram menos de 50 mil votos que livraram a maior democracia do mundo desse risco. Não temos tempo a perder.

*Marcelo Trindade é advogado e professor da PUC-Rio


Cacá Diegues: Vai melhorar, sim

Vamos trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Que a saliva não acabe nunca!

Depois de quase dois anos ouvindo absurdos políticos e assistindo desorientados às trapalhadas totalitárias do presidente; depois dos cerca de nove meses de uma pandemia de muitos mortos, para os quais as autoridades federais não deram a menor bola; depois de uma recuperação significativa de nosso PIB, que fez o Brasil ter agora, contados pelo IBGE, 199 mil milionários e 52 milhões de pessoas, um quarto de sua população, vivendo abaixo da linha de pobreza; depois de tanto susto e surpresa, os brasileiros foram enfim às urnas escolher seus administradores municipais. Menos, é claro, em Macapá, capital do Amapá, o estado sem luz.

Celebremos nesta eleição o sucesso do espírito democrático, um teste de nossa capacidade de escolher quem vai mandar na nossa rua pelos próximos quatro anos. Passaremos quatro anos explicando a nossos pares o que anda acontecendo e eles ainda não entenderam; ou nos declarando traídos por um governo municipal e uma câmara de vereadores de sacripantas e enganadores. Pois é disso que trata a democracia, o regime mais parecido com o ser humano. Ou, como dizia Churchill (ou não sei quem), o pior regime que existe, excetuando todos os outros.

Passei esses dias lendo o livro de Karla Monteiro sobre Samuel Wainer, “O homem que estava lá”, uma enciclopédia do que foi a política no Brasil durante os anos de vida do biografado. Pelo que a autora conta do período que conheci e vivi, só posso acreditar piamente no resto do tempo que ela aborda. Trata-se da vida de Samuel, de tudo e de todos que circularam à sua volta, desde que sua família, fugindo do antissemitismo em voga na Europa, chegou da Bessarábia quando ele tinha 8 anos de idade, até seu falecimento, com 68 anos, vítima de uma pneumonia da qual não cuidou. No dia de sua morte, em setembro de 1980, terminávamos “Bye Bye Brasil”, o filme em que, a seu pedido, Bruno, seu filho adolescente, fora nosso estagiário, sua porta para o cinema. Samuel Wainer foi um brasileiro que tive a sorte de conhecer. E de aprender o que ele entendia e pensava do Brasil. E ainda foi um dos primeiros, no país, a acreditar e promover o Cinema Novo.

Nesta semana assistimos também ao assassinato de Cadu Barcellos, um homem brilhante, um cineasta de talento, um cidadão generoso. Cadu foi diretor de um dos episódios de “5XFavela”, a versão de 2010 realizada por moradores de favela, e, aos 34 anos, se empenhava em fazer do Complexo da Maré um centro de cultura, criação e invenção. Cadu morreu sem fazer os filmes que só ele sabia fazer. De madrugada, numa esquina solitária da Avenida Presidente Vargas, foi assaltado e esfaqueado à morte. Os ladrões levaram tudo o que ele tinha: um celular e alguns poucos reais que guardara para o ônibus.

Vamos trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Queremos incentivar a saliva, que ela não acabe nunca, tenha sempre mais um pouco, seja como líquido que escorre natural da boca, seja como lágrimas que jorram dos olhos. Ou até mesmo na forma de um beijo.

E foi como um beijo que vimos Kamala Harris cantar e dançar com um grupo de crianças nosso baile funk de favela em português das quebradas, rebolando como se fosse uma das nossas. O sereno Joe Biden é um Tancredo, que vem na frente para sossegar o coração de quem tem medo do novo. Mas Kamala Harris é o futuro que vai ser construído sobre o terreno que Joe Biden aplaina. É ela que parece dizer aquele trecho da encíclica de Francisco, em homenagem ao santo xará: “Toda guerra deixa o mundo pior do que o encontrou (…) não nos turvará, o fato de nos tratarem como ingênuos porque escolhemos a paz”.

Segundo o IBGE, o Brasil é o nono país mais desigual do mundo, com uma distribuição de renda pior que a dos africanos mais pobres. Cada vez que melhoramos no conjunto, são só os mais ricos que ficam mais ricos. Outro dia, policiais da 31ª DP, de Ricardo de Albuquerque, na Zona Norte do Rio, prenderam um homem que estava vendendo ossos humanos, retirados de túmulos no cemitério local. O homem declarou à polícia que estava desempregado, só roubava o que lhe era encomendado e que cobrava muito pouco pelo serviço. O delegado Fábio Souza o autuou em flagrante, por “vilipêndio de cadáveres”.

A vida é mesmo meio como um jogo de perde-ganha. Quanto pior agora, melhor será daqui a pouco. Vai melhorar. Vai melhorar, sim. Tenho certeza de que vai melhorar. Acho que sim.


Dorrit Harazim: À exaustão

Segundo assessores, Trump não tem qualquer estratégia além de se agarrar às chaves do poder até 20 de janeiro

Joe Biden derrotou Donald Trump por uma diferença que pode chegar perto de 7 milhões de votos populares. Um mundaréu. Biden também ultrapassou com folga os 270 votos eleitorais necessários para merecer a Casa Branca — o placar foi de 306 a 232. Mas festão de arromba dá ressaca. E a aldeia democrata que sacolejou como não fazia desde 2016 despertou para a realidade. Trump continua entrincheirado no Twitter, mantém quase intacto seu monopólio midiático, e o núcleo duro do Partido Republicano ainda o teme como líder de mais de 72 milhões de eleitores. Outro mundaréu.

Também não dá para continuar a festança diante do ressurgimento tentacular da Covid no país. Ao longo das últimas semanas, a pandemia adquiriu contornos de crise humanitária nos Estados Unidos, comparável à mortandade no Japão causada pelo tsunami de 2004 ou ao terremoto de 2010 no Haiti. O novo coronavírus é apenas mais silencioso e longevo. E insidioso.

O trunfo de Biden diante da birra existencial de Trump são os oito anos em que atuou como vice e parceiro diário de Barack Obama na Presidência. Ele não precisa de mapa — aprendeu e frequentou os meandros da Casa Branca como poucos. Precisa sim, e com urgência, de acesso irrestrito à máquina do governo para começar a formular políticas e inteirar-se do tamanho dos problemas que o aguardam. Ou não é para isso que servem as equipes de transição e os 72 dias de preparo entre a vitória nas urnas e a cerimônia de posse?

Mas esse compartilhamento só funciona quando o ocupante de saída da Casa Branca é minimamente convencional, civilizado e temente ao lugar que ocupará na História. Ou seja, qualquer um menos Donald Trump.

O atual presidente já deixou de simular interesse pela nação. Segundo relatos de assessores próximos, o comandante-em-chefe não tem qualquer estratégia além de se agarrar às chaves do poder até o meio-dia do dia 20 de janeiro. E poder, para Trump, significa dominar o noticiário, alimentar o suspense em torno de seus rompantes, pequenas e grandes vinganças, demissões bombásticas de última hora, do mistério de como se dará sua despedida. Ele espera assim manter aceso o engajamento dos seguidores para lançar a campanha Trump2024 — mesmo que ela seja fake.

Na verdade, existem apenas dois poderes presidenciais quase absolutos na democracia americana. O primeiro é o controle final do mandatário sobre o arsenal nuclear, envolto em minuciosos controles e salvaguardas até uma bomba ser de fato disparada. Mas continua válido o comentário de Richard Nixon durante um jantar na Casa Branca para membros do Congresso: “Eu poderia sair deste salão agora e, em 25 minutos, 70 milhões de pessoas estariam mortas”. Hoje seriam apenas 5, no máximo 7 minutos, até o disparo final e, para sorte do nosso planetinha, nem Nixon nem Donald Trump acionaram a ferramenta.

O segundo poder quase absoluto do ocupante da Casa Branca consta do Artigo II, Seção 2 da Constituição americana e tem raízes na monarquia britânica do século VII: a concessão do perdão presidencial. A ideia de que brotou essa prerrogativa foi benigna, elaborada como contrapeso à severidade institucional da Justiça criminal. O artigo em questão contém apenas duas restrições. O perdão só pode ser concedido a quem praticou uma ofensa aos Estados Unidos (portanto, só é cabível para crimes federais) e não pode ser usado para casos de impeachment.

Mas a Constituição de 1787 deixou em aberto uma questão que somente agora, no crepúsculo do mandato de Trump, adquire relevância — pode um presidente conceder clemência para si mesmo? Como essa hipótese não ocorreu a nenhum dos 44 presidentes antes do atual, a dúvida permaneceu restrita a interpretações de causídicos. Somente em 1974, com o impeachment e a renúncia de Richard Nixon em andamento, o Departamento de Justiça tomou a decisão de declarar que um autoperdão não deveria poder ser concedido, com base na lei fundamental de que ninguém pode ser juiz de seu próprio processo.

Só que a leitura do 45º presidente é outra. Muito antes de ser derrotado nas urnas, Trump proclamou algumas vezes seu “direito absoluto de conceder perdão a mim mesmo”. Pode até ser tentador como apoteose final ou autoimolação de sua presidência disruptiva. Mas nem isso o livraria da penca de processos que o atormentam em tribunais estaduais. Segundo a CNN, o presidente se informa sobre o tema desde 2017, de forma obsessiva, inclusive inquirindo assessores sobre a possibilidade de conceder perdão por antecipação, na eventualidade de alguém próximo vir a ser condenado mais adiante. Espera-se, no mínimo, uma enxurrada de perdões para aliados puro-sangue que foram parar na cadeia por sua causa.

Ou seja, Trump será Trump até a exaustão.


Raul Jungmann: Amazônia: decifra-me ou te devoro

Dependendo do olhar que se lance sobre a Amazônia Legal, ora ela parece um gigante, ora um anão. Geográfica e fisicamente ela é indiscutivelmente superlativa: 61% do território nacional, com mais de 5.2 milhões de Km2; um terço de todas as florestas tropicais do mundo, 20% da água potável do planeta, idem maior bacia hidrográfica, maior rio, maior banco genético e diversidade.

Se fosse um país, a Amazônia internacional seria o sexto maior em extensão, espalhando-se por nove países sul-americanos. Na outra face da moeda, a região detinha apenas 8% do PIB em 2018, e 12.3% da população total do país, algo como 23 milhões de habitantes – destes, 69% concentrados nas áreas urbanas.

Em 2007, as áreas protegidas (reservas indígenas + áreas ambientais + reservas militares) somavam 209 milhões de hectares, dos quais 53% em situação fundiária incerta, segundo o Imazon. Em resumo, a gigante Amazônia é um “vazio de poder”, em termos econômicos, populacionais e políticos. Historicamente, apenas em 1953, no segundo governo Vargas, foi criada a SPVEA – Secretaria Para a Valorização Econômica da Amazônia, antecessora da igualmente impotente SUDAM.

A Amazônia sempre foi para o Brasil um “outro” – longínquo, desconhecido, exótico, misterioso. Não sabemos o querer dela; inexiste um projeto nacional para a região. E sua voz, desde sempre, foi pouco audível. A região se caracteriza mais pelo olhar externo sobre ela, do que pela sua voz sobre si mesma.

E não por acaso vêm de fora os ventos da mudança. Globalização e alterações climáticas internacionalizaram definitivamente a região. Mais e mais, o mundo crê que a Amazônia está para o seu futuro como algo capital, em termos de equilíbrio ambiental e sobrevivência humana. A Amazônia é considerada um dos 15 “hot spots” do mundo com impacto no clima global. O que tende a exacerbar pressões que se chocam com nossa soberania sobre a região.

O desmatamento, queimadas e exploração mineral de terras indígenas no topo das mídias globais, são a expressão mais visível desse entrechoque, que ameaça setores exportadores, podendo levar à perda de mercados e sanções.

Não se iludam, a Amazônia, pela primeira vez estará na agenda presidencial de 2022. Afinal, ela está na agenda do mundo. Ergo, estará na nossa também, como atesta a criação da Coalizão Brasil, Clima Florestas e Agricultura, integrada por mais de 250 empresas do agronegócio, grandes bancos, academia e ONGs.

Decifrar essa esfinge e solucionar a atual e antiga crise, requer um projeto nacional voltado para o desenvolvimento sustentável. Sem este, não há como alinhar a defesa da nossa soberania, a preservação do meio ambiente e as preocupações globais.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Rubens Ricupero: A vitória de Joe Biden é uma boa notícia para o Brasil? Sim

Haverá espaço para relação construtiva, inclusive em meio ambiente e comércio

Para o Brasil, isto é, para o povo brasileiro, é bom. Para o governo Jair Bolsonaro, não tanto. Os leitores talvez não se lembrem da frase do general Juracy Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Pois bem, neste caso ele teria razão.

Basta pensar no aquecimento global. Se não fizer mais nada além de voltar ao Acordo do Clima de Paris, Joe Biden já terá feito um bem imenso ao mundo e, portanto, à parte que nos cabe no planeta comum.

Para o nosso povo, abandonado pelo próprio governo diante da Covid-19, é ótimo que o novo presidente tenha a intenção de prestigiar a ciência na luta contra a pandemia, regressar à Organização Mundial de Saúde e liderar o esforço mundial por uma vacina.

Também será excelente para os amantes da liberdade que Biden convoque, como anunciou, uma Cúpula em favor da Democracia para discutir o aumento do autoritarismo, a luta anticorrupção e os direitos humanos. Quem não vai gostar são os que defendem torturadores, os nostálgicos da ditadura e do AI-5, que querem fechar o Congresso e o Supremo. Para os democratas, a notícia traz alento e esperança.

Da mesma forma, só hipócritas obscurantistas lamentarão que o futuro governo dê impulso às políticas de promoção da igualdade da mulher, aceitação das mudanças sociais em comportamento sexual, diversidade e LGBT. Ao contrário, terá o aplauso de todos os que favorecem a emancipação individual e a evolução da consciência moral da humanidade.

Para o povo brasileiro, que partilha com o americano a herança racista da escravidão, a disposição de Biden de superar o racismo estrutural servirá de estímulo para enfrentarmos nossos fantasmas nessa área. O mesmo vale para a desigualdade crescente, incomparavelmente mais grave entre nós.

O interesse do Brasil nem sempre coincide com o do governo Bolsonaro. Exceto para quem crê que é bom para o país deixar a Amazônia e o Pantanal serem incinerados por grileiros, madeireiros ilegais, pecuaristas gananciosos. Ou permitir que garimpeiros envenenem rios e povos indígenas.

Não para se alinhar à agenda americana, e sim para realizar as genuínas aspirações de nosso povo, a eleição de Biden representa oportunidade de mudar, mais que ameaça. O próprio governo Bolsonaro, se tivesse um mínimo de bom senso, deveria aproveitar a ocasião para repensar a política externa e as orientações em meio ambiente e direitos humanos.

Da parte do democrata Biden, tudo indica que haverá espaço para relação construtiva com o Brasil, inclusive em meio ambiente e comércio. Do lado do governo brasileiro, os sinais não são animadores. A ameaça de recorrer à pólvora para rebater declarações sobre a Amazônia não vai tirar o sono do Pentágono. Mas revela a tamanha imaturidade de Bolsonaro, que provocará no exterior misto de espanto e galhofa.

A eleição de Biden completa o cerco de isolamento internacional de um governo já com péssimas relações com França, Alemanha, União Europeia, China e boa parte da América Latina. Diante disso, Bolsonaro tem duas saídas possíveis. Ou responde com equilíbrio e sensatez, começando por cumprir o dever de civilidade de felicitar o vitorioso na disputa americana, ou age como o fanático que redobra a aposta no erro.

Seja qual for a escolha do governo, o misto de alegria e alívio que saudou a vitória de Biden traz esperança de que se aproxima do fim a hora do poder das trevas nos Estados Unidos e, oxalá, no domínio do seu imitador nos trópicos. E isso é o melhor de tudo para o Brasil!

*Rubens Ricupero, diplomata, ex-embaixador do Brasil em Washington (1991-1993) e Roma (1995); ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (1993-1994 e 1994, governo Itamar)


Fernando Gabeira: Um grande exorcismo

Se foi possível nos EUA, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

A derrota de Donald Trump não só tranquilizou, como trouxe alento a muitos países no mundo. A expressão de Francis Fukuyama referindo-se ao exorcismo para definir a vitória de Joe Biden é muito precisa. Parece que tudo volta lentamente a um curso mais racional, menos imprevisível. O Acordo de Paris volta a ser um instrumento potencialmente eficaz para combater o aquecimento global. Angela Merkel saudou a volta de uma aliança transatlântica e suas possibilidades.

Alguns países se recusam a reconhecer a derrota de Trump. China, Rússia e Brasil estão entre eles, por motivos diferentes, creio. Na linguagem diplomática o atraso é uma mostra inequívoca de insatisfação com o resultado. Tanto a China quanto a Rússia contavam com o avanço do processo de decadência americana, encarnado por Trump e seu isolacionismo.

O caso brasileiro é de orfandade. Bolsonaro perdeu seu grande inspirador. E a política externa, comandada por Ernesto Araújo, não tem mais o que considera o líder do Ocidente que iria fazer prevalecer os valores morais sobre o materialismo reinante. Não se sabe de onde se trouxe uma figura laranja, cheia de problemas com o Fisco, rude com as mulheres, para o cargo de guardião do cristianismo.

A pior das ilusões foi a expectativa provinciana de Bolsonaro se tornar amigo de Trump. Este sabe que nações não têm amigos e está escorado no slogan “America first”. Objetivamente, fez de Bolsonaro um fiel seguidor, pronto para aprovar tudo em nome de uma pretensa amizade pessoal, ali onde estavam em jogo interesses nacionais. A exportação do aço foi taxada, Bolsonaro dilatou o prazo para a importação do etanol e colocou sua diplomacia num ato de campanha eleitoral na fronteira com a Venezuela, quando da visita de Mike Pompeo. Para dar mais uns votinhos a Trump na Flórida. O Brasil armou o circo que Pompeo precisava.

Agora tudo acabou. Se há esperanças na Europa, aqui há apreensão. É muito difícil Bolsonaro adaptar-se à posição ambiental de Biden. Para Bolsonaro será mais uma forma de adotar uma falsa postura nacionalista e não interromper o processo de destruição da Amazônia, o único caminho que vê para o progresso, nos termos em que o entendem as pessoas que ficaram congeladas nos anos 70 do século passado.

Logo depois da eleição de Biden Bolsonaro pensa em lançar um marco regulatório das ONGs. Na verdade, é uma promessa antiga, pois afirmou que iria acabar com o ativismo no Brasil. Trata-se de algo inconstitucional, que deve encontrar resistência no Congresso e no Supremo.

Além disso, circula um documento no Conselho da Amazônia dizendo que chineses e europeus têm planos para levar a água de lá. Não se sabe como o fariam sem o consentimento brasileiro É mais uma história para fantasiar uma luta nacionalista e ampliar o processo de destruição em nome dos interesses do Brasil.

No passado era o minério e agora, a água. Não creio que elaborem essas teorias de má-fé. Lembro-me, no passado, de já se ter discutido a possibilidade de exportação de água. Foi uma discussão baseada no Canadá, também exportador. Não foi adiante. Era uma exportação controlada, mas não se demonstrou a viabilidade.

Se os chineses podem levar nossa água, por que não nosso açaí, nossa castanha e todos os outros recurso naturais? Essa formulação alucinada só servirá para aumentar o isolamento brasileiro. Sem o deus laranja da nossa diplomacia, com Bolsonaro atuando de forma estúpida num contexto externo delicado e caminhando para uma crise interna sem precedentes, o grande exorcismo ainda não atingiu o Brasil. O mundo ficou mais inteligível e racional, mas os espíritos secundários que baixaram por aqui ainda não permitem que nos livremos de seus delírios maníacos. Uma coisa nos anima: se foi possível em escala maior, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

O último pronunciamento de Bolsonaro nos indica o nível de insanidade a que chegou o governo brasileiro. Ele insinuou um conflito armado com os EUA ao dizer que vai usar a saliva, mas quando acabar restará a pólvora.

Uma forma de desestimulá-lo é informar-lhe que a pólvora foi descoberta pelos chineses – ele certamente vai duvidar desse instrumento, como duvida da vacina contra o coronavírus. Outra é apelar para sua generosidade. Os EUA acabam de sair de uma eleição difícil, combatem como nós uma pandemia, não é justo amedrontá-los com um conflito armado. Eles seriam jogados na máquina do tempo, sentiriam no contato com nossos equipamentos como se estivessem entrando de novo na 2.ª Guerra Mundial. Talvez valesse mais a pena fazer o general Mourão e alguns militares reformados que jogam vôlei no Posto 6, em Copacabana, invadir a Filadélfia e reverter o resultado eleitoral. Isso traria menos conflito e bom material para programas humorísticos mundo afora.

Na verdade, o governo Bolsonaro seria risível se não se tratasse de uma pandemia que mata tanta gente e de uma política ambiental que reduz as chances de vida no planeta. Por isso se tornou uma tragicomédia, cujo prazo de duração até 2022 é muito doloroso.

*Jornalista