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João Gabriel de Lima: O impeachment, o ‘efeito Dilma’ e o ‘efeito Getúlio’

Trauma e tempo protegem – por enquanto – o presidente Jair Bolsonaro

Ainda existe clima para o impeachment de Jair Bolsonaro? Em que condições um presidente se torna vulnerável a um processo de impeachment no Brasil?

Para responder a essas perguntas é necessário examinar duas linhas mestras da história política brasileira.

A primeira é o presidencialismo de coalizão. Tal sistema não é invenção dos constituintes de 1988. A partilha de poder entre Executivos e Legislativos faz parte da cultura democrática brasileira desde o fim da ditadura de Getúlio Vargas. Presidentes que não sabem ou não querem lidar com o fato perdem poder e são engolidos pelo Congresso.

A segunda é que, apesar do DNA presidencialista, o Brasil tem um forte gene parlamentarista. A lei do impeachment é expressão disso. Ela foi aprovada em 1950 por um Congresso que tentou efetivamente implantar o parlamentarismo no Brasil. Não conseguiu, mas criou um mecanismo para manter os presidentes sob controle.

Os dois fatos embasam a dissertação de mestrado do jornalista João Villaverde, personagem do minipodcast da semana. Ele dissecou os três processos de impeachment envolvendo presidentes brasileiros: Getúlio Vargas em 1954, Fernando Collor em 1992 e Dilma Rousseff entre 2015 e 2016. O estudo lança um olhar analítico sobre um tema que costuma ser encarado de forma passional e traz lições do passado que são essenciais para entender o presente. 

Villaverde examina as cinco condições que, segundo a literatura internacional, impulsionam o impedimento de um presidente: desequilíbrio institucional, provas constitucionais e legais, ausência de maioria parlamentar, baixa popularidade e fatores externos, como crise econômica. Todas as condições se aplicam aos casos de Getúlio, Collor e Dilma. Quatro estariam presentes no caso de Bolsonaro. A exceção é o índice de popularidade, até agora bem superior aos de Collor e Dilma nos momentos em que perderam o cargo.

Bolsonaro, no entanto, se beneficia de um “efeito Dilma”. O impeachment da presidente foi um processo traumático. Ao contrário de Collor, Dilma tinha um partido forte, enraizado na sociedade civil, o que gerou uma mobilização capaz de dividir o País. Depois dela, é inevitável que a classe política pense duas vezes antes de iniciar um processo tão desgastante.

Há outro fator decisivo, calcado nas lições da história. Os afastamentos de Collor e Dilma se consumaram, mas Getúlio sobreviveu. A hipótese de Villaverde é que o fator tempo foi decisivo. O processo de impeachment contra Getúlio foi no fim de seu mandato, próximo à eleição seguinte.

Nos casos de Collor e Dilma ainda havia muito tempo para formar um novo governo. 

O esforço que Bolsonaro fez para controlar a presidência da Câmara – incluindo o “incentivo” de R$ 3 bilhões para arrebanhar o voto de alguns parlamentares, como revelou o Estadão em furo de reportagem – foi, precisamente, para ganhar tempo. Seria ingenuidade acreditar na fidelidade de Arthur Lira e sua trupe caso a popularidade de Bolsonaro derreta e as ruas se encham. Se a lua de mel entre o governo e o Centrão durar até o segundo semestre de 2021, no entanto, o País já estará próximo de uma nova eleição, e a classe política pesará isso. 

Villaverde avalia que a eleição de Arthur Lira diminuiu a possibilidade de impeachment de Bolsonaro, ao menos no curto prazo. Trauma e tempo: o “efeito Dilma” e o “efeito Getúlio” protegem – por enquanto – o presidente brasileiro.


João Gabriel de Lima: A Terra volta a ser redonda. Hora de o Brasil embarcar

Foi semana de benditas obviedades. Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do planeta

Stefani Germanotta, a Lady Gaga, cantou o hino dos Estados UnidosJennifer Lopez deu um twist latino à sua interpretação de God Bless America; e, no encerramento, a poeta Amanda Gorman, de 22 anos, declamou versos que resumem o sentimento da nova geração. Na posse do presidente Joe Biden, as três mulheres nos lembraram que os Estados Unidos são um país ítalo-americano, hispano-americano, afro-americano – sem contar outras etnias e misturas. Muito de sua força e riqueza se deve à bênção de ser uma nação de imigrantes.

Parece óbvio. É como dizer que a Terra é redonda.

No momento-chave de seu discurso, Biden disse: “Nós devemos tratar os outros com dignidade e respeito. Juntar forças, parar o tiroteio e baixar a temperatura. Sem unidade não há paz – só amargor e fúria. Não há progresso – só ultraje exasperante. Não há nação – só um estado de caos”.

Dignidade e respeito. Condições óbvias para o debate inteligente nas democracias. A Terra é redonda.

No mesmo dia da posse de Biden, Portugal assumiu a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. Em Bruxelas, o primeiro-ministro António Costa traçou as linhas gerais dos próximos seis meses: foco no social, na economia digital e no combate às alterações no clima. “Temos um planeta para proteger, e não podemos perder mais tempo,” disse Costa em seu discurso.

A Terra é redonda, e temos que cuidar dela.

Aqui em Portugal vivemos o momento mais dramático da pandemia. O governo decretou confinamento total. A trajetória da covid no país confirma o mantra dos cientistas: as duas únicas formas de controlar uma pandemia são vacina e distanciamento social. Portugal achatou a curva quando optou pelo confinamento, em março passado e no início de dezembro. Quando abriu mão dele, no “alívio” de Natal e ano-novo, deu-se o inverso. Turbinados pela variante inglesa, os casos explodiram.

Seguir o que diz a ciência: outra obviedade.

Enquanto isso, no Brasil, as obviedades são colocadas em dúvida todos os dias. O distanciamento social é minimizado, a floresta que ajudaria a deter a mudança climática enfrenta recordes de desmatamento e o “tiroteio” e o “ultraje” se tornam a regra em Brasília. Em ensaio publicado recentemente, o cientista político José Álvaro Moisés – personagem do minipodcast da semana – examina as razões de vivermos em permanente crise política. Uma delas pode ser o sistema de governo. Segundo Moisés, o semipresidencialismo – que vigora em Portugal e na França – distribui melhor o poder e facilita a negociação.

Portugal vai às urnas neste domingo para escolher o presidente. O atual ocupante do cargo, Marcelo Rebelo de Sousa, é o favorito à reeleição. Marcelo, que os portugueses chamam pelo primeiro nome, é de centro-direita, e divide o poder com o primeiro-ministro Costa, de centro-esquerda. Eles conversam “com dignidade e respeito” – e, pela saúde dos cidadãos, foram capazes de unificar o discurso durante a pandemia, em pleno tiroteio eleitoral.

Respeito aos que pensam diferente e aos que vêm de países diferentes. Respeito à ciência. Foco no social num momento em que muitos ficam sem empregos. Foco no combate à mudança climática – se ela ocorrer, nada restará para nossos filhos e netos.

Foi uma semana de benditas obviedades. Como se a Terra, depois de um momento de loucura, tivesse voltado a ser redonda.

Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do planeta.


Foto: Beto Barata\PR

João Gabriel de Lima: Um quebra-cabeça chamado Brasil

Cabe ao próximo presidente triunfar onde os últimos fracassaram: apontar um rumo

Uma lista de “pequenas alegrias da vida adulta” – tomo de empréstimo o título da música de Emicida – circula nas redes sociais. Ela traz coisas boas que só existem no Brasil: sorvete de tapioca, mergulho vespertino em Ipanema, bateria de escola de samba, frango com batata frita. Se ser carioca é um estilo de vida, e não uma designação de origem, poucos cariocas são mais cariocas que o jornalista escocês Andrew Downie, o autor da lista. Fã de carnaval e futebol, ele é biógrafo do doutor Sócrates e torce fervorosamente pelo Hibernian – time que sempre chega perto do título escocês, mas não vence o campeonato desde 1952.

Saindo do terreno da memória afetiva, e indo para o universo da economia e das políticas públicas, temos várias razões para sentir orgulho do Brasil. Muitos Estados têm programas de excelência em Educação, como Espírito SantoPernambuco e o sempre citado Ceará. O Congresso criou um auxílio emergencial a toque de caixa durante a pandemia – programa que temos a obrigação ética de substituir urgentemente – e reduziu a pobreza em 2020. Domamos a inflação, somos referência em agricultura e a movida de startups em São Paulo é a mais vibrante da América Latina. Essa lista de façanhas surgiu, com facilidade, numa conversa com um dos maiores especialistas em Brasil, o economista José Roberto Mendonça de Barros, colunista do Estadão e personagem do minipodcast da semana.

Apesar de tudo isso, amargamos mais uma década perdida, brasileiros morrem em Manaus por falta de oxigênio – e, internacionalmente, somos motivo de pena pela gestão da covid, desconfiança por causa da Amazônia e zombaria por ter abraçado o cadáver de Donald Trump. A Ford foi embora, Andrew Downiefoi embora – e, acabo de lembrar, até eu mudei de país, ainda que temporariamente. O que acontece? José Roberto arrisca uma explicação. “Falta uma visão de rumo”, diz ele. E desenvolve: “Falta a sociedade chegar a um acordo sobre algumas coisas, e gerar aquela visão macro que possa ser absorvida por algum governo”.

O Brasil é rico em recursos naturais e eficiente em diversas áreas. Falta descobrir sua vocação, dar aquele salto que permitiu a alguns países marcar presença no mundo. Somos um quebra-cabeça com várias peças dispersas, mas não conseguimos formar uma figura a partir delas. Países como Austrália e Canadá tiveram, igualmente, abundância em recursos naturais no ponto de partida. Tornaram-se, com o tempo, economias inovadoras, com alta produtividade e área social resolvida – ficaram ricos, enfim. Enquanto isso, por alguma razão – ou várias razões –, o Brasil patina em suas mazelas.

Como lembrou o Estadão em seu primeiro editorial do ano, faltam algo como 17 mil horas para que o Brasil escolha seu próximo presidente. Parece uma eternidade, mas a eleição está na próxima esquina – o colunista Alberto Bombig, em podcast, fez um inventário dos candidatos que surgem no horizonte. Seria positivo se os postulantes ouvissem a sociedade e se dedicassem a montar o quebra-cabeça chamado Brasil. Se surgir uma visão coerente, é só colocar o nome “programa de governo”. Cabe ao próximo presidente triunfar onde os últimos fracassaram: apontar um rumo, sugerir uma direção. Para que o Brasil deixe de ser a terra das décadas perdidas, das empresas e cidadãos que deixam o país. Aquele time que parece fadado a disputar títulos, mas sempre perde no final do campeonato.


João Gabriel de Lima: Palavras que queremos ouvir em 2021

 ‘Moral money’, ‘ESG’, ‘impacto’, vocábulos, siglas e expressões que prometem irromper o ano

Uma boa forma de fazer a retrospectiva do ano é lembrar das palavras que se tornaram correntes em 2020. Algumas são novas, que incorporamos ao vocabulário. Outras são ressuscitadas de épocas passadas. Em 2020 tiramos do baú palavras tristes como “pandemia”, “isolamento”, “máscara” – e outra mais esperançosa, “vacina”. Há motivo para otimismo, no entanto, quando se olha para alguns dos vocábulos, siglas e expressões com os quais nos acostumamos ao longo de 2020: “moral money”, “ESG”, “impacto”. Com sorte, essas palavras boas serão muito usadas ao longo de 2021.

Na Inglaterra, a expressão “moral money” se popularizou como título de uma das seções do Financial Times, um dos mais importantes jornais de economia do mundo. No cabeçalho, o diário londrino explica que “moral money” trata de negócios socialmente responsáveis, finanças sustentáveis, investimentos de impacto e ESG (“environmental, social and corporate governance”) – sigla que, de certa forma, engloba tudo isso.

Tais palavras prometem irromper em 2021 cavalgando números impressionantes. US$ 45 trilhões estão aplicados atualmente em fundos que utilizam estratégias sustentáveis, segundo estimativa do banco Morgan Stanley. Isso significa metade dos investimentos mundiais no mercado financeiro. Há dois anos, data do último levantamento, eram US$ 31 trilhões – número, por sua vez, 34% maior que o de 2016.

Existe a possibilidade de que parte desses números seja “para inglês ver” – dinheiro aplicado em ações de empresas que se declaram sustentáveis sem cumprir os requisitos mínimos. Pois são justamente os britânicos, líderes tradicionais na área financeira, que irão pagar para ver. No Reino Unido, uma aliança entre o governo e o setor privado fará um mapeamento de tais fundos, com o objetivo de classificá-los. O líder da força-tarefa é o português Rodrigo Tavares, personagem do mini-podcast da semana. Professor de finanças sustentáveis na Nova School of Business and Economics, ele é um dos maiores especialistas mundiais no assunto.

Os trabalhos para a confecção deste ISO das finanças começam já em janeiro, e seguirão ao longo de 2021, ano em que o assunto “moral money” estará crescentemente em pauta. No Brasil, “moral money” será o tema recorrente dos cursos e seminários da Associação Brasileira de Jornalismo Empresarial, a Aberje – que importará a discussão que explode na Europa. Trata-se daquilo que os alemães chamam de “zeitgeist”, espírito do tempo.

Faz parte desse espírito a decisão de grandes empresas de varejo, como Nestlé, Walmart e Tesco, de não comprar mais grãos de produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O fato, anunciado na semana passada, foi lembrado em análise feita pelo site Virtù, editado pelo cientista político Luiz Felipe D’Avila e referência na área de políticas públicas. O texto aponta uma queda das vendas do agronegócio brasileiro para o Velho Continente, pondera que os números brasileiros de desmatamento não permitem acusar os europeus de protecionismo, e atribui a catástrofe ao “Brasil arcaico que, infelizmente, possui representantes em Brasília”. 

“Desmatamento”, “queimadas”, “Brasil arcaico” – eis outras palavras tristemente recorrentes neste ano. Devemos deixá-las em 2020. O melhor que se pode desejar para 2021 é que, ao final do próximo ano, seja possível encher o espaço desta coluna apenas com palavras boas.


João Gabriel de Lima: Piketty, Paulo Guedes e os nomes dos bois

Expurgada das siglas, discussão tributária pode ser fascinante, além de essencial

Talvez não seja o caso de convidar Thomas Piketty, herói da esquerda mundial desde que publicou o livro O Capital no Século XXI, e Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro, para a mesma mesa de bar. Se a mesa for de debates é outra coisa. Em 2014, os dois participaram de um evento na Universidade de São Paulo. Piketty viera ao Brasil lançar o livro que o tornou famoso. Paulo Guedes nem sonhava (pensando bem, sonhava sim) em ser ministro da Economia.

Em um momento do debate, Piketty, naquele inglês charmoso (e às vezes incompreensível) de que só os franceses são capazes, defendeu apaixonadamente a cobrança de um imposto sobre heranças. Em sua vez de falar, Paulo Guedes endossou a tese. O esquerdista e o liberal concordaram mais que discordaram, surpreendendo a plateia.

Lembrei-me do episódio neste momento em que o Brasil discute orçamento e uma reforma tributária. A conversa exclui a maior parte dos cidadãos por causa da linguagem excessivamente técnica, um emaranhado de números e siglas. O debate poderia ser mais inclusivo se os contendores, sem abrir mão da complexidade dos temas, dessem nomes aos bois (o economista Bernard Appy, colunista do Estadão e ex-integrante do governo Lula, é uma exceção por sua clareza. Ele é o personagem do minipodcast da semana).

Os cidadãos de um país entregam parte de seu dinheiro aos governos – o nome disso é imposto. Os políticos decidem onde o dinheiro será utilizado – isso se chama orçamento. Tais políticos são escolhidos pelos cidadãos, de forma a agir de acordo com o pensamento da sociedade – a isso se chama democracia.

Como o dinheiro dos cidadãos não cobre todas as despesas, é necessário fazer escolhas – isso se chama conflito distributivo. Os cidadãos preferem que seu dinheiro seja investido em hospitais ou na JBS de Joesley Batista? Gostariam que os recursos financiassem escolas ou aposentadorias de juízes e desembargadores?

No Brasil, seria pedagógico se esses conflitos ficassem mais claros para todos. Em Portugal, onde moro, os debates sobre orçamento e tributos são assunto recorrente nos telejornais. A isso se chama cidadania.

Se falta dinheiro, seria o caso de cobrar mais dos cidadãos? Se sim, todos concordam – e aí entra a conversa entre Piketty e Paulo Guedes – que os ricos devem pagar mais. Quanto dinheiro, no entanto, seria possível gerar com impostos sobre heranças ou dividendos? No Brasil, tem-se como certo que tal valor resolveria todos os problemas. Falta aquilo que se chama matemática – um ponto fraco em nosso debate público.

Expurgada das siglas, a discussão tributária pode ser fascinante, além de essencial. Se Piketty e Paulo Guedes conseguem conversar sobre o assunto, por que não nós? Estive algumas vezes com Paulo Guedes como jornalista. Anos depois do debate na USP, entrevistei Piketty no palco, no âmbito do projeto “Fronteiras do Pensamento” – e a conversa, ótima, evoluiu para um jantar com seus editores brasileiros.

A impressão que guardo dos dois: Guedes e Piketty adoram debater com quem pensa diferente (mesmo que alguns no governo chamem impropriamente de “detratores” os que discordam, legitimamente, do ministro da Economia). Na falta do debate inteligente, os fracos de argumentação preferem se recolher em bolhas, esquerdas de um lado, direitas do outro. A isso se chama obtusidade – termo difícil de conciliar, na mesma frase, com a palavra democracia.


João Gabriel de Lima: O telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour

O crime recente envolvendo racismo no Brasil poderá influenciar pleitos municipais?

Uma história envolvendo racismo mudou uma eleição e, no longo prazo, toda a política americana. No dia 19 de outubro de 1960, três semanas antes do pleito presidencial que opôs John Kennedy a Richard Nixon, um grupo de ativistas negros invadiu uma loja de departamentos no sul dos Estados Unidos. Era um protesto contra a segregação racial no restaurante da loja.

Todos foram presos e soltos em seguida. Menos um: o reverendo Martin Luther King Jr., maior ativista de direitos civis da história americana. Dias mais tarde, ele seria transferido para uma prisão de segurança máxima. Coretta, mulher de Luther King, entrou em desespero. Temia que o marido fosse vítima de violência dentro da cadeia. Ela ligou para Harris Wofford, conselheiro da campanha de Kennedy. Wofford – que narra o fato num episódio da série Race for The White House, produzida pela CNN – disse que ia ver o que poderia fazer.

Em 1960, o partido mais próximo do movimento dos direitos civis era o Republicano. Os democratas eram identificados com movimentos racistas do sul, entre eles a Ku Klux Klan. Nixon conhecia Luther King pessoalmente, e ligou para a Casa Branca pedindo que intercedessem pelo ativista. Não foi atendido. Nixon ficou em silêncio – não quis fazer uma declaração pública sobre um assunto tão delicado. Bob Kennedy, irmão de John e coordenador de sua campanha, defendia que os democratas também deveriam guardar silêncio para não afastar os eleitores do sul. Wofford sabia disso. Fez com que a informação sobre Coretta chegasse a John por meio de um assessor, sem que Bob soubesse.

Num misto de impulso e cálculo político, John ligou para Coretta e apresentou sua solidariedade. A imprensa noticiou o fato, e Bob ficou irado, achando que o gesto custaria a eleição do irmão. Pouco depois, percebeu que havia ali uma oportunidade. Passou ele próprio a defender Luther King. O ativista foi solto, e o voto dos negros americanos acabou sendo decisivo para que Kennedy ganhasse uma eleição apertada contra Nixon. Os democratas, que tinham a pecha de racistas, viram seu partido se tornar, aos poucos, o campeão dos direitos civis.

Mudanças de trajetória em partidos políticos são comuns nas democracias, já que eles existem para representar tendências e ideias que surgem na sociedade. No minipodcast da semana, o cientista político português António Costa Pinto fala sobre o assunto. Conhecedor da vida americana – ele lecionou em Stanford e Berkeley – Costa Pinto aponta os novos desafios dos democratas. No século 21, o partido deu outra virada, tornando-se a sigla da nova economia e dos jovens urbanos. No caminho, perdeu os operários e a classe média dos rincões. Precisa recuperá-los na guerra contra o derrotado (mas ainda bem vivo) Donald Trump

Em tempos de eleições, o telefonema de Kennedy deixa uma pergunta no ar. O episódio recente envolvendo racismo no Brasil – o crime do Carrefour – poderá influenciar os pleitos municipais? A resposta, ao que tudo indica, é negativa. O País não se dividiu. A imensa maioria dos candidatos, da esquerda à direita, de Sebastião Melo a Manuela D’Ávila, de Guilherme Boulos a Bruno Covas, tuitou contra o crime bárbaro e nomeou sua motivação: racismo. Sessenta anos se passaram entre o telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour. O racismo não morreu, mas algo mudou na política. Uma vitória do movimento dos direitos civis.


João Gabriel de Lima: A comédia Donald Trump pode estar perto do fim

Se previsões se confirmarem, americanos interrompem peça enquanto se pode ir dela

Comédias têm três atos, ensinam os clássicos da dramaturgia. Tragédias têm cinco. Se as projeções se confirmarem num país dividido, a comédia Donald Trump terá chegado à última cena com o esperneio final – e patético – do presidente dos Estados Unidos.

É possível delinear os três atos da comédia Trump a partir da leitura de O Povo Contra a Democracia, do alemão Yascha Mounk. O livro disseca esse tipo de político que, sem ser propriamente de esquerda ou de direita, fustiga uma e envergonha a outra: o populista.

O primeiro ato de um populista típico é vender soluções simples – e erradas – para problemas complexos. No mundo globalizado, governar não é trivial. Não é possível, por exemplo, criar empregos por decreto, tampouco evitar que eles migrem para outros países. Nem combater pandemias com poções mágicas. Líderes modernos – como Angela Merkel, Emmanuel Macron ou António Costa, para citar exemplos de vários lados do espectro político – são aqueles que conseguem explicar os limites de um governo a seus eleitores. Tratam-nos como adultos.

Um populista, por seu turno, infantiliza os que votaram nele. Trump prometeu tornar os Estados Unidos novamente grandes – e, ao longo de sua presidência, tratou os cidadãos americanos como crianças a quem se promete um chocolate para que parem de chorar. Inventou um muro para evitar que imigrantes mexicanos disputassem postos de trabalho nos Estados Unidos – e seu governo acabou sendo aquele em que mais americanos perderam seus empregos desde a Segunda Guerra. Eis o segundo ato da comédia populista. Os embustes vendidos na campanha eleitoral são esmagados pela realidade.

No terceiro ato, o populista diz que a culpa não é dele. Se algo deu errado, é porque os inimigos não deixaram o governante trabalhar. Por “inimigos” entendam-se a ONU, o Congresso, os “comunistas”, a imprensa, os chineses, os mexicanos. Ou, ainda, os cientistas que sugeriam medidas sensatas contra o coronavírus. Se as projeções se confirmarem, será porque a maioria dos americanos não engoliu a fake news dos inimigos e escolheu Joe Biden presidente da República, encerrando o terceiro ato. Fim da comédia. Cai o pano.

Trump já é, e continuará sendo, um caso de estudo em ciência política. Poucos o entenderam melhor que Mounk, intelectual que milita contra o populismo. Suas trincheiras são o site “Persuasion”, uma rede de defesa da democracia, e um podcast com o nome sugestivo “The Good Fight”, “O Bom Combate”. Nos episódios, Mounk entrevista expoentes da reflexão política num gradiente amplo de convicções, de Anne Applebaum a Francis Fukuyama.

O maior risco de um país governado por um populista é a reeleição. Neste cenário, o ciclo continua: o governante diz que a culpa não é dele, os eleitores acreditam e o reconduzem ao cargo. A peça evolui para um quarto ato, em que o populista dobra a aposta nas soluções simples e erradas. As cenas finais mostram a corrosão das instituições. Temos aí os cinco atos de uma tragédia. As cortinas da democracia se fecham.

Se as projeções se confirmarem, será porque a maior parte dos americanos, cansados de ser tratados como crianças, decidiram que a América deveria ser, novamente, gente grande no mundo. Se as projeções se confirmarem, os americanos terão evitado que a comédia se transformasse em tragédia, ao interromper a peça enquanto ainda era possível rir dela.

*Jornalista, escritor e professor da Faap e do Insper