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RPD 35 || Jairo Nicolau: "Urna eletrônica é motivo de orgulho, não de polêmica"
ENTREVISTA ESPECIAL - JAIRO NICOLAU
Militância do presidente da República na suspeição do voto digital pode ter contaminado cerca de um terço do eleitorado brasileiro, acredita o cientista político Jairo Nicolau
Por Caetano Araujo, Arlindo Oliveira e André Amado
Entrevistado especial da edição de setembro da Revista Política Democrática Online, o cientista político Jairo Nicolau critica duramente os ataques contínuos do presidente da República à urna eletrônica - e ao processo eleitoral brasileiro -, considerada por ele como um dos processos de votação mais eficientes do mundo. "A urna eletrônica foi um grande passo para aperfeiçoar o processo de votação no Brasil. É, assim, um sucesso tanto contra a corrupção como na adulteração da vontade do eleitor no momento da votação e, claro, depois na contagem dos votos", avalia.
De acordo com o professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), estima-se que a militância do presidente da República na suspeição do voto digital possa ter contaminado cerca de um terço do eleitorado. "O estrago é tão lastimável como irreversível. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves", lamenta.
Mestre e doutor em Ciências Políticas no Iuperj, com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, Jairo é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.
Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Jairo Nicolau também comenta termas como o sistema político brasileiro, reforma política, fragmentação partidária e processo eleitoral, entre outros. Confira, a seguir, os principais trechos:
Revista Política Democrática Online (RPD): Seu livro sobre a história do processo eleitoral no Brasil louva nosso sistema eleitoral por ser isento de fraudes. Como avaliar os questionamentos que se têm levantado recentemente quanto à inteireza do sistema de votação e, em particular, de apuração?
Jairo Nicolau (JN): Dei ênfase à redução das fraudes, não a seu banimento. Até pouco tempo, as fraudes aconteciam em dois momentos. No momento da votação propriamente dita - e todos aqui somos da época da urna de lona, da cédula de papel, e nos lembramos de como era difícil controlar as fraudes, mesas sendo arranjadas para facilitar que certas forças políticas comparecessem para encobrir o comparecimento de uma pessoa, votar no lugar de outra. E, na hora da apuração, quando todas as cédulas eram depositadas sobre mesas situadas em ginásios esportivos. Pegava-se um uma cédula, lia-se o nome de um e cantava-se o nome de outro. Se não tivesse um fiscal ali, na hora de transformar os votos contados para os boletins de urna, ninguém detinha as fraudes. Fui presidente de sessão eleitoral durante muitos anos e acompanhei as apurações e lembro bem de alguns casos.
Esse tipo de fraude terminou com a urna eletrônica. Além da urna eletrônica, temos hoje também um cadastro nacional de eleitores, de que pouca gente fala, que é checado periodicamente para evitar duplicação de entrada de eleitores. Dispomos ainda da leitura biométrica da identificação dos eleitores que exclui qualquer possibilidade de termos um eleitor inscrito em mais de uma sessão eleitoral ou uma pessoa votando em nome da outra. A urna eletrônica é, assim, um sucesso tanto contra a corrupção como na adulteração da vontade do eleitor no momento da votação e, claro, depois na contagem dos votos.
"Nossa fragmentação é tão alta que vamos levar muito tempo para voltar, por exemplo, ao que éramos na década de 90, com oito ou dez partidos. Isso só não aconteceu em 2018 por uma razão puramente contingente, o arrastão bolsonarista"
Subsistem algumas denúncias no atual processo eleitoral, como as de compra de votos, vale dizer, a influência política de alguns segmentos das elites sobre eleitores mais vulneráveis em certas áreas do Brasil. Isso não está mapeado, mas, de fato, ocorre. Ainda não contamos com um sistema de eleição semelhante a países com elevado nível de educação, como na Escandinávia, por exemplo. Mas o que a urna eletrônica fez já foi uma grande conquista. Não se dispõem de estatísticas confiáveis a respeito da confiabilidade das urnas eletrônicas. Estima-se que a militância do presidente da República de suspeição do voto digital possa ter contaminado cerca de um terço do eleitorado. O estrago é tão lastimável como irreversível.
Do nosso lado, dos democratas, das pessoas que acreditam que a urna foi um grande passo de aperfeiçoar o processo de votação no Brasil, resta sempre um movimento de reação. Reação significa campanha, denunciar fake news. Mas o estrago já está feito, justo quando deveríamos estar celebrando o reconhecimento de um dos processos de votação mais eficientes que conseguem traduzir a vontade do eleitor em preferência política do mundo. Diria até que, do ponto de vista da logística, é o melhor do mundo.
E esse sistema foi colocado em xeque pelo senhor Jair Bolsonaro. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves. Continuo otimista com relação a nossa urna eletrônica e, agora, com o voto biométrico. É, sem dúvida, motivo de orgulho, não de polêmica, para todos nós, brasileiros.
RPD: Mais uma vez, estamos presenciando tentativas de alteração do sistema eleitoral a pouco mais de ano do pleito 22. Toda essa movimentação obedece ao receio dos deputados de não se reelegerem reflete, de fato, a necessidade de aprimorar o sistema eleitoral? A seu juízo, que alterações se justificariam para além dos interesses da sobrevivência eleitoral de A, B ou C?
JN: Em razão da regra de que qualquer mudança eleitoral só vale depois de um ano de aprovada, os anos ímpares costumam acumular propostas várias de reforma das regras do processo de votação. Aprovou-se, por exemplo, um calendário de entrada em vigor da cláusula de desempenho, ou seja, que os partidos devem ter uma votação mínima em âmbito nacional para eleições para a Câmara, para o partido ter, depois da eleição, acesso a recursos importantes, como fundo partidário, tempo de televisão. Essa regra já está em vigor, e a legislação prevê que ela vai aumentar até 2030. Ou seja, é possível fazer reformas nas regras eleitorais necessariamente para entrar em vigor na eleição seguinte.
Mas o quadro que a gente tem hoje, pelo menos desde 2014 sobretudo, é que, com algumas reformas, ficou claro que o intuito dos deputados era muito mais de se preservar politicamente do que pensar algum tipo de reforma mais generosa para o país, de aperfeiçoamento do sistema representativo. Acompanho, há muito tempo, os debates na Câmara e compreendo que a motivação dos deputados para reformas não exclui sobrevivência política. Seria estranho imaginar-se partidos cometendo suicídios políticos. Vejamos a questão do voto distrital. Sabemos que, por essa via, partidos de opinião praticamente desapareceriam. Ninguém espera um cálculo político absurdo desse tipo. Defende-se, também, a representação proporcional. Será apenas para proteger os interesses de minoriais? Difícil dizer. Em toda eleição tem um pouco de malícia, de auto-interesse, o que não é necessariamente ruim.
É o que tem acontecido, e aconteceu primeiro com o fundo eleitoral. Quando os deputados e senadores criaram, em 2015, o fundo eleitoral, perceberam que seria estratégico para a sobrevivência política. O dinheiro da campanha viria, sobretudo, do fundo; só faltava criar regras para proteger quem já tinha mandato. Na confecção do fundo, foram muito generosos consigo mesmos. Os partidos maiores ficaram com muito mais dinheiro do que os menores. Como era uma primeira eleição com o fundo, não custava ter deixado uma parte maior para distribuir para os pequenos partidos. Mas, não, eles concentraram o dinheiro do fundo.
"Quando os deputados e senadores criaram, em 2015, o fundo eleitoral, perceberam que seria estratégico para a sobrevivência política. Só faltava criar regras para proteger quem já tinha mandato"
Para proteger a elite política da incerteza da recondução eleitoral, cresceram as perspectivas do chamado Distritão, proposta agora derrotada na Câmara. Na visão dos políticos - tenho muitas dúvidas se eles estavam corretos nessa análise – o Distritão protegeria os deputados que tem mandato. Lembrem-se que, na última eleição, por exemplo, partidos, como o PP, o Progressista, deram muito mais dinheiro para quem tinha mandato, tentando atraí-los para suas legendas. Chegou-se a prometer dois milhões e meio por candidato. Ou seja, o partido não lança candidato à presidência, economiza e, com as sobras, celebra as barganhas. Apoiavam-se em propostas substantivas, republicanas, de melhor servir à cidadania? Não, prevalecia a ideia clássica que move os deputados: o interesse de pessoas, de políticos, nada a ver com os interesses dos partidos.
Reformas desse tipo, que chamo de egoísmo extremado, haverão de conduzir ao desaparecimento de partidos, que se atomizariam e se fragmentariam ante a ânsia incontida dos políticos de sobreviverem abraçandos mandatos, avessos a tudo que possa soar republicano, orgânico, de interesse público.
Não devemos esquecer que, em 2017, houve reforma profunda das regras eleitorais: acabou-se com a coligação e criou-se um sistema de cláusula de desempenho que vai subindo até 2030. O mais curioso é que, até agora, não se testou numa eleição nacional o fim das coligações, muito embora já conste da Constituição, o que um absurdo, é demais. Tanto mais quando já se tenta retirar da Carta Magna o que não foi testado. O que é isso se não é auto interesse? Se há quatro anos era importante para o Brasil acabar com as coligações, o que mudou agora?
A meu ver, esse debate foi muito mal encaminhado, conjugado ainda com essa discussão descabida sobre voto impresso. Com base em minha experiência de estudar esse assunto há muito tempo, digo que nunca vi um debate tão ruim, tão mal feito, tão mal escrito, tão desalinhado como esse das três comissões que o analisaram. É o sinal dos dias, uma legislatura medíocre que se meteu num tema que exige certa especialização e que não poderia ter produzido outra coisa que não um resultado medíocre.
RPD: Seu livro sobre o processo eleitoral para a câmara foi publicado em 2017, meses antes da promulgação da emenda constitucional que proíbe coligação, e a possibilidade de adoção de uma cláusula de barreira de 1,5%, progressiva no tempo, que terminou sendo adotada pela emenda de iniciativa do senador Ferraço. Acredita que a cláusula de desempenho nessa década funcionará com o propósito tal como foi imaginada, isto é, de 2%, 2,5%, em 2026, e 3%, em 2030?
JN: Acho que sim. A gente chegou a tamanho grau de pulverização e fragmentação partidárias que, independentemente do fim da coligação, iniciou-se um processo que se assemelha a uma onda. A onda foi ao máximo com a pulverização de partidos pequenos. Não há congresso algum no mundo que tenha o maior partido representado com menos de 60 membros. Tal hiperfragmentação é disfuncional. A cada votação na Câmara, tem-se de contar com 26 indicações de lideranças. Viu-se isso no processo de impeachment da Dilma. O eleitor não consegue mais seguir um partido diante de tantas siglas. Os políticos não logram criar uma identidade com uma legenda, porque a confusão é total.
É ruim para o presidente. A própria presidente Dilma mencionou que, na época do Fernando Henrique, do Lula, eles tinham cinco, seis partidos na coalizão. No caso dela, eram 14 ou mais.
"Além da urna eletrônica, temos hoje também um cadastro nacional de eleitores, de que pouca gente fala, que é checado periodicamente para evitar duplicação de entrada de eleitores"
Mas há uma razão que me parece fundamental para esse processo que eu estou apontando de encolhimento do quadro, de fragmentação, que é o dinheiro. Quer dizer, não dá para pulverizar o dinheiro, a elite política percebe que tem de concentrá-lo na mão de um número menor do que 26 forças políticas. Já algum movimento nessa direção. Alguns políticos do PSD falam de fusão com o PP e o PSL, que daria um mega partido de direita, ultrapassando 100 deputados, pela primeira vez em mais de 20 anos.
O problema maior pode ser para as pequenas legendas. O que têm acrescentado no debate nacional, com algumas exceções? Muito pouco. A cláusula de desempenho não foi mexida, vai manter-se a mesma, então o que mexe com o dinheiro não é a coligação, lembrando que a coligação é uma decisão do político, o fato de ter a norma não significa que, na prática, ela se concretize. Na campanha de 1986, muito poucos partidos se coligaram. O PT e o PSD, do Kassab, sempre se opuseram a coligações, e não será, agora, quando passam por um bom momento político, que haverão de rever sua posição de base.
Tudo indica, portanto, que quem quer coligar-se não tem cacife e quem não quer vai partir para atuações isoladas em alguns Estados, decididos a não se prestar a dar carona a partidos menores. Daí porque eu achar que o congresso de 2022 vai ser mais compacto do que o atual. Claro, não vamos chegar ao modelo inglês, com dois grandes partidos e alguns partidos pequenininhos. Nossa fragmentação é tão alta que vamos levar muito tempo para voltar, por exemplo, ao que éramos na década de 90, com oito ou dez partidos. Isso só não aconteceu em 2018 por uma razão puramente contingente, o arrastão bolsonarista. Caso contrário, o DEM, PSDB e MDB teriam bancadas mais expressivas com 50, 60 deputados cada um.
Quer dizer, o que o Bolsonaro fez em 2018, com aquele desempenho impressionante no primeiro turno, que se traduziu numa bancada gigantesca de deputados, ajudou, digamos assim, a quebrar um padrão, mas isso, para mim, não continua. Nem sempre há eleições extraordinárias. Vimos muitas eleições depois da redemocratização, e só em uma, um partido, fez o estrago. Se a gente olhar e comparar o que aconteceu com o maior partido do Brasil, o Partido dos Trabalhadores, para chegar a 50 deputados, o PT passou por umas cinco eleições. Teve oito em 82, dobrou para 16 em 86, foi para 30 e poucos em 90, chegou em torno de 50 em 94. Quer dizer, o partido levou uma década e meia ou duas décadas para chegar a 50 deputados, e o PSL numa eleição chegou a isso. Isso nunca tinha acontecido.
O surgimento do PSL trouxe um elemento ainda de fragmentação. Agora, o PSL, não é à toa que ele está buscando uma aliança com outro partido, porque eles estão percebendo que ali de baixo não tem nada, é oco. O partido não tem nome, aquilo ali foi um arrastão ocasional. Eu apostaria, intuitivamente, é uma aposta só de conversa fiada, vamos dizer assim, que uma boa parte, sei lá, 60%, 70% dos deputados do PSL não se reelegem mais, eles entraram ali e vão sumir como surgiram. Para mim, 22 será o momento de compactação política. Mas, de novo, não vai ser a compactação como conhecemos na década de 90, mas tampouco vamos repetir esse modelo de hiperpulverização de 2018.
RPD: Sabemos que nosso sistema eleitoral nas eleições proporcionais não é um sistema frequente no mundo. Normalmente, quem adota o sistema proporcional adota o sistema com alguma forma de fechamento ou pré-ordenamento das listas. Dado que nós temos uma certa singularidade nesse ponto, quais seriam, do ponto de vista dos eleitores, os principais problemas que esse sistema acarreta para nós?
JN: Para mim, o maior efeito desse sistema é que tem muitas formas de organizar-se a representação proporcional. O que há em comum entre os vários países que usam a representação proporcional é o princípio de que cada partido lança uma lista de nomes. Se a gente for na Polônia, na Bulgária, em Portugal, na Espanha, qualquer país do mundo que usa a representação proporcional, o fundamento é: lance uma lista de nomes, o voto dessa lista vai ser contado e nós vamos distribuir as cadeiras proporcionalmente segundo o volume de votos de cada lista. Isso é o que há de comum. Em Portugal, por exemplo, o eleitor não vota em nomes, porque a lista já vem prontinha de casa. Digamos que se no Brasil o sistema português fosse adotado, nós chegaríamos na seção eleitoral, olharíamos a ordem dos nomes. Primeiro lugar, candidato fulano, beltrano, ciclano. Assim funciona em Portugal, de modo de que na hora que se olha para a cédula, só marca um xis onde está seu partido. Como a gente votava para presidente no Brasil na época da cédula de papel, é uma cédula portuguesa para deputados: aparecem o símbolo do partido e o nome. A marcação do lado indica que se comprou o pacote, não se está escolhendo um nome.
"É o sinal dos dias, uma legislatura medíocre que se meteu num tema que exige certa especialização e que não poderia ter produzido outra coisa que não um resultado medíocre"
O que temos no Brasil é um sistema cuja ênfase no nome no candidato é muito forte. Costumo dizer que isso é agravado para os eleitores comuns pelo próprio processo de votação. A urna eletrônica, em que pesem todas as virtudes que identifiquei, não ajuda passar para o eleitor a sensação que ele está votando numa lista e não num nome. Se eu tivesse, por exemplo, um eleitor peruano que usa o sistema brasileiro de lista aberta, ele tem uma cédula grandona com o nome de todos os candidatos e as listas. Ele vai lá e marca um nomezinho na cédula, com todos os candidatos. Claro, no Brasil não daria porque são 400, 500 candidatos. Mas, se fossem 80, na época da cédula de papel, você faz uma cédula peruana, grandona, com retratinho, você vai lá e escolhe o retratinho, você está votando no nome. No Brasil, a gente não tem isso. Então, respondendo a sua pergunta, eu acho que o maior problema que eu vejo na lista aberta é que o papel do político individual é muito grande. E como os Estados cresceram muito em tamanho, a população ficou muito grande e a sociedade brasileira, mais complexa, a política ficou mais democrática, os interesses atomizados da sociedade começaram a adotar o lugar da política, dos partidos, de uma maneira, fazendo uma ligação direta, que não existia no passado. Claro que sempre houve padre, um radialista, um artista da televisão fazendo política, lideranças da sociedade sempre entraram na política da vida. Nem todo mundo precisa começar a carreira política se filiando no diretório local, sendo vereador, depois deputado estadual. Essa carreira, digamos linear, acontece, mas o que eu percebo, recentemente, é que com essa mudança da sociedade brasileira, o atalho entre celebridades, lideranças da sociedade civil e a política, tanto para bem quanto para mal, ficou muito curtinho, ficou muito rápido.
A bancada do PSL é isto, não é? São 50 personalidades, raríssimos políticos de carreira ali, são pouquíssimos. Isso aparece com interesses econômicos, empresários que no passado faziam lobby, tinham amigos na política, começaram a se meter com política. Não estou falando de grandes empresários, do presidente da CNI, não, eu estou falando de empresários locais, dono de uma transportadora, um pecuarista que resolve ele mesmo entrar na política. Interesses, claro, do outro lado, sindicais. Não mais interesses religiosos, a gente não está falando de um líder religioso nacional, a gente está falando de um pastor de uma igreja pequena, de uma região do Rio de Janeiro, o sujeito vai direto. É um pastor de uma igreja rural, não tem atalho, ele entra num partido um ano antes da eleição, se elege federal. Ele é representante de quem? Ele é simplesmente o intermediador em Brasília entre os interesses da igreja e dos moradores lá da região dele.
RPD: A fragmentação está relacionada ao sistema? A falta de transparência e de inteligibilidade para os próprios eleitores está relacionada com isso? O que fazer para poder avançar na solução dessas questões?
JN: Acho que de certa maneira não tem como tirar a responsabilidade do sistema proporcional de lista aberta combinando com a mudança que o país passou. Quando a elite política era mais fechada, ela resolvia bem isso. Digamos, colocava os quadros, pensando até recentemente, no PSDB, nos partidos que fizeram a constituinte. Você tinha uma elite parlamentar que controlava a política e às vezes aparecia uma figura dessa, mas ele ficava na franja do sistema político, ele era em menor número. Agora, o Brasil mudou, o sistema eleitoral é o mesmo. Esse atalho é feito em ligação direta. Como a gente fazia no passado, ligava o carro em ligação direta, você não tem chave, não tem intermediação, isso me preocupa.
Para mim, mesmo uma reforma política, no que a gente está falando aqui de compactação, vai melhorar um pouco a inteligibilidade do sistema, ele vai ficar um pouco mais arrumado, mas essa questão mais funda, do hiperparticularismo dominando a política, que tem a ver com a lista aberta – claro, você pode botar uma lista fechada e não resolver esse problema –, que a lista aberta agrava esse problema eu não tenho dúvida. Isso veio para ficar, ou seja, o legislativo brasileiro está muito pulverizado não só em termos partidários, mas do particularismo dos interesses locais, interesses pontuais. A gente vê uma campanha para deputado, eu lembro que, no ano passado, tinha um sujeito que era representante dos porteiros do Rio de Janeiro, ele queria voto como representantes dos porteiros e trabalhadores nos prédios. “Eu quero representá-los em Brasília”. Veja, não é mais o interesse territorial, é o hiperinteresse. Isso realmente me preocupa, e eu não sei como a gente tem como mudar isso. Porque depois que a gente coloca essas pessoas no Legislativo, aí que elas não vão querer um sistema de lista fechada, porque elas provavelmente vão ficar na rabeira da lista, não é mesmo? É um modo de reprodução que é difícil quebrar nesse caso.
RPD: Devidamente autorizado por sua experiência na academia e nos corredores da política, que proposta gostaria de ver vitoriosa nas mudanças que se insinuam na área eleitoral?
JN: Para ser totalmente honesto, e diante dessas propostas, eu diria nenhuma. Nesse momento, era melhor deixar do jeito que está. A gente fez a reforma em 2017, ela não foi experimentada, eu acho que foi uma reforma que tem mais acertos do que erros. Talvez num momento dois, digamos, a partir da próxima legislatura eleita não com essa excepcionalidade que foi a eleição de 2018, nós possamos começar a discutir, não sei se nessa seguinte ou na outra, talvez uma forma de dar um pouco mais de contenção partidária a essa lista aberta brasileira. Talvez dando aos partidos mecanismos de ordenar a lista, como se faz em Portugal, ou até um formato que é usado em alguns países europeus, que eu gosto, particularmente, que é o seguinte: você fecha a lista, mas dá ao eleitor a opção, caso ele queira, de votar num nome específico. Com isso, caso um nome tenha algum destaque, ele pode se eleger. Quer dizer, você quebra um pouco, dá uma flexibilidade, por isso este modelo se chama lista flexível, à lista. Mas tudo isso pode ser discutido num ambiente em que, primeiro, a gente acabou com as coligações, tem uma certa compactação partidária e fique um ambiente melhor para conversar. Nesse ambiente, agora, desse atomismo que a gente conversou, eu acho melhor não mexer em nada. 2022, com as mesmas regras de 2018, com aperfeiçoamento de um fim da coligação e um aumento dos 2% da cláusula de desempenho.
Saiba mais sobre o entrevistado
Jairo Nicolau
É cientista político, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Mestre e doutor em Ciências Políticas no Iuperj, com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.
Saiba mais sobre os entrevistadores
Caetano Araújo
É graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e Consultor Legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
Arlindo Fernandes de Oliveira
É advogado, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público, IDP, especialista em Ciência Política pela Universidade de Brasília, UnB, bacharel em direito pelo Uniceub. Foi assessor da Câmara dos Deputados e da Assembléia Nacional Constituinte (1984-1092), analista judiciário do Supremo Tribunal Federal (1992-1996) e assessor da Casa Civil da Presidência da República (1995). Professor de Direito Eleitoral no Instituto Legislativo Brasileiro, ILB, desde 2004. Desde 1996, consultor legislativo do Senado Federal, Núcleo de Direito, Área de Direito Constitucional, Eleitoral e Processo Legislativo.
André Amado
É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Valor: “Fim das coligações produziu o melhor sistema eleitoral da história”, diz Nicolau
Votação por aplicativo, tese levantada pelo presidente do TSE, ameaça o sigilo, diz professor
Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico
SÃO PAULO - Debruçado há três décadas sobre o sistema eleitoral brasileiro, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio, Jairo Nicolau, diz que as eleições municipais se realizam sob as melhores regras da história. Não tem dúvidas de que o fim das coligações nas eleições proporcionais oferecerá um maior controle do eleitor sobre o resultado das urnas e depuração do quadro partidário no Legislativo. A maioria das Câmaras de Vereadores do país reduziu o número de partidos lá representados. E, com isso, a hiperfragmentação da Câmara dos Deputados, quesito em que o Brasil se mantém no pódio mundial há muitos anos, também deve se reduzir. Por isso mesmo, já se iniciou um movimento para ressuscitar as coligações proporcionais.
Presença frequente em todas as discussões de reforma política no Congresso Nacional nos últimos anos, onde sempre advogou pelo fim das coligações proporcionais, Nicolau não acreditava mais que o dispositivo cairia quando, finalmente, em 2017, sua extinção foi constitucionalizada. Por isso, não se surpreendeu ao saber do movimento, liderado pelos pequenos partidos, pela volta do mecanismo. É a sobrevivência de sua representação na Câmara dos Deputados que está em jogo - “É um vexame nacional se vier a acontecer”.
Essas legendas viram a redução de seus exércitos de vereadores, com os quais contam para sua recondução. Nas contas de Nicolau, 15 partidos não chegaram a 2% dos votos para vereador em 15 de novembro. É esta a cláusula de desempenho para 2022. Com isso, o tema já entrou na barganha dos pequenos partidos na disputa pela Mesa da Câmara. Em alguns deles a discussão já é aberta - o apoio estará condicionado ao compromisso dos candidatos à Mesa com a flexibilização das regras. Não é um acordo fácil de ser operacionalizado. Até porque os partidos com mais chances de levar a presidência da Câmara estão entre aqueles mais beneficiados pelo fim das novas regras: PP, DEM, MDB e Republicanos.
Jairo Nicolau vê com ceticismo a proposta da federação de partidos como alternativa à coligação. Ao contrário desta, a federação vai além da conjuntura eleitoral e prevê a atuação conjunta dos partidos também ao longo da legislatura. O dispositivo já foi derrotado na Câmara. Para não ser uma burla à coligação, diz Nicolau, teria que ser uma federação nacional, de canto a canto do país, o que confronta as contingências regionais dos partidos.
O fim das coligações não é o único retrocesso que pode advir das eleições municipais. O atraso na contagem dos votos, amplificado pela militância de extrema direita, deu asas a teorias conspiratórias de fraude eleitoral. O presidente Jair Bolsonaro retomou a defesa do voto impresso e encontrou guarida em parlamentares como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Nicolau acompanhou de perto o tema quando o TSE, na gestão Gilmar Mendes, promoveu debates sobre o aprimoramento do processo eleitoral. Os engenheiros presentes alertaram para a inviabilidade técnica da alternativa pelo potencial de problemas que as impressoras podem causar. No limite, diz, o TSE poderia fazer a impressão do voto por amostragem.
Outra mudança aventada que Nicolau teme é a do voto pelo aplicativo. A questão chegou a ser levantada pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, antes dos problemas com a apuração. Animado com a boa aceitação do registro da ausência no local de votação pelo aplicativo do TSE, ao qual se atribui, somado à pandemia, o aumento na abstenção, o ministro foi adiante e disse que o Brasil, um dia, também poderia votar pelo aplicativo. A mudança, diz o professor, não poderá ser feita sem anuência legislativa, uma vez que abre portas para a adoção paulatina do voto facultativo. E não apenas. Ameaça o sigilo do voto. “Não é fantasioso imaginar que se formem filas nos currais eleitorais para se ‘ensinar’ o eleitor a votar”, diz. É a volta - ou a modernização - do voto de cabresto.
O Globo: ‘O discurso da nova política perdeu a força’, diz cientista político Jairo Nicolau
Ainda sem o resultado oficial do primeiro turno, especialista avalia que as urnas apontam para uma vitória dos grandes partidos e uma redução do impacto das redes sociais
Maiá Menezes, O Globo
Especialista nos meandros da política e autor do livro “O Brasil virou à direita”, publicado este ano, o cientista político Jairo Nicolau interpreta o resultado das urnas como um retorno ao que classifica como velha ordem, em uma eleição em que o espectro da “nova política”, que dominou 2018, se dispersou. Em entrevista ao GLOBO, ainda sem o resultado oficial das urnas, ele avalia o cenário pós-primeiro turno e o impacto desta eleição em 2022.
Na sua avaliação, o presidente Jair Bolsonaro demonstrou peso na transferência de voto?
O presidente Jair Bolsonaro não tem projeto de organizar um campo político, um partido, todo jogo dele é muito solitário. Nesses dois anos, ele perdeu lideranças que o apoiaram. Não conseguiu agregar nada coletivamente. Ele agiu, na eleição, no estilo que manteve no governo: dando apoios pessoais e ocasionais em lives. Não mirou um campo político. Apoiou candidatos diferentes entre si. Não transferiu votos para ninguém. E quem se elegeu com o poder de transferência que ele tinha em 2018 foi embora. No Rio, na reta final, ele no máximo deu quatro pontos ao (Marcelo) Crivella para chegar ao segundo turno — um candidato que tem a máquina da igreja (Universal) e da própria gestão.
O que as urnas marcaram neste 2020?
Ficou claro que o discurso da “nova política” perdeu a força. As redes sociais perderam a força, muitos candidatos que subiram com o Bolsonaro em 2018 não foram bem. O próprio Crivella tem 1/5 dos votos que teve em 2016. Vejo uma chance remotíssima de se reeleger.
O discurso da nova política então não prosperou?
Houve de fato um insucesso. A maior renovação de 2018 foi a renovação dos votos do PSL. (Em 2016) Houve uma frustração, que levou o Rio a defenestrar o candidato do ex-prefeito Eduardo Paes (o deputado federal Pedro Paulo). O (governador afastado do Rio) Wilson Witzel deu no que deu. Me parece que houve um reencontro com a política. Um entendimento de que ela deve ser feita por intermédio de lideranças. (Guilherme) Boulos (candidato do PSOL em São Paulo) é liderança política importante. Lideranças do DEM ressurgiram.
Que recado as urnas trouxeram?
A impressão é que estamos voltando a uma velha ordem. Depois de 2016 e 2018, retomamos os trilhos de 2014. Os que venceram foram os partidos maiores, mais tradicionais. É o DEM, o PSOL (que não é tão jovem). O mundo era assim. Até que veio a hecatombe de 2016, com os resultados de Rio, São Paulo e Minas reforçando um discurso antipolítica. Sem querer reforçar o clichê, tenho a sensação de que voltamos ao velho normal.
Como explicar a diferença de performance da esquerda no Rio e em São Paulo? A divisão parece ter ficado explícita no Rio.
No Rio, a gente sabe desde sempre que a esquerda sai divida. Novamente, cada um lançou um candidato. Não há garantia de que, sem a Benedita da Silva (candidata do PT, deputada federal), a Martha (Rocha, deputada estadual) teria fôlego para chegar ao segundo turno. Mas essa conta tinha que ter sido feita antes. É preciso lembrar que a esquerda, desde 1992, só concorreu duas vezes no segundo turno no Rio. O fato é que saíram maiores do que entraram.
Qual a repercussão deste resultado em 2022?
Sabemos que os vereadores serão cabos eleitorais. Mas o resultado de uma eleição municipal nem sempre espelha o de uma eleição geral. O fato é que, em 2018, havia uma expectativa de que Bolsonaro teria condições muito propícias para expandir seu poder, e um partido que concorreria com solidez. No entanto, Bolsonaro não tem nada para comemorar. Não tem partido. E seus nomes terem ido mal nas urnas é um mal sinal. Seriam os ativistas de 2022. Ficou clara a derrota de um campo que se dispersou nesta eleição.
A esquerda ganhou espaço. Mas como ficou o Lulismo?
O que aconteceu em São Paulo, com (Guilherme) Boulos foi um fenômeno eleitoral. Ele conseguiu entrar na periferia, foi criativo. Transcende a esquerda. Com um apoio explícito de Lula, talvez carregasse a rejeição ao PT. Ainda não sabemos como se dará essa influência no Nordeste (até o fim da noite, os dados ainda não indicavam o efeito da presença de Lula nas campanhas regionais).
A pandemia de Covid-19 de fato repercutiu na abstenção?
Tudo indica que esta vai ser a eleição que terá a maior taxa de abstenção do país. Algumas cidades como São Paulo ultrapassaram os 30%. Muito provavelmente a pandemia pautou isso. A abstenção já vinha subindo. Agora, certamente será muito mais alta. O aumento da rejeição à política não aumentou. O que ficou claro é que bairros onde majoritariamente moram idosos, como Copacabana, o medo do contágio falou mais alto.
Isso significa que o interesse pela eleição diminuiu?
Não. O medo da pandemia surgiu, mas o interessante é que o número de votos em branco ou nulo diminuiu. Na maioria, quem saiu, tinha candidato.
RPD || Paulo Baía: O destino manifesto da negação
Eleição norte-americana escancara o negacionismo de Trump e, por tabela, do presidente Jair Bolsonaro, avalia Paulo Baía em seu artigo, onde analisa o bolsonarismo na visão de Jairo Nicolau, autor do livro O Brasil dobrou à Direita
Dentro de uma eleição analógica para a Presidência dos EUA, nada mais pertinente do que a fala do Presidente Jair Bolsonaro – “a esperança é a última que morre”, torcendo para que o atual presidente norte-americano Donald Trump se reeleja. Em tempos de negacionismo, a maior democracia mundial vive momentos em que o poder nas mãos de um populista de extrema-direita questiona o sistema eleitoral, negando as regras democráticas do país, que funciona da mesma forma há séculos. E o espelho ao Sul da América deixa de ser representante de uma nação para virar cabo eleitoral e torcedor fervoroso daquele que acredita ser seu amigo. E quem sabe assim uma boa relação de favor não resolva os graves problemas brasileiros. O interessante é que o atual Presidente da República do país representante da liberdade, garantidor dos valores liberais e iluministas, é aquele que deseja ser reeleito no tapetão, suspendendo a contagem de votos dos que não votaram nele.
É o retrato da negação. Nas terras de cá, negam-se os mais de 14 milhões de desempregados, o aumento da pobreza extrema, a crise fiscal por causa da pandemia, a inflação nos produtos da cesta básica por conta do aumento do dólar e o empresariado preferindo vender para o mercado externo do que o interno, diminuindo a oferta e aumentando a procura. Tampouco existe pandemia nem morreram mais de 160 mil brasileiros: portanto, a vacina não deve ser obrigatória. Ou seja, todos os graves problemas por que passa o Brasil são reflexos de uma disputa partidária, criados pelos adversários para roubar seu poder.
Jairo Nicolau, professor de Ciência Política, acaba de lançar o livro: O Brasil dobrou à Direita. Neste livro, ele compila uma série de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Cruzando dados como, por exemplo, idade, gênero, religião, educação etc., o pesquisador chega a conclusões muito interessantes sobre os eleitores de Bolsonaro. Ele foi o primeiro candidato que rompeu a ideia de que, para vencer, o presidente precisa de uma máquina eleitoral. Bolsonaro foi o preferido nas três faixas de ensino: fundamental, médio e ensino superior. Em 2018, foi a primeira vez em que o fator gênero se fez presente.
Bolsonaro foi o preterido de 2 a cada 3 homens, batendo o adversário em 10% a mais. E teve, respectivamente, 53% votos das mulheres e 64% dos homens; já Haddad obteve 47% dos votos dos homens e 36% das mulheres. Outro fator diz respeito ao cruzamento entre dados de homens e instrução: Bolsonaro ganhou em todos os níveis de ensino, todavia, quanto maior a instrução, menor a aceitação. Na variável religião, Bolsonaro ganhou nas duas maiores religiões do país em número de adeptos: católicos e evangélicos. Todavia, no setor evangélico, ele teve 70% a mais no número de votos. Para Jairo Nicolau, não houve influência na polarização petismo e antipetismo. Na pesquisa usada de opinião, 10% do eleitorado se identificavam com o PT, ao passo que 1/3 do eleitorado o rejeita.
O maior número, porém, representando metade do eleitorado, é de neutros, não rejeitam nem o apoiam. Dessa forma, o bolsonarismo é um fenômeno urbano. Nos 36 municípios brasileiros com mais de 500 mil habitantes, ele venceu em 30 cidades. Para Jairo Nicolau, o PT está agora restrito às pequenas cidades e, com um eleitorado com pouca instrução, entenda-se, até o nível fundamental.
Neste sentido, pode-se resgatar Weber e ampliar uma questão nova sobre o tema de sua obra A ética protestante e o Espírito do Capitalismo, apontando existir uma simetria entre o ideal de salvação das matrizes protestantes e a interpretação e conduta ascética, de que produzir e guardar dinheiro é sinônimo de salvação, principalmente no calvinismo e no puritanismo. Dessa forma, o livro lança uma questão: quais são as éticas protestantes, principalmente, dos grupos evangélicos que mais crescem no Brasil, a saber, pentecostais e neopentecostais, que vão ao encontro da urbanização, ou então, deste estilo de vida das grandes metrópoles?
Como Weber nos ensinou, isolar um fenômeno pode ser um bom caminho para o entendermos. Bolsonaro ganhou em todas as faixas de renda, inclusive, nos mais pobres. Em termos sociológicos, pode-se dizer que o discurso bolsonarista apresentou ampla hegemonia, termo tomado emprestado de Gramsci, que se refere à capacidade de ordenação. Ter o conhecimento de que o eleitorado simpatizou com o discurso do presidente é um caminho para entender melhor este fenômeno urbano eleitoral – o bolsonarismo.
*Paulo Baía é sociólogo e cientista político
El País: 'Bolsonaro é uma liderança inequívoca. É um Lula da direita', diz Jairo Nicolau
Para o cientista político Jairo Nicolau, oposição combate o presidente de modo equivocado ao não entender seu eleitorado, especialmente aquele situado na periferia das grandes metrópoles
Afonso Benites e Felipe Martins, do El País
Nos últimos dois anos, o cientista político e professor Jairo Nicolau (Nova Friburgo, RJ, 1964) se dedicou a estudar quem são as pessoas que elegeram Jair Bolsonaro presidente da República. Com base em pesquisas eleitorais e nos resultados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral, conseguiu fazer uma radiografia do eleitorado. Descobriu o tamanho da força do antipetismo, reforçou a importância da comunicação feita pelo WhatsApp em uma disputa com novas regras e percebeu que nem só extremistas apoiam o polêmico presidente brasileiro. Parte dessas conclusões estão em sua mais nova obra: O Brasil dobrou à direita. O livro será lançado no dia 5 de outubro, pela editora Zahar.
Em entrevista ao EL PAÍS por videoconferência, Nicolau destacou que a oposição tem combatido Bolsonaro de maneira equivocada, insistindo em dizer que seus eleitores seriam fascistas ou extremistas, enquanto que a maioria deles não é. “Parte realmente é formada por pessoas de extrema direita, mas grande parte é de pessoas comuns que vê nele um mito, que tem enorme identidade com ele, que tem admiração por ele”, diz. Nesse sentido, ele vê paralelos entre o atual presidente e o antigo, seu antagonista político Luiz Inácio Lula da Silva. “O bolsonarismo mexeu com a política brasileira de uma maneira muito forte (...) Bolsonaro é uma liderança inequívoca. É um Lula da direita”.
Para esse pesquisador de temas como reforma política e comportamentos eleitorais na FGV Rio, a oposição não conseguiu entender que o presidente tem conseguido ganhar as metrópoles e, principalmente, os pobres que nelas vivem. Por esta razão, não precisa avançar sobre o Nordeste, tradicional reduto eleitoral petista. “Bolsonaro não precisa do Nordeste. Ele foi um fenômeno urbano dos grandes centros e poderá ser novamente. Não precisa invadir a cidadela petista para ganhar uma eleição”.
Pergunta. O quanto Jair Bolsonaro conseguiu entrar na base eleitoral petista?
Resposta. Em 2018, Bolsonaro não conseguiu ir muito além do que Aécio Neves (PSDB) tinha ido quatro anos antes no Nordeste. Em compensação, foi muito melhor no restante do Brasil inteiro. Há um muro invisível que ele não entrou. Os dados revelam o tamanho dessa força nordestina em termos absolutos. Há uma nova hipótese, que temos de ver com calma, de que Bolsonaro estaria mudando sua base de sustentação. Tem alguns clichês que nós, analistas, compramos. O de que, por exemplo, se ele cresceu nas pesquisas só pode ser porque deu dinheiro aos mais pobres. É uma conta feita por analistas apressados. Nenhuma pesquisa que vi conseguiu enxergar essa entrada tão contundente. É difícil imaginar que um eleitor vai votar em Bolsonaro por causa do auxílio emergencial, sabendo que o PT fez uma série de políticas públicas para o Nordeste por 13 anos.
P. O presidente está fazendo campanha, com suas seguidas visitas ao Nordeste?
R. Bolsonaro não precisa do Nordeste. Ele foi um fenômeno urbano dos grandes centros e poderá ser novamente. Não precisa invadir a cidadela petista para ganhar uma eleição. A não ser que perca o eleitorado pobre urbano. Não a elite, a classe média, que aderiu a ele por frustração e conta o mínimo, praticamente nada, em uma disputa presidencial. Ele não pode é perder os pobres urbanos, as periferias das metrópoles. Antes da renda emergencial, ninguém falava que ele cresceria. Ao contrário, diziam que a pandemia o empurraria para um lugar de onde não sairia.
P. Em sua avaliação, o apoio de Bolsonaro hoje já não é diferente daquele que ele teve em 2018?
R. Os dados que vi mostram que a base do Bolsonaro de hoje ainda é muito parecida com a de 2018. Parte de seu eleitorado tem uma relação de muita fidelidade. Independentemente da maneira como ele ganhou, independentemente da facada, Bolsonaro é um grande líder para parte dos eleitores brasileiros. Uma outra obsessão da imprensa é medir o teto do bolsonarismo, mas não dá para medir isso. Temos de reconhecer que Bolsonaro se comunica com um Brasil que tem enorme admiração por ele. Quem não entender isso, vai começar a chamar os eleitores de fascistas. Não vai entender o Brasil. Entre os eleitores do Bolsonaro, parte realmente é formada por pessoas de extrema direita, mas grande parte é de pessoas comuns que vê nele um mito, que tem enorme identidade com ele, que tem admiração por ele. Acham que ele fala aquelas coisas que nós achamos uma aberração por ser uma pessoa comum que está nervosa, que está sob pressão, que tem de enfrentar os desafios do Brasil. Não importa se ele era um deputado medíocre, que ficava lá no fundo do plenário. Bolsonaro conseguiu se mostrar como um líder para boa parte do eleitorado brasileiro. Deslocar esse apoio vai ser uma enorme dificuldade para a oposição. Muitos veem em Bolsonaro uma grande liderança que eles respeitam e admiram.
P. Como se fosse um espelho de si mesmo?
R. Justamente. É isso. O Brasil tem uma parte agrária, uma parte que não assiste a rede Globo, que assiste a Record, que não é informada de política. Veem o Bolsonaro como alguém que está fazendo as coisas. Quando pergunta, “ah, mas e o filho dele que é investigado?”. Essas pessoas dizem: “Mas é o filho dele, não é ele”. As pessoas vão dando um jeito de proteger Bolsonaro. Temos de entender o bolsonarismo não só como um fenômeno de expressão ideológica que encontrou passagem nele, mas também como o primeiro líder de direita popular desde a redemocratização do Brasil. Uma coisa é ser um líder de direita de uma cidade, como [ex-prefeito] Paulo Maluf foi em São Paulo. Outra coisa é ser como Bolsonaro, que é de direita mesmo, defende o regime militar, fala o que outros não têm coragem de falar, e mesmo assim as pessoas o admiram. E são essas pessoas comuns, que não são os tais fascistas, que nós temos de entender. Enquanto combatermos a extrema direita fascista e achar que essa é a melhor forma de combater o bolsonarismo, não estaremos entendendo o Brasil. O bolsonarismo mexeu com a política brasileira de uma maneira muito forte. Não sei se veio para ficar, não sei se ficará por muito tempo. Bolsonaro é uma liderança inequívoca. É um Lula da direita.Bolsonaro é uma liderança inequívoca. É um Lula da direita.
P. Derrotar o bolsonarismo passa por alterar o foco da oposição?
R. Passa por recuperar a política das metrópoles. É a política de um mundo que não é mais o industrial, mas sim expresso pelos entregadores e que a política tradicional talvez ainda não tenha conseguido modular o discurso. Em Caxias, na Baixada Fluminense, Bolsonaro teve cerca de 64% dos votos. E a cidade sempre foi petista. Ou seja, o antigo petista hoje é bolsonarista. Esse eleitor viu em Bolsonaro um cavaleiro. Há um mundo novo. Os jovens de hoje que chegam ao ensino médio são menos brancos do que os de 30 anos atrás, são mais religiosos, estão trabalhando em um mundo de serviço muito mais desorganizado do que aquele que a esquerda operava, que era o do trabalho, das grandes corporações, dos bancos, da indústria metalúrgica. Se não retomar as grandes metrópoles, não ganha eleição. E essas pessoas não são fascistas, são pessoas comuns. Há, claro, um contingente de extrema direita que são hiperconservadores, que preferem a ditadura, que adoram militares, que odeiam a esquerda. Mas esse grupo é pequeno.
P. Qual será o impacto dessas eleições municipais para a disputa nacional?
R. Elas produzirão um rearranjo. Tem muitos cargos em disputa. Acredito que Bolsonaro já é um derrotado na eleição municipal.
P. Derrotado? Por que?
R. Por tudo o que ele poderia ser. No PSL, ele tinha o partido com mais dinheiro, o segundo mais votado para a Câmara. Depois que saiu, tornou-se o único líder de direita que não tem um partido para ele. Eu imaginava que iria organizar o PSL pelo Brasil inteiro, como fez o PSDB, que cresceu na cola do Fernando Henrique Cardoso [1995-2002]. Era o momento de ele aproveitar o apoio de diversas pessoas que tinham virado bolsonaristas. Se estivesse no PSL, seria uma lavada. Com dinheiro, com apoio do presidente, o partido deixaria de ser inexpressivo e passaria a ter uma estrutura muito sólida, com uma bancada ainda maior em 2022. Mas ele foi um desastre, brigou com o próprio partido. Ele tinha uma preciosidade, com grande tempo de TV, com dinheiro, com sucesso eleitoral. Agora, ele chega nas eleições escangalhado. Imagina a [deputada] Joice Hasselmann com apoio do Bolsonaro para a prefeitura de São Paulo. Ela seria diferente. Teria atraído um monte de gente para ser candidato a vereador. Bolsonaro não só esqueceu desse projeto como foi um desastre na construção da Aliança Pelo Brasil. É um fiasco para um presidente que se propõe a criar um partido e não consegue. Era para ele ter um milhão de filiados agora. Mas ele não se empenhou. O Bolsonaro não é um ideólogo. É um sujeito conservador, limitado, que por acaso chegou lá. Ele não tem grupo, não tem projeto, não tem nada. Você até pode dizer que, em algumas cidades, o bolsonarismo não foi tão mal. Mas, onde está esse bolsonarismo de fato? Como se mede isso? No PSL não está.É um fiasco para um presidente que se propõe a criar um partido e não consegue
P. Por que o brasileiro elegeu Jair Bolsonaro?
R. No livro, eu trato do perfil do eleitor. É como se eu tirasse um retrato dos eleitores, dos territórios que apoiaram Bolsonaro e Haddad em contraste com o que aconteceu em eleições anteriores. Essa pergunta é dificílima de ser respondida porque as causas são sempre questionáveis. Eu nunca posso demonstrar que o meu argumento sobre a causa do fenômeno é o que explica o fenômeno na história. Alguns dizem, “foi a Lava Jato”. Sem a Lava Jato haveria Bolsonaro? Não sei. A Lava Jato ganhou força em 2015. Bolsonaro também.
P. E uma coisa não está relacionada a outra?
R. Não sei até que ponto uma coisa está associada com a outra, podemos especular que sim. Mas não tenho como demonstrar. Evitei cair em uma armadilha, para mim intelectual, de tentar responder por que Bolsonaro venceu. A minha pergunta é: quem votou no Bolsonaro? Com os dados que consegui levantar, não consigo responder essa sua pergunta. Consigo especular um pouco, mas não tenho como cravar o que explica o Bolsonaro.
P. Levando em conta que os órgãos de imprensa trataram Bolsonaro como uma figura quase anedótica, qual foi a influência da mídia em sua vitória?
R. Para escrever o livro, assisti a muitos programas de televisão a partir de 2011, quando Bolsonaro deixa de ser um deputado apenas com uma agenda corporativa de representação militar. Ele foi assumindo uma pauta de costumes, em embates com a esquerda, sobretudo Maria do Rosário (PT) e Jean Wyllys (PSOL). Assumiu a defesa de temas tradicionais que sempre existiram, mas não tinham dono. Bolsonaro começa a participar de muitos debates e de programas humorísticos. O CQC e o Pânico, dois programas de humor que atingiam a juventude, fizeram alguns episódios especiais com Bolsonaro. Ele é tratado como um ser exótico, bizarro. Ele tinha coragem de defender aqueles temas e era tão bizarro que ele divertia, gerava controvérsia. Não era uma cobertura ideológica, em que a mídia abriu espaço para alguém de direita. Simultaneamente, Bolsonaro começa a usar de maneira muito eficiente as redes sociais. Se a gente observar, seu crescimento se dá paulatinamente. Uma coisa alimenta a outra. Ele vai ao programa e um trechinho vai ser difundido depois nas redes. E ele fez isso muito bem. Entre 2010 e 2014, sua votação para deputado no Rio sai de cerca de 100.000 votos para 450.000 votos. Deixou de ser um deputado de nicho para ser essa figura conservadora.
P. O discurso contra a classe política não pesou?
R. Esse discurso já está presente nos programas como o Pânico ou o CQC. Eu, que sou um apreciador da política tradicional, ficava um pouco incomodado com o fato de eles irem ao Congresso para fazer piada, mostrar a ignorância de alguns deputados. Claro que o humor é para isso. Veja os protestos de 2013, que foram sobretudo um movimento contra a elite política tradicional. Ou seja, a crítica à elite política tradicional não é de hoje.
P. Mas a mídia não normalizou esse comportamento esdrúxulo?
R. Depois do vigésimo programa que você leva um sujeito que é considerado exótico, ele passa a ser um político que deve ser considerado. Não vou criticar a imprensa tradicional nesse momento. A Lava Jato é outra história, teve um efeito colateral maior. Você passa a ter uma visão muito negativa dos políticos. Especialmente por parte do Judiciário e do Ministério Público, que passam a ideia de que a política era uma atividade basicamente corrupta e que caberia ao Judiciário e ao Ministério Público fazer uma limpa.
P. E a facada, qual foi o impacto para sua eleição?
R. Acho que o atentado contra Bolsonaro ampliou o número de eleitores que o conheciam. Quando a campanha começa, ele ainda é desconhecido para mais metade do eleitorado. Era conhecido nas redes sociais, entre os setores mais informados, entre quem assistia a esses programas de televisão. Mas ele era desconhecido no interior do Brasil, em áreas com pouca cobertura de internet. Com pouco tempo de TV, acho que a cobertura da televisão compensou e gerou salto de conhecimento. Mas essa visibilidade é uma condição necessária, mas não é suficiente para ser votado.
P. Não era a única.
R. Isso. Todos conhecem Marina Silva [Rede], mas só 1% votou nela. Bolsonaro saiu do patamar de 20 pontos percentuais em setembro para 30 pontos em outubro porque as pessoas o compraram ali. Quando se fala em Bolsonaro, ele não é um outsider. Dilma Rousseff é muito mais do que ele, relativamente. O primeiro cargo que ela concorreu foi para presidente. Bolsonaro já tinha sete mandatos na Câmara, depois ser vereador no Rio. Nada indicaria que era Bolsonaro quem caberia nesse figurino. Um figurino de extrema direita não é o de um outsider. João Doriaou Luciano Huck seriam outsiders. Eu via Bolsonaro como um extremista. E com ele a direita sairia do armário pela primeira vez. E essa direita não passaria de 15% ou 20%. Errei.
P. Pouco depois da eleição de Donald Trump, havia analistas nos EUA que diziam que quase ninguém previu a sua eleição porque a imprensa e a academia pouco olhavam para o interior do país. No Brasil, vemos uma concentração de veículos de comunicação e de produção acadêmica em poucos Estados. Acha que o Brasil não se conhece, de fato?
R. Vejo uma disparidade entre o que acontece no mundo digital e no mundo real. O Twitter, por exemplo, é uma péssima mostra do Brasil. Ele é uma ótima mostra do Brasil mobilizado, politizado, informado, ativo. Como você dialoga com tribos, você entende o Brasil de uma forma muito mais conflituosa que o Brasil real. Há um abismo entre os combatentes das redes sociais e o Brasil real, onde os brasileiros são muito mal informados. O jogo tradicional é um pouco diferente para a maioria. Se ficar muitas horas, muitos dias nas redes sociais, aí começam as interpretações de que estamos sob o fascismo, de que o golpe vai chegar. Ou, do outro lado, um anticomunismo completamente fora de hora. Não tem ameaça comunista em lugar nenhum do mundo. Só pode ser explicado por uma forma de auto alimentação das pessoas nas redes.
P. Essa desinformação é um território propício para que mais desinformação ocorra. O WhatsApp, por onde circulam muitas teorias da conspiração, é muito usado pelo brasileiro médio. Depois de anos investindo neste ecossistema de manipulação massiva, qual será seu peso nas próximas eleições?
R. O WhatsApp é um fenômeno de comunicação dos mais impressionantes. Em 2018, teve um papel fundamental para explicar alguns fenômenos, como a ascensão fulminante do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Acho que seria impossível que ocorresse fora do mundo das redes sociais. Um candidato sempre pode crescer da noite para o dia, isso não é um fenômeno novo. Mas com Witzel só foi possível por conta de uma propagação dessas como de pirâmides de dinheiro. E Bolsonaro saiu na frente porque ele e seu grupo de assessores o usaram com muita eficiência. Também havia muitos grupos que se organizaram de maneira espontânea. O bolsonarismo foi muito eficiente em fazer propaganda. Assim que o adversário vinha com uma crítica, eles tinham uma resposta imediata. E, naquele momento, os grupos do WhatsApp podiam contar com um número muito grande de pessoas. Você podia disparar muitas mensagens ao mesmo tempo. Então, de fato o WhatsApp foi um ativo fundamental para o sucesso do bolsonarismo. Mas acredito que esse efeito não se replica, não se reproduz da mesma maneira em eleições locais.
P. Por que?
R. O mágico fez um truque na frente da plateia e todo mundo aprendeu: tem de investir em rede social e no WhatsApp. Além disso, a própria empresa começou controlar. Você não pode encaminhar um texto para muitas pessoas, os grupos têm limites de participantes... E nas eleições locais a política se faz face a face. Talvez em grandes cidades, o WhatsApp ainda faça diferença. A campanha na TV vai ser mínima, a pandemia afastou as pessoas das ruas e, talvez, as redes sociais ajudem. Agora, no interior, em cidades com até 50.000 habitantes, você conhece dez candidatos a vereador. A eleição municipal não é nacional.
P. E não funcionaria para 2022?
R. Acho que voltaremos à mesma estaca. O WhatsApp deve ter suas limitações. Agora, pode surgir um fenômeno que a gente não sabe qual é. Uma rede social nova. Um TikTok que surge da noite pro dia e alguém usa de maneira mais eficiente. Mas a vantagem que Bolsonaro abriu por ter sido pioneiro tende a desaparecer. Nos Estados Unidos, o Facebook já disse que não vai permitir propaganda política nos últimos sete dias da campanha. Isso tem um efeito gigantesco. As redes sociais, de modo geral, terão um efeito limitado.
P. O que podemos esperar para 2022 com relação às candidaturas presidenciais? O foco principal será essa polarização entre o PT e Bolsonaro?
R. A gente está numa conjuntura muito mais incerta. Nas últimas duas décadas, o PT era o ator central da política brasileira. E, por seis eleições, o outro ator foi o PSDB. Agora, temos essa desorganização produzida pelo fenômeno Bolsonaro no quadro partidário. O presidente sequer tem partido. Eu não me arriscaria a fazer nenhum prognóstico sobre 2022. A única coisa que indica é que o Bolsonaro deve sair para a reeleição.
P. Lula voltou ao tabuleiro político depois de seu discurso em 7 de setembro?
R. Quando Lula saiu da prisão, há um ano, ele fez uns discursos tão contundentes contra Bolsonaro que imaginei que comandaria a oposição. Imediatamente, vi que Bolsonaro não respondeu. Foi contra seu instinto, que é o do confronto. Provavelmente, foi orientado ou se convenceu de que não valia a pena. Lula não ganhou o protagonismo que achei que fosse ganhar. Talvez o fato de não ter uma rede social tão potente tenha interferido nessa questão também.O Lula não ganhou o protagonismo que achei que ele fosse ganhar
P. No cenário atual, quem é o principal adversário de Bolsonaro, a centro-direita ou o PT?
R. O PT ainda tem o Nordeste. Até 2018 o partido está muito associado ao partido, quando Fernando Haddad teve uma votação expressiva lá. Ele foi um fenômeno impressionante e isso é um grande ativo. Não sei se os votos que o Nordeste deu ao PT seriam transferidos a outro candidato. Ciro Gomes (PDT) tentou, mas não conseguiu. Não sei se Flávio Dino, governador do Maranhão, conseguiria. Me parece que esses votos estão muito vinculados a Lula e ao PT. Esse reduto do Nordeste dá um volume de votos que possibilita qualquer candidato do PT estar entre os dois ou três candidatos mais votados. Agora, a centro-direita, não sei. Depende de Bolsonaro manter ou não consigo essa centro-direita. Ele ganhou a centro-direita. Ele ganhou o centrão. Se ele for para 2022 como o candidato do centrão, ele estrangula a possibilidade de qualquer nome de centro-direita. Seria uma eleição diferente da de 2018, quando ele era um falso outsider.
P. Qual é o prazo de validade da união do Bolsonaro com o Congresso?
R. Bolsonaro fugiu do manual clássico de como governar o Brasil. A política previa que o presidente deve fazer uma coalizão e oferecer a todos os partidos, salvo os pequenininhos, um ministério. Os ministérios de Bolsonaro não têm nenhuma relação com a composição partidária da Câmara. Se você observar as votações, notamos que ele teve um apoio de 8 entre 10 deputados do PSDB. No DEM ou no PP, foi de 7 entre 10. Varia um pouco entre outras legendas de centro-direita, de 7 a 9 deputados entre 10 apoiaram o Governo nas votações nominais. E não havia ainda o apoio formal do centrão. Agora, ele deve ter uma base de sustentação minimamente sólida. Provavelmente, esses seis ou oito partidos vão eleger o próximo presidente da Câmara, produzindo um alinhamento entre a Câmara e o Executivo. Hoje, Rodrigo Maia não pode ser considerado um inimigo, mas não foi um completo aliado do Governo. Eu imaginava que o presidente teria mais dificuldades, que os deputados seriam mais hostis. E não esperava essa entrada do centrão. Foi uma inflexão muito impressionante. Algo incomum para a carreira dele.
P. Que mensagem o presidente passa ao vetar anistia de dívidas de igrejas e, depois nas redes sociais, dizer que se fosse deputado derrubaria esse veto?
R. Ele quis ficar bem com parte fundamental de seu eleitorado. Se ele não vetasse, ele poderia incorrer em impeachment. E se ele pode incorrer em impeachment, talvez esse projeto de lei seja inconstitucional.
Jairo Nicolau: Burocráticos, partidos vivem à sombra do Estado e dificultam renovação
Nova sigla de Bolsonaro evidencia força de um modelo político que se sustenta de verbas públicas
A força da burocracia partidária no Brasil, fruto de modelo sustentado por verbas estatais, que favorece caciques e dificulta a renovação, ganha evidência com decisão de Bolsonaro de criar sigla e com punições a deputados que fugiram à orientação de seus partidos.
Um candidato à Presidência da República filia-se a um novo partido sete meses antes das eleições. Empossado no cargo, rompe com seus correligionários e anuncia a criação de uma nova sigla antes de completar seu primeiro ano de governo.
Excêntrica se examinada pela lupa de democracias mais consolidadas, essa história é bastante plausível para quem acompanha a inconstante trajetória das lideranças políticas nos partidos brasileiros. Levando-se em conta que o presidente é Jair Bolsonaro e tudo o que marcou sua campanha eleitoral, a história soa inusitada, para dizer o mínimo, mesmo para os padrões nacionais.
No bojo de sua vitória, Bolsonaro levou seu antigo partido, o PSL, a ser o mais votado nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2018, embora tenha eleito menos deputados que o PT. Além disso, a “onda Bolsonaro” contribuiu para a eleição de quatro senadores e dezenas de deputados estaduais.
Por que então Jair Bolsonaro, com todo seu capital político, abandonou o partido que ajudou a transformar em um dos maiores fenômenos da história das eleições no Brasil e anunciou a intenção de uma nova legenda, a Aliança pelo Brasil? Como um presidente da República se mostrou incapaz de retirar do controle de sua legenda um desafeto, o deputado federal Luciano Bivar, um parlamentar quase desconhecido em âmbito nacional?
Outros episódios recentes mostraram a força das direções partidárias no país. Os diretórios nacionais do PSB e do PDT puniram 17 deputados federais por terem votado a favor da reforma da Previdência apresentada pelo governo. O PDT suspendeu de suas atividades e abriu processo contra oito deputados. O PSB expulsou o deputado Átila Lira e também suspendeu outros oito de suas atividades.
Trata-se do maior número de punições por descumprimento de decisões partidárias na história da Câmara dos Deputados.
Em ambas as siglas, congressistas alegaram que teriam recebido sinal verde no momento da filiação para não seguir a orientação da liderança nas votações no Congresso.
Os casos do presidente da República e dos deputados punidos contrariam a visão tradicional de fragilidade dos partidos brasileiros. Nos dois episódios, chama a atenção a força das burocracias partidárias.
O que é um partido político? Na definição mais trivial, encontrada em antigos manuais de ciência política e direito constitucional, é uma organização composta por cidadãos que ambicionam chegar ao poder por intermédio do voto.
O partido teria essa dimensão híbrida, uma associação civil que ora ocupa o Estado, ora se encontra fora do Estado. Como uma associação, necessitaria de militantes para cuidar de sua estrutura, divulgar suas ideias e contribuir financeiramente para sua manutenção. Os partidos se distinguiriam ainda por professarem diferentes ideologias e diferentes propostas de políticas públicas.
Nada mais distante da prática recente do que essa definição. No Brasil, mais que uma associação de cidadãos que ocasionalmente chega ao poder, os partidos se assemelham a uma organização paraestatal, uma entidade fomentada pelo Estado mesmo que não faça parte da administração pública. Como é o caso, por exemplo, das organizações sociais (OSs), das entidades do Sistema S, como Sesi e Senac, e de organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip).
Desde a promulgação da Lei dos Partidos Políticos, em 1995, registrar uma nova legenda passou a ser tarefa dificílima. Não tenho notícia de outro país em que seja tão árdua. É necessário o apoio, por intermédio de assinaturas, de 492 mil eleitores. Cada assinatura é checada pelos cartórios eleitorais em um processo que pode demorar anos.
Desde que a lei entrou em vigor, apenas dez partidos foram criados. Nenhum foi registrado nos últimos quatro anos —o último deles, o Partido da Mulher Brasileira, surgiu em setembro de 2015. Será um milagre se Bolsonaro conseguir que seu novo partido dispute as eleições municipais do próximo ano, dadas as exigências da Justiça Eleitoral.
No Brasil, o Estado controla também a listagem de filiados às legendas. Estabelecer um vínculo formal com uma agremiação política vai muito além de apenas de criar laços com o grupo. A filiação oficial pressupõe o preenchimento de uma ficha de inscrição junto à Justiça Eleitoral. Só pode ser candidato quem se filiar a um partido no mínimo seis meses antes da eleição.
É no financiamento, contudo, que a dimensão paraestatal dos partidos brasileiros fica mais evidente. O volume de recursos recebido do Estado é bastante amplo. Não identifiquei até hoje nenhum caso similar no mundo. Além do fundo eleitoral e da propaganda veiculada em ano de eleição, os partidos passaram a receber generosos recursos para fazer campanha. O valor para a disputa em 2020 ainda não está definido, mas no pleito de 2018 foram gastos R$ 1,7 bilhão em pouco mais de 60 dias de campanha oficial.
Um último aspecto importante do controle da vida partidária: cabe à Justiça Eleitoral a decisão final sobre os casos em que políticos abandonam os partidos pelos quais foram eleitos. Centenas de eleitos perderam seus mandatos após tribunais eleitorais considerarem improcedente a troca de legenda.
Nesse quadro, a Justiça Eleitoral tornou-se uma grande máquina de regulação partidária. Tem o poder de aceitar o registro de novas legendas, controlar a filiação dos cidadãos, distribuir dinheiro para partidos e campanhas, fiscalizar os gastos e ainda julgar a procedência das trocas de legenda.
Os cientistas políticos Peter Mair e Richard Katz batizaram de partido de cartel esse novo modelo de agremiações políticas, cada vez mais regulado pelo Estado e, sobretudo, cada vez mais dependente da transferência dos recursos estatais. Com financiamento assegurado, os partidos dependem menos do trabalho voluntário de seus militantes. A revolução produzida pela internet e pelas redes sociais tornou essa necessidade ainda menor.
Hoje quase todos os partidos recebem recursos que lhes permitem manter uma sede em âmbito nacional, contratar funcionários e financiar a realização de eventos. Em anos eleitorais, ainda recebem verbas para as campanhas e tempo de difusão de propaganda no rádio e na TV.
Lembro que nos anos 1980 e 1990 um dos maiores desafios de fazer uma reunião partidária era pagar as passagens dos dirigentes. Na era do financiamento público, isso já não é problema para boa parte das legendas.
Neste cenário em que os partidos dependem cada vez mais do Estado para sua manutenção e criam uma burocracia para administrar esse novo status, o incentivo para renovação diminui. Para que atrair jovens para suas atividades? Qual é o estímulo para adotar mecanismos de consulta aos filiados ou instituir a participação via eleições primárias?
Levantamento feito pelo jornal O Globo mostrou uma diminuição na proporção de jovens filiados nos últimos anos. Em 2008, havia 5,2% deles (de 16 a 24 anos) inscritos nas siglas do país; em 2019 o percentual caiu para 1,5%. Nos partidos mais tradicionais, o percentual de jovens é reduzido: 0,8% no PT, 1,4% no PSDB, 0,6 % no DEM e 0,8% no MDB. No total de eleitores, esse segmento representa 14%.
Mas nesta década, houve um maior interesse da juventude pela política em sentido mais geral. São exemplos as manifestações de 2013 e 2015, o engajamento no debate nas redes sociais, o envolvimento na campanha presidencial de 2018. Mesmo assim, esse fenômeno não se traduziu na filiação em massa de jovens. Pelo contrário, houve queda de 658 mil para 247 mil no número de cadastrados.
Há muitas causas para o afastamento dos jovens da atividade partidária e o consequente envelhecimento dos líderes. Creio que a mudança recente na natureza dos partidos é uma delas. As siglas transformaram-se em organizações pesadas, com muito pouco incentivo para desempenhar o tradicional papel de intermediárias entre sociedade e Estado. Colaram-se ao Estado, afastaram-se da sociedade. O alheamento juvenil é uma evidência desse distanciamento.
Simultaneamente a isso, surgiu no país um conjunto de associações que conseguiu atrair jovens para as suas fileiras. Entre as mais destacadas estão o RenovaBR, o Acredito, o Livres e o Agora, além do MBL. Embora tenham diferentes estratégias de atuação e doutrinas, movem-se por um propósito comum: oferecer uma formação política e estimular a juventude a entrar na vida partidária.
A proposta parece bem razoável. Já que os partidos não têm conseguido se renovar e formar quadros qualificados, as novas associações serviriam para ocupar esse lugar. Algumas delas resolveram agir mais ativamente, influenciando a atividade de seus representantes no Legislativo —seus deputados dão a impressão de que estão apenas abrigados nas siglas. A prioridade é defender a pauta desses movimentos, e não o programa do partido.
A carta-compromisso celebrada entre o Acredito e o PDT-SP em abril de 2018 é reveladora da independência ambicionada pelo movimento —e, o que é mais curioso, aceita pelo partido. Em um trecho, lê-se: “O PDT se compromete a respeitar a autonomia política e de funcionamento do Acredito, bem como a identidade do movimento e de seus representantes”.
É possível que alguns deputados estabeleçam uma nova forma de mandato, com grande autonomia em relação aos partidos, e inovem em diversos aspectos: contratação de assessores por concurso; audiência online para que os eleitores decidam onde investir os recursos das emendas parlamentares; consulta online para saber o que os eleitores pensam sobre determinado assunto. Um deputado estadual do Rio, representante de um desses movimentos, comparou seu mandato a uma empresa startup.
O problema é que esse tipo de mandato drena a energia renovadora desses movimentos para fora da política partidária e alimenta uma ilusão: a de que é possível prescindir dos partidos.
A quem alimenta essas fantasias, sugiro as seguintes reflexões: como as decisões seriam tomadas em um Congresso com 513 deputados empreendedores? Como o debate sobre politicas públicas seria feito sem a agregação dos diversos interesses da sociedade realizada em associações definidas? Ou como uma eleição seria realizada sem que os partidos selecionassem os nomes dos cidadãos aptos a concorrer?
O desencanto com os partidos políticos no Brasil estimulou alguns intelectuais e ativistas de movimentos sociais a defenderem a implementação da candidatura avulsa. A ideia é muito simples: cidadãos poderiam concorrer a um cargo eletivo sem estarem filiados a um partido.
A candidatura avulsa seria o outro lado da face do mandato gerencial defendido pelos movimentos de renovação. Se a norma estivesse em vigor, não haveria punição para os parlamentares que não seguiram a orientação partidária.
A deputada federal Tabata Amaral, uma das punidas pelo PDT, por exemplo, defenderia suas ideias, votaria a favor da reforma da Previdência e prestaria conta a seus eleitores. Nada de bancada, diretório nacional ou programa partidário.
Algumas democracias, sobretudo as que utilizam o sistema eleitoral majoritário-distrital, permitem que cidadãos não vinculados a partidos concorram. Assim, em um determinado distrito, candidatos independentes podem se apresentar. Poucos, contudo, conseguem se eleger para o Legislativo nacional. No Reino Unido, por exemplo, apenas dois independentes conseguiram uma vaga na Câmara dos Comuns nos últimos 20 anos.
No Brasil, a adoção da candidatura avulsa esbarra em dois problemas logísticos. O primeiro é que adotamos a representação proporcional, em que cada partido apresenta uma lista de candidatos. Os avulsos comporiam uma lista específica (ou seja, um partido de avulsos)? Teriam que ultrapassar o quociente eleitoral?
Outro obstáculo é o grande número de candidatos já existentes. Quem estaria apto a concorrer? Os independentes também receberiam recursos públicos para as suas campanhas? Como organizar o tempo de TV entre os milhares de candidatos que seriam inscritos? E a fiscalização das campanhas?
As histórias de um presidente da República que não controla o seu partido e dos deputados que acreditaram poder votar contra a orientação de suas legendas demonstram que a organização partidária é um aspecto essencial a ser considerado para entendermos o sistema representativo brasileiro.
Minha hipótese é que a força dos partidos brasileiros estaria associada ao processo pelo qual eles se transformaram em entidades paraestatais. Neste quadro, os dirigentes que controlam os recursos passam a ter um poder desproporcional em relação a outros segmentos da sigla. Com um mercado fechado (novos partidos não são criados facilmente) e com poucos incentivos para renovação, os partidos tornaram-se organizações pesadas e pouco atraentes para os jovens.
O leitor deve ter percebido que, a despeito de criticar o modelo de representação política em vigor no país, não antevejo uma forma de as democracias funcionarem sem os partidos. Eles precisam, todavia, de abertura, capturar a vitalidade do país e atrair uma parte dos cidadãos que passou a se interessar pela política nos últimos anos.
A pasmaceira da vida partidária brasileira será chacoalhada agora por Bolsonaro e sua Aliança pelo Brasil. Quase todos os analistas enfatizaram a estranheza do gesto: um político com largo vaivém partidário (esteve em oito siglas em 30 anos de carreira política) e evidente desinteresse pelo aperfeiçoamento do sistema resolve criar uma agremiação.
Para além das intenções e da inaptidão partidária do presidente, vale observar em que medida ele será capaz de agrupar em sua legenda parte dos milhões de seguidores que cultiva nas redes sociais.
Desde a redemocratização, pela primeira vez uma liderança popular de direita se envolverá na tentativa de organizar um partido. Fernando Collor transformou o Partido da Juventude (PJ) no Partido de Reconstrução Nacional (PRN) para viabilizar a sua candidatura à Presidência, mas não fez praticamente nenhum movimento para ampliar a sigla.
Há muitas experiências recentes que poderiam inspirar a renovação no Brasil. Na Espanha, na Itália e na França, novas legendas trouxeram milhares de cidadãos para a atividade partidária. Na Argentina e no Uruguai, os partidos utilizam as eleições primárias para escolher seus candidatos. Na Inglaterra, os militantes do Momentum, um movimento criado originalmente para persuadir os eleitores a comparecerem às urnas, se filiaram ao Partido Trabalhista e ajudaram a modernizá-lo.
Ainda é muito cedo para avaliar se a Aliança pelo Brasil se transformará em um partido relevante. Permitam-me, a despeito disso, uma dose de ceticismo em relação à sua capacidade de renovar a política brasileira. O PSL sofreu os males de ter, repentinamente, virado um grande destinatário de recursos estatais (dinheiro e tempo de TV em demasia) e está entrando em colapso. Por que seria diferente com a Aliança?
*Jairo Nicolau, cientista político, é pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV. Escreveu o livro “Representantes de Quem? Os Des(caminhos) do Seu Voto, da Urna à Câmara dos Deputados” (ed. Zahar, 2017).