Itamaraty

Maria Hermínia Tavares de Almeida: Deus no Itamaraty

Nacionalismo míope e alinhamento automático podem levar o país à insignificância

“Deus em Davos. Falei disso em minha apresentação na abertura do seminário Globalismo”, informou o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em sua conta no Twitter.

Vale uma visita ao site da Fundação Alexandre de Gusmão para ouvir as conferências do seminário. Especialmente, as de duas figuras importantes na política externa brasileira: o chefe da diplomacia e o assessor internacional da Presidência.

Durante longos 45 minutos, o chanceler empilhou ideias e citações no esforço de explicar que o “globalismo” é uma espécie de religião ateia, cujo evangelho junta “ambientalismo”, a ideia de direitos humanos universais e o politicamente correto. Tudo produto do “gramscismo” (de Antonio Gramsci, pensador e líder comunista italiano que morreu sob o fascismo, em 1937) e do “fisiologismo” (muito provavelmente o ministro queria dizer materialismo).

Ainda segundo a sua teoria, quando descartou a ideia de Deus, ao fim da Guerra Fria, o liberalismo ocidental haveria aberto o caminho para a expansão da ideologia globalista. Ao levar Deus ao Fórum Mundial deDavos, o presidente Jair Bolsonaro teria começado a alinhar o Brasil à cruzada conservadora mundial.

O seu assessor internacional Filipe Martins foi mais direto. O globalismo é a ideologia de uma tecnocracia apátrida e cosmopolita, instalada nas organizações multilaterais, querendo destruir a soberania nacional.

Nacionalismo versus globalismo, eis o grande combate do século 21, proclamou o professor que se notabilizou também por enriquecer a agenda do país com a luta contra a tomada de três pinos, as urnas eletrônicas e a reforma ortográfica. Na guerra do século, avisou, estamos ao lado do nacionalismo, abraçados a Trump, ao húngaro Orban, ao indiano Modi.

Não é possível avaliar o impacto desse livre-pensar sobre a política exterior do Brasil. Esta não depende só, nem principalmente, da vontade dos governantes, mas da pressão de interesses internos, assim como da geopolítica e dos recursos de poder e influência ao alcance de um país como este.

Muitas coisas continuarão a se mover sobre os mesmos trilhos de há muito assentados e sob a condução de um corpo diplomático treinado para buscar o melhor para o país.

Mas o nacionalismo míope à existência de problemas globais —como a degradação ambiental, as migrações ou as pandemias— somado a alinhamentos automáticos a governantes estrangeiros, na base de proximidade ideológica, podem isolar o Brasil e condená-lo à insignificância.

O Deus de Bolsonaro passou por Davos sem abalar a ordem mundial. Falta saber que estragos poderá fazer no Itamaraty.

*Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Luiz Carlos Azedo: Senado paralisa Itamaraty

“ONU, Paraguai, Grécia, Guiana, Hungria, Marrocos, França, Romênia, Bulgária, Jordânia, Portugal, Bahamas, Egito, UNESCO e Catar aguardam novos embaixadores, além de Itália, Santa Sé e Malta e CPLP”

A relação do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, com o Congresso, na linha de atuação do guru Olavo de Carvalho, está criando a maior dor de cabeça para o Itamaraty. Quinze novos embaixadores designados pelo ministro foram parar na geladeira da Comissão de Relações Exteriores do Senado, apesar da conversa entre o chanceler brasileiro e o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que somente liberou a apreciação das indicações de três embaixadores até agora, todos por interferência de outras autoridades.

O presidente da Comissão, senador Nelsinho Trad (PSD-MS), é aliado de primeira hora de Alcolumbre. Hoje, em reunião extraordinária da Comissão, segundo a pauta que estabeleceu, serão examinados os nomes dos embaixadores designados para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, com sede em Lisboa, Pedro Fernandes Pretas, um pedido do ministro-chefe do Gabinete de segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno; para Santa Sé e Malta, Henrique da Silveira Sardinha Pinto, solicitação do senador Antônio Anastasia (PSDB-MG); e da Itália, Hélio Vitor Ramos Filho, cujo padrinho é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A primeira indicação será relatada pela senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), a segunda pelo próprio Anastasia e a terceira, pelo senador Jarbas Vasconcelos(PMDB-PE). Todos são de oposição.

Nos bastidores do Itamaraty, a interpretação é de que as dificuldades estão num contexto mais amplo do que as relações dos diplomatas indicados para os postos no exterior com o Congresso, porque a maioria deles exerceu funções técnicas e não têm rusgas políticas com os senadores. Também não existe nenhuma “pendência” do presidente do Senado com o Itamaraty. Há cerca de um mês, o chanceler Ernesto Araújo esteve com Alcolumbre para solicitar a aprovação de suas indicações, sem sucesso até agora. Araújo já se queixou com o presidente Jair Bolsonaro sobre a demora nas nomeações, mas não houve nenhuma iniciativa do Palácio do Planalto no sentido de agilizar a apreciação dos nomes.

A substituição de embaixadores em postos estratégicos é normal na troca de governos, o que não é normal é essa demora. Também não é trivial a ruptura promovida por Araújo, que resolveu “caronear” — para usar uma expressão militar — a elite diplomática do país e promover diplomatas mais jovens para os postos mais relevantes. O ex-ministro Aloysio Nunes Ferreira foi elegante ao deixar o cargo que ocupou durante o governo Temer, evitando trocas nos postos primordiais, como as embaixadas de Estados Unidos, França e Portugal, com o objetivo de facilitar a vida de seu sucessor e a dos próprios diplomatas. A demora nas nomeações, porém, tornou-se um empecilho para a política externa, porque os embaixadores que serão substituídos já fizeram suas mudanças e cumprem um expediente meramente formal, aguardando o substituto estoicamente.

Beija-mão
É o caso do embaixador Sérgio Amaral, em Washington, que aguarda seu substituto até hoje. Demitido antes mesmo de Jair Bolsonaro tomar posse, suporta com galhardia o constrangimento de ter que representar o país sabendo que já não tem nenhuma sintonia com o novo chanceler e o atual governo. As embaixadas também ficam em compasso de espera, porque as iniciativas estratégicas dependem da chegada dos novos embaixadores. No jargão diplomático, perdem o “drive”, ou seja, o impulso de trabalho e a energia para novas iniciativas.

No caso dos Estados Unidos, Bolsonaro ainda nem escolheu o substituto. A expectativa era de que o nome do novo embaixador fosse anunciado para o presidente Jair Bolsonaro no seu encontro com Donald Trump, mas isso não ocorreu. Os nomes que chegaram a ser cotados foram o do cientista político Murillo de Aragão, da Consultoria Arko Advice, que era apadrinhado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, e o do ministro de segunda classe Néstor Forster, preferido do chanceler Ernesto Araújo.

Estão no limbo, aguardando aprovação do Senado, os novos embaixadores na Organização das Nações Unidas (ONU), Ronaldo Costa Filho; no Paraguai, Flávio Damião; na Grécia, Roberto Abdalla; na Guiana, Maria Clara Clarísio; na Hungria, José Luiz Machado Costa; no Marrocos, Júlio Bitelli; na França, Luiz Fernando Serra; na Romênia, Maria Laura Rocha; na Bulgária, Maria Edileuza Fontenele Reis; na Jordânia, Riu Pacheco Amaral; em Portugal, Carlos Alberto Simas Magalhães; nas Bahamas, Cláudio Lins; no Egito, Antônio Patriota; na UNESCO, Santiago Mourão; e no Catar, Luiz Alberto Figueiredo.

Tradicionalmente, no Senado, há uma espécie de romaria do beija-mão dos indicados para cargos que dependem de aprovação no Senado, como as agências reguladoras e tribunais superiores. Os designados visitam os integrantes das comissões encarregados de apreciar a indicação, os líderes de bancada e os integrantes da Mesa do Congresso. No caso dos embaixadores, porém, nunca houve isso, bastavam as visitas formais ao presidente da Comissão de Exteriores para marcar as sabatinas. Foram raras as vezes em que indicações foram embarreiradas no Senado, quase sempre em retaliação ao Executivo, por algum motivo. O código para derrubar uma indicação em plenário era coçar a gravata, para ninguém ser constrangido por discursos e encaminhamentos de votação.

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Sergio Fausto: A viagem ideológica de Bolsonaro

Aqui como lá são estigmatizados os gays, as feministas e os demais ‘ativismos’...

O Itamaraty prepara viagem do presidente aos três países europeus de sua predileção: Hungria, Itália e Polônia. O périplo pela troika do nacionalismo xenófobo e politicamente antiliberal no velho continente atende a agenda ideológica de Bolsonaro, a mesma de seus filhos e do ministro das Relações Exteriores, expoentes do olavo-bolsonarismo no interior do governo.

Em seu discurso de posse, Ernesto Araújo destacou os três países como exemplos de sã afirmação da nacionalidade num mundo supostamente ameaçado pelo “globalismo”. Omitiu deliberadamente o fato de que na Hungria e na Polônia a “afirmação da nacionalidade” se faz à custa da democracia liberal. Contra ambos os países a União Europeia acionou em julho passado, por deliberação da maioria do seu Parlamento, o artigo 7 do Tratado de Lisboa, que prevê punições a países-membros que violem a liberdade de expressão, o direito das minorias e a independência do Judiciário.

Na Itália, onde a direita antiliberal e xenófoba não governa sozinha, ainda não há danos visíveis à democracia. Mas a Liga Norte é a força política em ascensão. Seu líder, o vice-premiê e ministro do interior Matteo Salvini, homem forte do governo de coalizão, embora não reivindique explicitamente o legado do fascismo, com frequência invoca Mussolini em atos e palavras.

No aniversário do Duce, ano passado, Salvini escreveu um tuíte repetindo frase famosa do líder fascista, com pequena variação vocabular: “tanti (molti) nemici, tanto (molto) onore”.

Os inimigos de Salvini são os mesmos de Viktor Orbán, o premiê húngaro, e de Lech Kaczynski, líder maior do partido Lei e Justiça, na Polônia. Nesse grupo estão todos os que colocam obstáculos ao projeto que compartem com a francesa Marine Le Pen. Eles querem rebobinar a fita da História para devolver seus países a um passado idealizado, jamais existente, em que Estados-nação europeus abrigavam populações homogeneamente brancas, cristãs, heterossexuais, regidas por uma clara hierarquia de gênero, com homens dominantes à testa do Estado e das famílias e mulheres submissas limitadas ao lar.

Ao apelo nostálgico a direita xenófoba agrega um elemento do repertório democrático (o princípio da soberania popular na eleição direta do chefe do governo e da maioria parlamentar), dispensando-os, porém, de respeitar o sistema de freios e contrapesos, as liberdades fundamentais e os direitos das minorias. Eis o tal oxímoro chamado “democracia iliberal”.

A besta-fera de Orbán & Cia. são os imigrantes muçulmanos do Oriente Médio e do Norte da África. No caso da Hungria, observa-se também um traço antissemita, perceptível na demonização de George Soros. A Europa é terreno fértil para o sucesso de uma política que reduz os imigrantes e a imigração islâmicos à condição de ameaça à segurança pública e à civilização europeia: a proximidade geográfica das regiões de origem, a problemática integração de comunidades de imigrantes às sociedades locais, a ocorrência de atentados terroristas perpetrados por islamitas radicais, a ausência de uma política europeia coordenada em relação à imigração, a redução do tamanho das populações de origem europeia.

No Brasil, o olavo-bolsonarismo opera com lógica política semelhante. Identifica alvos que poriam em perigo a pátria, a família e os valores tradicionais. À falta dos imigrantes, a extrema-direita brasileira encontrou no “marxismo cultural” e nos “corruptos” categorias abrangentes e elásticas para alvejar seus inimigos, incluída a centro-direita liberal. As Forças Armadas não têm escapado a esse enquadramento paranoide da realidade. Aqui como lá, são estigmatizados preferencialmente os gays, as feministas, os movimentos LGBT e os demais “ativismos” da sociedade civil, com exceção dos que têm base cristã.

Se pudesse, o olavo-bolsonarismo não hesitaria em mobilizar dois cabos e um soldado para ferir de morte o sistema de pesos e contrapesos e sufocar as garantias das liberdades democráticas e dos direitos das minorias. A questão é saber se podem fazer o que querem. Em princípio, a resposta é não, por mais de uma razão.

Polônia e Hungria são Repúblicas unitárias, em que o poder se enfeixa no governo central. O Brasil é uma federação, em que o poder se dispersa pelos diferentes níveis de governo. Aqueles são países parlamentaristas, onde o poder se concentra na Câmara. Aqui ele se divide entre o Executivo e o Legislativo, este com Câmara e Senado. O Fidezs, partido de Viktor Orbán, detém a maioria absoluta no Parlamento húngaro, assim como o partido Lei e Justiça, na Polônia. São duas agremiações bem estruturadas, com alguma história na bagagem. O PSL é um ajuntamento de última hora que conquistou pouco mais de 10% da Câmara e menos de 5% do Senado.

A Constituição brasileira incluiu a separação dos Poderes, os direitos e as garantias fundamentais entre as cláusulas pétreas e confere poderes ao Supremo Tribunal para resguardá-las. Na sua ofensiva antiliberal o Fidezs e o Lei e Justiça não encontraram barreiras constitucionais de igual porte.

Hungria e Polônia vêm crescendo a taxas médias superiores a 3% nos últimos quatro anos, com o desemprego em níveis historicamente baixos. O Brasil ainda está às voltas com a pior crise e a mais lenta recuperação econômica de sua História e o olavo-bolsonarismo é parte do problema, não da solução.

Significa que não há razões para nos preocuparmos? Longe disso. Se a crise se agravar, com colapso das finanças públicas, desorganização dos serviços prestados por Estados e municípios, greves de servidores, policiais militares incluídos, e inquietação nos escalões de baixo das Forças Armadas, aumentará o risco de um curto-circuito institucional. O olavo-bolsonarismo joga as suas fichas nesse cenário. Cabe às forças responsáveis do País, civis e militares, evitar que ele se consuma.

* Sergio Fausto é Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University e membro do Gacint-USP


Luiz Carlos Azedo: O delírio atômico

“O Brasil sonhou com a bomba atômica durante o regime militar. As consequências foram mais negativas. A ambição era adquirir o ciclo nuclear por meio de cooperação internacional”

O ex-deputado federal Benito Gama é uma raposa política baiana daquelas que já viram de tudo no Congresso, desde quando presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o ex-presidente Collor de Mello e resultou na sua renúncia à Presidência da República para evitar o próprio impeachment. Governista, defende o presidente Jair Bolsonaro com bom humor e fina ironia. Um de seus argumentos favoritos, quando alguém cita declarações polêmicas do presidente e seus ministros, é comparar o começo do atual governo com o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Foi muito pior, a confusão era tanta que tinha até ministro defendendo a fabricação de uma bomba atômica!”

É uma alusão ao então ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, que defendeu a retomada do projeto nuclear com objetivos militares, que teve péssima repercussão internacional. Esse argumento já não pode ser utilizado por Benito, porque o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e filho do presidente da República, defendeu que o Brasil tenha armas nucleares, para ser levado “mais a sério”. Eminência parda da política externa brasileira, Eduardo Bolsonaro acompanhou o pai no encontro com o presidente norte-americano, Donald Trump, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington.

Eduardo soltou o disparate durante palestra para alunos do curso superior de defesa da Escola Superior de Guerra, em reunião da comissão que preside na Câmara. Ele defendeu o rompimento do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, assinado pelo Brasil em 1998: “A gente sabe que se o Brasil quiser atropelar essa convenção, tem uma série de sanções. É um tema muito complicado, mas eu acredito que um dia possa voltar ao debate aqui”. A Constituição brasileira, no seu artigo 21, determina que toda atividade nuclear em território brasileiro seja realizada apenas para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional.

Eleito por São Paulo com 1,8 milhão de votos, Eduardo Bolsonaro é o parlamentar com mais influência na política externa brasileira, foi um dos padrinhos na nomeação do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo. A visão do filho não é desconectada das ideias do presidente Bolsonaro, que se declara um “armamentista”. A expressão não se refere apenas à liberação da posse de armas, expressa uma concepção de projeção de poder, que ainda pode dar muitas dores de cabeça para o Brasil na sua política externa.

Na visão de Eduardo, bombas nucleares garantem a paz, como se não fosse possível, no caso brasileiro, defendê-la como se fez até agora, desmilitarizando o Atlântico Sul e evitando a nuclearização da América Latina. É simples e direto o seu raciocínio: “Tem um colega do Paquistão aqui, não tem? Como é que é a relação do Paquistão com a Índia se só um dos lados tivesse uma bomba nuclear? Será que seria da mesma maneira que é hoje? Óbvio que não. Quando um desenvolveu a bomba nuclear, o outro desenvolveu no dia seguinte. E ali está selada ao menos minimamente uma espécie de paz. Eu sou entusiasta dessa visão”, explicou aos alunos da ESG.

Programa nuclear
O Brasil sonhou com a bomba atômica durante o regime militar. As consequências foram mais negativas do que positivas para o país. O presidente Costa e Silva chegou a defender a condução de pesquisa, mineração e construção de artefatos nucleares numa reunião do Conselho de Segurança Nacional: “Não vamos chamar de bomba, vamos chamar de artefatos que possam explodir”, disse. A ambição do governo era adquirir todas as fases do ciclo nuclear por meio de cooperação internacional.

Chefiada por Paulo Nogueira Batista, um diplomata de carreira, a recém-criada Nuclebras, na década de 1970, foi encarregada de implementar o programa nuclear. Após a Índia testar uma bomba nuclear em 1974, no entanto, os EUA suspenderam a cooperação nuclear com o Brasil, que passou a privilegiar as negociações com a França e com a Alemanha Ocidental para transferência de tecnologia. A partir daí, passou a sofrer fortes pressões de EUA, Reino Unido, Canadá, França e da antiga União Soviética, que somente cessaram quando o Brasil e a Alemanha Ocidental assinaram um acordo com a Agência Internacional de Energia Atômica que assegura a natureza pacífica do programa nuclear brasileiro.

Coube ao então presidente Collor de Mello pôr uma pá de cal no projeto, ao lacrar os poços localizados na base aérea da Serra do Cachimbo, no Pará, em setembro de 1990. As atividades nucleares foram reduzidas ao programa de desenvolvimento de um submarino nuclear e à construção de duas usinas nucleares adicionais em Angra dos Reis (RJ). O Livro Branco de Defesa Nacional, divulgado em 2012 e publicado pelo Ministério da Defesa, reafirma que a América Latina é uma Zona Livre de Armas Nucleares e que o Brasil defende o desarmamento nuclear. Também afirma que o submarino de propulsão nuclear contribuiria para a proteção de rotas comerciais, a manutenção da livre navegação, a proteção de recursos naturais e a promoção do desenvolvimento tecnológico no país.

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Luiz carlos Azedo: Os militares e Maduro

”A experiência dos nossos generais e a doutrina de defesa das Forças Armadas brasileiras impediram que Bolsonaro desse um passo maior do que as pernas”

A chave para uma saída negociada para a crise venezuelana é uma retirada em ordem dos militares do poder, restabelecendo as regras do jogo democrático e mantendo a unidade e disciplina das Forças Armadas da Venezuela. A melhor e mais bem-sucedida experiência de uma operação dessa natureza foi a longa transição brasileira, na qual os militares voltaram para os quartéis e somente recuperaram o poder com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, depois de passarem 34 anos fora da política.

Os generais que cercam o presidente da República, principalmente os três mais poderosos — o vice-presidente Hamilton Mourão; o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno; e o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo —, viveram esse processo na caserna. A “distensão lenta, gradual e segura” do presidente Ernesto Geisel, iniciada nas eleições de 1974 (logo seguida de prisões em massa de oposicionistas, após a derrota eleitoral de novembro daquele ano), somente foi encerrada com eleição de Tancredo Neves, em 1985, no colégio eleitoral, no fim do governo de João Figueiredo.

Politicamente, foi uma operação bem-sucedida; militarmente, coincidiu com a maior profissionalização e aperfeiçoamento da formação dos militares e o reforço da disciplina e do respeito à hierarquia. A mesma geração de militares que se beneficiou dessa mudança qualitativa no comportamento das Forças Armadas, viu frustrada as ambições de ascensão social e política por meio da carreira militar, em razão do desprestígio causado pelas violações dos direitos humanos e do fracasso do modelo de capitalismo de estado implantado pelo regime militar.

Nada disso se compara, porém, à experiência dos militares de outros países quando foram apeados do poder: muitos foram presos, julgados e condenados por causa da tortura, como na Argentina. Mesmo os militares chilenos, muito bem-sucedidos na economia com seu modelo neoliberal, foram atropelados pela vitória do “No” no plebiscito convocado pelo general Augusto Pinochet. A “anistia recíproca” negociada com o Congresso, com Figueiredo no poder, em 1979, foi o nó que amarrou a transição. Depois da redemocratização, mesmo nos governos do PT, o pacto que garantiu o sucesso da transição foi mantido.

Vejamos os últimos acontecimentos na Venezuela. Mesmo enfraquecido na sociedade, Nicolas Maduro permanece no poder, graças ao apoio dos militares venezuelanos. Ontem, o líder da oposição Juan Guaidó, em Caracas, voltou a pedir o apoio dos militares, 24 horas depois do fracassado “levante” militar que havia anunciado. Maduro tem o apoio da cúpula das Forças Armadas de seu país, de Cuba, da Rússia e da China. Os acontecimentos de ontem, quando a Guarda Nacional Venezuelana reprimiu violentamente os manifestantes, mostram que a situação é crítica, mas o governo não perdeu o sabre que contém os protestos.

Ambiguidade

Uma retirada das Forças Armadas da Venezuela do poder será mais complexa do que se imagina, ao menos por três razões: o falecido presidente Hugo Chavez, que era militar, doutrinou e promoveu a maioria dos generais; as empresas estatais venezuelanas são controladas por militares corruptos; e o ministro da Defesa, Vladimir Padriño, além dos negócios, controla o tráfico de drogas no país. A cúpula militar venezuelana não aceitará nenhum acordo que implique punição pelos crimes que cometeu. A lógica do confronto entre Maduro e Guaidó não permite esse tipo de acordo, seria preciso que outros atores entrassem em cena, no governo e na oposição, para uma solução negociada. Esses atores existem, mas ainda não se apresentaram publicamente.

A posição do Brasil nesse processo é ambígua. O presidente Jair Bolsonaro, influenciado pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo, quase embarcou na lógica intervencionista do governo Trump, que já fez três tentativas de forçar a renúncia de Maduro: quando Guaidó se declarou presidente interino, por ocasião da fracassada operação de ajuda humanitária e na tentativa de levante de terça-feira passada. Nas três ocasiões, o chanceler brasileiro estava mal-informado sobre a real correlação de forças na Venezuela, em razão de informações recebidas de John Bolton, assessor de Segurança Nacional, e Mike Pompeo, secretário de Estado, com quem, inclusive, esteve novamente, na segunda passada.

Apesar das deficiências dos serviços de inteligência do Brasil, a experiência dos nossos generais e a doutrina de defesa das Forças Armadas brasileiras impediram que Bolsonaro desse um passo maior do que as pernas, como fez Guaidó, novamente, na terça-feira. A variável nova na crise venezuelana é a interferência de militares e serviços de inteligência russos, por ordem de Vladimir Putin, que tem outro tipo de experiência de transição política. Na Rússia, os militares e burocratas poderosos se apropriaram das empresas estatais que comandavam, nas “privatizações selvagens” do governo Boris Yeltsin, dando origem à atual e bilionária plutocracia russa. Os Estados Unidos acusam os russos de impedirem a renúncia de Maduro.

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Mathias Alencastro: Ernesto, o último devoto

Caos no Itamaraty tem acobertado inoperância do governo na agenda doméstica

Semanas tensas para Ernesto Araújo.

Barrado na porta do Salão Oval da Casa Branca pela entourage do presidente, um vexame sem precedentes, e abalado pela saída do camarada Ricardo Vélez, enviado aos leões pelo próprio Olavo de Carvalho, o ministro trocou o sorriso dos deslumbrados por um ar de ressaca.

Como é habito entre os fracos, ele tem descontado o nervosismo nos seus funcionários.

Entre os alvos consta Sérgio Amaral, respeitado servidor do Estado que retornou à carreira para servir em Washington no governo Temer.

Curiosamente, o embaixador é a única testemunha sensata da circense viagem presidencial, durante a qual Ernesto Araújo teve um memorável pique de tensão emocional. Abruptamente despachado para São Paulo, Amaral terá tempo para ponderar se os dois fatos estão interligados.

Nessa mesma semana, Mario Vilalva foi fritado na cadeira da Apex. Entidade de utilidade questionada e cronicamente instrumentalizada para benefício individual, ela quase terminou nas mãos de Paulo Guedes, que pretendia acabar com a farra.

Os olavistas do segundo escalão resistiram ferozmente e depois conspiraram para derrubar Vilalva, manifestando sedenta ambição em assumir o seu comando, sabe-se lá com que objetivo.

Essas duas intrigas não se aproximam em gravidade à intervenção para impedir a homenagem dos formandos do Instituto Rio Branco ao grande patriota José Maurício Bustani.

Num ambiente de intimidação extrema por parte do governo Bush, Bustani teve a coragem de enfrentar John Bolton, na altura subsecretário para controle de armas e segurança internacional do governo americano, sobre a artimanha criminosa de falsificar provas para justificar a invasão do Iraque.

Em outras palavras, ele está sendo punido pelo simples fato de ser um desafeto do principal aliado americano do chanceler.

Volta e meia exageradas, as afirmações de que o governo Bolsonaro é subordinado aos Estados Unidos devem ser sujeitas a exame crítico. Mas Ernesto Araújo, sozinho, tem conseguido levar a definição de vassalagem a outro nível.

As brigas internas poderiam ser um sinal de que o ministro é o próximo na fila das exonerações. Vélez passou por turbulências semelhantes antes de ser removido. Mas a comparação pode ser enganosa.

Sem sindicatos, professores e estudantes nas costas, Ernesto Araújo vem cumprindo na perfeição o roteiro que lhe foi atribuído: perseguir os quadros do Itamaraty, chegar aos limites do grotesco no revisionismo histórico e siderar a comunidade internacional com o seu comportamento errático.

Essa dinâmica caótica na política externa tem acobertado a inoperância do governo na agenda doméstica. Feito notável, raramente se discutiu com tanta intensidade assuntos internacionais no Brasil.

Isso torna Ernesto, e a sua devoção despudorada a uma visão de mundo única pela repulsa que suscita, insubstituível. As mentes sãs do Itamaraty devem se preparar para continuar sofrendo em silêncio por mais tempo.

Tal como no espaço, ninguém vai ouvir gritos no Palácio.

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Luiz Carlos Azedo: A embaixada em Washington

“A embaixada em Washington é uma posição estratégica, que já teve um papel muito relevante para a política interna no Brasil, sendo ocupada por grandes personalidades”

Quem será o novo embaixador em Washington? Disputam a posição o diplomata Nestor Folster e o consultor Murilo Aragão. O primeiro é o candidato do escritor Olavo de Carvalho, por ele apresentado ao presidente Jair Bolsonaro; e o segundo, dos empresários ligados à Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. Se não fosse muito escandaloso, Bolsonaro indicaria o próprio filho, deputado Eduardo Bolsonaro(PSL-SP), eleito com 1,8 milhão de votos, única testemunha da conversa do pai com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Mas ninguém se surpreenda se Bolsonaro decidir por um general de sua confiança.

O cargo está vago desde ontem, após a demissão do embaixador Sérgio Amaral pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que o removeu para o escritório de representação do Itamaraty em São Paulo, uma espécie de geladeira semidomiciliar. A demissão foi publicada ontem no Diário Oficial da União, mas já havia sido anunciada por Bolsonaro num café da manhã com jornalistas, no Palácio do Planalto, às vésperas de viajar para seu encontro com Trump.

Na ocasião, o presidente da República alegou que a mudança era necessária porque sua imagem não estava boa no exterior. Bolsonaro queixou-se de que é apresentado fora do país como ditador, racista e homofóbico, sem a devida defesa dos diplomatas brasileiros. Sobrou para Sérgio Amaral e mais 14 embaixadores, entre os quais, o da França, Paulo César de Oliveira Campos, que pode vir a ser o próximo defenestrado.

Sérgio Amaral estava à frente da embaixada brasileira nos Estados Unidos desde 2016, indicado pelo presidente Michel Temer. Já havia ocupado o posto em 1984, no governo João Figueiredo, e em 1992, no governo Itamar Franco. Sérgio Amaral está desde 1971 no Ministério das Relações Exteriores; serviu também nas embaixadas do Reino Unido e da França, que fazem parte do circuito Elizabeth Arden (uma famosa marca de cosméticos), ao lado da de Roma. Entre 2001 e 2003, Amaral comandou o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Também foi porta-voz da Presidência, entre 1995 e 1999, ambos na gestão de Fernando Henrique Cardoso.

Antecessores
A embaixada em Washington é uma posição estratégica, que já teve um papel muito relevante para a política interna no Brasil, sendo ocupada por grandes personalidades da política, como Juracy Magalhães, Osvaldo Aranha e Amaral Peixoto; das finanças, como Roberto Campos e Walter Moreira Salles; e da Cultura, com destaque para Joaquim Nabuco. Grandes chanceleres passaram pelo posto, como Gibson Barbosa e Azeredo da Silveira.

Famoso até hoje por causa do filé-mignon de sua preferência, batizado com seu nome pelos restaurantes cariocas (bife alto, com alho picado bem dourado, batatas portuguesas, arroz e farofa de ovos), Oswaldo Aranha foi o mais notável ocupante da embaixada em Washington, por ter presidido a Assembleia Geral da ONU de 1945, que fez divisão da Palestina e criou o Estado de Israel, motivo de citação por parte de Bolsonaro na viagem a Israel.

Grande articulador da Aliança Liberal no final da Primeira República, foi um dos organizadores do levante armado que depôs Washington Luís na Revolução de 1930. Osvaldo Aranha negociou com a Junta Governativa Provisória de 1930, no Rio de Janeiro, a entrega do governo a Getúlio Vargas. Posteriormente, foi nomeado ministro da Justiça e, em 1931, ministro da Fazenda. Alijado da escolha do interventor em Minas Gerais, pediu demissão do cargo em 1934. No mesmo ano, aceitou o cargo de embaixador em Washington. Americanófilo, se tornou amigo pessoal do presidente Franklin Delano Roosevelt. Demitiu-se do cargo de embaixador por não aceitar a declaração do Estado Novo, em 1937. Entretanto, em março de 1938, foi convencido por Getúlio a assumir o Ministério das Relações Exteriores e, no cargo, lutou contra elementos germanófilos dentro do Estado Novo, em busca de maior aproximação com os EUA, no conturbado período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial.

Presidiu a Assembleia Geral da ONU por acaso. Afastado da política desde o fim do Estado Novo, estava nos Estados Unidos em viagem de negócios, em janeiro de 1947, quando foi surpreendido por um convite para assumir o assento que caberia, por rodízio, ao Brasil no Conselho de Segurança da ONU, em razão da morte do embaixador designado para a missão.

 

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Eliane Cantanhêde: Almas penadas

Assim como Vélez, há uma fila de embaixadores esperando o ‘bilhete azul’ que não vem

A demissão de Ricardo Vélez Rodríguez do MEC foi decidida antes da viagem a Israel, em 30 de março, e anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro três dias antes de ser formalizada e finalmente publicada ontem no Twitter e no Diário Oficial. Se parece esquisito, não é caso único e não será o último.

Bolsonaro também anunciou no dia 13 de março, antes da ida aos EUA, que iria trocar 15 embaixadores, inclusive Sérgio Amaral, de Washington. Deu um motivo para o “bilhete azul” num encontro com jornalistas: “Não está vendendo uma boa imagem do Brasil no exterior”. E para ser só na volta: ficaria muito ruim às vésperas de chegar ao país.

O presidente foi para os EUA no dia 17, voltou, foi ao Chile, voltou, foi a Israel, voltou. Mas os embaixadores continuam exatamente onde estavam, como almas penadas. O que mudou, nesse meio tempo, foi o número dos que estavam com os dias contados.

Se Bolsonaro havia falado em 15, a lista que o chanceler Ernesto Araújo enviou para a Casa Civil continha três vezes mais nomes, em torno de 45 embaixadores que ocupam efetivamente embaixadas ou consulados e chefias de representações do Brasil em organismos internacionais nos diferentes continentes. Entre eles, seis estão se aposentando neste ano. Os demais entram na dança das cadeiras.

Até agora, porém, praticamente um mês depois do anúncio feito pelo próprio presidente da República, ninguém veio, ninguém foi para posto nenhum. O próprio embaixador Sérgio Amaral, nomeado no governo Michel Temer, não só continua em Washington como participou ativamente da viagem de Bolsonaro e, agora, participa da visita do vice Hamilton Mourão.

O tempo vai passando e Amaral vai ficando. Ele já estava fazendo as malas, arrumando as gavetas, cuidando das conveniências da família, quando o Itamaraty deu uma contraordem, mandou parar tudo e aguardar novas orientações. Que ainda não chegaram, provavelmente porque alguém deve ter feito as contas: quanto custa a mudança de mais de 40 diplomatas?

Sérgio Amaral não é Vélez Rodríguez nem causou tanta confusão, tanto rebuliço, tantas demissões e tantos recuos, mas sofre nesses três meses o mesmo processo que atingiu o agora ex-ministro da Educação: fica no limbo, sabendo de seu destino pela mídia.

Assim como ele, embaixadores brasileiros pelo mundo afora, na Europa, na Ásia, na África, nas Américas. E, claro, seus assessores diretos, sejam diplomatas, sejam funcionários. Em consequência, suas famílias.

Se há insegurança entre os que saem, há também entre os que podem entrar. Para Washington, o vice Mourão queria o cientista político Murillo de Aragão, da consultoria Arko Advice, um frequentador assíduo da Vice-Presidência. Já a cúpula do Itamaraty preferia o embaixador de carreira Nestor Forster, do grupo de Ernesto Araújo. Os dois enfrentam resistências e obstáculos concretos para assumir o que é, nada mais, nada menos, a embaixada mais importante do Brasil. Aliás, de todos os países.

No MEC, sai Vélez, filósofo, e entra Abraham Weintraub, um homem das finanças, mas uma coisa é certa: a ideologia fica. Além de professores universitários, ambos são também arraigadamente de direita, conservadores nos costumes, simpatizantes das ideias do tal guru Olavo de Carvalho. Lembram-se daquela velha corrente que via comunistas em toda a parte, até debaixo das camas das famílias brasileiras?

Agora, é acompanhar a montagem da equipe e identificar os impostos por Olavo de Carvalho, os indicados pelos militares e os simplesmente técnicos, que querem ver o ministério andar. Sim, porque a Educação está paralisada. Mas a guerra no ministério continua.


Luiz Gonzaga Belluzzo: Ernesto Araújo e o nazismo

O nazismo não realizou a estatização da economia e da sociedade, mas sim a privatização do Estado

O chanceler Ernesto Araújo afirma e reafirma que o nazismo é de esquerda. Diante da insistência, o governo alemão, historiadores, cientistas políticos e economistas entregaram-se ao labor de ridicularizar e massacrar tais afirmações e reafirmações.

Nosso chanceler Araújo padece de um vício intelectual que compromete gravemente a compreensão dos processos sociais, o vício do nominalismo. Resumidamente, trata-se do expediente primário de resolver controvérsias atribuindo nome às coisas: "comunista"!, "nazista"! Os conceitos naufragam nas banalidades da primeira infância: nenê viu a uva.

Vou começar com Karl Polanyi. Em sua obra-prima, "A Grande Transformação", Polanyi arriscou a pele na aventura de investigar os fundamentos sociais e econômicos do coletivismo que assolou o planeta nas três décadas inaugurais do século passado.

Na esteira das instabilidades do primeiro pós-guerra e da Grande Depressão, diz Polanyi, o instinto de autoproteção da sociedade suscitou reações que visavam conter os danos humanitários gerados pela operação dos mercados desatinados.

Na visão dos economistas liberais de hoje e de sempre, o mau funcionamento da economia ou a eclosão das crises devem ser tributadas às tentativas de interferir nas leis que governam o livre mercado. Polanyi inverte o argumento: é a utopia do mercado autorregulado que desencadeia as reações de autoproteção da sociedade, contra o desemprego, o desamparo, a falência, a bancarrota, enfim, contra a exclusão dos circuitos mercantis, o que significa, na prática, a impossibilidade de acesso aos meios necessários à sobrevivência humana.

Essas reações são essencialmente políticas: envolvem a tentativa de submeter os processos impessoais e automáticos da economia ao controle consciente da sociedade. Nos anos 30, Polanyi viveu um momento da história em que a revolta contra o desemparo e a insegurança revelou-se tão brutal quanto os males que a economia destravada impôs à sociedade. Ao estudar o avanço do coletivismo nessa quadra, Karl Polanyi concluiu que não se tratava de uma patologia ou de uma conspiração irracional de classes ou grupos, mas sim de movimentos nascidos das entranhas do mercado autorregulado.

Com o colapso da economia, a superpolitização das relações sociais tornou-se inevitável. O despotismo da mão invisível foi substituído pela tirania visível do chefe. O político e a polícia começam a invadir todas as esferas da vida social, como fossem suspeitas toda e quaisquer forma de espontaneidade.

A Grande Depressão colocou sob suspeita as pregações que exaltavam as virtudes do liberalismo econômico. Frações importantes das burguesias europeia e americana tiveram que rever seu patrocínio incondicional ao ideário do livre mercado e às políticas desastrosas de austeridade na gestão do orçamento e da moeda, diante da progressão da crise social e do desemprego. Assim que a coordenação do mercado deixou de funcionar, setores importantes das hostes conservadoras, não só na Alemanha, aderiram aos movimentos fascistas e ao controle estatal das relações econômicas, como último recurso para escapar à devastação de sua riqueza.

Hanna Arendt, no clássico "As Origens do Totalitarismo", ocupa-se, sobretudo, da emergência do nazismo e do stalinismo como fenômenos do igualitarismo totalitário que vocifera: "Se você não é igual a mim, não tem direito a existir". Esse igualitarismo de manada pressupõe paradoxalmente a superioridade de um modo de ser sobre outros e termina nas tentativas de apagar pela força as diferenças de posição social e de estilos de vida.

Diz Arendt: "O fato de que o 'pecado original' da acumulação de capital tenha requerido novos pecados para manter o sistema em funcionamento foi eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental... Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a ralé".

A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, "pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé". Esses indivíduos mutilados executam os processos descritos por Franz Neumann, em "Behemoth", o livro clássico sobre o nazismo: "Aquilo contra o que os indivíduos nada podem - e que os nega - é justamente aquilo em que se convertem".

O totalitarismo nasceu das entranhas da sociedade capitalista dilacerada, provocando a derrocada do Estado liberal em que o exercício da soberania e do poder deve estar submetido ao constrangimento da lei impessoal e abstrata.

Como mostra o filme de Lucchino Visconti, "Os Deuses Malditos", o nazismo não realizou a estatização da economia e da sociedade, mas sim a privatização do Estado. Os interesses de grupos privados se apoderam diretamente do Estado, suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.

Peter Gay incita os pensadores da sociedade a considerar as relações estabelecidas por Freud entre biografia e cultura na sociedade de massas: "Os estudiosos da sociedade, sem excluir os escritores imaginativos, têm certamente sabido há bastante tempo que em grupos os indivíduos podem retornar a estados primitivos da mente, sujeitar a sua vontade a líderes, desconsiderar restrições e o ceticismo sensível que a educação cultivou neles tão dolorosamente".

Seria uma descortesia dizer que desperdiço vela com defunto de segunda. Para não descumprir regras de civilidade, teimo em repetir aos ouvidos de Araújo: a sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos "livres". A história dessas sociedades "produziu" o mercado, a sociedade civil, o Estado Moderno, suas liberdades e seus interesses.

Essa forma de sociabilidade, reivindicada pelo liberalismo político, rejeita a submissão dos indivíduos livres a transcendências religiosas, moralistas e midiáticas. As indigências do chanceler Araújo pretendem se colocar "fora" das misérias do mundo da vida, acima do penoso exercício de compartilhar a razão com os demais cidadãos livres e iguais em sua diversidade.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.


Ricardo Toledo Santos Filho: Os diplomatas vão à guerra

Contradição em que o Itamaraty se meteu confronta uma tradição de dois séculos

Quando idealizou a fundação do Estado nacional brasileiro, o patriarca da independência José Bonifácio de Andrada e Silva preocupou-se em construir uma aliança com as nações vizinhas, também elas libertadas do jugo do colonialismo europeu. Já em maio de 1822 deu instruções ao cônsul que enviaria a Buenos Aires, Manuel Antônio Correia da Câmara, para que iniciasse negociações com a Argentina visando à criação de uma federação sul-americana. O Império do Brasil foi então modelado, e a República consolidaria essa viga diplomática, sob o signo da boa vizinhança. A contradição em que o Itamaraty se meteu na crise da Venezuela agora confronta uma tradição de dois séculos.

Repousam na acomodação da história os incidentes que, por causas específicas e efeitos inevitáveis, fugiram dessa tradição consolidada —a exemplo dos conflitos geopolíticos no instável tabuleiro da bacia do rio da Prata e a Guerra do Paraguai. Desde esse conflito multilateral, encerrado há 149 anos, temos vivido em paz com os dez vizinhos com que compartilhamos 17 mil quilômetros de fronteira. As pendências surgidas nesse interlúdio de concórdia, como a do Acre, foram resolvidas pelo instrumento adequado, a negociação da diplomacia em vez da imposição das armas. Mas agora a casa de Rio Branco, o altivo negociador pacifista, nosso Ministério das Relações Exteriores se apequena como um apêndice extranacional na ofensiva de deposição do governo venezuelano.

Para decupar posições, deixe-se claro de antemão que não se trata aqui de defender o indefensável governo de Nicolás Maduro, mas de reconhecer que a causa é maior que o personagem. Embora gravíssimos, porque o país definha a cada segundo, imerso em uma crise sem precedentes da qual o bolivarianismo parece incapaz de tirá-lo, impondo a seu povo privações de travessia do deserto, os problemas da Venezuela só podem e devem ser resolvidos por seus nacionais.

Constituem dogmas das relações internacionais, amparadas pela Carta da Organização das Nações Unidas e o direito público internacional, reconhecer e preservar a independência e o autogoverno nacionais sem dirigismo externo. O artigo 4º da nossa Constituição é explícito ao determinar que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios da autodeterminação dos povos, não intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz e solução pacífica dos conflitos.

O Itamaraty do chanceler Ernesto Araújo minimiza esses princípios, levando de roldão também os preceitos da Política de Defesa Nacional, fixada pelo decreto n.º 5.484, de 2005, atualizado em 2012. Ao formular a Estratégia de Defesa Nacional, o documento aprovado pelo Congresso Nacional começa por afirmar que “o Brasil é pacífico por tradição e por convicção. Vive em paz com seus vizinhos. Rege suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios constitucionais da não intervenção, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos e democracia.”

O normativo veda qualquer intromissão nos assuntos internos da Venezuela. Se há interesses em jogo, os do Brasil se apartam do apetite de outros países. Já temos suficiente petróleo... Queremos amizade e mercado. E paz na América do Sul. A possibilidade de um conflito armado ("todas as opções estão sobre a mesa”, disse o presidente Donald Trump), com inaceitável participação do Brasil, é um pesadelo geopolítico que a todo custo devemos prevenir.

Oxalá prevaleça a visão castrense do governo brasileiro que zela pela execução da política subcontinental de defesa, alinhando-se às posições antibelicistas que põem na mesa a ideia-força da paz. Nesse episódio, o Brasil cultiva uma nova jabuticaba: o paradoxo de diplomatas pregarem intervenção armada e soldados defenderem a diplomacia.

*Ricardo Toledo Santos Filho é  vice-presidente da seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil


O Estado de S. Paulo: Bolsonaro dispensa visto para turistas de EUA, Austrália, Canadá e Japão; medida é unilateral

Estrangeiros dos quatro países poderão entrar no País sob novas regras a partir de junho

Luci Ribeiro, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro formalizou em edição extra do Diário Oficial da União (DOU), publicada na tarde desta segunda-feira, 18, a dispensa – unilateral – de visto para turistas norte-americanos entrarem no Brasil. A medida consta no decreto assinado por Bolsonaro e será estendida também a visitantes de Austrália, Canadá e Japão, também de forma unilateral. O decreto só entrará em vigor em 17 de junho deste ano.

Na semana passada, o governo já havia dito que o fim do visto para os norte-americanos seria umas das medidas a serem anunciadas por Bolsonaro durante a visita ao presidente daquele país, Donald Trump. Bolsonaro já está em solo americano e o encontro com Trump deve ocorrer amanhã.

De acordo com o decreto, a dispensa do visto de visita apenas se aplica aos nacionais dos quatro países que sejam portadores de passaportes válidos para: "entrar, sair, transitar e permanecer no território da República Federativa do Brasil, sem intenção de estabelecer residência, para fins de turismo, negócios, trânsito, realização de atividades artísticas ou desportivas ou em situações excepcionais por interesse nacional; e estada pelo prazo de até noventa dias, prorrogável por igual período, desde que não ultrapasse cento e oitenta dias, a cada doze meses, contado a partir da data da primeira entrada no País".

Flexibilização
O ato também flexibiliza o poder dos ministros da Justiça e Segurança Pública e das Relações Exteriores para a dispensa de vistos. Diz a nova redação: "Ato conjunto dos Ministros de Estado da Justiça e Segurança Pública e das Relações Exteriores poderá, excepcionalmente, dispensar a exigência do visto de visita, para nacionalidades determinadas, observado o interesse nacional". O texto anterior já trazia essa possibilidade, mas os ministros só poderiam dispensar o visto com a definição de prazo determinado. Com a nova regulamentação, os titulares precisam apenas determinar as nacionalidades e não mais o tempo de validade da dispensa dos vistos.


José Goldemberg: Movimento ambientalista é de esquerda ou direita?

É preciso redobrar esforços para evitar que o aquecimento global seja ‘politizado’ de novo

Preocupações com a preservação do meio ambiente datam da mais remota Antiguidade. Platão, há 2.500 anos, comparou o desmatamento na Grécia do seu tempo com “o esqueleto de um homem doente: toda a gordura e a carne tenra se foram, deixando apenas a moldura nua da Terra”.

Alguns governantes, ao longo da História, se deram conta das consequências negativas da destruição das florestas. Os antigos egípcios penalizavam quem cortasse árvores e na civilização inca essa prática era punível com a morte.

Apesar disso, a expansão do Império Romano varreu as florestas de quase toda a Europa e da Inglaterra. O mesmo foi feito pelos colonizadores portugueses, que devastaram a Mata Atlântica até esgotar a produção de pau-brasil.

A situação começou a mudar no século 16, por diversas razões: em alguns países, como a Áustria, um reflorestamento foi feito por questões econômicas; em outros, pelo interesse dos aristocratas europeus em preservar as florestas em torno dos seus castelos para garantirem espaço para suas caçadas. Aliás, essa é a razão pela qual Londres tem hoje tantos parques. Na enorme expansão da conquista do território da América do Norte, reservas naturais foram criadas até por motivos estéticos, sob a influência de intelectuais como Thoreau.

Surgiram no século 19 as primeiras associações ambientalistas do mundo, como a Open Society, na Inglaterra, em 1865, o Sierra Club, nos Estados Unidos, em 1892, e a Audubon Society, também dos Estados Unidos, em 1905.

O caráter básico delas era a conservação da natureza, o que levou à criação, em 1952, da União Internacional para a Conservação da Natureza.

No fundo, eram todas elas organizações inspiradas em nobres propósitos, bem aceitos pelo establishment e próximas da “direita”, mas pouco eficazes em evitar a degradação ambiental decorrente da industrialização selvagem do século 19, devida à utilização de carvão em grande escala. Nos países menos desenvolvidos, a expansão colonial dos séculos 19 e 20 levou a degradação ambiental ao resto do mundo.

Foi só a partir da metade do século 20 que surgiram na Europa e nos Estados Unidos movimentos sociais e organizações que começaram a questionar seriamente os modelos de desenvolvimento econômico que levavam à degradação ambiental. Esses movimentos, que se organizaram em parte pela repulsão à Guerra do Vietnã, acabaram se expandindo para a luta contra o apartheid na África do Sul, a discriminação racial nos Estados Unidos, a cruzada contra o uso da energia nuclear, depois do acidente de Chernobyl, e a emancipação feminina, que a pílula anticoncepcional acelerou.

Algumas dessas organizações, como o Greenpeace, introduziram um tipo de ativismo que não existia no movimento ambientalista do início do século 20, que era até então tolerado pela “direita”. Por essa razão a revolução cultural dos anos 1970 ganhou aspectos mais próximos do que se rotula como “esquerda” do movimento ambientalista, crítico da economia capitalista dos países do Ocidente e da economia dos países da área socialista, uma vez que a União Soviética não revelou preocupações maiores com a preservação ambiental do que seus adversários ocidentais na guerra fria.

O que estamos presenciando agora neste início do século 21 é um movimento de “contracultura” ao que se poderia considerar exageros da revolução cultural dos anos 70. Ele se manifesta no renascimento da valorização da família, no nacionalismo e nas restrições à entrada de imigrantes de Estados islâmicos e africanos, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Neste país em particular, a eleição de Donald Trump tem sido interpretada como uma reação ao “politicamente correto” dos anos de Bill Clinton e Barack Obama.

Ele se manifesta também por meio de ideologias evangélicas cristãs (não católicas), baseadas na sua interpretação pessoal dos Evangelhos, e atrai também grupos de protestantes, mórmons e judeus. Eles têm em comum um forte apoio à economia de mercado (sem controle governamental), questionam a Teoria da Evolução, são contrários à manipulação genética, eutanásia, homossexualidade, educação sexual, ao aborto; e são céticos em relação ao aquecimento global, além de terem uma forte suspeita das elites científicas que questionam as interpretações literais da Bíblia.

Uma vítima dessa descrença no conhecimento científico é a recusa em aceitar o fato notório de que a atividade humana é a causa principal do aquecimento global, o que favorece grupos econômicos importantes nos países produtores de combustíveis fósseis e, principalmente, empresas de petróleo e de carvão.

Existe, porém, um elemento novo que surgiu nesse debate, com o trabalho dos cientistas de grandes universidades americanas como Princeton, Universidade da Califórnia, e também de alguns pesquisadores brasileiros. Esses cientistas analisaram as causas da degradação ambiental, como certos tipos de tecnologias – comuns a todos os países industrializados, capitalistas ou comunistas – e o uso de combustíveis fósseis. E identificaram os verdadeiros vilões, os responsáveis pelos problemas.

Esses trabalhos tiveram o mérito de “despolitizar” o debate e abrir caminho para a adoção de tecnologias limpas, como o uso de energias renováveis. Exemplo de sucesso nessa área foi a melhora da qualidade do ar, da água e a disposição do lixo, cujas consequências positivas são visíveis a olho nu.

Contudo o aquecimento global é mais difícil de explicar, porque não é visível, seus impactos não são imediatos – somente se dão no longo prazo – e combatê-lo tem custos elevados. É por essa razão que é preciso, nesse caso, um esforço redobrado dos cientistas para evitar que o tema do aquecimento global seja novamente “politizado” e deixar muito claro que não é sensato adiar as medidas que poderão resolvê-lo.

*Professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente