Itamaraty
Maria Hermínia Tavares: O resgate do respeito
Reconstruir nossa política externa exigirá mais que a volta a princípios consagrados
Na semana passada, os principais jornais brasileiros publicaram importante artigo pedindo a reconstrução da política externa do país. Assinaram o texto todos os ex-ministros de Relações Exteriores desde o governo Sarney, um notável diplomata e um ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Com a cacife de quem conduziu a diplomacia nacional nos últimos 28 anos, o grupo critica implacavelmente a destruição de nossa autoridade além-fronteiras, levada a cabo pelo atual governo. E propõe que a atuação do país volte a se pautar pelos princípios que desde muito cedo vertebraram a conduta e a identidade nacional diante do mundo: autonomia frente às nações poderosas, universalismo, multilateralismo e defesa da solução pacífica de conflitos.
Assim como a Covid-19, mais dia, menos dia, este governo passará —e com ele o chanceler que tão bem o espelha na mediocridade e na fúria descerebrada contra as melhores tradições diplomáticas brasileiras. Mas as circunstâncias sob as quais o país terá de reconquistar o respeito alheio posto abaixo pelo obscurantismo serão provavelmente muito diversas daquelas que favoreceram nossa ascensão internacional nas últimas décadas.
As projeções mais razoáveis sobre o estado do mundo pós-pandemia apostam não em mudanças radicais, mas no acirramento de tendências já presentes antes da chegada da peste. Elas parecem apontar para a erosão do que os estudiosos denominaram a ordem internacional liberal --o conjunto de normas, regras e organizações supranacionais de natureza econômica e política, estabelecidas ao término da 2ª Guerra Mundial. As instituições de Bretton Woods e as que surgiram e se multiplicaram no âmbito das Nações Unidas definem sua arquitetura multilateral.
O definhamento do apoio dos Estados Unidos a tais instituições, que Trump não iniciou, mas acentuou —bem como sua preferência por ações unilaterais, além da encarniçada disputa com a China—, as enfraquecem e deslegitimam. Basta ver a campanha xenófoba do presidente americano contra a Organização Mundial da Saúde desde a eclosão da pandemia. Tais organismos decerto não haverão de perecer, mas talvez ofereçam espaço menor para países como o Brasil buscarem reconhecimento e protagonismo.
Nesse ambiente adverso, reconstruir a política externa brasileira demandará mais do que voltar aos princípios consagrados: será imperativo traduzi-los em novas formas de ação. Algo que nem passa pela cabeça do patético chanceler, mas desafia todos quantos aspirem a que o país resgate o respeito internacional perdido.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Luiz Carlos Azedo: Emergência e fricção
“Bolsonaro agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, com crises criadas dentro do governo”
Nunca vivemos, desde a gripe espanhola de 1918, uma emergência sanitária como a que o mundo atravessa. O problema do novo coronavírus é que ainda há mais dúvidas do que certezas em relação à doença, exceto que se propaga muito rapidamente, é letal para um contingente significativo de suas vítimas e não se tem previsão de quando e se teremos uma vacina que o previna, nem um remédio realmente eficaz para combatê-lo. O que tem sido mais eficiente no combate à epidemia é o distanciamento social e um sistema público de saúde robusto, para tratar os casos graves e salvar vidas.
Ninguém estava preparado para enfrentar o coronavírus, essa é a verdade. Mas talvez nenhum outro governante no mundo tenha revelado tanto despreparo para lidar com a situaçao como o presidente Jair Bolsonaro. Até hoje, não se deu conta de que a volta à normalidade é impossível enquanto o vírus estiver se propagando numa velocidade maior do que a capacidade de atender as pessoas que necessitam de assistência médica, pois isso significa pôr em colapso o sistema de saúde e, consequentemente, toda a economia.
Os números revelados até ontem são eloquentes: 7.321 mortes e 107.780 casos confirmados, dos quais 32.187 em São Paulo, com 2.654 mortes. Com a subnotificação, calcula-se que o número de pessoas contaminadas no país pode se aproximar de 1 milhão. Uma conta simples, usando como base o índice otimista de que 3% necessitarão de internação, projeta uma demanda próxima de 30 mil vagas em leitos hospitalares nos próximos 30 dias. Essa é a bucha na mão de governadores e prefeitos de todo o país. Em Manaus, Recife, Fortaleza e Rio de Janeiro, já há gente morrendo por falta de vagas nas UTIs, o que pode se reproduzir nos demais estados, a começar por Santa Catarina, a bola da vez.
É inequívoco que o país está sofrendo as consequências do relaxamento da política de distanciamento social, que é estimulado sistematicamente pelo presidente Jair Bolsonaro, com eco no desespero da parcela da população que perdeu suas fontes de renda. Com o agravante de que os R$ 600 aprovados pelo Congresso ainda não chegaram à parcela considerável dos que têm direito ao benefício, por dificuldades operacionais da Caixa Econômica Federal, que centralizou, desnecessariamente, o cadastramento dos beneficiados e a distribuição dos recursos. O desespero nas filas das agências da Caixa revela a outra face do drama humano que estamos vivendo.
Entretanto, o custo econômico do colapso total do sistema de saúde, provocado pela volta atabalhoada às atividades do comércio e dos serviços, seria muito maior do que o da atual política de distanciamento social. Essa dimensão do problema o presidente Bolsonaro não quer aceitar, assim como a bolha de apoiadores fanatizados com a qual interage. Ninguém sabe como sairemos dessa crise. Com certeza, porém, teríamos perspectivas mais otimistas se não houvesse tanta fricção no combate à epidemia, principalmente política.
Protagonismo
Quem mais protagoniza essa fricção é o presidente da República, que parece sabotar os próprios esforços do governo para combater a epidemia e criar um ambiente de cooperação entre os Poderes e demais entes federados, para mitigar seus efeitos econômicos e sociais. Até mesmo as relações com os parceiros internacionais, dos quais dependemos para obter mais equipamentos e insumos, notadamente, a China, sofre os efeitos dessa fricção. Na cena internacional, o Brasil voltou a ser um país exótico e, agora, politicamente isolado. A construção de gerações de diplomatas do Itamaraty está sendo implodida pelo chanceler Ernesto Araújo.
Essa fricção agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, deteriorado por crises criadas dentro do próprio governo, pelo presidente da República. Ontem, Bolsonaro nomeou a toque de caixa o novo diretor da Polícia Federal, delegado Rolando Alexandre de Souza, que decidiu trocar a chefia da superintendência do Rio de Janeiro. Carlos Henrique Oliveira, atual comandante do estado fluminense, foi convidado para ser o diretor executivo da Polícia Federal, deixando a Superintendência do Rio, cuja direção Bolsonaro sempre quis indicar. Por sua vez, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que autorize novas diligências no inquérito que apura suposta interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal.
Relator do caso, cabe ao ministro Celso de Mello autorizar a oitiva de pessoas citadas por Moro em depoimento; a recuperação de áudio ou vídeo que comprove a suposta tentativa de interferência; e a perícia nas informações obtidas a partir do celular de Moro. Dez pessoas do alto escalão do governo serão ouvidas, entre as quais os ministros Luiz Eduardo Ramos (Governo); Augusto Heleno (GSI), Braga Netto (Casa Civil); a deputada Carla Zambelli (PSL-SP); o ex-diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo; e os delegados da PF Ricardo Saadi, Carlos Henrique de Oliveira Sousa, Alexandre Saraiva, Rodrigo Teixeira e Alexandre Ramagem Rodrigues. O que se investiga? “O eventual patrocínio, direto ou indireto, de interesses privados do Presidente da República perante o Departamento de Polícia Federal, visando ao provimento de cargos em comissão e a exoneração de seus ocupantes”. Mais fricção à vista.
Sergio Leo: Entre a Casa Branca e a casa arrasada, a diplomacia do tiro no pé
O ministro Ernesto Araújo, que fez analogia entre isolamento social e campos de concentração, planta obstáculos sérios ao trabalho de seus sucessores. Para alguns temas, a ordem de Brasília é consultar o Departamento de Estado americano, e acompanhar Washington
Impassível, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, postou-se ao lado do Presidente da República no pronunciamento que se seguiu à queda do ministro Sérgio Moro, um dos aliados que deram corpo à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Os desencontros sobre os rumos da economia também ameaçam a imagem ― e a permanência ― de outro avalista eleitoral, Paulo Guedes, da Economia; mas Araújo continua com carta branca para destroçar as tradições diplomáticas brasileiras. E não só isso.
Alguns especialistas chegam a duvidar que o Governo Bolsonaro tenha uma política externa clara. Mas Araújo tem: seu objetivo, manifestado publicamente, é destruir condições que permitiram ao Brasil ter uma diplomacia para chamar de sua, na defesa do interesse nacional. Araújo protagoniza uma suicida diplomacia da “arminha”, de gangue, quase inteiramente voltada a agradar um público interno radicalizado que se deleita em imitar o gesto belicista de Jair Bolsonaro.
Como guia, essa política defende uma aliança acrítica com o líder do mundo cristão ocidental, os Estados Unidos, e, contraditoriamente, com governos nacionalistas radicais pelo mundo. É a política externa do tiro no pé: ela procura minimizar, obstruir ou simplesmente eliminar canais que permitem a um país como o Brasil exercer influência própria sobre a região sul-americana e no mundo.
Além de acordos de livre-comércio, que o ministério da Economia hoje comanda, deixando o Itamaraty em segundo plano, a única concessão à ação multilateral do Brasil já feita por Bolsonaro foi o elogio à atuação das forças armadas brasileiras nas missões de paz na ONU, das quais participaram alguns dos generais de seu Governo.
Em seu último ato histriônico, um artigo no qual acusou o esforço contra o novo coronavírus de abrir espaço a um suposto “comunavírus”, Araújo, a pretexto de analisar um artigo do filósofo Slavoj Zizek, argumentou que submeter políticas nacionais às orientações da OMS seria “apenas o primeiro passo na construção da solidariedade comunista planetária”. Na visão do chanceler brasileiro, “globalismo é o novo caminho do comunismo”, e a batalha mundial contra a covid-19 seria uma oportunidade “para acelerar o “projeto globalista” contra o qual ele dirige os esforços da diplomacia nacional.
No artigo, que provocou espanto nos meios diplomáticos, Araújo descreve como agiria esse “projeto globalista” incompatível com a política externa do Brasil: “por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio de raça [referencia às políticas de ação afirmativa, como cotas para negros], do antinacionalismo, do cientificismo (sic)”.
A falta de cuidado com as palavras, ao arrepio da prática diplomática, levaram até a uma censura pública do Comitê Judeu Americano, que exigiu do chanceler um pedido de desculpas por uma analogia, feita por ele no polêmico artigo, entre medidas de isolamento social e campos de concentração nazistas. Araújo não se desculpou; acusou as críticas de “injustas e equivocadas” e, enjeitando sua própria analogia, culpou Zizek por trazer à baila o tema dos campos de concentração.
Mais que folclórico, o projeto diplomático de Araújo rompe e contraria uma tradição de posicionar o Brasil como protagonista global, qualificado e interessado em reforçar a cooperação e negociação internacional. Ele contraria, por exemplo, manifestações como o comunicado do G-7 em favor de “coordenação global” para o combate à pandemia da covid-19; e, pior, provoca constrangimentos reais na diplomacia internacional.
O Brasil impôs veto, nos órgãos das Nações Unidas a referencias a expressões como “gênero”, nos documentos oficiais, e votou contra referências a promoção de educação sexual. Em uma dessas votações, segundo um membro da delegação brasileira em Genebra, um diplomata brasileiro foi abordado por um colega africano, com a queixa de que a posição do Brasil aumentava suas dificuldades em convencer políticos e membros do governo conservador em seu país da necessidade de apoiar na ONU políticas modernas de proteção às mulheres e à infância em matéria sexual.
Um dos mais ativos fundadores da Organização das Nações Unidas, que lhe dá o privilégio de ser o primeiro a discursar nas assembleias anuais da ONU, o Brasil hoje é alvo de chacota na organização, por manifestações como a do chanceler e acusações levantadas por figuras próximas a Bolsonaro, de que as Nações Unidas são uma peça no complô “globalista” contra o patriotismo e os princípios cristãos. A diplomacia bolsonarista boicota iniciativas da ONU, abertamente, para reforçar suas posições em política interna, desde sua guerra contra uma suposta “ideologia de gênero” até o desdém pelas políticas globais de direitos humanos.
Quando deixar a cadeira que ganhou graças à filiação às ideias paranoicas do ideólogo Olavo de Carvalho e à proximidade com Eduardo, o filho 03 do presidente, Araújo terá plantado obstáculos sérios ao trabalho de seus sucessores; seja ao ajudar a esvaziar instâncias internacionais de política externa como a ONU, a OMS ou o Mercosul, seja ao criar precedentes desmoralizadores para o Itamaraty em temas caros à tradição do país ― como o apego a soluções diplomáticas para conflitos, a oposição a ações unilaterais, o reforço de órgãos multilaterais para decisões que afetam a todos, ou a imagem do Brasil como um mediador confiável, capaz de propostas técnicas de qualidade.
Ele terá sido coadjuvante da política de Donald Trump na paralisação dos mecanismos da Organização Mundial do Comércio que atuam contra barreiras arbitrárias nas alfândegas; terá excluído o Brasil dos esforços conjuntos ― e eventualmente, de benefícios ― no combate à covid-19 patrocinados pela Organização Mundial da Saúde; e colaborado, em papel secundário, para esvaziar a integração dos países do Mercosul e enterrar iniciativas bem sucedidas de cooperação sul-americana em Defesa, comércio e outros aspectos supranacionais que afetam o futuro da região.
Com seus ataques aos acordos ambientais internacionais, terá contribuído, também, para tirar a legitimidade alcançada pelo Brasil nas discussões relevantes sobre o combate ao aquecimento global. E, ainda, para reforçar argumentos dos ecologistas e outros ativistas, na Europa, contra o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, um dos poucos resultados a apresentar da política externa de Jair Bolsonaro ― acordo que diplomatas experientes afirmam estar moribundo, não só pelo crescimento das pressões protecionistas no continente europeu, após a pandemia, como pelos atritos criados por Bolsonaro e Araújo com dois dos principais Governos do bloco, Alemanha e França.
Iniciativas multilaterais, como o projeto de integração de infraestrutura das Américas (IIRSA), impulsionada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento perderam destaque na pauta do Itamaraty “antiglobalista”. A obra mais significativa apoiada pelo Itamaraty, o corredor bioceânico que passará pelo Mato Grosso, está hoje abrigada sob a ProSul, uma iniciativa de articulação governamental entre governos à direita no espectro político, inaugurada pelos presidentes do Chile e da Colômbia e comunicada depois ao Governo brasileiro.
No que diz respeito ao BID, nos últimos meses, esteve mais empenhado em secundar os Estados Unidos na ação para substituir o representante da Venezuela no banco, demitindo o indicado por Nicolás Maduro e nomeando um escolhido pelo autoproclamado presidente Juan Guaidó.
O papel subordinado às determinações da diplomacia de Donald Trump, aliás, é uma marca que Araújo conseguiu impor mundialmente aos diplomatas brasileiros. Funcionários graduados do Itamaraty ― falando anonimamente, por temor de represálias ― revelam que, em questões relativas ao Oriente Médio nas quais não se tem uma posição clara do Brasil, a ordem de Brasília é consultar o Departamento de Estado americano, e acompanhar Washington.
Nos Governos que assumiram após o fracasso do regime militar (regime, este, que deixou o país com hiperinflação, crise fiscal, dívida externa impagável, corrupção e ineficiência no setor público e miséria com violências nas grandes cidades), a política externa teve mudanças de foco ou de ênfase, mas não de substância. E a ação diplomática nas instâncias internacionais foi usada para resolver problemas e apontar soluções, muitas vezes buscando protagonismo.
Com José Sarney, o projeto que resultou no Mercosul desarmou desconfianças entre os militares de Brasil e Argentina, e, no governo seguinte, permitiu uma imprevista cooperação em matéria nuclear. Com Collor, a concretização do mercado comum permitiu superar resistências dos setores industriais nos dois países e derrubar barreiras ao comércio que alimentavam ineficiência dos parque produtivos da região.
No Governo Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Saúde José Serra obteve vitórias na OMC e na OMS que facilitaram a produção e comercialização de medicamentos genéricos. No Governo Lula, apesar das críticas de opositores e veteranos diplomatas, houve uma dose de pragmatismo que sepultou iniciativas na Venezuela, Bolívia e outros vizinhos para caracterizar o Brasil como uma espécie de potência “subimperialista” beneficiada no comércio e na infraestrutura; e gerou-se até um insuspeito acordo Brasil-Estados Unidos, com George Bush do lado americano, em torno da popularização do etanol combustível ― boicotado pela Venezuela de Hugo Chávez.
Enquanto o Governo FHC argumentava que o Brasil, pela falta de recursos de poder (força militar e econômica, especialmente), deveria escolher iniciativas internacionais de seu interesse, já existentes, para aliar-se a elas, o Governo Lula, em sua “diplomacia ativa e altiva” avaliou que poderia influir na própria agenda global, o que gerou iniciativas criticadas como o esforço por um acordo nuclear com o Irã, mas forte influência nos debates globais e relativo êxito em alguns momentos, como na formação do G-20 da OMC, dedicado a defender interesses dos países emergentes, além do convite para participar de outro G-20, o político, que reúne chefes de Estados ricos e emergentes para discutir saídas conjuntas para temas globais.
Há um consenso, entre os analistas, de que o Governo Bolsonaro, ao hostilizar a China, França e outras potências, atacar os organismos multilaterais e orientar declarações de autoridades para objetivos de mobilização de sua base mais radical, comprometeu um esforço de décadas para dotar o Brasil do chamado poder brando, ou “soft power”, que permite a um país alcançar resultados usando recursos de persuasão e convencimento pelo exemplo.
O criador do conceito de soft power, Joseph Nye Jr., diz que o poder brando “pode parecer menos arriscado que o poder econômico ou o poder militar, mas, em geral, é mais difícil de usar, fácil de perder e difícil de restabelecer”. É fácil imaginar a influência da política “antiglobalista”, subordinada a iniciativas de parceiros ideológicos, especialmente os Estados Unidos de Donald Trump.
É urgente a necessidade de tirar o chanceler paranoico do comando da diplomacia. A pandemia levanta o risco de aumento do protecionismo e de decisões unilaterais por parte das grandes potências, e o crescimento da influência da China, primeiro país a levantar-se após o choque da quarentena, provocará respostas ainda imprevisíveis por parte dos outros grandes atores globais.
Nos próximos anos, teremos um debate em torno das estratégias para lidar com novas ameaças à saúde mundial, com a recuperação da economia e com a reorganização das cadeias globais de comércio e serviços, em meio ao aquecimento global e o aumento da influência da Ásia nos arranjos globais. O Brasil já teve papel importante dessas discussões, e, hoje, é mero espectador. Com a permanência de Ernesto Araújo ou algum equivalente genérico, corre risco pior, o de assistir a tudo como o inconveniente no fundo da sala, cujas manifestações só perturbam quem está levando a sério as negociações para enfrentar problemas que afetam a todos.
Sergio Leo é um jornalista e escritor brasileiro, especialista em relações internacionais
Marcelo Calero: O Itamaraty prevalecerá
Cabe à diplomacia profissional a tarefa de limpar o rastro de imundice do gabinete do ódio
A crise internacional sem precedentes e as situações extremas que vivemos na luta contra a pandemia do novo coronavírus jogaram luz sobre profissões até então pouco valorizadas e mesmo desconhecidas na nossa sociedade. Este é o caso dos diplomatas, funcionários públicos do Serviço Exterior Brasileiro, cuja contribuição é essencial ao desenvolvimento do país, seja em tempos de paz, seja em tempos de guerra.
Nas últimas semanas, provocações desrespeitosas feitas por integrantes do governo federal e dirigidas a autoridades estrangeiras chocaram o brasileiro boa-praça, que prefere a amizade ao conflito, e nos lembraram que cultivar boas relações com todas as nações, dos Estados Unidos à China, é sempre o melhor caminho. Além de termos interesses recíprocos, sabemos que, cedo ou tarde, podemos precisar de ajuda de quem menos esperamos. O que muitos ignoram é que são justamente os diplomatas que atuam discretamente na construção e na manutenção do relacionamento com outros países. Organizados em um corpo técnico experiente e especializado, esses servidores diuturnamente informam, negociam e representam os interesses do Brasil mundo afora. Em linguagem clara: cabe à diplomacia profissional a tarefa de limpar o rastro de imundice deixado pelo gabinete do ódio no trato amador de nossas relações internacionais.
Temos igualmente acompanhado o aumento da atividade consular, que é a assistência dada aos brasileiros no exterior. Desde o momento em que países restringiram a circulação de pessoas para conter o coronavírus, centenas de diplomatas deram início a esforços incansáveis de repatriação de nacionais impedidos de retornar ao Brasil. De acordo com informações oficiais, 13.250 cidadãos foram repatriados até 16 de abril. No entanto, nosso desafio continua: mais de cinco mil brasileiros em 80 países permanecem na expectativa de reencontrar suas famílias.
Durante os quase 13 anos em que sirvo como diplomata, inspirei-me em profissionais que sempre tiveram compromisso inabalável com o Brasil, não importava o presidente que estivesse no poder. Mesmo que discordasse das ideias, seus nomes sempre remetiam à ética, à correição e à inteligência. Assim como ocorre nas Forças Armadas, esses diplomatas reforçam a ideia de que ocupamos uma carreira de Estado, fundada no respeito aos interesses permanentes do Brasil, portanto imune ao voluntarismo e aos caprichos dos governos de plantão.
Ao longo de décadas, nomes como Azeredo da Silveira, Araújo Castro, Saraiva Guerreiro, Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa, Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas e Carlos Calero deram ao Itamaraty um sólido legado. Hoje, atravessamos momento de impensável desprestígio internacional e baixa moral entre os diplomatas – desde jovens secretários a experientes embaixadores. Antes um modelo a seguir, o Brasil agora é sinônimo de chacota em escala global. Enquanto o mundo vive a Indústria 4.0, chefias do Ministério das Relações Exteriores abraçam o obscurantismo, o terraplanismo, o negacionismo da ciência – inclusive da pandemia – e a perseguição àqueles que ousam pensar diferente.
Como todos os tempos sombrios da história, este também passará. Por esse motivo, ofereço mensagem de otimismo e esperança, bem como homenageio os colegas pelo Dia do Diplomata, celebrado em 20 de abril – referência ao nascimento do Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira. Nossa carreira é magnífica e nós somos gigantes. Sigamos firmes em nosso propósito de fazer o melhor para os brasileiros e pelo Brasil. O ciclo de insegurança, fraqueza institucional e tropeços ficará para trás. Caberá a nós a tarefa de reconstruir o Itamaraty e recolocar os brasileiros e o Brasil no lugar de destaque que merecem no cenário internacional. Viva o Itamaraty, viva o Serviço Exterior Brasileiro!
Marcelo Calero é deputado federal (Cidadania-RJ) e diplomata de carreira
Hussein Kalout: A insustentável estratégia da diplomacia brasileira
Políticos, diplomatas, militares, acadêmicos e empresários imaginaram que a realidade iria servir como barreira natural para a nova doutrina das relações exteriores do País. Se enganaram
Apesar das desconfianças e da perplexidade com a heterodoxia da nova orientação da “política exterior” do País, políticos, diplomatas, militares, acadêmicos e empresários imaginaram que a realidade iria servir como barreira natural de contenção para as descalibradas aventuras que se prenunciavam e o pragmatismo, logo acabaria, com o tempo, predominando sobre a frívola proposta que foi apresentada à Nação.
O novo corolário doutrinário das relações exteriores do País trazia consigo um equívoco de concepção: desprezar na largada os tabuleiros de fácil e imediata maximização dos interesses nacionais em troca da projeção de hipotéticas vitórias em tabuleiros mais volúveis e de alta complexidade – e isso, obviamente, sem os necessários recursos que delimitam o poder real de dissuasão de um país.
China e EUA foram transformados em dilema. O presidente, durante a campanha e após a campanha, não poupou esforços para atacar um país e louvar o outro. O inquilino da Casa Branca tornou-se referência moral e padrão estratégico a ser seguido pelo Palácio do Planalto. Até os erros, inertemente, são macaqueados.
No marco dessa difusa equação, a reafirmação de lealdade a esse alinhamento passou a estar consubstanciado no constante antagonismo com a China, na agressividade retórica na América do Sul e no abandono do equilíbrio dos temas médio orientais.
O bolsolavismo acreditava que poderia modular duas narrativas, que, apesar de ambivalentes, poderiam funcionar sem custo diplomático. Erro crasso! Em seu torpe ideário, provocar um choque frontal com os chineses serviria a dois propósitos: 1) alimentar os ignorantes agitadores digitais de sua bolha ilusória nas redes sociais; e 2) reforçar os laços com Washington de aliado obediente e comprometido com a causa anti-China. A sua turva visão não alcançou, até o momento, a compreensão de que os EUA querem seguidores e não sócios na partilha de qualquer espólio comercial envolvendo o mercado chinês.
Irritar a China publicamente e contemporizar os danos nos bastidores – para capitalizar com americanos e aplacar a ira dos chineses – é uma estratégia falida. É como caminhar no fio da navalha com uma granada na cintura.
Os bolsolavistas não sopesaram em seus cálculos a virulência da reação chinesa. Julgaram que o pragmatismo chinês amorteceria a sua infantilidade institucional e o que prevaleceria, ao fim e ao cabo, são os negócios – puxados sempre pelos competentes adultos do Ministério da Agricultura e pela prudência dos generais.
O governo Bolsonaro criou um falso e desnecessário dilema para definir o papel do Brasil no contexto das relações do Brasil-China-EUA. Elevar as relações entre Brasília e Washington ao patamar de uma parceria estratégica – ou mesmo uma aproximação nos termos imaginados por Bolsonaro – não deveria excluir a expansão da relação política e comercial com Pequim. Uma agenda profícua com a China não deveria implicar, por outro lado, distanciamento dos EUA.
Para jogar no tabuleiro geoestratégico em meio às duas superpotências mundiais – cujos recursos de poder são superiores aos nossos –, o Brasil precisa ter clareza das consequências. Atacar Pequim, sem ter para onde escoar as suas commodities e sem saber como substituir os investimentos no setor energético e de infraestrutura do País, é de um amadorismo atroz.
Enquanto o bolsolavismo não quebrar a criptografia das regras de engajamento que regulam as relações sino-americanas, é melhor o Brasil manter uma distância segura em relação a esse embate.
A diplomacia do governo Bolsonaro não dá sinal de querer ser governada pela razão, pelo pragmatismo ou em defesa dos interesses estratégicos do País, mas, sim, monetizar em votos apoiadores fanáticos a serviço de seu projeto de poder – mesmo que isso arruíne a relação do Brasil com China, França, Alemanha, Argentina ou o inimigo fabricado da vez.
HUSSEIN KALOUT, 43, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018) e atuou como consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Escreve semanalmente, às segundas-feiras.
Bernardo Mello Franco: A perseguição que afastou João Cabral do Itamaraty
O obscurantismo chegou ao Itamaraty antes de Ernesto Araújo. Na época da Guerra Fria, outro surto ideológico levou à perseguição de diplomatas. Seu alvo mais ilustre foi o poeta João Cabral de Melo Neto.
A caça às bruxas foi iniciada por Carlos Lacerda, adversário feroz do governo Getúlio Vargas. Em junho de 1952, ele bradou na “Tribuna da Imprensa” contra a existência de uma “célula comunista” no serviço diplomático. Sem provas, denunciou um complô para “colocar segredos os militares brasileiros nas mãos de Moscou”.
O autor de “Morte e Vida Severina” servia como segundo secretário na embaixada de Londres. De lá, segundo Lacerda, comandaria um “plano diabólico” contra o próprio país. Ele ainda teria montado uma tipografia para imprimir panfletos subversivos.
“Existe um grão de verdade nesse pedaço da história”, conta a professora Heloisa Starling, em artigo na nova edição do “Suplemento Pernambuco”. João Cabral tinha uma prensa mecânica, que usava para imprimir versos de outros poetas. “Não se conhece nenhum panfleto soviético dessa prensa”, escreve a historiadora da UFMG.
Apesar da fragilidade das acusações, Getúlio cedeu à campanha. Em março de 1953, puniu o escritor com o afastamento não remunerado. João Cabral teve que voltar ao Brasil. “Ele ficou muito abatido com a perseguição. Sem o salário de diplomata, passou a fazer traduções para sobreviver”, conta o professor da USP Ivan Marques, que prepara uma biografia do poeta.
Em setembro de 1954, oito dias após o suicídio do presidente, o Supremo Tribunal Federal julgou o caso de João Cabral. “Nenhum ato praticou o impetrante suscetível de iniciar a execução do crime que se lhe atribui”, constatou o ministro Luiz Gallotti. Por unanimidade, a Corte considerou que a punição foi ilegal e determinou a reintegração do diplomata.
A ordem só seria cumprida no ano seguinte. De volta ao Itamaraty, João Cabral foi enviado para Sevilha, onde se dedicou a pesquisas no Arquivo Geral das Índias. As praças da cidade espanhola viraram cenário constante de sua obra literária, como o sertão de Pernambuco. Ontem o poeta teria completado 100 anos.
Fernando Exman: A nova diplomacia presidencial brasileira
Bandeiras pessoais e partidárias minam política externa
Demorou quase um ano, mas finalmente começa a ganhar forma a diplomacia presidencial do governo Jair Bolsonaro.
Além de uma participação tímida no Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro, Bolsonaro fez uma aposta pessoal equivocada na mudança da embaixada brasileira em Israel. Apostou também em parcerias, em Israel e na Argentina, com líderes que enfrentam dificuldades para se manterem no poder. Isso sem falar no próprio presidente americano, Donald Trump.
O mais dramático ato de inauguração da nova persona internacional de Bolsonaro ocorreu na semana passada. O presidente debutou como orador na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, em um discurso anacrônico, abrindo as apostas de quanto a nova diplomacia presidencial poderá agregar - ou criar obstáculos - à política externa brasileira.
O mais provável é que uma resposta mais objetiva surja apenas depois das próximas viagens internacionais de Bolsonaro. Até o fim do ano, ele desembarcará no Japão, na China, na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes e no Catar. Em território nacional, poderá demonstrar sua desenvoltura e capacidade de construção de entendimentos como o anfitrião da próxima cúpula do Brics. O encontro dos líderes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul está previsto para ocorrer em meados de novembro, em Brasília.
Na sua estreia como orador na ONU, Bolsonaro desvelou o “novo Brasil” que se apresenta como antiglobalista, mas ao mesmo tempo diz estar mais aberto a investidores e turistas estrangeiros. Um país que bate de frente com parceiros europeus, porém, pelo menos por enquanto, faz questão de parecer animadíssimo com o acordo fechado entre o Mercosul e a União Europeia. Um país que critica iniciativas da ONU e ressente-se da perda de espaço em suas instâncias e colegiados.
Mais uma prova de que, no Brasil, a diplomacia presidencial é errática.
Depois de eleito, em 1985, Tancredo Neves realizou um périplo por Portugal, Espanha, Itália, Vaticano, França, Estados Unidos, México, Peru e Argentina. Apresentou ao mundo uma nova face democrática do Brasil, oferecendo também um aperitivo de uma política externa que não viria a se concretizar. Excluído desse planejamento e diante de inúmeros desafios após tomar posse, o ex-presidente José Sarney acabou privilegiando o Cone Sul, conquistando resultados concretos no processo de integração regional.
As diplomacias presidenciais de Fernando Collor e Itamar Franco também foram tolhidas por crises domésticas. Em suas viagens internacionais, Collor chegou a replicar os lances de marketing político que chegaram a marcar suas aparições públicas dentro do país. O ex-presidente levou ao exterior uma mensagem de abertura e modernização da economia, mas o processo de impeachment que enfrentou demonstrou ao mundo como o Brasil ainda não se tornara um local tão amigável quanto o descrito nos discursos.
Compelido a atuar para resolver essa nova crise, Itamar Franco foi contido em sua diplomacia presidencial. Concentrou esforços no continente e, segundo registros da chancelaria, chegou a causar constrangimento ao cancelar visitas a Portugal, China e Índia.
Com Fernando Henrique Cardoso, a diplomacia presidencial alcançou novo patamar. O ex-presidente assumiu diante de grande déficit na inserção do Brasil no mundo e de uma considerável ausência da figura do presidente brasileiro nos principais palcos das relações internacionais.
Com a estabilização resultante do Plano Real e o perfil cosmopolita do próprio presidente, o Brasil conseguiu vender seu novo momento político e econômico. Já no seu primeiro ano de governo Fernando Henrique visitou diversos países.
No entanto, coube ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva multiplicar para valer o número de viagens internacionais, a ponto de o nome do avião presidencial virar chacota. Com um estilo pessoal incomparável, Lula se aproveitou da curiosidade crescente pelo Brasil e do peso que o país ganhava na economia global para intensificar os esforços por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Além disso, inseriu pessoalmente o Brasil nas até então distantes discussões sobre o Oriente Médio e o acordo nuclear do Irã.
A diversificação de suas visitas para países africanos, caribenhos e árabes deram frutos também à sua sucessora, que não tinha a diplomacia presidencial entre seus assuntos preferidos. Mesmo assim, a ex-presidente Dilma Rousseff manteve uma agenda internacional capaz de eleger brasileiros para órgãos multilaterais estratégicos, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), e intensificar as relações com os países do Brics.
A posse do ex-presidente Michel Temer coincidiu com um novo refluxo da diplomacia presidencial, provocado novamente tanto pela retração da economia quanto pela crise política interna que resultou no impeachment de Dilma.
Temer pouco saiu do país e também poucos visitantes recebeu no Palácio do Planalto. O mesmo se observa, pelo menos até agora, em relação ao escasso interesse de mandatários estrangeiros em obter as honras de Estado do atual presidente na capital federal.
A história contemporânea do Brasil revela o potencial e os limites da diplomacia presidencial, aquela conduzida direta e pessoalmente pelo chefe de Estado. Esse é um instrumento essencial para a projeção internacional do Brasil no exterior e a consolidação de sua liderança na região, mas que não depende apenas da personalidade do presidente da República. A situação interna do país e a conjuntura internacional são fatores determinantes para seu sucesso.
Em seu próximo giro internacional, Bolsonaro terá a chance de tentar construir relações sólidas e baseadas na confiança interpessoal com parceiros estratégicos. Será positivo, também, se decidir separar as bandeiras ideológicas de seu grupo político da agenda internacional da Presidência. Lula não o fez.
O presidente tem tempo suficiente para repetir os acertos de seus antecessores, mas sobretudo tentar evitar os mesmos erros.
Bruno Boghossian: Chanceler usa notícia sensacionalista e cientista polêmico em debate climático
Método da diplomacia brasileira empurra país para margem do debate internacional
Em sua mais recente investida contra o que chama de “climatismo”, o chanceler Ernesto Araújo recorreu a uma notícia sensacionalista que viralizou nas redes e citou um cientista controverso, que era financiado pela indústria do petróleo.
O discurso do ministro na última quarta (11) na Heritage Foundation, centro de estudos conservador nos EUA, cimentou a tentativa do governo de dar tons ideológicos à discussão sobre a preservação ambiental. Nas palavras de Araújo, a questão das mudanças climáticas ganha contornos de conspiração global.
Em dado momento, o chanceler alertou: políticos e a mídia começam a demonizar o consumo de carne. “Alguém sugeriu”, disse ele, “que nós deveríamos recorrer ao canibalismo para salvar o planeta, deixando de comer carne bovina, que destrói a Amazônia, na narrativa deles”.
Partiu dali uma crítica aborrecida ao que o ministro enxerga como uma tentativa de usar as mudanças climáticas para limitar a soberania dos países e, agora, controlar até o que as pessoas comem. “Onde está a dignidade humana, o bom senso?”
A história do canibalismo jamais foi levada a sério no meio científico, é claro. Foi lançada por um professor de marketing sueco que, provavelmente, só queria aparecer. Há uma semana, o caso apareceu com cores chamativas no site ultraconservador Breitbart, foi replicado por Donald Trump e virou lenha para um debate baseado na desinformação.
Araújo também lançou dúvidas sobre temas relativamente consensuais. Ao questionar os efeitos da ação do homem sobre o clima, citou o pesquisador americano Patrick Michaels. O ministro só não disse que uma fatia daqueles estudos era financiada por produtores de petróleo e carvão, interessados nessa discussão.
O governo até pode ter razão em reclamar da contaminação do debate climático por interesses econômicos. Se continuar buscando argumentos no submundo das redes, no entanto, o chanceler vai empurrar a diplomacia brasileira para a margem do debate internacional.
Metropóles || Itamaraty e SNI inocentam seis desaparecidos políticos
Segunda reportagem da série Nada Consta revela documentos que negam perante a ONU qualquer antecedente criminal de vítimas da ditadura
REPRODUÇÃO/ARQUIVO NACIONAL
Classificado como “confidencial”, “secreto” e “urgentíssimo” o documento do Itamaraty foi produzido em resposta a um questionamento do Grupo de Trabalho sobre Desaparecidos Forçados ou Involuntários, ligado à Comissão dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). O organismo internacional pediu informações sobre os sete militantes no dia 29 de maio de 1981.
No dia 16 de setembro do mesmo ano, a Secretaria de Estado do Ministério das Relações Exteriores (Sere) enviou o despacho com instruções sobre o assunto para a Delegação do Brasil junto aos organismos internacionais em Genebra (Delbrasgen), com sede em Genebra, na Suíça. Na ocasião, o chanceler era Saraiva Guerreiro, experiente diplomata de carreira.
“Não se constaram antecedentes criminais sobre os senhores Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, Ana Rosa Kucinski, Wilson Silva e Joel Vasconcelos Santos, não havendo portanto registros policiais ou judiciais a respeito”, diz o documento.
Durante o governo João Figueiredo, entre 1979 e 1985, a abertura política iniciada pelo presidente anterior, Ernesto Geisel, facilitou o fluxo de informações dentro e fora do país. As denúncias contra prisões, torturas e mortes de adversários do regime autoritário circulavam no exterior e mobilizavam brasileiros e estrangeiros desde os primeiros anos da ditadura.
As famílias procuravam os parentes sem saber se estavam vivos ou mortos. As pressões aumentavam à medida que ficava evidente que surgiam evidências de eliminação dos militantes. Nesse contexto, o grupo de trabalho fez as indagações respondidas pelo MRE (ver galeria abaixo).
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Com data do dia 28 de setembro de 1981, um documento “confidencial” escrito pela Agência Central do SNI registra o envolvimento desses setores do governo na preparação da resposta ao organismo ligado à ONU. Identificado como Informação 020/23/AC/81, o relato reproduz o texto do Itamaraty que inocenta seis dos sete desaparecidos.
REPRODUÇÃO/ARQUIVO NACIONAL
Os documentos agora revelados acrescentam novos elementos sobre a inocência do desaparecido político, preso pelos agentes da repressão em fevereiro de 1974, e nunca mais visto pela família. Ele era pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Mostram os dados mantidos sobre ele e outros cinco militantes pela área de segurança do governo.
Sobre Edgar Aquino Duarte, o governo brasileiro forneceu as seguintes informações para o grupo de trabalho da ONU: “Julgado à revelia pela 1ª Circunscrição Militar por infração do artigo 144 (crime de revelação de informações, notícias ou documentos de interesse para a segurança interna do país), o senhor Duarte foi absolvido nesse julgamento, em 8 de fevereiro de 1966”.
O despacho do Itamaraty e o relato do SNI referem-se a Ísis Dias de Oliveira da seguinte forma: “Julgada à revelia em três oportunidades em 1973 pela 1ª Circunscrição Militar, tendo sido absolvida das acusações que lhe haviam sido formuladas com base no Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1968, em seus artigos 28 (atos de terrorismo), 42 (participação em organização de tipo militar com finalidade combativa) e 45 (propaganda subversiva)”.
REPRODUÇÃO/ARQUIVO NACIONAL
Único condenado citado nos documentos, Mário Alves de Souza Vieira foi julgado por associação ilícita para atos para a segurança nacional, participação de partido ilegal, associação sob orientação ou com o auxílio de governo estrangeiro com exercício de atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional e divulgação de informações comprometedoras para o país. As sentenças foram extintas por prescrição ou pela Lei da Anistia, de 1979.
Dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), organização que atuava na luta armada contra o governo militar, Mário Alves Vieira tinha 47 anos quando desapareceu, no dia 17 de janeiro de 1970, depois de preso pelo Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), um dos braços do aparelho repressivo.
Fernando Santa Cruz e o casal Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva fazem parte da lista de doze desaparecidos que, segundo o ex-delegado Cláudio Guerra, foram mortos incinerados no forno de uma usina no interior do Rio de Janeiro. Santa Cruz tinha 26 anos e, os outros dois, 32 anos. Os três sumiram em 1974. (ver galeria abaixo com as fotos das seis vítimas inocentadas pelos documentos)
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Santa Cruz atuava na organização clandestina Ação Popular (AP) e não atuou na luta armada. Kucinski e Silva pertenciam à Ação Libertadora Nacional (ALN), um dos grupos mais violentos no combate à ditadura. Porém, segundo os documentos, nada fizeram de comprovado que justificasse a condenação.
Militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Joel Vasconcelos Santos presidiu a União dos Estudantes Secundaristas (Ubes/RJ). Foi preso em uma esquina no Rio de Janeiro no dia 15 de março de 1971. Ele tinha 21 anos, estava com um amigo, Antônio Carlos de Oliveira da Silva, e carregava panfletos com propaganda contra o governo militar.
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Silva sobreviveu a torturas e, cinco anos depois de solto, deu um depoimento (ver galeria acima) sobre o sofrimento dos dois nas dependências do aparelho repressivo. “O Joel, coitado, nunca conseguiu sair de lá”, afirmou o amigo do desaparecido. Nesta época, o PCdoB preparava a implantação da Guerrilha do Araguaia, no Pará. Embora o partido fosse favorável à luta armada, não praticava ações urbanas. O relato do amigo do estudante comunista foi arquivado pela Câmara dos Deputados.
Aos 31 anos, Isis Dias de Oliveira também integrava a ALN quando foi presa em janeiro de 1972. Desde então, está desaparecida.
Ex-militar da Marinha, Edgar Aquino Duarte teve longa atuação contra a ditadura desde o golpe de 1964. Esteve preso em diferentes órgãos da repressão e exilado no México e em Cuba. Foi visto pela última vez em junho de 1973 no Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS) de São Paulo. Não há registro de que fizesse parte de alguma organização clandestina.
Série sobre desaparecidos sem crimes
Esta é a segunda reportagem produzida pelo Metrópoles sobre desaparecidos políticos da ditadura sem condenações ou, mesmo, sem antecedentes criminais. A primeira, como dito acima, abordou o caso de Fernando Santa Cruz. Contra ele, pesavam acusações de participar de passeatas e comícios.
Amparada em registros oficiais do governo militar, a série Nada Consta tem o objetivo de mostrar que adversários políticos foram perseguidos, presos e nunca mais vistos pelas famílias, embora não fossem acusados de ações violentas. Muitas vezes tratadas como “terroristas”, essas vítimas desapareceram pela vontade dos órgãos da repressão.
No total, a polícia política do governo militar matou 434 adversários – dos quais, 210 permanecem desaparecidos. Os documentos integram o acervo da ditadura preservado no Fundo SNI do Arquivo Nacional.
Luiz Carlos Azedo: A ameaça externa
“A China é o maior parceiro comercial do Brasil; os Estados Unidos, o segundo. O choque entre ambos transforma a economia brasileira numa espécie de marisco”
A primeira fala séria de uma autoridade de primeiro escalão do atual governo sobre a situação internacional não veio do Itamaraty, veio do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, ontem, no debate Como fazer os juros caírem no Brasil, promovido pelo Correio. Segundo ele, no momento, a maior ameaça à economia brasileira é a guerra comercial deflagrada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, contra a China, o México e parte da Europa. A escalada da guerra comercial, que agora virou uma guerra cambial, continua, e seus efeitos negativos estão se espalhando pelo mundo.
Quando os Estados Unidos começaram a sobretaxar importações, especialmente da China, se imaginava que o efeito seria um pouco mais de inflação e, consequentemente, a elevação da taxa de juros nos Estados Unidos e na Europa. Segundo Campos Neto, o que houve foi outra coisa: queda da inflação, em razão da baixa atividade econômica. Como já estava muito baixa ou negativa na maioria dos países desenvolvidos, nesse cenário, a taxa de juros deixou de ser um instrumento para aumentar a atividade econômica.
Além da guerra comercial, segundo Campos Neto, dois problemas afetam a economia global, inclusive a brasileira: o envelhecimento da população europeia, a exemplo do que aconteceu no Japão, e a escalada de tensões políticas em decorrência das atitudes de Trump. É o caso da crise dos EUA e da Inglaterra com o Irã e seu impacto no Estreito de Ormuz, na rota do petróleo que abastece o Ocidente. Na política mundial, as ações intempestivas de Trump são um fator de instabilidade econômica, pois inibem a tomada de decisões quanto aos investimentos.
Campos Neto não disse, mas a realidade escancara: o alinhamento automático do presidente Jair Bolsonaro com Trump — cujo lance mais polêmico é a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para o estratégico posto de embaixador do Brasil em Washington — está em contradição com essa realidade do cenário internacional. Corrobora e segue a reboque de uma política internacional danosa à nossa inserção na economia global. A China é o maior parceiro comercial do Brasil; os Estados Unidos, o segundo. O choque entre ambos transforma a economia brasileira numa espécie de marisco. Agarrar-se ao rochedo não impede o impacto da onda.
Crescimento
“O que virá por aí?”, indaga o presidente do Banco Central. Sua única certeza é de que teremos baixo crescimento econômico, em praticamente todas as economias do planeta. É por essa razão que as expectativas dos analistas de mercado e investidores com relação ao desempenho da economia brasileira, mesmo com uma alvissareira aprovação da reforma da Previdência, são pessimistas ou moderadas. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o mundo vai crescer 3,2% neste ano e 3,5% no próximo, um décimo menos tanto em 2019 como 2020. A projeção de crescimento do Brasil para este ano foi reduzida de 2,1% para 0,8%; diminuiu também a estimativa de 2020, que passou de 2,5% para 2,4%.
A aprovação da reforma da Previdência é um alento para o mercado, mas não basta para relançar a economia. O governo precisaria irrigar a economia com mais recursos, porém, estão cada vez mais escassos. No momento, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenta fazer isso com a liberação dos saques do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que resolve apenas o problema do endividamento excessivo das famílias de baixa renda, já que o limite de saque por trabalhador é de R$ 500.
Outra opção seria usar as reservas e comprar títulos públicos no mercado para inundar a economia de dinheiro vivo, a fórmula usada nos Estados Unidos e na Europa para sair da crise de 2008. O Banco Central também pode baixar ainda mais os juros, que continuam escorchantes no mercado financeiro, porque a inflação permanece abaixo da meta.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-ameaca-externa/
Mathias Alencastro: Saque ao Itamaraty
Indicação de Eduardo Bolsonaro leva Itamaraty a risco de implosão
A indicação de embaixadores de fora da carreira diplomática não é apenas moralmente aceitável como também é perfeitamente banal nas democracias ocidentais.
As coisas se complicam quando motivações espúrias estão por trás das escolhas e os indicados demonstram absoluta falta de experiência para o cargo.
Um terço dos embaixadores indicados por Donald Trump contribuíram financeiramente para a sua vitoriosa campanha presidencial de 2016. Somente 5% possuíam algum tipo de conhecimento prévio da região onde servem atualmente. Os restantes tinham apenas fritado hambúrgueres.
Na era Obama, o finado senador republicano John McCain se indignou com a escolha de Colleen Bell para chefiar a embaixada na Hungria. A produtora do melodrama "Paixão e Ódio" tinha zero experiência internacional, mas era um importante cabo eleitoral do presidente democrata na Califórnia.
Imune a esse tipo de intervenção presidencial, o Brasil está prestes a entrar numa nova era com a indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington.
Manifestamente antirrepublicana, ela abre um precedente irreversível, que expõe a política externa a todo tipo de absurdo.
Depois de o Senado aprovar a nomeação de Eduardo, o que impedirá Jair de indicar Marco Feliciano para Tel Aviv, algum ideólogo das redes sociais para Roma, e, por que não, Luciano Hang para Tóquio?
A mais grave consequência desse processo seria a implosão do Itamaraty. A liga dos embaixadores amadores trataria diretamente com quem os designou —o presidente— , esvaziando a instituição dos seus poderes discricionários.
Outro efeito perverso seria a exposição do Brasil aos erros crassos dos seus deslumbrados, facilmente manipuláveis por diplomatas mais experientes de outros países.
Por fim, nada garante que essas manobras surtam o efeito esperado. Theresa May e Emmanuel Macron fizeram de tudo para estabelecer uma relação de confiança com Trump. Os seus respectivos embaixadores acabaram regressando com o rabo entre as pernas.
Mas o mal já está feito. Se Bolsonaro recuar, ele pode seguir os passos de Trump, que também enfrentou resistência no Senado, e vetar a indicação de novos embaixadores. Por esse motivo, postos relevantes para a diplomacia americana, como México e Austrália, permanecem desocupados.
O impasse se deve, em parte, à corajosa reação do corpo diplomático americano às intervenções de Trump. Embaixadores entregaram os seus cargos, funcionários se demitiram.
No Brasil, tem sido o contrário.
Servil, Ernesto Araújo, um diplomata de carreira, vem ratificando alegremente a devassa, consolidando a ruptura com a ideia centenária de que o Itamaraty era uma instituição imune à politicagem do Alvorada.
Frequentemente apresentado pela imprensa como um desequilibrado, ele tem se revelado ser um zeloso ajudante de obras do presidente.
Resta saber se os restantes diplomatas vão continuar tolerando por muito tempo o saque do Palácio.
*Mathias Alencastro é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Luiz Carlos Azedo: Um pouco de Gramsci
“Congresso, que havia perdido o papel de mediador dos conflitos da sociedade, resgata esse protagonismo e se assenhora cada vez mais da grande política, como é o caso agora da reforma da Previdência”
Parafraseando o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, autor de A Grande Família e Rasga Coração, a propósito do pessedismo (a manha política das velhas raposas liberais do antigo PSD), um pouco de Gramsci também não faz mal a ninguém. Mesmo que desperte a ira da patrulha ideológica contrária ao chamado “marxismo cultural”. Na verdade, o republicanismo laico e o primado da política em relação à fé são fundamentos de Nicolau Maquiável, que escreveu O Príncipe em 1513. A obra seminal da política moderna, publicada postumamente em 1532, promoveu a ultrapassagem do Estado teológico medieval. Antecede Karl Marx e seus discípulos.
Entretanto, o filósofo marxista italiano pode nos ajudar a entender o que está acontecendo a partir do colapso do presidencialismo de coalizão. A expressão foi usada a primeira vez há mais de 30 anos, no título de um artigo acadêmico do cientista político Sérgio Abranches, para explicar o funcionamento do presidencialismo brasileiro num ambiente de fragmentação partidária. Para governar, o presidente da República precisa costurar uma ampla maioria, frequentemente contraditória em relação ao programa do partido no poder, com grande potencial de conflitos ideológicos e políticos. O maior dilema institucional seria o aprisionamento do presidente da República pelas forças hegemônicas do Congresso, no vácuo de uma Constituição de viés antiparlamentarista.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para justificar suas alianças, recomendava aos amigos lerem Um estadista no Império, de Joaquim Nabuco, um tratado sobre a política de conciliação do Marquês de Paraná, que garantiu estabilidade política a D. Pedro II durante seu reinado. Em 1853, para formar o gabinete do Conselho de Ministros, o mineiro Honório Hermeto Carneiro Leão buscou conciliar as ações políticas dos dois partidos do Império, o Conservador e o Liberal, em torno de interesses comuns. Com isso, conseguiu conter as insatisfações liberais e isolar os republicanos. O ponto de encontro era a aproximação dos liberais que também defendiam os interesses latifundiários escravistas como os conservadores, todos embalados pelo avanço das lavouras de café. O maior crítico desse modelo foi Capistrano de Abreu, para quem política de conciliação era um “termo honesto e decente para qualificar a prostituição política de uma época.”
Grande política
A gênese dessa política foi um discurso do conselheiro Nabuco de Araújo, intitulado a “Ponte de Ouro”, no qual anunciou a estratégia dos conservadores que haviam sido derrotados pelos liberais nas eleições: se manteriam em oposição nas províncias, mas apoiaram a aliança imperial com os liberais no Conselho de Ministros. A conciliação política marcou o apogeu do período Imperial, financiado pelos recursos financeiros advindos da exportação do café. Mas a Guerra do Paraguai (1864-1870) e as ações pela abolição da escravidão levariam à criação do Partido Republicano por setores liberais abolicionistas, em 1870. Entretanto, a partir do Senado, mesmo assim, se tornou uma cultura política que atravessou a República Velha e a Segunda República, renascendo das cinzas depois da redemocratização do país, em 1985.
Ao contrário do que muitos imaginavam, o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fez uma ruptura com a política de conciliação, apenas inverteu as posições, para isolar o PSDB e o antigo PFL, eixos do presidencialismo de coalizão no governo FHC. Em seu lugar, Lula pôs o MDB e os partidos do Centrão, administrando as tensões entre esses aliados e suas bases petistas nos estados, muitas vezes em oposição, como no Maranhão. O patrimonialismo e o fisiologismo das velhas e novas oligarquias políticas não somente sobreviveram como adquiriram uma nova escala de organização sistêmica. O resultado todo mundo conhece: o modelo entrou em colapso no governo Dilma Rousseff e, nesse vácuo, Jair Bolsonaro se tornou alternativa de poder e venceu as eleições à Presidência. Também houve grande renovação na composição do Congresso.
Como Gramsci volta à prosa? Na separação entre a “grande” e a “pequena” políticas. Uma das características do presidencialismo de coalizão era o monopólio da “grande política” pelo Executivo, legando ao Congresso a “pequena política”. Para o filósofo italiano, Maquiavel examinou sobretudo as questões de grande política, compreendida como “as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais”. A pequena abarca “as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura; estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”.
Ao liquidar o presidencialismo de coalizão e promover uma ruptura com a política de conciliação, Bolsonaro parece inverter esses papéis, dando exagerada atenção à pequena política, inclusive no terreno diplomático. Ao contrário, o Congresso, que havia perdido o papel de mediador dos conflitos da sociedade, resgata esse protagonismo, parece tomar gosto pela situação e se assenhora cada vez mais da grande política, como é o caso agora da reforma da Previdência.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-um-pouco-de-gramsci/