Itamaraty
Merval Pereira: Isolados no mundo
Já tivemos um governo cujo embaixador em Washington, Juracy Magalhães, dizia que “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”. Embora a esquerda latino-americana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, o governo Lula em 2008 preferia um presidente republicano, porque seria "menos protecionista" e menos "próximo dos tucanos".
A relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre os ex-presidentes Fernando Henrique e Bill Clinton, uma relação também especial nasceu entre Lula e Bush, que teve uma convivência mais amistosa com ele do que com Fernando Henrique Cardoso, que já declarou que sentiu "asco físico" por Bush.
Provavelmente Bush sentia em Fernando Henrique uma rejeição intelectual que não acontecia com Lula, cujo temperamento é mais parecido com o dele. Embora tenha sido Obama que o chamou de “o cara”, fazendo com que sua imagem internacional se fortalecesse, nunca foram próximos e, em sua autobiografia “Uma terra prometida”, Obama comentou que soube do envolvimento do ex-presidente brasileiro em falcatruas, o que irritou Lula.
O fato é que até mesmo governos militares como o do General Geisel souberam lidar com a política externa de maneira pragmática, reatando relações diplomáticas com a China e reconhecendo a libertação das colônias portuguesas na África, mesmo com comunistas liderando as guerras de libertação.
Com Bolsonaro, voltamos ao tempo em que tudo vindo dos Estados Unidos conservador e retrógrado de Donald Trump estava bom, embora não tenhamos tido nenhuma vantagem por esse relação de subserviência ideológica. A vitória de Biden foi rejeitada pelo governo Bolsonaro até que Trump desistisse de tentar anular o pleito, e nenhum governo brasileiro torceu tanto por um candidato quanto o de Bolsonaro por Trump.
A consequência é que vamos ficar, como se previa, isolados, párias na comunidade internacional, porque estamos na contra mão do mundo ocidental, onde nos inserimos geopoliticamente. Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos, vai retomar as políticas que fizeram dos EUA uma liderança mundial: o acordo do clima de Paris, o nuclear com o Irã, e vai voltar à Organização Mundial do Comércio (OMC).
O Brasil está agora sobrando. Não consegue ficar bem nem com os governantes com a mesma tendência. Narendra Modi, o Primeiro-Ministro da Índia, é um politico de direita que poderia ser uma ligação com Bolsonaro, mas entramos em conflito com a Índia por causa de interesses americanos ao não apoiar a reivindicação de quebra de patentes na pandemia que favoreceria as empresas indianas, maiores fabricantes de insumos farmacêuticos.
A resposta veio com o retardamento das doses de vacina contra a COVID-19 para o Brasil. É inacreditável que o país não tenha percebido que o BRICS era um organismo importante geopoliticamente. Desprezou-o até o ponto em que o Secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo elogiou o Brasil por ter deixado de lado os BRICS. Nunca houve tanta clareza de que nem sempre os interesses do Brasil são os dos Estados Unidos.
O Brasil nesses dois anos de bolsonarismo sempre cedeu aos EUA, e entrou em conflitos desnecessários, com a China, com a Índia, com a Argentina. Uma política externa tosca, que acha que pode ter uma relação normal com o novo governo democrata, e pode culpar o embaixador chinês pelos desentendimentos, depois de praticamente vetar a tecnologia 5G chinesa.
Com Biden vai piorar, porque ele é um outro tipo de político, liberal, e a nossa relação com os EUA vai ficar muito difícil se não houver uma mudança, primeiro do chanceler, que está nos envergonhando no mundo. Estamos com uma perspectiva muito ruim no exterior e o caso das vacinas é uma prova inconteste. Bolsonaro é pragmático, mudou na política do Congresso da água pro vinho, se adaptou ao Centrão. Só que para mudar a política externa, teria que evoluir, mas é quase impossível que venha a ter uma visão ampla da política externa, neutra em relação a interesses ideológicos específicos.
Faz uma política externa mais ideológica do que a do PT. Bolsonaro não entende política externa como de Estado.
Luiz Carlos Azedo: O vento das mudanças
Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que aposta no impeachment, principalmente depois do colapso da Saúde no Amazonas
Caiu a ficha no Palácio do Planalto de que o vento mudou de rumo, com a posse do presidente Joe Biden, ontem, já anunciando mudanças fundamentais na política externa norte-americana e a volta da Casa Branca ao eixo da democracia e do “sonho americano”. Rapidinho, o presidente Jair Bolsonaro enviou uma longa carta ao presidente dos Estados Unidos, sugerindo o seu próprio reposicionamento em relação ao democrata, para manter a parceria estratégica, enquanto o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em videoconferência — a reboque do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ)—, pedia ao embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, para interceder em favor da liberação dos insumos de que precisamos para produzir as vacinas contra a covid-19. Nada como um dia atrás do outro.
A mudança na política externa dos Estados Unidos não acabou com a soberba no Itamaraty. O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster, por exemplo, ao comentar a troca de ocupantes da Casa Branca, disse que Biden precisa entender a mudança que houve no Brasil com a eleição de Bolsonaro, um país muito diferente daquele que conhecera quando era vice-presidente de Barack Obama. Ora, o novo presidente dos Estados Unidos sabe muito bem o que aconteceu, pois conhece o nosso país. Bolsonaro, o tempo todo, foi uma espécie de espelho de Donald Trump.
Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que resolveu apostar no impeachment do presidente brasileiro, principalmente depois do colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) no Amazonas. Os partidos de esquerda estão convocando carreatas para o próximo sábado, com o objetivo de protestar contra o governo, devido à falta de vacinas. A crise sanitária agravou-se com a segunda onda da pandemia do novo coronavírus, e Bolsonaro está sendo responsabilizado por causa de seu reiterado negacionismo, em relação à gravidade da doença, à importância do uso de máscaras e do distanciamento social, além da necessidade de vacinação em massa da população.
Chapa quente
Os mesmos movimentos cívicos que embalaram a campanha do impeachment da presidente Dilma Rousseff — MBL, Vem pra Rua, Agora, Acontece etc — também começam a se mobilizar nas redes sociais e a convocar manifestações contra o governo. Os humores da sociedade estão mudando, conforme demonstram as pesquisas de opinião, mas isso não significa que a oposição tenha força suficiente para viabilizar o impeachment. A pandemia tira o povo das ruas, e o Congresso dá sinais de que os aliados de Bolsonaro vão levar a melhor na disputa pelas Mesas da Câmara e do Senado. Enquanto a oposição tenta promover uma “guerra de movimento”, Bolsonaro procura avançar na “guerra de posições”, movendo mundos e fundos, isto é, cargos e verbas, para eleger Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) às presidências da Câmara e do Senado, respectivamente. Caso tenha êxito, o seu impeachment, dificilmente, descerá do telhado.
Docemente constrangido, o vice-presidente Hamilton Mourão ataca a oposição — “deixem o Bolsonaro trabalhar, pô”—, ao mesmo tempo em que não perde uma oportunidade para marcar uma posição diferenciada em relação ao meio ambiente, à vacina e a outros temas nos quais o presidente da República vai na contramão da opinião pública. É um jogo muito sutil, porque o general lida com a desconfiança do clã Bolsonaro desde quando estourou o escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (PR-RJ) e a primeira-dama Michele Bolsonaro, que receberam dinheiro do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz. Militares descontentes veem em Mourão uma alternativa, caso o governo Bolsonaro leve o país ao desastre.
No xadrez da “guerra de posições”, depois da definição do Congresso, Bolsonaro deverá mover mais uma peça: a indicação do substituto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que se aposentará em 12 de julho. As articulações para a vaga já estão em curso. O candidato mais ativo é o procurador-geral da República, Augusto Aras. Na terça-feira, a propósito das representações da oposição contra Bolsonaro, por causa da crise sanitária, Aras soltou uma nota estranhíssima, falando que a calamidade pública era a antessala do “estado de defesa”, sabidamente uma situação que confere poderes extraordinários ao presidente da República. A nota gerou perplexidade e críticas públicas de seis subprocuradores-gerais da República, ou seja, da maioria do Conselho Superior do Ministério Público.
William Waack: Crianças à solta
Militares não foram capazes de entender que calar-se para grotescos erros, apegados a princípios como lealdade ou hierarquia, compromete as instituições
Vamos simplificar as questões de política externa do governo Jair Bolsonaro. Supunha-se que os adultos – militares com formação acadêmica e experiência direta de conflitos internacionais – fossem supervisionar as crianças. Aconteceu o contrário. As crianças é que emparedaram os adultos.
Em alguma medida, é uma repetição do que aconteceu na Casa Branca, onde gente de excelente formação profissional nas áreas de segurança, estratégia e relações internacionais foi chutada por um inepto como Donald Trump, que Bolsonaro escolheu emular. No Brasil, os órgãos de assessoramento da Presidência da República e o próprio Itamaraty acabaram sendo subordinados à profunda ignorância em matéria de relações internacionais de um filho do presidente e suas preferências pessoais.
Os resultados negativos se acumulam. Com o resultado das eleições americanas, o Brasil conseguiu a proeza de se estranhar ao mesmo tempo com as duas principais potências do planeta, pois já se dedicava em provocar a China. Como 11 em 10 analistas de relações internacionais assinalaram, o campo da política externa é, por definição, o campo da impessoalidade, e o alinhamento automático de Bolsonaro ao perdedor Trump é um erro crasso não importa o mérito, postura ideológica ou intenções de qualquer um dos dois.
O mesmo vale em relação à China e à Índia. Somadas, essas duas gigantescas potências asiáticas têm mais ou menos uns 8 mil anos de experiência em política externa e conflitos geopolíticos de enorme amplitude. O Brasil desdenhou da Índia na Organização Mundial do Comércio, e tomou o troco ao ser jogado para o final da fila dos países para os quais os indianos estão exportando vacinas e insumos.
No caso da briga dos elefantes (China contra Estados Unidos) o Brasil desperdiçou a oportunidade que a geografia lhe dá de tratar a ambos com distanciamento e equilíbrio. Ao contrário, preferiu cutucar os chineses da forma infantil característica de amadores que acham que entendem de política externa, como acontece na assessoria internacional de Bolsonaro, ou confundem a repetição de lemas de movimentos de extrema-direita (contra a China, por exemplo) como afirmação de postulados nacionalistas.
Cego aos dados da realidade, Bolsonaro ainda não demonstrou ter compreendido a natureza das várias rasteiras internacionais que tomou nas últimas semanas, e o impacto que essas fragorosas derrotas – como o chute eleitoral levado por Trump e a recusa da Índia e China na questão das vacinas em nos atender nos prazos que pretendíamos – acarreta na posição política interna de um presidente que só pensa em reeleição.
O tamanho dos reveses exigiria de Bolsonaro uma rápida e nítida correção de rumo. Sim, estaria admitindo ter cometido erros grosseiros – por escolhas, repita-se, pessoais – mas dado os trunfos que o Brasil ainda dispõe (Amazônia e produção de alimentos) conseguiria se reposicionar no cenário internacional. Um passo desses, porém, pressupõe dois fatores que não se vislumbra no momento.
O primeiro é Bolsonaro entender que na raiz das derrotas que Trump sofreu está o desprezo e a negligência em relação aos “staffs” profissionais treinados para tratar de complexas questões internacionais e suas implicações para os interesses do País. Ao se apegar ao que seu filho e amigos acham que é a política internacional, e relegar a terceiro plano a burocracia meritória do Itamaraty, por exemplo, o presidente apenas reitera uma conduta evidentemente errada.
O segundo fator que não se vislumbra está ligado à postura daqueles adultos – militares formados em academia de ótimo nível – que não foram capazes de entender que calar-se para os grotescos erros de política externa, apegados a princípios como lealdade ou hierarquia, compromete as instituições (Forças Armadas, por exemplo) às quais pertencem e, no final das contas, os torna cúmplices no estrago na defesa de interesses da Nação.
Em lugar nenhum eles aprenderam que o Brasil deveria ser um pária internacional. A posição na qual chegamos.
Luiz Carlos Azedo: Colapso da diplomacia
Não existe assimetria entre política externa e política de governo propriamente dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão, a não ser que haja um grande ajuste
A posse do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, hoje, representa o colapso da política externa do presidente Jair Bolsonaro, sem mais nem menos. Seu apoio escancarado não somente à reeleição de Donald Trump, mas também às denúncias de fraude eleitoral na eleição do democrata, bem como aos protestos dos republicanos — que culminaram com a invasão do Capitólio — levou as relações entre o Brasil e os Estados Unidos ao seu pior momento desde o governo Geisel, durante o regime militar. Entramos num processo parecido com aquele momento, marcado pela celebração do acordo nuclear com a Alemanha, pelo presidente Ernesto Geisel, que rompeu um velho acordo militar com Estados Unidos, em 1975.
Em março 1978, quando o presidente democrata Jimmy Carter esteve no Brasil, foi recebido friamente por Geisel, embora a visita, de iniciativa da Casa Branca, fosse uma tentativa de melhorar as relações. Entretanto, não houve como deixar fora da pauta do encontro a questão dos direitos humanos. Denúncias de sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas nos quartéis e aparelhos clandestinos dos serviços de inteligência do regime, devidamente circunstanciadas, foram entregues à primeira-dama Rosalyn Carter, estressando ainda mais as relações.
Na época do estresse com os Estados Unidos, Geisel ainda encarnava um projeto nacional-desenvolvimentista, que contava com certo apoio na sociedade, apesar de o regime vir a ser derrotado fragorosamente nas urnas, em novembro do mesmo ano. Agora, não existe projeto nacional algum. Ideologicamente, Bolsonaro se aliou de forma incondicional ao presidente Donald Trump, que, agora, deixa o governo, depois da sua frustrada tentativa de impedir a posse de Biden, numa inopinada e brutal ação golpista, amplamente repudiada pelo Congresso e a Justiça dos Estados Unidos. Como se dizia antigamente, Bolsonaro pegou o bonde errado.
O fracasso da política externa de Bolsonaro é ainda mais grave porque o presidente brasileiro, ao se aliar a Trump, entrou em rota de colisão com a União Europeia, por causa da questão ambiental, e com a China, nosso principal parceiro, devido à guerra comercial entre os dois países. Até mesmo com a Índia e a África do Sul, que são nossos parceiros no Brics, Bolsonaro desgastou as relações diplomáticas, ao votar contra a quebra de patentes de produtos farmacêuticos na Organização Mundial de Comércio (OMC). Agora, o Brasil depende da importação de insumos farmacêuticos e vacinas desses países, que têm seus próprios interesses geopolíticos e nenhuma boa vontade com Bolsonaro.
Reflexos internos
Grande produtor de commodities de minérios e de alimentos, o Brasil tem um lugar cativo na divisão internacional do trabalho que nos garante certa importância na política internacional, mas a nossa atual política externa trabalha na direção de anular essa vantagem estratégica. O resultado são dificuldades em questões nas quais, tradicionalmente, nossa diplomacia contaria com a boa vontade dos parceiros, por seu pragmatismo e habilidade nas negociações multilaterais. Acontece que o multilateralismo e o globalismo viraram palavrão no gabinete do chanceler Ernesto Araújo.
Como se sabe, não existe assimetria entre política externa e política de governo propriamente dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão, a não ser que haja um grande ajuste, o que não está sendo sinalizado pelo Palácio do Planalto. Uma pandemia é o tipo de problema cuja solução exige certo nível de governança global e boa vontade entre os parceiros internacionais, além do esforço próprio e local. No caso da covid-19, pela primeira vez, nossa diplomacia virou problema em vez de solução. O resultado é que estamos tendo dificuldades, por exemplo, para obtenção de insumos farmacêuticos necessários à produção de vacinas tanto pelo Instituto Butantan (CoronaVac) quanto pela Fiocruz (AstraZeneca-Oxford), agravadas pelos erros do Ministério da Saúde na gestão da crise sanitária e negociações para comprar as vacinas.
A crise sanitária provocou uma crise econômica, cuja superação depende da vacinação em massa da população e não do “tratamento precoce” preconizado pelo presidente Jair Bolsonaro. Mesmo que a pandemia venha a ser contida — estamos numa segunda onda, com escassez de vacinas —, é preciso que medidas econômicas sejam adotadas para gerenciar o deficit fiscal, decorrente das medidas emergenciais adotadas durante a pandemia. Há que se ter, também, um programa de reformas que ajude a recuperação das atividades econômicas. Ocorre que o ministro da Economia, Paulo Guedes, vive numa eterna fuga pra frente, na qual essas medidas dependem sempre de um fato político novo. Desta vez, são as eleições das Mesas da Câmara e do Senado, nas quais o Palácio do Planalto aposta todas as fichas.
Afonso Benites: Com posse de Biden, Brasil sofrerá pressão conjunta de EUA e Europa por Amazônia
Diplomatas avaliam que nova Casa Branca se dedicará a vincular política ambiental à comercial. Embaixadores em Brasília dizem que, para não perder dinheiro, Planalto terá que ajustar discurso
Pelos próximos dois anos, a boa relação do Brasil com os Estados Unidos dependerá muito mais do Governo Jair Bolsonaro do que o de Joe Biden, que será empossado na presidência americana nesta quarta-feira. Se o presidente brasileiro insistir na sua política ambiental que pouco protege o meio ambiente e na condução ideológica de seu ministério das Relações Exteriores, corre o risco de fazer o país perder dinheiro e ser cada vez mais um pária na arena internacional. A avaliação foi feita por quatro embaixadores europeus e asiáticos que trabalham em Brasília e foram ouvidos para esta reportagem. Todos falaram sob a condição de não terem seus nomes publicados. E todos entendem que uma sinalização de que a política brasileira estaria além da relação Donald Trump-Bolsonaro seria demitindo os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Ernesto Araújo (Itamaraty).
Conforme esses diplomatas, os chanceleres de países europeus, principalmente, darão suporte a qualquer veto ou restrição que Biden fizer ao Brasil por conta política ambiental. E mais. Já pediram que o presidente americano o faça. “A França já sinalizou que quer deixar de ser dependente da soja brasileira. A tendência é que, sem a proteção ambiental, os países encontrem mais argumentos para impor barreiras ao Brasil e, consecutivamente, protegerem os seus próprios produtores”, disse um diplomata europeu. “Quem não cuidar do que resta das florestas no mundo, acabará duramente punido onde mais dói, no bolso”, afirma outro representante de embaixada estrangeira.
A chegada de Biden encontra o Brasil em uma situação já frágil em termos internacionais. Se, sob sombra de Trump, Bolsonaro tinha uma caixa de ressonância poderosa e relativo pouco custo para a estratégia de isolamento internacional, agora o jogo começa a mudar. As últimas semanas foram de reveses para o Planalto na chamada “diplomacia da vacina”. O país, tenta, sem sucesso, acelerar a chegada de compras de doses prontas da vacina Oxford/AstraZeneca da Índia assim como de insumos para a fabricação de imunizantes vindos da China.
Uma das possibilidades que tem sido aventada no âmbito internacional seria a de Biden apoiar que a Organização Mundial do Comércio (OMC) estabeleça uma política de restrição a quem infringir determinadas normas ambientais. É algo parecido com o que ocorreu na década de 1990, quando havia severos vetos aos negócios com países em que eram registrados trabalho infantil ou escravo. É um debate que ocorrerá ainda ao longo de 2021.
“Os EUA querem criar uma nova doutrina mundial que prima pelos predicados da economia verde, da proteção da biodiversidade, mas também como componente vital na regulação das relações comerciais”, ressalta o cientista político e pesquisador de Harvard, Hussein Kalout, que foi secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência sob o Governo Michel Temer. A escolha de John Kerry, ex-secretário de Estado de Barack Obama, para ocupar o cargo de “czar ambiental” de Biden é uma dessas sinalizações de endurecimento da política verde do novo presidente.
Outra indicação de que a política de Biden também enfraquecerá Bolsonaro foi a opção dele por Anthony Blinken para o cargo de secretário de Estado. Ele é um defensor do multilateralismo, ao passo que o presidente brasileiro, assim como Trump era, é um crítico das organizações internacionais e defensor de acordos bilaterais.
De início, contudo, Biden terá preocupações urgentes antes de tratar da política externa com o Brasil. Entre elas, estariam o combate à pandemia de coronavírus, estratégias para recuperar a economia americana e como recompor a política interna que ficou extremamente polarizada principalmente no fim do mandato de Trump. Na visão de Kalout, a gestão do democrata será pragmática na seara internacional, e com o Brasil não será diferente. Pontes não seriam queimadas, mas o Brasil seria colocado em espera, por um tempo.
“O alinhamento entre os Governos brasileiro e americano foi para além do que é um alinhamento automático. Tivemos uma subordinação de interesses. Perdemos a autonomia decisória em matéria de política internacional. O Brasil tornou-se incapaz de tomar decisões desprendidas daquilo que o Trump entendia o que era necessário para o Brasil”, ponderou o ex-secretário de Temer.
Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro fez questão de se aproximar de Trump. Mesmo após a confirmação da eleição de Biden, ele insistiu na infundada tese de que as eleições americanas foram fraudadas. E foi um dos últimos a parabenizar o vencedor do pleito.
Sobre a possibilidade de se demitir Salles e/ou Araújo, Kalout diz que essa medida não surtiria efeito de imediato, a menos que a condução da política dessas pastas mudasse. “Não adianta só trocar nomes. Tem de trocar o direcionamento, tem de trocar a maneira de se conduzir. E isso não depende, exclusivamente, do ministro que ocupar o cargo, mas do presidente”, diz o cientista político.
Um tema que deverá sofrer poucas mudanças é o da tecnologia da internet 5G. Trump vetou a presença da empresa chinesa Huawei dos Estados Unidos e tem pressionado para que países aliados o façam. O presidente Bolsonaro vinha sinalizando que seguiria o caminho traçado pelo republicano, mas ainda não havia uma definição final. O leilão da frequência deve ocorrer até meados deste ano. Agora, mesmo com a assunção de Biden a tendência é que alguma limitação à empresa chinesa persista, ainda que de maneira mais moderada.
“Essa guerra é suprapartidária. Se fosse o Trump ou o Biden seria a mesma coisa. Se não vierem vetos, virão barreiras que vão dificultar uma vitória da Huawei”, disse um dos diplomatas. O que está em jogo, não é apenas a questão financeira, mas a guerra geopolítica que EUA e China travam por essa tecnologia. Avaliação parecida é feita pelo cientista político Kalout. “Não tem como o Brasil banir, ele ainda depende da Huawei. Mas os EUA vão exercer pressão para delimitar essa entrada da Huawei no 5G do Brasil, mas também em toda a Europa”, afirmou.
Jamil Chade: Vacina chega após arrogância e erros homéricos de uma diplomacia limitada
Brasil deixou de aderir inicialmente a uma coalizão global pelas vacinas em abril, que daria prioridade aos brasileiros com vacinas. Optou por uma política que minava a confiança na Coronavac e investiu num pacote negacionista que explica o colapso de Manaus e a dor de milhares de famílias
Aqui jaz os restos conceituais da política externa do governo de Jair Bolsonaro, responsável por isolar o país do grupo das grandes democracias do mundo e destruir a reputação de uma nação. Na lápide da diplomacia do Brasil, essa bem poderia ser a descrição para quem um dia for visitar o memorial dedicado às ideias, projetos e políticas que não sobreviveram à pandemia.
Entre 2020 e 2021, o Brasil foi vítima de um vírus que desconhecia ideologia, a noção de soberania e zombava de fronteiras. Mas só nas últimas semanas, o Governo descobriu que o país está de joelhos diante de uma pandemia que ganha força. Descobriu que está sem imunizante, sem oxigênio, sem plano e sem alternativas. Nada disso, porém, é culpa exclusiva do Sars-Cov-2. Depois de ter politizado a origem do vírus, a máscara e tratamentos, o governo tomou a decisão deliberada de repetir esse roteiro com o imunizante.
A demora e indefinição para começar a vacinação não foram acidentes de última hora. Trata-se de o resultado dramático de decisões políticas adotadas ao longo de meses. O primeiro passo nesse longo processo foi o de não aderir inicialmente ao projeto de uma coordenação global. Em abril de 2020, a OMS iniciou a construção de um sistema que permitiria uma distribuição equitativa da vacina pelo mundo. Uma espécie de fundo de vacinas que permitiria que, uma vez autorizados os produtos, a coalizão garantiria a distribuição do imunizante para todos os países, atendendo inicialmente a 20% das populações de cada nação.
A ideia era simples: se for deixado às forças do mercado ou ao sistema internacional, os países emergentes e pobres poderiam ficar para o fim da fila na vacinação. Exemplos já existiam disso. Quando o H1N1 se abateu sobre o mundo, países ricos foram os primeiros a imunizar suas populações. Quando a vacina chegou aos países pobres, o surto já tinha terminado.
A Aids também trouxe uma história similar. Por anos, as economias mais pobres ficaram sem acesso aos tratamentos, enquanto o coquetel já era uma realidade nos EUA e Europa. Quando os remédios finalmente desembarcaram na África, os países mais pobres já somavam 9 milhões de mortes.
Na OMS, técnicos e diretores estavam convencidos de que, na atual pandemia, esses erros não poderiam se repetir. Mas a ordem no Itamaraty era a de não permitir que, durante a pandemia, os organismos internacionais ganhassem força ou fossem os locais de coordenação de uma resposta global. Mergulhado em seu combate contra o “globalismo” que destruiria as identidades nacionais, o Itamaraty ficou de fora de reuniões internacionais e, quando participou, fez questão de usar o palanque para rejeitar qualquer ideia que significasse um reconhecimento da necessidade de um plano global contra o vírus.
Naquele mês de abril de 2020, o Ministério da Saúde informaria que não faria parte da aliança, batizada de Covax. Sua explicação: temos outros acordos bilaterais sendo costurados. Nunca explicaram quais eram esses planos. Pressionado, porém, o Brasil acabou cedendo alguns meses depois e aderiu ao projeto, mas sem grande entusiasmo. Ao fazer seu pedido por vacinas no fundo global, solicitou o mínimo que poderia ser comprado: o equivalente a 10% de sua população. Pelas regras, países poderiam ter solicitado até 50% de sua população.
Hoje, sem apoio internacional suficiente, sem recursos e diante de governos pseudo-nacionalistas como o do Brasil, a aliança sofre para começar a distribuir vacinas. Em Genebra, não são poucos os negociadores que acreditam que um envolvimento mais direto do Brasil no projeto poderia ter convencido outros a aderir e teria transformado a aliança numa realidade imediata.
Se a via multilateral não interessava, a escolha por acordos bilaterais também se mostrou inapta e permeada por considerações ideológicas. Tentando frear a expansão da influência da China no mundo e mais preocupado em atacar o “comunavírus”, o Governo optou por promover uma campanha contra as vacinas chinesas. Diversas empresas, nos últimos meses, relataram como entregaram propostas ao Governo e se surpreenderam com respostas frias por parte do Planalto. No governo federal, a ideia era de apenas a vacina da AstraZeneca seria suficiente.
Enquanto isso, pelo mundo, países tomaram a decisão de evitar a todo custo colocar todas suas apostas em apenas uma ou dois fornecedores de vacinas. Em Bruxelas, por exemplo, a União Europeia fechou acordos com seis empresas diferentes. Nos EUA, mesmo o governo de Donald Trump decidiu estabelecer acordos com seis fornecedores.
Na Coreia do Sul, o país garantirá seu abastecimento com três empresas, além de desenvolver projetos de uma vacina nacional com outros 15 laboratórios nacionais. Na China, além de ter quatro vacinas já em negociações com a OMS para conseguir uma aprovação global, o governo fez questão de fechar um acordo com os alemães da BioNTech para um abastecimento extra de 100 milhões de doses. Outros também estão sendo negociados com empresas ocidentais.
Sim, existe uma profunda escassez de vacinas no mundo. Mas é justamente num momento de crise que a capacidade de um país navegar e recorrer a aliados se mostra vital. No caso do Brasil, a aposta se mostrou desastrosa. Quando precisou de ajuda, descobriu que seus parceiros nacionalistas eram, de fato, nacionalistas.
Num dos episódios mais reveladores do amadorismo do Itamaraty, o governo preparou um avião para ir buscar os insumos da Índia, necessários para a vacina da AstraZeneca. Com pires na mão, Bolsonaro escreveu ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Mas, por enquanto, Nova Delhi rejeitou fazer a entrega ao Brasil, dando (obviamente) prioridade para o início de sua campanha nacional de vacinação.
Opções começam a ser buscadas em Israel e mesmo nos EUA. Mas, ao apagar das luzes do Governo Trump e o desembarque de Joe Biden, o Governo já começa a descobrir a tradução da palavra pária. As opções para pedir ajuda ainda são limitadas. Afinal, a chancelaria fez questão de dedicar parte de seu tempo, esforço e dinheiro dos contribuintes brasileiros nos últimos anos para ofender líderes estrangeiros e queimar pontes que tinham sido construídas por décadas com parceiros internacionais.
O mais irônico e trágico disso tudo é que a história poderia ter sido radicalmente diferente. O Brasil é um dos únicos países do mundo com uma capilaridade no sistema de saúde, experiência, conhecimento científico e capacidade de mobilização para vacinar milhões de pessoas por dia. A crise brasileira, não por acaso, chama a atenção internacional. Nos bastidores da OMS, diretores não escondem o espanto sobre a situação do Brasil. “Vocês são um país com ótimos cientistas, orgulhosos de seu passado de saúde pública. O que ocorreu?”, perguntou um dos líderes da agência no esforço contra a pandemia.
A resposta não se limita à dimensão da incompetência daqueles no poder. O fracasso é um resultado direto de uma política externa que tem como pilar a ideologia, e não os interesses dos cidadãos.
Quando for iniciada, nesta quarta-feira, a maior campanha de vacinação da história do país dependerá num primeiro momento de uma vacina chinesa, justamente aquele que havia sido desprezada, ironizada e evitada pelo governo federal. Independente da ironia de uma cena digna do realismo mágico, a demora do país em começar a vacinação e a falta de imunizantes suficientes não são acidentes. Mas consequência de uma diplomacia que mostrou todos os seus limites e fracassou ao ser confrontado por seu maior teste. Gestos como o de minar a confiança em uma vacina apenas por sua origem ou se negar a promover uma resposta global fazem parte de um pacote negacionista que explica o colapso de Manaus e a dor de milhares de famílias brasileiras. Nesse caso, o impeachment seria insuficiente.
*Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
O Globo: Diplomatas criticam reação de Araújo à invasão do Capitólio
Chanceler de Bolsonaro condenou violência em ataque ao Congresso dos EUA, mas ecoou acusações infundadas de Trump sobre fraude eleitoral; nota de associação de ex e atuais integrantes do Itamaraty explicita mal-estar na diplomacia brasileira
Henrique Gomes Batista, O Globo
SÃO PAULO — A invasão do Capitólio por apoiadores do presidente Donald Trump, no dia 6, não gerou uma crise política apenas nos EUA: ela tem respingado também no Itamaraty. Dentro da diplomacia brasileira, é forte o movimento de críticas ao posicionamento do chanceler Ernesto Araújo no episódio, considerado por muitos ideológico e contraproducente para os interesses nacionais. A divulgação de um novo posicionamento da Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB), na sexta-feira, tornou público o mal-estar dentro da instituição. A percepção é que o posicionamento do chanceler pode prejudicar a relação entre Brasil e EUA no governo de Joe Biden.
— Este foi um movimento de repúdio ao ministro, feito por quem está ativo no Itamaraty. Grande parte das manifestações de ex-chanceleres ou de aposentados, no passado recente, era uma forma de suprir uma dificuldade dos diplomatas da ativa, que não podem se manifestar devido à hierarquia. Muitos têm medo de se expor. Mas a situação está chegando a um ponto inimaginável, não há precedentes na História — afirmou o embaixador e ex-chanceler Rubens Ricupero.
Ele afirma que nunca houve um ministro tão dissociado dos postulados básicos da diplomacia, o que gera essa manifestação inédita.
— Uma pessoa decente deveria apresentar sua renúncia diante disso — afirmou.
Procurados, nem o Itamaraty e nem a ADB quiseram se pronunciar sobre o caso. Mas fontes ligadas aos dois grupos, além de diversos outros diplomatas, afirmaram, sob sigilo, que o clima dentro da diplomacia brasileira nunca esteve tão ruim.
Um diplomata de carreira disse que “o clima está quente” e que “vários embaixadores aposentados declararam apoio à nota e aplaudiram a ADB reafirmar os princípios da diplomacia brasileira”. Segundo ele, a entidade externou uma posição velada entre os diplomatas da ativa, que não se pronunciam por causa da hierarquia. O diplomata indicou, também, a existência de um grupo “muito minoritário, mas estridente”, que se posiciona contra a manifestação da ADB em temas de política externa.PUBLICIDADE
A Associação — com 1.600 filiados, sendo que 75% destes diplomatas da ativa — de forma sutil, escreveu que “o exercício dos direitos à liberdade de expressão e à livre reunião e associação deve ocorrer de forma pacífica”, e que ele “não se confunde com tentativas de subversão da vontade soberana do eleitor, por meio da violência e da destruição do patrimônio público, como as vistas na sede do Legislativo norte-americano”. Tal posicionamento foi visto como uma afronta pelo grupo que defende a atuação de Ernesto Araújo.
Atuação ideológica
O chanceler de Jair Bolsonaro, apesar de afirmar que condenou a invasão, escreveu no Twitter que “há que distinguir ‘processo eleitoral’ e ‘democracia’” e que “grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”, fazendo eco às alegações infundadas de fraude no processo eleitoral americano por Trump.
Fã público do presidente americano — que ele já afirmou ser um “salvador do Ocidente” — Araújo descumpriu uma regra da diplomacia brasileira, de não interferir em questões internas de outros países, e chegou a duvidar das investigações da invasão.
Para diplomatas ouvidos pelo GLOBO, este foi um estopim de insatisfações dentro do Itamaraty. Muitos afirmam que Araújo tem, cada vez mais, agido por questões ideológicas, e citam, como outro exemplo, a complicada relação com a Argentina desde a vitória de Alberto Fernández.PUBLICIDADE
Um diplomata ouvido pelo GLOBO lembrou que a Constituição estabelece que a diplomacia brasileira deve seguir princípios como independência nacional, autodeterminação dos povos e não intervenção. Para ele, “isso tem se perdido desde que o atual governo chegou ao poder”, e ele lembrou que a atual gestão tem até censurado livros e determinado apenas uma corrente de pensamento da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), do Itamaraty.
Sem fiscalização isenta
Além de repercutir na imagem do Itamaraty, que segundo Ricupero “vai levar mais que uma troca de gestão para ser recuperada”, estes posicionamentos com bases ideológicas, segundo diplomatas e especialistas, afetam a relação do Brasil com os EUA.
— Converso com alguns membros da equipe de transição de Joe Biden, e Araújo tem uma péssima reputação entre os democratas. Há uma percepção em Washington de que não há como evitar uma ruptura na relação bilateral se Ernesto permanecer no cargo — afirmou Oliver Stuenkel, da FGV. —Não se trata do presidente americano pedindo a troca de um chanceler, mas de um chanceler que não reconhece a legitimidade da eleição de Joe Biden.
Para diplomatas, o Congresso não tem fiscalizado a diplomacia com isenção. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente à frente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, passou a usar uma foto de Trump em sua conta no Twitter. (Colaborou Camila Zarur)
Rubens Barbosa: Amazonas e 5G
O Brasil está na incômoda posição de ter-se colocado entre os EUA e a China
Cada vez mais, todos os países terão de lidar com os impactos na sua economia de decisões tomadas no exterior e sobre as quais não têm influência. Novas prioridades globais, como a preocupação com o meio ambiente, a mudança de clima e a desigualdade social, terão influência nas políticas internas dos países.
Incertezas e desafios internos e externos serão, assim, a realidade para o Brasil em 2021. Além das políticas e reformas estruturais, duas questões serão cruciais para definir projeções mais positivas de crescimento econômico do País na década que se inicia: a ratificação do acordo do Mercosul com a União Europeia (UE) e a decisão sobre a implantação da tecnologia 5G.
A assinatura do acordo de livre-comércio com a UE, bem assim sua ratificação ficarão na dependência da percepção externa sobre o cumprimento pelo Brasil dos compromissos assumidos nos acordos de meio ambiente e mudança de clima assinados desde 1992 e sobre a fiscalização e a repressão de ilícitos no desmatamento, nas queimadas e no garimpo na Amazônia. Mais recentemente, a UE comunicou aos países-membros do Mercosul, como condição para levar adiante o acordo, sua intenção de assinar uma declaração conjunta anexada ao acordo definindo compromissos ambientais e sociais dos dois blocos para reforçar a confiança dos países europeus na posição do Mercosul, em especial do Brasil, acerca da Amazônia.
Em 2021 deverá haver duas importantes reuniões relacionadas ao Acordo de Paris, sobre mudança de clima em Glasgow, na Escócia, e sobre biodiversidade, na China, o que abre oportunidades para o Brasil mostrar os avanços no que se refere à Amazônia. Argentina no primeiro semestre e Brasil no segundo terão de atuar fortemente junto às lideranças políticas e os Parlamentos para fazer o acordo ser assinado e ratificado.
No tocante à tecnologia 5G, o Brasil está na incômoda posição de ter-se colocado entre os EUA e a China na crescente confrontação estratégica das duas maiores economias do mundo e seus dois maiores parceiros comerciais. A disputa das duas superpotências pela hegemonia econômica, comercial e tecnológica global continuará pelas próximas décadas e ganhará novas características a partir deste mês de janeiro, com o governo Biden.
Como a confrontação não tem as mesmas características ideológica e bélica da disputa entre EUA e União Soviética, a importância da parceria comercial com a China para muitos países fez a UE concluir as negociações de significativo acordo de investimento com Beijing, na contramão do que propõem os EUA. Sem tomar partido de um lado ou de outro no tocante à definição da tecnologia 5G, mais da metade das maiores economias globais já adotaram a tecnologia chinesa, enquanto há ainda um número elevado de países desse grupo sem decisão formada sobre o assunto. A Alemanha chegou até a passar no Parlamento uma lei de segurança de redes que permite o uso da tecnologia da Huawei em redes 5G em troca de garantias da empresa chinesa sobre a proteção de informações em seus equipamentos.
Para o Brasil a tecnologia 5G será importante, especialmente para permitir a modernização da indústria, cujo desenvolvimento ficou afetado pelas dificuldades econômicas internas e pela perda da competitividade. Apenas 10% da indústria brasileira pode ser considerada no estágio da quarta revolução industrial (4.0). As redes particulares propiciadas pela 5G facilitarão o processo de recuperação e atualização da indústria local, com benefício para a economia, o emprego e as exportações nacionais.
O atual governo terá a responsabilidade de adotar medidas que sejam vistas como adequadas e com resultados concretos na política ambiental e de mudança de clima para permitir a ratificação do acordo de livre-comércio com a UE. Caso contrário, a crescente demanda dos governos e, agora, também do setor privado, em especial grandes companhias e instituições financeiras, e dos consumidores sobre a preservação da Amazônia acarretará medidas contrárias aos interesses nacionais – restrições às exportações, boicotes a produtos brasileiros e prejuízos pela suspensão de financiamento de projetos de interesse do governo. Uma decisão baseada em considerações ideológicas e geopolíticas, no caso do 5G, terá consequências nefastas para o País em médio prazo, pelo atraso de dois a três anos na utilização de uma tecnologia que vai revolucionar o mundo e pelo custo de milhões de dólares que a mudança da infraestrutura existente acarretaria para as empresas de telecomunicação e para os consumidores.
Não levar em conta essas realidades será afetar as perspectivas de desenvolvimento econômico, de reindustrialização do País e de avanços na inovação e na tecnologia, agravando ainda mais as condições sociais domésticas e dificultando uma posição relevante do Brasil no mundo, o que deveria ser de nosso interesse.
A invasão insurrecional do Congresso em Washington deverá ter forte impacto na política interna de países onde o nacional-populismo pode ameaçar as instituições, pondo em risco a democracia. A política ambiental de Joe Biden deverá ter consequências concretas no Brasil.
PRESIDENTE DO IRICE
Míriam Leitão: Diplomacia sem pé nem cabeça
O presidente Bolsonaro mandou uma carta ao primeiro-ministro da Índia pedindo ajuda para receber as vacinas da Serum. É mais um erro da diplomacia. Esta semana o ministro Eduardo Pazuello telefonou para o ministro da Saúde indiano, Dr. Harsh Vardhan, para pedir o envio das doses, dois milhões ao todo. Tudo o que ouviu foi que esse era um assunto comercial. Educadamente, o ministro indiano indicou que era preciso concluir primeiro a negociação com a empresa. A Serum é privada, e não havia recebido o pagamento e o governo da Índia não tinha o que fazer a respeito. Ontem, o Brasil programou o pagamento.
Esse é só um pequeno exemplo da falta de noção do governo brasileiro, que despreza a tradição da nossa diplomacia profissional. Quem conversa com representantes de outros países em Brasília ouve uma série de histórias das falhas nas regras básicas. Uma delas é a de que nenhum ministro liga para ouvir um não. Para isso existem os contatos precursores. E o que Vardhan disse foi que Pazuello se acertasse com a empresa e se houvesse algum entrave burocrático na exportação aí o governo indiano poderia ajudar. Não disse assim com essas palavras porque ele é diplomata de carreira. Conhece os códigos.
Quem não conhece é a cúpula do Itamaraty que erra o tempo todo. Primeiro, a chancelaria tinha que ter ido na frente preparando o terreno para que a área especializada já encontrasse o terreno preparado. A Fiocruz é que fez os contatos com a Serum. O presidente da Serum chegou a falar que havia uma proibição de exportação. Mas foi desmentido pelo governo indiano. Esse até poderia ter sido o assunto da conversa com o ministro da Saúde. Mas cobrar do governo a entrega do produto de uma empresa privada antes de pagar pela compra não fazia sentido. A Serum produz 60 milhões de doses por mês. E está com contratos fechados há meses com inúmeros países.
Durante os últimos meses, de luta pela vacina, o Itamaraty poderia ter fechado acordos com países produtores. O ministro Ernesto Araújo, se colocasse a cabeça no lugar e o pé no chão, poderia ter ajudado negociando acordos de cooperação. Um dos casos que se conta em Brasília mostra que Ernesto acha que é um evangelista. Um ministro de país desenvolvedor de vacinas o procurou meses atrás. E na conversa levantou a bola para ele cortar. Disse que o seu país estava investindo muito na produção de vacina, inclusive para Covid. Qual seria a resposta certa de Ernesto? Dizer que o Brasil tinha interesse em cooperação e que tem dois grandes institutos científicos que poderiam estabelecer parcerias. Não. Ernesto passou dez minutos pregando sobre o combate ao globalismo da Organização Mundial de Saúde. Até que seu interlocutor desistiu.
Assim, o Brasil foi perdendo lugar na fila. De um lado a cabeça desorganizada do ministro da Saúde, de outro a atitude de cruzado do ministro das Relações Exteriores. Acima de todos, o negacionismo do presidente. O resultado é a perda de reputação da nossa diplomacia e pior, atrasos na vacinação do povo brasileiro.Os tweets de Ernesto Araújo esta semana sobre o ataque ao capitólio rasgam qualquer manual básico de diplomacia. Na série “há que”, Ernesto abraçou a teoria de que havia infiltrados no ato e justificou os vândalos dizendo que “há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída pela classe política e desconfia do processo eleitoral”.
Há que se ter modos Ernesto, aprender o elementar sobre política externa. Esse tweet é uma agressão ao presidente que vai assumir o poder no maior país do mundo dentro de alguns dias. O chanceler brasileiro defendeu os agressores dizendo que não se pode chamar de fascistas “cidadãos de bem”. Um deles envergava uma camiseta com inscrições que se referiam aos seis milhões de judeus mortos na Segunda Guerra e uma sigla que significa que isso não é o suficiente. Outro tinha uma camiseta escrito “Campo de Auschwitz”. De fato, a palavra melhor é nazista.
A sequência de absurdos cometidos por Ernesto Araújo deixa horrorizados os representantes estrangeiros em Brasília e os inúmeros bons diplomatas brasileiros. Diplomacia abre portas, a do atual governo, fecha. Depois de hostilizar a China, o Brasil está brigando com os Estados Unidos. Em cada posto-chave da administração Biden haverá alguém disposto a cobrar do governo Bolsonaro respeito aos valores que ele tem ofendido diariamente.
Oliver Stuenkel: Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço
Com derrota da Donald Trump, Brasil fica ainda mais isolado em sua política radical e negacionista
Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro executa uma política externa precisa e disciplinada, cujo objetivo é manter sua base mobilizada. Trata-se de uma postura internacional feita sob medida para a cozinha de casa, e não para o mundo lá fora. Atitudes como não parabenizar o novo líder argentino, alegar que Joe Biden venceu as eleições de maneira fraudulenta, atacar a ONU, Xi Jinping, Emmanuel Macron e quem mais aparecer pela frente integram uma retórica cuidadosamente articulada para atiçar os ânimos de sua torcida. Ter se aproximado do Centrão e se afastado do discurso anticorrupção e antissistema fez com que o presidente dependesse ainda mais desses comentários bombásticos para garantir a fidelidade de seus seguidores mais radicais.
Mas a política antiglobalista tem um preço. Em dois anos de mandato, Bolsonaro deteriorou praticamente todas as relações do País. A reputação nos quatro mercados mais relevantes para a economia brasileira – o chinês, o norte-americano, o europeu e o latino-americano – é a pior em décadas. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, a retórica antiambientalista fortalece aqueles que se opõem a uma aproximação com o Brasil. Em círculos diplomáticos europeus, fala-se abertamente que o presidente brasileiro é o pior inimigo da ratificação do acordo comercial com o Mercosul. Fora os nacionalistas da Hungria, Polônia e Eslovênia, não há um único chefe de Estado da União Europeia que receberia uma visita oficial de Bolsonaro hoje em dia.
Com a onda ambientalista que vem dominando a política europeia, cresce o risco de boicotes mais amplos contra os produtos daqui. Isso ocorre não só pelas escolhas problemáticas do presidente no campo interno, mas também porque Jair Bolsonaro abriu mão de uma arma poderosa da qual os governos anteriores dispunham. Ao rifar as relações externas para manter sua popularidade interna, o presidente atou as mãos de um dos Ministérios de Relações Exteriores mais sofisticados do mundo. Até poucos anos atrás, o Itamaraty servia de escudo para a reputação do País no exterior mesmo em momentos em que o governo brasileiro estava obviamente errado. Essa proteção foi crucial em crises como os massacres do Carandiru e da Candelária, em 1992 e 1993, ou quando as taxas de desmatamento tiveram uma aceleração, nos anos 1990 e 2000. Enquanto um chanceler normal mobilizaria as missões brasileiras no exterior para reagir à crise de reputação, o atual chefe do Itamaraty amplia o isolamento ao defender teorias conspiratórias, e faz tempo virou chacota mundial.
Se antes a atuação independente do Itamaraty ajudava a reparar os danos de catástrofes nacionais, hoje o órgão encontra-se escanteado por um governo que ofusca até o que deveria capitalizar. Avanços com a reforma da Previdência de 2019 foi o grande exemplo disso. Em vez de ficar calado e deixar que uma medida celebrada pelos mercados ganhasse visibilidade na imprensa especializada, Bolsonaro lançou uma bomba que deixou o assunto em segundo plano: a tentativa de emplacar seu filho como embaixador nos EUA.
Com a vitória de Biden, o risco econômico da política bolsonarista tende a aumentar ainda mais. As nomeações do democrata sugerem que o tema ambiental será um pilar de seu mandato tanto no âmbito interno quanto no externo. A futura secretária do Interior, Deb Haaland, tem sido uma das críticas mais ferrenhas da política ambiental do presidente brasileiro. O desmatamento da Amazônia foi citado por Biden ainda em campanha. Na ocasião, Bolsonaro foi ao Twitter dizer que a soberania nacional não seria negociada. O atrito dá uma amostra do que vem pela frente na relação com os EUA. Para piorar a situação, é provável que o governo Biden coordene sua política ambiental com a União Europeia.
A derrota de Trump deixa o Brasil ainda mais isolado em sua política radical e negacionista. Antes ofuscadas pela atuação do colega americano, as patacoadas de Bolsonaro devem ganhar ainda mais atenção negativa dos observadores internacionais. Tivemos uma prévia disso logo em dezembro, quando ele virou notícia internacional por ser o último líder de um país democrático a parabenizar Joe Biden pela vitória.
Em 2021, cada aparição de Bolsonaro no noticiário internacional será um risco para a já combalida economia brasileira. O mesmo se estende ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e ao Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. No caso desses dois, sua mera permanência no cargo já contamina qualquer tentativa de apaziguar investidores europeus e americanos preocupados com o desmatamento.
Se em 2019 Hamilton Mourão e Tereza Cristina foram a Pequim tentando desfazer o mal-estar causado pela retórica anti-China, em 2021 já não existe campanha publicitária ou iniciativa de quadros mais moderados que possa consertar a imagem tóxica da ala radical do governo.
A substituição de Salles e Araújo reduziria o risco de boicotes, fugas de investidores estrangeiros e complicações na ratificação de acordos comerciais. O problema é que eles representam dois grupos-chave de sustentação do governo: ruralistas e antiglobalistas. Sobretudo no caso de Salles, a facilitação do desmatamento e o desmonte das estruturas de fiscalização estão no cerne do programa bolsonarista. Desistir disso complicaria as relações do governo com uma parte obtusa, porém importante, do setor ruralista.
Em meio a essa confusão, avanços diplomáticos como a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) já são improváveis, e os riscos de reputação do País inevitavelmente entrarão na conta de qualquer investidor. O País está aprendendo de um jeito doloroso que a imagem externa é uma abstração com consequências bastante reais, e que doem no bolso.
* COORDENADOR DA PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV-SP
Conteúdo Completo:
A vida de milhões de pessoas vai piorar em 2021
Os desafios da economia em 2021
Nunca estivemos tão perto e tão longe da reforma tributária
Política ambiental é entrave ao crescimento
Privatização mesmo só veremos nos governos estaduais
Reforma administrativa é a agenda que precisa caminhar
O governo Bolsonaro precisaria se reinventar, mas isso é muito improvável
O grande risco para o Brasil este ano é interno, e não externo
Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço
O que é bom para os EUA nem sempre é bom para o Brasil
Sergio Amaral: Cena internacional mudou, política externa terá de se ajustar
O Brasil precisa estar presente nas negociações que definirão as regras de convívio internacional
As relações entre os Estados Unidos e a China, de cooperação ou de conflito, serão, na visão de Henry Kissinger, o eixo central da nova ordem internacional. Barack Obama optou pela cooperação. Donald Trump, pela adoção de sanções unilaterais. Sua estratégia, no entanto, alcançou resultados modestos.
Após as sanções da guerra comercial, o déficit com a China permanece no mesmo patamar de antes, ou seja, cerca de US$ 350 bilhões, na média, por ano. As restrições à transferência de tecnologia abalaram a Huawei, mas também prejudicaram empresas e consumidores norte-americanos. A rejeição da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), que reunia 12 países sob a liderança dos Estados Unidos, mas sem a presença da China, mostrou-se um erro estratégico de Trump, ao ensejar a formação da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP em inglês) na Ásia, assinada em novembro passado, entre 15 países asiáticos, que representam um terço da população e do produto mundiais, sob a liderança de Beijing, sem a presença dos Estados Unidos. Por fim, a China saiu fortalecida da covid-19 e da crise econômica mundial, pela capacidade de conter a expansão do vírus e de recuperar mais rapidamente a sua economia.
Joe Biden propõe-se a reverter várias das políticas de seu antecessor. No plano interno, deverá promover a volta da política e a caminhada para o centro, em vez do populismo nacionalista e da radicalização. Na diplomacia, as mudanças serão substanciais. Em lugar das sanções unilaterais, a prioridade do presidente eleito estará na retomada das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, para a negociação de um modus vivendi com a China, na retomada do Acordo de Paris sobre o Clima, na renegociação das salvaguardas nucleares com o Irã e no fortalecimento do multilateralismo.
Os Estados Unidos de Biden e a Europa pós-crise coincidirão na agenda climática, inspirada por um green new deal que encontra adeptos fervorosos em ambos os lados do Atlântico. É preciso ter presente que ambientalismo, mais do que uma decisão de governo, é um compromisso da sociedade. É a utopia do século 21, que como uma mancha verde influencia os consumidores, espalha-se pela economia, pela política e pela cultura.
Não há razão para que Biden tome a iniciativa de hostilizar o Brasil. Mas fortes correntes políticas tanto em Washington quanto em Bruxelas farão pressão para a imposição de restrições comerciais se o Brasil não mostrar determinação em reduzir a taxa de desflorestamento na Amazônia. União Europeia e Estados Unidos, juntos, representam quase 50% das exportações brasileiras. Se a esse grupo adicionarmos a China, quase 70% das exportações poderão ser postas numa zona de risco, seja por motivações ambientais, seja pelas provocações contra Beijing.
O mundo mudou. É hora de mudar a política externa, em consonância com as opções da sociedade, com os interesses da economia, especialmente do agronegócio, e a necessidade de recuperar a imagem do Brasil entre os importadores e investidores.
A esse respeito valeria considerar quatro temas de uma nova agenda:
1) Revisão da política sobre o clima, de modo a considerar a Amazônia não como um passivo, mas como um valioso ativo e fator de uma liderança natural que o País já exerceu e pode voltar a exercer. A região precisa ser vista não como um problema recorrente ou hipotético objeto de cobiça externa, mas como um patrimônio a ser explorado de modo sustentável, mediante o engajamento da sociedade, particularmente do setor privado e da comunidade científica.
2) Preservação de espaços de autonomia ante a disputa hegemônica entre as duas grandes potencias. Em artigo recente para a revista Foreign Affairs, um grupo de influentes militares norte-americanos, entre os quais Jim Mattis, ex-secretário de Defesa, condenou a pressão de Trump sobre aliados para o seu alinhamento a interesses norte americanos, por serem contraproducentes. Destacados intelectuais, como Joe Nye, e diplomatas como o embaixador Tom Shannon reconheceram publicamente o direito soberano do Brasil de tomar decisões no seu interesse nacional.
3) Revalorização das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, o Mercosul e a Aliança para o Pacífico, de modo a fortalecer a presença externa do País.
4) Reafirmação do multilateralismo como instrumento tradicional da diplomacia e um caminho para sair do isolamento em que o Brasil se colocou, seja em foros internacionais, como a OMS, o BID e a Ompi, seja em suas relações bilaterais, por vezes na insólita companhia da Polônia e da Hungria.
No momento em que os principais atores mundiais estão engajados em redefinir as bases da economia, forjar uma nova configuração geopolítica e promover a revisão das instituições internacionais, o Brasil não se pode isolar nem deixar de estar presente às mesas de negociação em que serão definidas as novas regras do convívio internacional.
*Conselheiro de Felsberg e advogados, foi secretário executivo do ministério do Meio Ambiente e da Amazônia
Luiz Carlos Azedo: Mudar ou ser mudado
Nada será como antes depois de controlada a pandemia — no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado
A segunda onda da pandemia de covid-19, que registra mutação do novo coronavírus — há evidências de que já transborda da Inglaterra para outros países europeus e, provavelmente, chegou ou chegará por aqui — é a face mais visível de uma contradição com a qual teremos que lidar durante muitos anos: a globalização é um fenômeno objetivo e irreversível, mas carece de mecanismos de governança mundial eficazes para neutralizar seus efeitos mais perversos, que aprofundam as desigualdades no mundo.
A pandemia é uma lente de aumento sobre o problema, se levarmos em conta que as transformações na estrutura produtiva do planeta, cujo dinamismo é ditado pelas inovações tecnológicas e os novos conhecimentos, colocaram em xeque as políticas ultraliberais. Revelou que a saúde pública, por exemplo, continua sendo uma prioridade para a economia. Muitos imaginavam, com o advento do não-trabalho e a inutilidade de grandes exércitos industriais de reserva, que políticas universalistas de saúde deixariam de ser necessárias para a reprodução do capital em escala global, assim como a boa formação educacional pública e gratuita, pois supostamente já não se precisaria da mesma abundância de mão de obra saudável e escolarizada disponível para o desenvolvimento.
Quem diria, por exemplo, que o home office se generalizaria em decorrência de um problema de saúde pública e não apenas da existência da tecnologia necessária para a reestruturação da organização do trabalho. Foi mais ou menos o que ocorreu com a telefonia fixa, criada no final do século XIX, mas somente incorporada à vida doméstica após a Segunda Guerra Mundial, com a diferença de que o smartphone se popularizou num intervalo de tempo muito menor (o iPhone foi criado em 2007). O que aconteceu com a grande indústria mecanizada, na qual a maior parte dos operários foi substituída por robôs, está se dando, agora, nos grandes escritórios e lojas de departamento, por causa da pandemia, numa velocidade maior do que se imaginava, e de forma irreversível.
É nesse contexto que a eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, com a derrota do nacionalismo e do negacionismo de Donald Trump, dará um novo impulso aos debates que já estavam em curso nos grandes fóruns internacionais, sobre o problema da governança global e a necessidade de um desenvolvimento mais sustentável, cujo epicentro vinha sendo o Fórum Econômico Mundial, em Davos. Que ninguém se iluda, nada será como antes depois de controlada a pandemia — o que deve acontecer no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos, com a vacinação em massa —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado, com o 5G e a plena implantação da Internet das Coisas, com ênfase na economia limpa e no combate às desigualdades.
Modernização
Não se espantem com o aumento da frequência com que a sigla ESG (environmental, social and corporate governance) — não confundir com a Escola Superior de Guerra — entrará no glossário do nosso economês. Sustentabilidade, responsabilidade social e governança corporativa formam, agora, uma espécie de Santíssima Trindade para os principais fundos de investimentos e grandes corporações. Estima-se que 45 trilhões estão sendo aplicados em empreendimentos com essas características, ou seja, metade dos investimentos previstos em todo o mundo. Multinacionais como Nestlé, Walmart e Tesco já excluíram de sua lista de fornecedores, por exemplo, os produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O resultado prático já se faz sentir no agronegócio, que vende cada vez menos para a Europa.
No Brasil, os ciclos de modernização sempre foram impulsionados pelo Estado, concentraram renda e descartaram mão de obra dos ciclos anteriores (açúcar, ouro, café, borracha). O que os historiadores chamam de “revolução passiva” resultou na industrialização, na modernização da agricultura e na urbanização acelerada dos país, porém, aprofundou desigualdades regionais e sociais. O ciclo de substituição de importações se esgotou, mas as consequências perversas, que dispensam maiores detalhes, de tão escancaradas estão, perduram. O conceito de “revolução passiva” — mais do que “modernização autoritária” ou “via prussiana” —, valoriza os aspectos políticos desse processo, em boa parte ocorrido durante a ditadura Vargas (1930-1945) e o regime militar (1964-1965). Nesse sentido, devemos destacar os governos de Juscelino Kubitscheck (1956-1960), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010), nos quais houve crescimento econômico e redução da pobreza, num ambiente democrático, sem prejuízo das ressalvas à inflação, à focalização dos gastos sociais e à corrupção generalizada, respectivamente.
No Brasil, pesos pesados da economia, nacionais e estrangeiros, já se articulam em defesa da economia sustentável, da boa governança corporativa e da transparência nas relações público-privadas. Saem na frente diante de um novo ciclo da globalização, mas esbarram numa situação em que o governo Bolsonaro realiza uma marcha forçada na direção contrária. De certa forma, a disputa de narrativas que já se estabeleceu na sociedade — em torno de temas como nossa política externa, a Amazônia, a política de saúde pública, a violência urbana etc. — reflete essa contradição. De alguma maneira, o Brasil terá que se reposicionar diante do que está em curso no mundo. Ou o governo muda ou será mudado em 2022.