Itamaraty

Fernando Gabeira: Linha direta com Deus

Uma coisa é aproximar-se dos EUA. Outra coisa é clonar alguns elementos da política externa americana, como se fôssemos eles

Enfim, Bolsonaro anunciou o novo ministro das Relações Exteriores. Havia gente reclamando. As falas do governo eleito provocaram atritos para quase todo lado: países árabes, China, Cuba, Noruega e Holanda. A esperança é que um novo chanceler unifique o discurso e o cubra de um verniz diplomático para atenuar os choques.

Mas as ideias do novo chanceler, Ernesto Araújo, acabaram deslocando a inquietação para outro nível. Não as conhecemos no conjunto, apenas fragmentos de artigos teóricos e posts em sua rede social. Ele acha que Trump pode conduzir a salvação de um Ocidente apático, a partir da tradição cultural, principalmente a ânsia por Deus. Como ele, é cético em relação ao aquecimento global. Certamente, será combatido pela sua fé e sua descrença política em fatos em que a maioria dos cientistas acredita.

Isso não me surpreende tanto. Na verdade, a política, num século em que a religião regrediu, procura de todas as formas substituí-la no imaginário popular. Em muitas ocasiões, mencionei o caráter religioso do marxismo, com sua visão de paraíso e seu script determinista da história. Ela nos garante a vitória final, como os cristãos creem na subida aos céus, apesar da sucessão de derrotas cotidianas.

Além das notas sobre o marxismo, tenho mencionado a crítica de John Gray à nova direita inglesa, baseada também na denúncia dos elementos religiosos do Iluminismo, da expectativa de ocupar o mundo com o livre comércio e a democracia liberal.

Numa idade de fé minguante, tanto marxismo quanto liberalismo investem esperanças transcendentais no seu projeto de mudar o mundo. A julgar pelos fragmentos do texto do chanceler Ernesto Araújo, sua concepção é diretamente religiosa. As esperanças transcendentais não se se escondem nem se disfarçam como nas teorias modernas. Elas não substituem uma visão religiosa: são a própria visão religiosa.

Como todo idealismo, você pode discuti-lo por dentro, questionar sua lógica. O melhor, no entanto, é partir do mundo real, onde a política é uma humilde tentativa de acomodação mútua na busca de um modus vivendi. Tanto Bolsonaro quanto Hassan Rouhani, do Irã, têm de traduzir suas crenças em passos concretos e, neste momento, é que serão avaliados com mais rigor.

Tentei colocar a questão da política externa na campanha. Percebi que, em termos gerais, ela não interessava tanto ao público. Selecionei alguns temas: crise na Venezuela, relações com a China, Donald Trump.

Todos sabíamos que a vitória de Bolsonaro representaria uma aproximação maior com os EUA, o que, na minha opinião, é positivo. No entanto, uma coisa é aproximar-se dos EUA. Outra coisa é clonar alguns elementos da política externa americana, como se fôssemos eles. Daí minhas reservas à transferência da embaixada para Jerusalém, à tentativa de buscar um tom específico com a China e a um cuidado maior do que Trump com os acordos multilaterais.

Tudo isso vai ser discutido no seu tempo. Desde já, preocupa-me o embate entre o idealismo e a juventude do novo chanceler com os pragmáticos e calejados negociadores chineses. Kissinger os conhece bem e os retratou no seu livro sobre a China. Trabalham com a perspectiva de gerações, exercitam a paciência e a habilidade nos seus projetos de longo alcance.

Não creio que o melhor caminho seja discutir se Trump é a salvação do Ocidente, e sim analisar soluções práticas do cotidiano, como o rompimento com o Programa Mais Médicos, por exemplo. Bolsonaro expressou sua posição sobre os médicos cubanos durante a campanha. Como vencedor, tem legitimidade para colocar suas ideias em prática.

A única crítica possível, nesse caso, é sobre o timing do rompimento. O ideal teria sido preparar a retaguarda antes que o contrato fosse desfeito. Mas os cubanos sacaram mais rápido, para dramatizar a saída. Milhões de brasileiros ficarão, momentaneamente, desguarnecidos. São pobres, escapam ao radar da grande mídia, pouco influem nas redes sociais.

É difícil argumentar com princípios diante de um asmático em crise, uma forte intoxicação alimentar. Essa é a modulação da crítica ao marxismo, aos neoliberais e aos que atribuem a Deus o dinamismo da história. Todos são projetos políticos que esbarram na imperfeição humana, pouco sabem da tarefa modesta e cotidiana de sacrificar alguns bens para preservar outros.

Um ministro húngaro, após a queda do socialismo, dizia: antes eram uns fanáticos que diziam que o Estado resolve tudo; em seguida, vieram os que dizem que a salvação de tudo é o mercado. Nos Estados Unidos , e agora no Brasil, suprimem-se os intermediários: o assunto é direto com Deus.


Clóvis Rossi: O Brasil a caminho do rebaixamento

Simpatia do novo chanceler é pela terceira divisão

Desde a redemocratização e, principalmente, desde a estabilização da economia, o Brasil passou a ser convidado para a mesa dos grandes do mundo. Faz bem para a autoestima e pode ser útil diplomática, comercial e financeiramente.

Agora, se o novo chanceler, Ernesto Araújo, levar a cabo as ideias estapafúrdias que destila em seu blog e em ensaio para Cadernos de Política Externa, o Brasil ficará relegado à mesa dos marginais da política.

Um pouco de memória: durante a ditadura, não era de bom tom para as democracias ocidentais serem vistas abraçando o regime militar. Podiam, claro, fazer negócios, receber os ditadores, como fazem com tantos outros, mas havia sempre um certo pudor.

Com a democracia, a super-inflação fazia com que americanos e europeus não conseguissem entender como o Brasil funcionava. Por extensão, tinham dificuldades para abraçar esse país tão grande e tão disfuncional.

Estabilizada a economia, Fernando Henrique Cardoso passou a ser convidado para as reuniões da chamada Terceira Via, rebatizada para Governança Progressista.

Congregava os então líderes dos principais países ocidentais: Tony Blair, Bill Clinton, o alemão Gerhard Schroeder, o francês Lionel Jospin, o italiano Massimo D’Alema —a nata enfim do mundo rico.

Os hidrófobos do bolsonarismo certamente dirão que se tratava de um bando de perigosos comunistas, mas o superministro de Economia, Paulo Guedes, liberal de carteirinha, teria orgasmos ao ler algumas frases do manifesto de lançamento do grupo: “O Estado não deve crescer, mas reduzir-se”; “menos regulamentação e mais flexibilidade”.

Luiz Inácio Lula da Silva também foi convidado para a mesa do grupo e, depois, teve papel de destaque nas cúpulas do G20, o clubão das maiores economias. Nesse fórum, no entanto, a participação do Brasil não era escolha de qualquer governante de turno, mas imposição dos fatos: o Brasil é uma grande economia e tem, inexoravelmente, lugar à mesa.

Com Bolsonaro, continuará, pois, a fazer parte do G20, se o grupo resistir à aversão de Donald Trump pelas instâncias multilaterais —aversão de resto compartilhada pelo chanceler designado pelo presidente eleito.

G20 à parte, se Ernesto Araújo levar à prática o seu ideário de cruzado disposto a salvar o Ocidente, o Brasil de Bolsonaro acabará sentando-se à mesa da terceira ou quarta divisão.

Acontece que Araújo manifestou admiração por Steve Bannon, o ideólogo da chamada “alt-right” (piedosa designação para extrema direita). Tão extrema que nem Trump o suportou na Casa Branca: demitiu-o depois de receber críticas do antigo aliado.

Agora, Bannon bandeou-se para a Europa, na tentativa de criar O Movimento, um grupo da direita nacional-populista. Até agora, só tem apoio de partidos absolutamente inexpressivos. O único líder saliente na lista do Movimento é o italiano Matteo Salvini (da Liga, ex-Liga Norte, xenófoba). Mesmo assim, Salvini só chegou ao governo porque coligou-se com outro grupo populista, à esquerda, o 5 Estrelas, refratário ao clube que Bannon tenta montar.

O Brasil pode estar numa draga de fazer gosto, mas, ainda assim, merece companhia mais asseada do que a desse bando de alucinados.


Celso Lafer: A política externa e seus desafios

Cabe ao Brasil se orientar na diplomacia pelos princípios consagrados na Carta

Discuti neste espaço em 19/2 a relevância da política externa como política pública. Sublinhei que ela tem como nota identificadora avaliar a abrangência das necessidades internas do País e ponderar quais as possibilidades externas de torná-las efetivas. Pontuei que a conversão de necessidades em possibilidades requer um apropriado juízo diplomático que leve em conta os ativos e as especificidades do País e saiba orientar-se num mundo com as características do atual, dentro do qual se dá a inserção internacional do Brasil. Vale a pena retomar a discussão nesta antevéspera da posse do presidente Bolsonaro.

Destaco inicialmente que o novo governo partirá de um meritório reposicionamento da política externa empreendido no governo Temer pelos chanceleres José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, que se dedicaram a conduzi-la como política de Estado. Deixaram de lado, num movimento que o resultado das eleições endossou, uma preponderante política de governo, inspirada pela visão circunscrita de um partido e seus interesses.

Aponto, por exemplo, o resgate da válida vocação original do Mercosul como expressão de regionalismo aberto, empenhado no livre-comércio, devidamente escoimado das distorções provenientes das preferências político-ideológicas.

A tarefa de damage control proveniente da erosão do soft power do País deverá ser uma faceta da condução da política externa. Trata-se de um dado das percepções, repercutidas na mídia internacional, que resultam de manifestações do presidente na campanha eleitoral em matéria de direitos humanos e convivência democrática. Para a erosão acima mencionada tem também contribuído a ideológica irradiação externa em circuitos de esquerda de uma autocentrada “narrativa” petista.

A agenda diplomática do próximo governo lidará, respaldada pela qualificada competência dos quadros do Itamaraty, com alguns significativos campos de atuação da política externa de um país.

Passo a comentá-los na sua abrangência, lembrando, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo, e não apenas estamos no mundo.

O primeiro campo é o estratégico. Diz respeito aos riscos de guerra que permeiam a vida internacional e o que um país pode significar para outros como aliado, protetor ou inimigo. No mundo atual, caracterizado por tensões difusas que exacerbam os conflitos e instigam a geografia das paixões, magnificando a insegurança internacional, esse é um campo relevante. Tem peso maior ou menor tendo em vista a lógica própria das regiões que compõem, com sua especificidade, a arquitetura do sistema internacional. É um tema forte da agenda do Oriente Médio, da Ásia e de países como EUA, China, Índia ou Rússia. É menos premente para o Brasil, em paz com seus vizinhos desde o fim do século 19, empenhado em fazer de suas divisas fronteiras de cooperação, e que sempre esteve mais distante dos focos de tensão da vida internacional. A menor premência não exclui, no entanto, a relevância.

O campo dos valores diz respeito às afinidades e dissonâncias que resultam de distintas formas de conceber a vida em sociedade. As dissonâncias, hoje em dia, num sistema internacional heterogêneo e fragmentário são consideráveis. Estão comprometendo a universalidade da agenda normativa, propiciando a intensidade das aspirações de identidade e reconhecimento, que obedece ao ímpeto centrífugo de sublevação dos particularismos, e revigorando o zelotismo dos fundamentalismos religiosos e políticos. Essa é uma das causas do drama de escala planetária dos refugiados que também nos afeta por causa dos desmandos autoritários da Venezuela de Maduro.

No contexto dessa Torre de Babel, cabe ao Brasil, na especificidade das conjunturas, orientar-se nas suas posições diplomáticas pelos princípios que regem as relações internacionais do País, consagradas na Constituição (artigo 4.º).

O campo das relações econômicas internacionais é prioritário para o Brasil. Explicita a importância de outras economias num mundo interdependente e globalizado, conferindo significado aos mercados, para importações e exportações, obtenção de financiamentos, atração de investimentos e de inovações.

No mundo contemporâneo isto tem como pano de fundo as novas tecnologias, que vêm levando à reorganização dos modos de interagir e produzir, de que é exemplo o papel das cadeias globais de valor da produção e da comercialização. Tem também como pano de fundo uma multipolaridade econômica não regida por um abrangente multilateralismo comercial de que são amostras o unilateralismo das guerras comerciais em andamento e as ameaças que pairam sobre a OMC.

É nesse contexto que o próximo governo deverá buscar convergências na diversidade na lida com as parcerias econômicas do País, incluídas as de nossa região, com acordos comerciais, e com os temas da liberalização comercial. Estes passam pelos desafios do acesso a mercados, dificultados por barreiras não tarifárias, por obstáculos em matéria de convergências regulatórias e por protecionismos, em especial de produtos agrícolas.

Finalizo com a agenda do meio ambiente, campo inter-relacionado com o dos valores e o das exigências de uma economia internacionalmente competitiva. Lembro que o acesso a mercados de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental. Meio ambiente sob a égide do conceito de desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92 insere os custos da sustentabilidade do meio ambiente nos processos decisórios públicos e privados. Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta a todos – as gerações presentes e futuras. Basta pensar no impacto das mudanças climáticas. Daí a relevância no plano interno da transição para uma economia de baixo carbono e de energias renováveis e limpas na matriz energética e de dar sequência aos compromissos internacionais de redução de emissões do Acordo de Paris.

✽ Celso Lafer é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Míriam Leitão: Risco concreto na política comercial

Diplomacia comercial exige visão estratégica e pragmatismo. No clima, o risco é não ouvir a ciência. Nos dois casos há perdas econômicas

Não adiantará ter mantido separados os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente se a pessoa indicada representar uma visão idêntica à do ruralismo. Há um temor entre climatologistas de que se repita no MMA o que houve no Itamaraty. A mistura pode ser explosiva. Se o Brasil sair do Acordo de Paris, reduzir ainda mais a ação dos órgãos de controle e tiver uma política que estimule o desmatamento, o agronegócio brasileiro enfrentará barreiras comerciais aos seus produtos.

O temor entre cientistas, no governo ou fora dele, é que, depois de um chanceler que nega a mudança climática, possa ser nomeado para o Ministério do Meio Ambiente alguém com essa mesma visão. O nome que mais inspira preocupação é o do pesquisador da Embrapa Evaristo de Miranda. Ele é conhecido na área por apresentar estudos como se fossem científicos, mas com metodologia e dados questionáveis. Certa vez, divulgou um estudo sobre o impacto das APPs na agropecuária brasileira. Foi rebatido por um trabalho coordenado pelo climatologista Antonio Nobre, feito pelo Instituto de Pesquisas Espaciais e Instituto de Pesquisas da Amazônia, em que se comprovou que Evaristo de Miranda havia exagerado em 309% esse impacto das APPs. Ele não é controverso pelo que acredita, mas pela maneira como usa suas bases de dados para confirmar sua teoria.

O que parece, ao grupo que prepara o governo Bolsonaro, a vitória da ideologia de direita, consagrada nas eleições, pode ser, na verdade, o risco de problemas comerciais no futuro. Uma parte do agronegócio brasileiro sabe das ameaças, tanto que o setor se dividiu diante da proposta de acabar com o Ministério do Meio Ambiente e entregar o assunto para o Ministério da Agricultura. Mas os nomes que circulam, e não apenas o de Evaristo, mostram que se quer fazer a mesma coisa, de outra forma. O Ministério existiria mas seria submetido às teses do ruralismo mais atrasado.

No caso do Itamaraty, os custos do caminho já escolhido por Bolsonaro podem ser imensos. A ideologia já fez muito mal à política externa em tempo recente. O ministro Celso Amorim, no governo Lula, a despeito de sua carreira brilhante, submeteu os diplomatas ao absurdo da leitura dirigida. O então vice-chanceler Samuel Pinheiro Guimarães escalava os livros que tinham que ser lidos por todos os diplomatas. Essa doutrinação extemporânea acabou em 2007 quando o então ex-embaixador nos Estados Unidos Roberto Abdenur deu uma entrevista contra o que definiu como “uma coisa vexatória”. O ex-ministro Celso Lafer chamou de “lavagem cerebral”. Esse é um dos problemas que ocorrem quando se quer impor uma ideologia — naquele caso, a de esquerda — ao corpo diplomático. O pior prejuízo foi a decisão de desperdiçar em postos burocráticos alguns dos mais brilhantes diplomatas brasileiros que, supostamente, não se enquadravam na “ideologia”. O custo financeiro, pago pelo país, foram os calotes nos empréstimos concedidos a países sem condição de pagar.

O embaixador Ernesto Araújo tem posições das quais não se pode dizer que representem uma corrente no MRE. Ele é idiossincrático. Araújo é definido por um embaixador como “um Steve Bannon sem o maquiavelismo do ex-assessor de Trump, mas com um ingrediente místico”. O novo ministro tem o direito de pensar o que quiser, mas o problema é que quando vira política de Estado isso muda de figura. Suas posições contra a integração nas cadeias globais de produção vão no sentido oposto ao que o futuro ministro da Fazenda anunciou que fará. Paulo Guedes quer aumentar a abertura comercial para integrar o Brasil, ainda que tarde, à economia global.

Seguir os Estados Unidos cegamente tem vários riscos. Ontem, o presidente americano recuou em parte da guerra comercial com a China. Ou seja, se o Brasil embarcar na visão antiChina — que compra 23% de tudo o que exportamos — tem o risco de ficar falando sozinho, porque Trump muda de ideia frequentemente sobre tudo. No comércio internacional, Brasil e Estados Unidos são às vezes competidores. Na soja, por exemplo. Quando Trump aumenta o subsídio aos seus produtores, prejudica o nosso produto. Diplomacia comercial exige visão estratégica e pragmatismo. Na questão climática, a ideologia produzirá perdas econômicas concretas. E é esse o cenário que está ficando mais provável na formação do governo.


Eliane Cantanhêde: Pensamento de Bolsonaro

Chanceler Ernesto Araújo dá revestimento teórico às falas do futuro presidente

O presidente eleito Jair Bolsonaro ficou fascinado com o diplomata Ernesto Araújo, não apenas porque ele endeusa Donald Trump e demoniza o PT, mas porque consegue uma façanha espetacular: conferir um arcabouço teórico para as ideias atabalhoadas e descoordenadas que Bolsonaro lança no ar nas mais variadas áreas.

“Brilhante intelectual”, na definição do futuro presidente, Ernesto Araújo usou os seus dons teóricos não apenas para instigar ou corroborar as posições leigas de Bolsonaro na política externa, mas também sobre família, religião, aborto, PT, Trump, China. Só não se meteu, por enquanto, na área militar e diretamente na economia.

Enquanto chanceler, ele estará mais para assessor do presidente, desses que escrevem seus discursos, desenvolvendo de forma articulada as ideias do chefe. Bolsonaro adora Trump? Araújo lhe fornece motivos teóricos. Implica com a China, maior parceiro comercial do Brasil? Lá está ele a postos para dar alguma sustentação à implicância.

O cruzamento entre o que Bolsonaro dizia e o que Ernesto Araújo escrevia na campanha presidencial mostra de forma clara, óbvia, que os dois têm o mesmo pensamento sobre a vida e o mundo, apesar de formas bem diferentes. Um sai falando o que lhe vem na cabeça. O outro em textos grandiloquentes.

Nos Cadernos de Política Exterior, Ernesto Araújo escreve que “somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e principalmente a nação americana”. E conclui: “Trump pode ainda salvar o Ocidente”. Seu xará Ernesto Geisel ficaria horrorizado, mas a profunda admiração a Trump é uma das muitas coisas que unem o futuro presidente e seu chanceler.

No seu blog “Metapolítica 17”, Ernesto Araújo alerta contra a “China maoísta que vai dominar o mundo” e, assim como o futuro presidente já falou em romper com o Acordo de Paris, ele ataca: “O climatismo é basicamente uma tática globalista de instilar o medo para obter mais poder”.

Também cria o conceito do “antinatalismo”: “A esquerda quer fazer tudo para que as pessoas não nasçam. Aborto, criminalização do desejo do homem pela mulher, contestação do patriarcado e da diferenciação entre os sexos, desmerecimento da reprodução, sexualização das crianças e dessexualização dos adultos...”. Logo, Ernesto Araújo, 51 anos, que jamais chefiou uma embaixada, além de ser nomeado para “botar pra quebrar” no Itamaraty – fechar postos e embaixadas, fazer uma profunda dança de cadeiras e alijar todos os que, sendo ou não, são acusados de petistas – é o pensamento vivo de Jair Bolsonaro.

Só falta saber o que vai ser da política externa. Endeusamento de Trump? Alinhamento automático a Washington, que nem o regime militar fez? Confronto com a China? Esvaziamento do Mercosul? Saída do Acordo de Paris? E a mudança da embaixada em Israel, de Tel Aviv para Jerusalém?

Afora não ser trivial diplomatas usarem blogs contra e a favor de candidaturas partidárias, os textos de Araújo, como diz um brilhante embaixador, que não tem nada de petista, são “de filosofia, religião, comportamento, mas, quando virar chanceler de fato, é pão-pão, queijo-queijo”.

É ótimo o Brasil aprofundar suas relações com os Estados Unidos, parceiro tradicional, o maior mercado e o maior investidor do mundo, mas daí à volta a um alinhamento automático e a caneladas na China, na Europa, no Mercosul e no Oriente Médio já são outros quinhentos.

A conta vem rápida e pesada. O Itamaraty está perplexo e os militares estão adorando, mas política externa é pragmatismo e defesa dos interesses políticos, econômicos, sociais e estratégicos do Brasil, que são bem diferentes dos americanos. Há uma nova onda ideológica e Ernesto Araújo é candidato a Celso Amorim às avessas.


Eliane Cantanhêde: Vem aí o novo Itamaraty, ‘trumpista’ e ‘bolsonarista’

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, deu muitas voltas até chegar ao ponto zero e anunciar quem ele queria desde o início para Relações Exteriores: o diplomata “trumpista” e “bolsonarista” Ernesto Araújo, que é “júnior” (nunca exerceu a função de embaixador), mas encantou Bolsonaro como intelectual chegado aos clássicos, contrário ao globalismo, pró-Ocidente e fascinado por Donald Trump.

A principal recomendação do futuro presidente ao seu chanceler é promover a “regeneração” do Itamaraty. Leia-se: eliminar os vestígios, programas e diplomatas da era PT, particularmente ligados ao ministro dos oito anos do ex-presidente Lula, Celso Amorim. “Fazer uma limpeza, mudar tudo”, resume-se na equipe de Bolsonaro.

Na prática, porém, Araújo terá uma tarefa bem mais imediata: apagar incêndios criados por manifestações tão leigas quanto perigosas do futuro chefe sobre China, Egito, Palestina e mundo árabe, assim como assustou o Mercosul e a União Europeia. Sair da ONU? Do Acordo de Paris? Mudar a embaixada em Israel para Jerusalém?

No Itamaraty, o clima é de apreensão. Na área militar, de comemoração. Num, o temor de uma caça às bruxas e um novo viés ideológico às avessas. Na outra, a certeza de que o PT será varrido e a política externa voltará à sua tradição de pragmatismo e respeito aos interesses nacionais.

Bolsonaro demorou a anunciar Araújo porque testou uma extensa lista de candidatos ao Itamaraty e, além de serem bombardeados, não fariam dobradinha dos sonhos: presidente e chanceler anti-PT e pró-Trump com a mesma intensidade. Isso diz tudo da política externa na nova era.


Bernardo Mello Franco: Um bolsonarista na casa de Rio Branco

O presidente eleito terá um chanceler à sua imagem e semelhança. Ernesto Araújo emula o discurso do chefe contra o ‘globalismo’ e é admirador de Donald Trump

O novo presidente terá um chanceler à sua imagem e semelhança. O futuro ministro Ernesto Araújo não é apenas um bolsonarista de carteirinha. Ele também emula o chefe no discurso contra o “globalismo”, a “ideologia de gênero” e o “marxismo cultural”.

O ideário do novo chefe do Itamaraty pode ser consultado no blog “Metapolítica 17”. A página é dedicada a uma militância fervorosa a favor do capitão e contra o PT. Ele se refere à sigla como “Partido Terrorista”. Em tom imodesto, diz que pretende “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”.

“Se o PT ganhar, vai extinguir todas as luzes da decência e da liberdade”, escreveu, a uma semana da eleição. Ele acusou os petistas de tramarem um “regime de partido único, ditatorial, (...) um governo que controlará sua vida a partir da educação pré-escolar, que administrará sua família, que controlará o que você pensa e diz”.

O futuro chanceler também ecoa Bolsonaro na pregação contra a China, maior parceira comercial do Brasil. Ele sugere que é preciso resistir à “China maoísta que dominará o mundo”. O discurso parece levemente fora de época. A potência asiática começou a abandonar o maoísmo em 1978, com as reformas de Deng Xiaoping.

Em outro post, o embaixador que nunca chefiou uma embaixada repete clichês da direita hidrófoba. Diz que o socialismo “perverte o milagre da concepção com a ideologia do aborto, perverte o sexo com a ideologia de gênero e o feminismo” e “perverte a fé cristã”.

O anti-intelectualismo também desponta nos textos de Araújo. Para ele, “o povo é muito mais são e sábio do que a classe instruída”. As crianças brasileiras receberiam uma “educação cínica e anti-patriótica onde [sic] se ensina uma história sem heróis e onde professores sub-marxistas tentam criar pequenos militantes”.

Num artigo mais extenso, publicado em 2017 na revista “Cadernos de Política Exterior”, o diplomata ostenta admiração por Donald Trump. Compara o presidente americano a Reagan e Churchill e sustenta, sem ironia, que ele pode “salvar o Ocidente”. Ao que tudo indica, o Itamaraty está prestes a entrar num novo período de alinhamento automático à Casa Branca.


El País: Ernesto Araújo, o chanceler contra o “marxismo cultural” que mira Trump

Presidente eleito ignora indicações de diplomatas mais moderados e nomeia ‘trumpista’ convicto para o Ministério de Relações Exteriores

Por Ricardo Della Coletta, do El País

Assim que o diplomata Ernesto Araújo foi anunciado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro como futuro ministro das Relações Exteriores, começou a circular nas redes sociais o texto pelo qual ele ficou mais conhecido entre os servidores do Itamaraty. Intitulado Trump e o Ocidente, Araújo rende ao longo de 36 páginas loas ao mandatário dos Estados Unidos, a quem vê como uma espécie de cavaleiro cruzado pelo resgate da identidade do Ocidente no mundo moderno. Para o novo chanceler, Donald Trump não é o chefe da superpotência mundial que toma decisões desconexas, arbitrárias e caóticas. Longe disso: Araújo o vê mais como alguém que atua "na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais".

Publicado no segundo semestre de 2017, o artigo, segundo um diplomata ouvido pelo portal UOL, gerou forte impacto nas filas do Itamaraty, um ministério marcado pela rígida hierarquia da carreira diplomática e por uma tradição de independência e de não alinhamento automático aos grandes blocos internacionais. Araújo se posicionou ali claramente como um trumpista, partidário da visão altamente nacionalista —e antiglobalista— que o presidente dos Estados Unidos encampa.

Com esse histórico, parece apenas natural que Araújo tenha apoiado abertamente Jair Bolsonaro, o político que desfruta do apelido de Trump tropical,apesar das diferenças que o separam. Em plena campanha presidencial, o novo chanceler começou a publicar um blog com fortes críticas ao PT (para ele o Partido Terrorista) e elogios a Bolsonaro. É nesse blog, por exemplo, em que ele comparou uma das manifestações pró-Bolsonaro em Brasília a campanha pelas Diretas Já e aos protestos de rua que levaram ao impeachment de ex-presidenta Dilma Rousseff. "O movimento popular por Bolsonaro não se nutre de ódio, mas de amor e de esperança...", escreveu.

O agora chefe do departamento de Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos do Ministério das Relações Exteriores, Ernesto Henrique Fraga Araújo passou na frente de outros diplomatas que estavam cotados para comandar a política externa brasileira no Governo Bolsonaro. Ao longo dos últimos dias circularam nomes de funcionários de carreira que eram considerados mais moderados, embora distantes do pensamento de alianças sul-sul que foram a digital dos Governos do PT no Itamaraty (e que Bolsonaro promete extirpar). O próprio vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, havia dito que um dos cotados era o atual secretário-executivo do ministério, Marcos Galvão.

Nesse sentido, a escolha de Araújo, de 51 anos, um pregador contra o "marxismo cultural", não deixa de ser uma surpresa. Principalmente por mostrar que, ao invés de uma escolha menos polêmica, que evitaria ainda mais rusgas com países cruciais como a China, principal parceiro comercial do Brasil, Bolsonaro optou por não abrir mão de alinhar o Brasil ao movimento global de ascensão da direita populista —em muitos lugares pela extrema direita— liderado por Trump. Um alinhamento que começou ainda antes de o capitão reformado do Exército ter sido eleito, quando seu filho, Eduardo Bolsonaro, visitou nos Estados Unidos o ex-estrategista do Republicano, Steve Bannon.

‘Interesse nacional’

O presidente eleito apresentou o novo chanceler em uma coletiva de imprensa nesta quarta-feira em Brasília. Em um rápido pronunciamento, Araújo defendeu que o País mantenha "relações excelentes" com todos os seus parceiros comerciais. "Antes de tudo [é preciso] garantir que este momento extraordinário que o Brasil está vivendo, com a eleição do presidente Bolsonaro, se traduza dentro do Itamaraty numa política efetiva, numa política em função do interesse nacional, de um Brasil atuante, feliz e próspero".

No texto que publicou no ano passado, Araújo faz uma forte defesa do nacionalismo e apresenta Trump como um representante do que define como "anticosmopolitismo radical". "Cada Estado tem o dever, e não só o direito, de trabalhar pelo seu povo, o Estado só se legitima se for nacional, enraizado numa comunidade, e cada pessoa se desenvolve como membro", diz, ao comentar um dos discursos do presidente norte-americano.

De forma bastante erudita, Araújo traça um histórico da civilização ocidental, que ele afirma reunir "laços de cultura, fé e tradição que nos fazem quem somos". Valores que estariam ameaçados pelo globalismo e por um abandono da própria identidade ocidental, que incluiria aí, entre outras coisas, a rejeição ao conceito do nacionalismo. "Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação —inclusive e talvez principalmente a nação americana", conclui Araújo em seu texto.


Luiz Carlos Azedo: Deus é brasileiro

“Para Fraga Araújo, Itamaraty evitou a todo custo participar de blocos e preservou a capacidade de desenvolver uma política externa autônoma, mas precisa ir além disso”

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, anunciou que o diplomata Ernesto Henrique Fraga Araújo será o novo ministro das Relações Exteriores. Atual diretor do Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos, nunca comandou uma embaixada; porém, como ministro de primeira classe e chefe de departamento, tem status de embaixador. Ao confirmar o nome em entrevista, depois de anunciá-lo pelo Twitter, Bolsonaro classificou o novo chanceler, que tem 29 anos de carreira, como “uma pessoa bastante experiente” e “intelectual brilhante”. Fraga tem 51 anos e disputou a posição com outros diplomatas de grande prestígio.

Fraga Araújo fez campanha eleitoral de rua para o presidente eleito. Sem falsa modéstia, disse que à frente do Itamaraty fará uma política “efetiva em função do interesse nacional”, tornando o Brasil um país “atuante”, “próspero” e “feliz”. Negou alinhamento automático com o governo dos Estados Unidos, tangenciando a tese que defende sobre a política externa brasileira, explicitada no artigo “Trump e o Ocidente”, publicado nos Cadernos de Política Exterior nº 6, do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, que fez a cabeça de Bolsonaro. Segundo Fraga Araújo, Trump propõe uma visão do Ocidente não baseada no capitalismo e na democracia liberal, mas na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais.

“Avante, ó filhos de helenos,/ libertai a pátria,/ libertai vossos filhos,/ vossas mulheres,/ os templos de vossos deuses,/ os túmulos dos ancestrais,/ agora mais que nunca,/ lutai!”. Esse trecho do poema Os Persas, de Ésquilo, que exalta a batalha naval de Salamina, na qual os gregos derrotaram os invasores persas, em 480 a.C, assinala o marco fundador da primeira aliança do Ocidente. “A visão de Trump tem lastro em uma longa tradição intelectual e sentimental, que vai de Ésquilo a Oswald Spengler, e mostra o nacionalismo como indissociável da essência do Ocidente. Em seu centro, está não uma doutrina econômica e política, mas o anseio por Deus, o Deus que age na história. Não se trata tampouco de uma proposta de expansionismo ocidental, mas de um pan-nacionalismo. O Brasil necessita refletir e definir se faz parte desse Ocidente”, propõe o futuro chanceler.

Araújo critica o Iluminismo e o globalismo. Segundo ele, a Europa e os Estados Unidos viviam já fora da história, depois da história, num estado de espírito (ou falta de espírito) onde o passado é um território estranho. Toda a tradição liberal e revolucionária constituiu-se numa rejeição do passado, aos heróis, ao culto religioso e à família, destaca. Ao contrário, Trump, ao falar de alma, desafia frontalmente o homem pós-moderno, “que não tem alma, que tem apenas processos químicos ocorrendo aleatoriamente entre seus neurônios”.

Salvação
O Ocidente teria sido salvo pelos Estados Unidos: “Nestas últimas sete décadas não foram os europeus, mas os norte-americanos que preservaram o legado ocidental em seus principais pilares, não só militar e economicamente, não só institucional e politicamente, mas também na vida do espírito: a fé cristã morreu na Europa para todos os efeitos, mas viceja nos EUA (não penso apenas nos protestantes, penso também na Igreja Católica, vigorosa nos EUA, enfraquecida na Europa). O sentido de nação foi banido do mainstream cultural e social europeu, mas permanece central na vida americana. A própria cultura clássica é celebrada e vivenciada somente nos EUA como parte da própria herança, enquanto na Europa ela hoje se esgota na dimensão acadêmica, por um lado, e turística, por outro”, afirma.

Para Fraga Araújo, o Itamaraty evitou a todo custo participar de blocos e preservou a capacidade de desenvolver uma política externa autônoma, mas precisa ir além disso. “Queremos relacionar-nos com todos os blocos, mas sem fazer exclusivamente parte de nenhum deles. Vemos, então, com grande desconfiança a ideia de integrarmos um Ocidente que necessariamente exclui outras civilizações e que nos deixaria presos a um determinado bloco. Mas esse não alinhamento absoluto não deveria impedir o Brasil de alinhar-se consigo mesmo e com a própria essência de sua nacionalidade, se chegarmos à conclusão de que essa essência é ocidental.”

Fraga Araújo propõe o que chama de uma “metapolítica” externa, para que o Brasil possa se situar e atuar naquele “plano cultural espiritual em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia diplomático-militar, estão-se definindo os destinos do mundo”. Propõe, além de um ponto de vista geopolítico, uma “teopolítica”: “Não será o desenvolvimento nem a tecnologia nem a justiça social nem a cooperação nem a sustentabilidade nem os direitos humanos que nos salvarão. Somente um Deus poderá salvar-nos, dar-nos sentido — se Ele o quiser, se nós O quisermos”.

Com a narrativa sofisticada e “presbítera” de Fraga, Bolsonaro alinha o Itamaraty ao seu governo e exuma a política externa defendida por Juraci Magalhães (UDN), um dos líderes militares da Revolução de 1930 no Nordeste, que foi ex-interventor e, depois, governador eleito da Bahia. No governo do general Castelo Branco, o primeiro do regime militar, foi nomeado embaixador brasileiro nos Estados Unidos, quando pronunciou sua célebre frase: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Em seguida, ocupou sucessivamente as pastas da Justiça e das Relações Exteriores.

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Bernardo Mello Franco: Novo chanceler terá trabalho dobrado

O futuro ministro das Relações Exteriores terá que segurar a língua de Bolsonaro e dos colegas. O governo ainda não começou, mas já criou atritos com Argentina, Egito, China e Noruega

O próximo chanceler ainda não foi escolhido, mas terá trabalho dobrado. Quem assumir o Itamaraty enfrentará uma forte desconfiança externa sobre os rumos do país. Além disso, precisará conter a língua do presidente e de seus principais assessores.

Na campanha, Jair Bolsonaro já demonstrou potencial para produzir incidentes diplomáticos. O então candidato fez uma série de provocações à China, maior parceira comercial do Brasil. Depois do segundo turno, foi avisado de que as bravatas podem custar caro à economia do país.

O presidente eleito também criou mal-estar com os países árabes ao imitar Donald Trump e anunciar a mudança da embaixada em Israel para Jerusalém. O Egito foi o primeiro a reagir: cancelou uma visita oficial do ministro Aloysio Nunes. Os empresários brasileiros tiveram que antecipar a volta para casa sem fechar negócios.

O futuro ministro Paulo Guedes virou outra fonte de preocupação para os diplomatas brasileiros. Na noite da eleição de Bolsonaro, ele respondeu de forma grosseira quando uma jornalista argentina quis saber seus planos para o Mercosul. “O Mercosul não é prioridade. Não, não é prioridade. Tá certo? É isso que você queria ouvir?”, disse, assustando a Casa Rosada.

Ontem o futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, abriu mais uma frente de desgaste internacional. Na linha do chefe, atacou ONGs da área ambiental e disparou contra a Noruega. “Os noruegueses têm que aprender com os brasileiros, e não a gente com eles”, esnobou. O país escandinavo é —ou era — o maior doador do Fundo Amazônia. Já repassou mais de US$ 1 bilhão para a preservação das nossas florestas.

Os deputados federais eleitos em outubro gastaram R$ 4,6 milhões com o impulsionamento de propaganda na internet. A quantia foi proporcionalmente baixa: 1,3% do total de despesas das campanhas. As cifras estão em relatório que será divulgado hoje pelo centro de pesquisas InternetLab. Só incluem, é claro, os gastos declarados ao TSE.


Aloysio Nunes Ferreira: O Itamaraty e a política comercial brasileira

Nossa máquina negociadora é uma das mais eficientes do mundo, mas depende de uma condução política firme

A ideia de retirar do Itamaraty a condução das negociações comerciais internacionais e a defesa do Brasil em disputas nessa área aparece sazonalmente. Ela insinua ares modernizantes, mas, na verdade, abre margem ao domínio por interesses setoriais do ciclo da política comercial, desde sua formulação até a liderança em negociações multilaterais, plurilaterais ou bilaterais.

Os argumentos são, normalmente, um festival de distorções: em outros países há área separada das chancelarias para negociar, então devemos imitá-los, afinal tudo que vem de fora tem de ser melhor; diplomatas têm visão política, então é preciso assegurar prevalência de visão técnica, deslocando a condução das negociações para o colo de luminares do comércio internacional; a política comercial tem sido passiva, de modo que a solução seria mudara máquina para assegurar novo ímpeto negociador.

Por distintas razões, em vários países a condução das negociações comerciais não se situa nas chancelarias, embora isso não seja uma unanimidade. Mas essa é uma falsa questão. A imitação de modelos forâneos não leva em conta as características de nossa história institucional e os resultados que foram obtidos ao concentrar no Itamaraty capacidade e conhecimento, que não podem ser desaproveitados sob pena de graves prejuízos ao país.

Nas disputas na OMC, foram várias vitórias. Basta lembrar os casos Bombardier, em que o Brasil foi autorizado a retaliar o Canadá em mais de US$ 247 milhões; os subsídios europeus ao açúcar e tarifas para frango, cujas vitórias resultaram em mudanças em regras a favor de produtores brasileiros; e o contencioso do algodão contra os EUA, em que obtivemos o direito de retaliar e, ao optar pela negociação, garantimos o pagamento da maior compensação financeira da história da OMC (US$ 147 milhões por ano até 2014).

Resultados também apareceram na frente negociadora, sempre que houve vontade política. Com mandato claro da Câmara de Comércio Exterior, onde a política comercial se decide colegiadamente, nossos negociadores entregaram resultados importantes. Na OMC, o Brasil foi central para a adoção do acordo de facilitação do comércio e para proibir subsídios às exportações agrícolas. Diante do impasse na Rodada Doha, o Itamaraty não ficou choramingando, impotente. Nos últimos dois anos, sob orientação do presidente Temer, resgatamos o Mercosul da letargia, eliminando barreiras internas ao bloco e reativando uma agenda negociadora externa agressiva. Avançamos muito nas negociações com a UE e lançamos negociações com Associação Europeia de Livre Comércio, Canadá, Coreia do Sul e Cingapura, que estão progredindo bem.

O corpo negociador também foi instruído a atuar com determinação nas tratativas regionais, como demonstram o programa de aproximação com a Aliança do Pacífico e novos acordos assinados com Colômbia e Chile. Emblemática da eficiência negociadora foi a conclusão, em apenas seis meses, de um Acordo de Livre Comércio como Chile, instrumento inovador que será assinado no dia 21 pelo presidente Temer.

Tudo isso teria sido possível sem a visão estratégica e a massa crítica que temos no Itamaraty? Muito provavelmente, não. Além da prática e do conhecimento adquiridos em anos de negociações, nossos diplomatas são treinados para enxergar o mundo não apenas da ótica de um setor, mas de uma perspectiva mais ampla, levando em conta aspectos políticos e culturais. Todos esses fatores incidem nas negociações.

Com visão de Estado, o Itamaraty reflete o interesse do conjunto da economia na abertura de mercados, como passou a ocorrer na Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, agora na órbita do ministério, com ganhos expressivos no aumento das exportações e na captação de investimentos.

Nossa máquina negociadora é uma das mais eficientes do mundo, mas depende de uma condução política firme, com o apoio, segundo o tema, de órgãos especializados. Nos últimos dois anos, com direção política firme, a máquina voltou a mostrar resultados. Para ganhar na corrida do comércio, não basta ter um bólido de Fórmula 1, é preciso também saber conduzir. O pior que pode nos acontecer é culpar a máquina pela imperícia do condutor.

*Aloysio Nunes Ferreira é ministro das Relações Exteriores


Aloysio Nunes Ferreira: A reconstrução do Mercosul

Legado do governo do presidente Temer reclama continuidade, para o bem do Brasil

Há um debate na sociedade brasileira em torno da relevância do Mercado Comum do Sul (Mercosul). De fato, há pouco mais de dois anos o panorama era desolador. A letargia do bloco, evidente. Os propósitos que levaram à sua criação soavam como uma vaga lembrança, ocupados que estavam Estados-membros em utilizar o bloco para ecoar preferências ideológicas, sem conexão com os reais interesses de nossas sociedades.

Uma das maiores conquistas do governo Temer na área externa é ter colaborado para a reconstrução do Mercosul. Ao lado da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, o Brasil trabalhou com afinco para recuperar a vocação original de um regionalismo aberto. Os resultados apareceram rapidamente, tanto no interior do bloco como em sua articulação com o restante do Hemisfério e com a economia mundial.

Um passo importante foi a remoção de quase 90% dos 78 entraves que existiam no comércio intrabloco, como aqueles que dificultavam o acesso ao mercado argentino de carne bovina e banana. Não menos digna de registro foi a assinatura do Protocolo de Contratações Públicas, que abre uma valiosa frente de negócios para as empresas e reduz custos para os governos. Já o Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos tornou o ambiente mais receptivo à atração de poupança externa. Adotamos, ainda, um plano de convergência regulatória em áreas como governo digital, governo aberto, segurança cibernética, assinatura eletrônica, direito do consumidor, pequenas e médias empresas e comércio eletrônico.

O diálogo foi destravado também com os países associados. O bloco subscreveu com a Colômbia acordo de complementação econômica que praticamente reduziu a zero as tarifas nas trocas bilaterais. Particularmente frutíferas foram as tratativas com o Chile. Formalizamos instrumentos para a liberalização das compras públicas e a facilitação de transações financeiras. Concluiremos até o final do ano um acordo de livre-comércio de segunda geração, harmonizando regulamentos e adensando os laços entre pequenas e médias empresas e em questões como propriedade intelectual e perspectiva de gênero.

Esses esforços renovaram a importância para o Brasil de um bloco que reúne 275 milhões de habitantes e representa a quinta economia do globo. Os benefícios para o setor industrial são expressivos. Mais de 90% de nossas exportações para os demais sócios no ano passado foram de bens industrializados (US$ 20,7 bilhões). Em 2017 foram para o Mercosul 18,5% de nossas exportações de manufaturas.

O bloco voltou a ser uma plataforma para uma inserção competitiva de seus membros na economia mundial. Se é verdade que teremos a partir de 2019, por causa dos acordos da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), uma área de livre-comércio de bens com a maioria dos países da América do Sul, também é verdade que ampliamos de maneira muito significativa os horizontes do Mercosul, a começar pela indispensável aproximação com a Aliança do Pacífico.

Na reunião de cúpula de Puerto Vallarta (México) foi adotado um plano de ação que prevê passos concretos em facilitação de comércio, cooperação regulatória, agenda digital e comércio inclusivo. Para aferir o potencial dessa aproximação basta lembrar que, juntos, o Mercosul e a Aliança do Pacífico respondem por 90% do produto interno bruto e dos fluxos de investimento externo direto na América Latina e no Caribe. O comércio entre os dois blocos alcançou no ano passado a cifra de US$ 35,3 bilhões, dos quais US$ 25 bilhões de transações do Brasil com a Aliança do Pacífico, um incremento de 21,4% em relação a 2016.

A abertura e a intensificação de negociações comerciais extrarregionais refletem com eloquência a reanimação do bloco. Vejamos o caso das tratativas para a assinatura de um acordo de associação com a União Europeia. Passamos da inércia dos últimos governos a um notável empreendimento negociador, que logrou concluir até o momento 12 dos 15 capítulos do acordo. Por mais árduo que seja o esforço final de dirimir diferenças em áreas como o acesso ao mercado agrícola europeu, jamais estivemos tão perto da criação de um espaço com 750 milhões de pessoas e um produto de US$ 19 trilhões.

Lançamos também negociações com parceiros importantes como Canadá, Coreia do Sul, Associação Europeia de Livre Comércio (Efta, que reúne Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein) e Cingapura. E estamos engajados em ampliar o acordo com a Índia e o escopo das tratativas com o Egito, o Líbano e a Tunísia. Estão dadas as condições para o início das negociações de um acordo com o Japão, perspectiva recentemente saudada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Federação Japonesa de Negócios (Keidanren). Ressalto a importância da aproximação com a Ásia, continente para onde, sabemos todos, se deslocou o eixo de gravidade da economia mundial. Pude constatar em visitas à região quão densa é a teia de acordos preferenciais firmados entre os asiáticos e com terceiros atores. Pleiteamos nossa entrada nesse circuito, onde estão em jogo oportunidades imensas de participação em cadeias globais de valor e de captação de investimentos.

É esse o legado do governo do presidente Michel Temer em relação ao Mercosul, que reclama continuidade para o bem do Brasil e de sua presença internacional. É por uma interação cada vez mais intensa com os vizinhos e com o mundo, e não olhando no retrovisor, que aumentaremos a eficiência e a produtividade de nossa economia, com ganhos óbvios na geração de renda e emprego. Concorremos, outrossim, para confirmar o comércio e a integração econômica como fatores de prosperidade e de bem-estar social, em contraponto a impulsos protecionistas que nada aportam a seus promotores e à comunidade internacional como um todo.

* Aloysio Nunes Ferreira é ministro das Relações Exteriores