Itamaraty
Demétrio Magnoli: A folia do Ernesto
O Brasil de Bolsonaro oferece a Maduro um conveniente inimigo externo
Bolsonaro e Ernesto Araújo, o ministro indicado de Relações Exteriores, justificaram os "desconvites" a Díaz-Canel e a Maduro para a posse presidencial sob o argumento de que Cuba e Venezuela não realizam eleições livres.
A lógica empregada exigiria "desconvites" a dezenas de países autoritários com quem o Brasil mantém relações diplomáticas. A política externa bolsonarista começa no registro da pantomima. Nesse caso, a comemoração explícita emana dos grupelhos ideológicos que orbitam em torno do presidente eleito —mas a vitória é do ditador venezuelano.
Maduro mente todos os dias, obsessivamente. Agora, acusa Bolsonaro e o vice, Mourão, de participarem de um "complô preparado na Casa Branca para me assassinar" e "invadir a Venezuela", num plano que se iniciaria com "provocações na fronteira".
Nada evitará que ele minta, mas os "desconvites" conferem uma sombra de verossimilhança às suas palavras. O chavismo terminal precisa do espantalho ameaçador do inimigo externo para conservar um mínimo de coesão interna. A folia ideológica brasileira ajuda a prolongar o epílogo do falido regime venezuelano.
Ernesto Araújo é um homem de firmes convicções. Poucos anos atrás, defendia sem corar as políticas econômica e externa de Dilma Rousseff. Nos últimos meses, em pirueta olímpica, passou a repercutir o discurso místico do olavismo e as senhas doutrinárias da Breitbart News.
O folião do Itamaraty pretende operar como peão de Trump na América do Sul. A lógica dos "desconvites" ultrapassa o limite dos gestos simbólicos, apontando para a ruptura de relações diplomáticas com Cuba e Venezuela. Maduro torce por isso, que implicaria a voluntária retirada brasileira do terreno onde se decidirá o futuro da Venezuela.
O chavismo, que nunca foi homogêneo, cinde-se em correntes diversas que encaram o horizonte do abismo. O componente militar do regime, que controla as chaves da repressão, também está dividido.
A cola que ainda prende os chavistas a Maduro é o medo do futuro —isto é, o temor da retaliação e da vingança. Uma transição política sem sangue, ou com pouco sangue, depende de negociações com as alas do regime dispostas a abandonar o barco que naufraga. Para isso, são necessários mediadores. Ernesto, o folião, suprime as credenciais que fazem do Brasil um mediador eficiente.
Sem uma embaixada em Caracas, o Brasil exclui a si mesmo do jogo político. A embaixada deveria servir para municiar o governo brasileiro com informações confiáveis, estabelecer pontes de diálogo com a oposição e explorar rumos de superação da crise com dissidentes chavistas civis e militares. A denúncia permanente da violência do regime é uma obrigação moral e política.
Mas, além disso, o Brasil precisaria ajudar os atores venezuelanos a encontrar fórmulas capazes de conjurar o medo que impede a ruptura. Fora da transição negociada, só existe a guerra civil.
A sobrevivência agônica de Maduro seria impossível sem o amparo da China e da Rússia. Uma solução pacífica para a Venezuela passa pela ativação de canais diplomáticos regionais e globais. John Bolton, o conselheiro de Segurança Nacional de Trump, investe no caos. Já o interesse dos países sul-americanos, especialmente os que compartilham fronteiras com a Venezuela, repousa na perspectiva de uma transição negociada.
O Brasil, atuando ao lado de Colômbia, Equador, Peru e Argentina, teria os meios para persuadir chineses e russos a cortar o cabo que mantém o governo de Maduro à tona. Mas Ernesto, o folião, prefere a pantomima —isto é, a irrelevância.
O Brasil de Lula e Dilma serviu ao chavismo, propiciando-lhe apoio diplomático e um verniz de legitimidade democrática. O Brasil de Bolsonaro prossegue o trabalho do lulismo, oferecendo a Maduro a imagem perfeita de um conveniente inimigo externo. O Ernesto tem custos.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Monica De Bolle: A Venezuela
Para entender e opinar sobre a Venezuela, é preciso primeiro compreender o arco histórico
A confusão sobre o convite-não-convite de Nicolás Maduro para a posse de Bolsonaro deu o que falar nos últimos dias. Maduro teria sido convidado pelo Itamaraty para a posse, a chancelaria da Venezuela recusou o convite, e em seguida Ernesto Araújo o desconvidou. É claro que a ditadura venezuelana deve ser rechaçada. Contudo, o uso constante do colapso venezuelano como arma ideológica é não apenas um equívoco, mas demonstração de profunda ignorância. São poucos os que realmente sabem alguma coisa sobre a história da Venezuela. Ao que parece, o próprio chanceler brasileiro prefere os espantalhos ideológicos a um entendimento sério de como o país chegou ao atual descalabro. Não é com desconhecimento que se faz boa política externa.
Começo lá atrás, no pós-guerra. Entre 1948 e 1958 a Venezuela era uma ditadura. Removido o ditador presidente Marcos Pérez Jiménez em janeiro de 1958, os três maiores partidos políticos do país – AD, Copei e URD – firmaram um pacto que ficou conhecido como Ponto Fixo (“Punto Fijo”). O pacto tinha como objetivo enraizar e proteger a democracia em um país que havia sido governado por ditadores praticamente desde sua independência, em 1830. O Ponto Fixo deu origem ao sistema bipartidário formado pela AD e pelo Copei que permaneceu em vigor até a ascensão de Hugo Chávez nos anos 1990. Durante as quatro décadas decorridas entre 1958 e 1998, a Venezuela foi essencialmente uma democracia estável, tendo chegado a ser um dos primeiros países latino-americanos a ser classificado como país de renda média alta pelo Banco Mundial.
Entre 1960 e 1977, a renda por habitante crescera mais de 30%, alcançando US$ 16 mil por pessoa. Contudo, entre o fim dos anos 70 e meados dos anos 80, a renda por habitante perdera todo o ganho anterior, passando de US$ 16 mil para pouco menos de US$ 12 mil. Ou seja, o país sofreu um colapso brutal do crescimento em virtude de vários problemas, inclusive da queda dos preços do petróleo. Colapsos dessa magnitude costumam estar associados a guerras e graves conflitos internos, o que não foi o caso da Venezuela. Até hoje estudiosos se debruçam sobre o dilema do crescimento venezuelano durante os anos 80 e 90.
A insatisfação popular com o desempenho da economia e a percepção de que o Ponto Fixo engessara o sistema político, com os dois principais partidos envolvidos em escândalos de corrupção e práticas clientelistas, abriram o caminho para que um militar de baixa patente tentasse um golpe de Estado em 1992 – sim, Hugo Chávez. O golpe falhou, mas em 1993 foi quebrada a hegemonia bipartidária com o enfraquecimento dos dois principais partidos. Após período de intensa turbulência entre 1993 e 1994, Rafael Caldera, um dos arquitetos do Ponto Fixo e da Constituição de 1961, presidente entre 1969 e 1974, foi novamente alçado à presidência.
Caldera foi sucedido por Chávez, vitorioso em 1998, ano em que as eleições foram marcadas pela ausência de partidos e de candidatos tradicionais. Os partidos haviam caído no mais absoluto descrédito. Chávez e os demais presidenciáveis de 1998 se posicionaram como indivíduos com clara posição antissistema, capazes de atender aos anseios do povo venezuelano. Chávez foi eleito em 1998 e horas após a vitória anunciou referendo sobre a reforma constitucional que seria a base de sua “Revolução Bolivariana”. A reforma foi aprovada e a Assembleia Constituinte foi formada com maioria chavista, dando a Chávez o poder de reescrever a Constituição que encerrou de vez o pacto Ponto Fixo. A nova Constituição, que ampliava o mandato presidencial de 5 para 6 anos, entrou em vigor pouco mais de um ano após a vitória de Chávez. Em 2000, anos antes da eleição presidencial prevista pela nova Constituição, Chávez conseguiu antecipar o pleito e se “reeleger” por seis anos. A partir daí estavam montadas as bases que permitiriam seu plano de permanência não democrática no poder.
Portanto, para entender e opinar sobre a Venezuela, é preciso compreender o arco histórico. É fácil demais plantá-la como espantalho para assustar ingênuos e desinformados, sobretudo no contexto brasileiro atual.
Tamanho desconhecimento em nada ajudará a política externa brasileira a dar conta do imenso desafio que a Venezuela de Maduro representa para a região. Dizem que o Brasil não é para principiantes. Menos ainda a Venezuela.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Clóvis Rossi: Ignorância guia política externa do governo Bolsonaro
Presidente eleito não leu os acordos que despreza, como o de Paris
Esta Folha já disse tudo o que é imprescindível sobre as ameaças do futuro governo Bolsonaro de abandonar o Acordo de Paris (sobre mudança climática) ou tentar modificá-lo.
A frase do editorial desta sexta-feira (14) é definitiva: “Ambos, Salles e Bolsonaro, se equivocam e demonstram constrangedora ignorância sobre Paris” (o Salles é Ricardo Salles, futuro ministro de Meio Ambiente).
A “constrangedora ignorância” não se limita, desgraçadamente, ao Acordo de Paris. Estende-se também ao recém-assinado Compacto Global sobre Migração Segura, Organizada e Regular.
É óbvio que todo presidente tem o direito (e o dever, de resto) de aplicar as políticas que achar convenientes, tanto as internas como a externa. Mas tem também a obrigação de definir tais políticas com base em um mínimo de racionalidade, e não a partir de “constrangedora ignorância”.
O argumento do bolsonarismo, em ambos os temas, é o de que cabe exclusivamente ao país determinar suas políticas ambientais e migratórias, sem aceitar imposições de outras nações.
Já é um conceito discutível porque, no caso do meio ambiente, por exemplo, é evidente que a mudança climática não se detém nas fronteiras deste ou daquele país.
Logo, ou há uma ação conjunta ou os problemas se acentuarão inexoravelmente.
Mas o ponto aí é outro: nem o acordo sobre o clima nem o sobre migrações são vinculantes, como ressalta a Folha no seu editorial sobre Paris:
“Nada há de impositivo em seu texto para o Brasil ou qualquer outro país. As metas de redução de emissões de carbono ali incluídas são voluntárias (‘contribuições nacionalmente determinadas’).”
Vale idêntica afirmação para o acordo sobre migrações.
A constrangedora ignorância apontada por este jornal pode estar escondendo algo mais assustador.
Escreve, em seu Facebook, Oliver Stuenkel, um dos mais lúcidos analistas de relações internacionais que o Brasil tem: “Toda a retórica sobre interferência externa não é realmente a respeito de mudança climática por si. De fato, é usada para combater o que [o bolsonarismo] percebe como inimigo: supostas forças globalistas”.
É outro conceito estúpido. Pode-se detestar a globalização, podem-se enxergar nela mil e um defeitos, mas não dá para gritar “parem o mundo que eu quero descer”. O mundo é hoje globalizado.
Se é assim, a cooperação internacional é a única maneira de atenuar os eventuais danos que essa situação provoca.
Preferir, como vem indicando o futuro governo, negociações bilaterais, em vez das multilaterais, é no mínimo improdutivo.
Veja-se o caso das migrações que mais diretamente afetam o Brasil, a dos venezuelanos. Como é que se vai discutir o assunto bilateralmente com Caracas, na qual reina um bando de tarados incompetentes e que fingem não ver o que está ocorrendo?
Impossível. Até um conservador americano, que os Bolsonaros certamente admiram, o senador Marco Rubio, acaba de dizer ao Miami Herald: “Acho que temos uma chance de uma parceria com Brasil, Colômbia, Chile, Argentina e outros na América do Sul para lidar com alguns dos desafios postos pela crise migratória na Venezuela”.
Quer demonstração mais clara de que cooperação internacional não é invenção dos comunistas, caramba?
Bernardo Mello Franco: Para imitar Trump, novo governo indica que vai isolar o Brasil
A decisão de boicotar o Pacto Global pela Migração reforça os sinais de que o Brasil está prestes a embarcar numa relação de vassalagem com o governo Trump
Em fevereiro, diplomatas de 35 países e territórios da América Latina e do Caribe desembarcaram em Brasília. O grupo se reuniu no Itamaraty para discutir respostas à crise global de refugiados. O encontro ajudou a articular o Pacto Global sobre Migração, apresentado nesta segunda-feira no Marrocos.
O ministro Aloysio Nunes Ferreira foi a Marrakech e discursou em defesa do documento. Instantes depois, seu sucessor usou as redes sociais para desautorizá-lo. Ele anunciou que o novo governo “se desassociará” do pacto. Em três tuítes, desmontou ao menos dez meses de trabalho da diplomacia brasileira.
O futuro ministro Ernesto Araújo alegou que a imigração, um problema que desafia países em todo o mundo, “não deve ser tratada como questão global”. O argumento se alinha às teorias de que a Terra é plana e de que o homem não foi à Lua. São teses em voga no submundo da internet, de onde parecem sair as novas diretrizes da política externa.
O pacto foi assinado por cerca de 160 países. Ao abandoná-lo, o Brasil se juntará a um pequeno grupo liderado por Donald Trump. A lista inclui Polônia, Hungria e Áustria, nações governadas por populistas de extrema-direita. Na América do Sul, só o Chile escolheu seguir o mesmo caminho.
O anúncio de Araújo reforça os sinais de que o Brasil embarcará numa relação de vassalagem com Washington. Isso já ficou claro quando o presidente eleito atacou a China, ameaçou sair do Acordo de Paris e prometeu transferir a embaixada em Israel para Jerusalém. Os três gestos criaram atritos com países amigos e arriscam prejudicar as exportações brasileiras.
No caso da migração, a opção pelo isolamento tem um problema adicional. Hoje há cerca de um milhão de estrangeiros vivendo no país e pelo menos o triplo de brasileiros no exterior.
O pacto estabelece políticas que poderão proteger esses três milhões de brasileiros —um grupo mais numeroso do que a população do Distrito Federal. E, ao contrário do que sugeriu o futuro chanceler, o documento não representa riscos à soberania nacional.
El País: Brasil assina pacto global de migração, mas chanceler de Bolsonaro anuncia retirada
165 Estados dos 193 que integram a ONU apoiam primeiro acordo sobre mobilidade internacional de pessoas. EUA boicotaram evento e pressionaram por não adesão
O chamado Pacto Global por uma Migração Segura, Ordenada e Regular foi adotado formalmente na manhã de segunda-feira em Marraquexe por consenso pela conferência intergovernamental da ONU. O encontro teve a participação de representantes de 165 países dos 193 que integram a ONU. O texto contém 23 objetivos não vinculantes aos Estados que o assinam. Pelo Brasil, esteve presente o chanceler Aloysio Nunes Ferreira, que exaltou o acordo e lembrou da nova lei de imigração brasileira, considerada positiva. Apesar de o documento não comprometer juridicamente nenhum Governo, só levou algumas horas para que o futuro chanceler do Governo Bolsonaro, Ernesto Araújo, fosse ao Twitter anunciar que o Governo brasileiro vai se dissociar do pacto no ano que vem. "(É) um instrumento inadequado para lidar com o problema. A imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país", escreveu ele.
Até o momento, somente uma dezena de países expressou abertamente sua oposição ao pacto. Além dos Estados Unidos e agora o futuro Governo Brasileiro, se destacam Áustria, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Bulgária, Austrália e Chile, país que se afastou um dia antes do começo do encontro de Marraquech.
Aprovação deve acontecer em sessão em Nova York
1/A imigração é bem vinda, mas não deve ser indiscriminada. Tem de haver critérios para garantir a segurança tanto dos migrantes quanto dos cidadãos no país de destino. A imigração deve estar a serviço dos interesses nacionais e da coesão de cada sociedade.
2/O Governo Bolsonaro se desassociará do Pacto Global de Migração que está sendo lançado em Marraqueche, um instrumento inadequado para lidar com o problema. A imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país.
3/O Brasil buscará um marco regulatório compatível com a realidade nacional e com o bem-estar de brasileiros e estrangeiros. No caso dos venezuelanos que fogem do regime Maduro, continuaremos a acolhê-los, mas o fundamental é trabalhar pela restauração da democracia na Venezuela.
O processo para adotar o pacto começou há 18 meses, ainda que as negociações formais tenham se iniciado em janeiro desse ano e concluído em julho, após seis rodadas. Sua aprovação definitiva depende somente da votação que será realizada em 19 de dezembro na sede da Assembleia Geral da ONU, em Nova York. De qualquer modo, fontes da organização afirmam que o fato de que somente 165 compareceram, no lugar dos 180 esperados, é irrelevante. “O fato de que alguns não vieram porque perderam o avião ou por qualquer outra razão não significa que não irão adotá-lo”, disse a mesma fonte diplomática. “A Itália e a Suíça, por exemplo, disseram que não viriam a Marraquech porque queriam submeter o acordo a um debate parlamentar. Mas isso não significa que no final não irão apoiá-lo”, frisou.
Na Bélgica a direita nacionalista flamenga se negou a respaldar o acordo e rompeu a coalizão de Governo da qual fazia parte. De modo que, por fim, a delegação belga foi ao Marrocos, mas com seu Governo rachado. O primeiro-ministro belga, Charles Michel, foi interrompido duas vezes por aplausos durante seu discurso. Ele lembrou que submeteu o Pacto à decisão de seu Parlamento e foi respaldado por dois terços dos deputados. “Isso demonstra os valores de meu país de apoiar o respeito, a coragem e a responsabilidade. (...) Precisamos de coragem e responsabilidade. Esse é um momento importante e me apresento diante dos senhores tendo tomado a decisão de optar pela cooperação internacional”.
O nível de representação de cada país foi menor do que o esperado. Os chefes de Governo presentes na reunião foram minoria, 21 no total, como informou a presidenta da Assembleia Geral das Nações Unidas, María Fernanda Espinosa. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, a chanceler alemã, Angela Merkel, o primeiro-ministro português, António Costa, o belga, Charles Michel, e o grego Alexis Tsipras foram os destaques da União Europeia. Outros líderes que pretendiam comparecer, como o presidente brasileiro Michel Temer, delegaram a seus ministros e diplomatas a representação em Marraquexe. Outros Governos reduziram o nível de representação e o número de enviados à reunião.
Em alguns países como a Suíça e o Canadá, a ratificação do pacto causou acalorados debates. Na Espanha, entretanto, a adoção do acordo e a presença do primeiro-ministro, Pedro Sánchez, não foram contestadas pela oposição. “Os partidos, até mesmo os que usam o fenômeno migratório para conseguir crédito eleitoral, são conscientes da solidariedade espanhola. Os líderes da oposição foram conscientes da importância de se estar aqui e o Governo da Espanha agradece por isso não ter sido motivo de confronto”, disse a Secretária de Estado de Migrações, Consuelo Rumí.
Os organizadores previam a presença do rei do Marrocos, Mohamed VI, e montaram uma tenda para recebê-lo. Por fim, durante a noite de domingo os funcionários da ONU foram informados de que o monarca não estaria na abertura da conferência. O Palácio Real não informou sobre a causa de sua ausência. O país anfitrião ofereceu um almoço às delegações no qual o monarca também não compareceu.
Mohamed VI, entretanto, emitiu um comunicado em que afirmou: “Por enquanto, o pacto mundial é uma promessa que a história julgará. Ainda não é o momento de comemorar seu sucesso (...) “A conferência de Marraquech é, acima de tudo, uma chamada de atenção. E a África responde à essa chamada agora: Presente! O desafio dessa conferência é mostrar que a comunidade internacional fez a escolha de uma solidariedade responsável”. O monarca também disse: “A página da história que se escreve hoje em Marraquexe honra a comunidade internacional e a conduz mais um passo em direção a uma nova ordem migratória, mais justa e humana”.
O secretário geral da ONU, Antonio Guterres, pediu aos presente durante a inauguração da reunião que não “sucumbam ao medo”. Louise Arbour, enviada especial da ONU à Migração Internacional, acrescentou: “É surpreendente que tenha existido tanta desinformação sobre o que é e o que diz o Pacto [...] Não cria nenhum direito de migrar, não impõe nenhuma obrigação aos Estados”.
A chanceler Angela Merkel, que em 2015 impulsionou na Alemanha a acolhida de 890.000 refugiados e no ano seguinte a de 280.000, recebeu uma clamorosa salva de palmas após sua fala aos representes das delegações. “Precisamos lembrar a nós mesmos que a ONU foi fundada como resultado da Segunda Guerra Mundial. Foi uma resposta ao nacionalismo, uma busca de respostas comuns. É disso que se trata esse Pacto, da cooperação internacional. Essa é a única forma de fazer desse planeta um lugar melhor”.
Vários representantes de delegações consultados afirmaram que o mais importante da conferência de Marraquech não é que os Estados Unidos e uma dezena de países se oponham ao pacto e sim que o acordo foi adotado pela esmagadora maioria dos Governos que integram as Nações Unidas.
Eliane Brum: Os “malucos” sapateiam no palco
Aqueles que não eram levados a sério hoje têm poder atômico e também o de destruir a Amazônia
Nas últimas décadas existiu um consenso de que, diante dos absurdos que eram ditos nas redes e em outros espaços, a melhor estratégia era não responder. Contestar pessoas claramente mal intencionadas e intelectualmente desonestas, em sua busca furiosa por fama, seria legitimá-las como interlocutor, dando crédito ao que diziam. E, assim, servir de escada para que ganhassem mais visibilidade. A frase popular que expressa essa ideia é: “Não bata palmas para maluco dançar”. A eleição de Donald Trump, de outros populistas de extrema-direita e agora de Jair Bolsonaro revelou que este foi um equívoco que vai custar muito caro.
Os “malucos” não só dançaram, como sapatearam. Em seguida, passaram a afirmar seus pensamentos como “verdades” – e verdades únicas. O próximo passo foi conquistar o poder. Hoje os “malucos” não só ocupam os palcos mais centrais como têm o poder atômico de explodir o mundo, como Trump, ou acabar com a Amazônia, como Bolsonaro.
Se a eleição de Trump já havia exposto essa realidade, a de Bolsonaro é ainda mais emblemática. No caso de Trump, ao menos se poderia contrapor que o presidente americano é um bem sucedido homem de negócios, algo bastante valorizado no país do “faça-se a si mesmo”, frase usada para encobrir desigualdades decisivas para o destino de cada um. No caso de Bolsonaro, apesar de ele se apresentar e ser apresentado como “capitão reformado”, o presidente eleito passou os últimos 28 anos como um político profissional com pouca ou nenhuma importância para as grandes decisões do Congresso, ganhando espaço no noticiário apenas como personagem burlesco. Conseguiu se eleger sem sequer participar de debates no segundo turno – ou exatamente por isso –, porque dominava os palcos que importavam para ganhar a eleição.
Bolsonaro, que é chamado de “mito”, é um mitômano
Embora Bolsonaro só assuma oficialmente em janeiro, claramente o governo de Michel Temer acabou em 28 de outubro, quando o deputado se elegeu presidente. Hoje os brasileiros percebem que aquilo que parecia ser um universo paralelo, que só em situações excepcionais cruzava com o real, se tornou o que podemos chamar de realidade. O homem que já governa o Brasil, chamado de “mito” por seus seguidores, é um “mitômano”.
O que sabemos até agora é que Bolsonaro venera três figuras masculinas: Carlos Alberto Brilhante Ustra, militar e torturador da ditadura (1964-85); Olavo de Carvalho, que se apresenta como filósofo e se popularizou na internet depois de ser colunista da grande imprensa, e Donald Trump. Ustra desponta como a referência ética de Bolsonaro, Carvalho como seu guru intelectual e Trump é seu farol como líder. Por enquanto, temos uma trindade. E, neste ponto, Bolsonaro poderia interromper para afirmar que Deus acima de todos, já que Deus passou a ser um ativo na economia política que tem regido o Brasil atual.
A trindade de Bolsonaro é composta por um torturador, um guru e... Trump
Carlos Alberto Brilhante Ustra já foi amplamente descrito. Ele é reconhecido como torturador pela justiça brasileira e, conforme testemunhos, seria responsável por pelo menos 50 assassinatos. Como torturador, foi capaz de espancar grávidas e de levar crianças para ver o corpo destruído dos pais. Olavo de Carvalho já se manifestou contra campanhas de vacinação, isso num país que assiste a doenças consideradas erradicadas voltarem a ameaçar por baixa cobertura vacinal. Mora nos Estados Unidos desde 2005 e dá cursos de filosofia em vídeos transmitidos pela internet. Em recente entrevista à jornalista Júlia Zaremba, na Folha de S. Paulo, Carvalho assim se manifestou, ao ser perguntado sobre educação sexual nas escolas:
"Quanto mais educação sexual, mais putaria nas escolas. No fim, está ensinando criancinha a dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público. Acham que educação sexual está fazendo bem, mas só está fazendo mal. O Estado não tem que se meter em educação sexual de ninguém".
A linguagem que o mentor intelectual do novo presidente do Brasil leva para a imprensa formal é a que rege a internet. Não há qualquer base para o que afirma, não há um único caso confirmado de que alguma criança foi ensinada na escola a “dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público”. Isso até hoje não existe como fato. Mas não importa. As afirmações não precisam estar enraizadas em fatos, basta serem ditas. A verdade foi convertida em autoverdade. E a credibilidade não é construída por uma reputação de conhecimentos postos à prova e expostos ao debate, mas pela percepção emocional de “autenticidade” daquele que a consome.
É “verdade” porque Olavo de Carvalho diz que é verdade o que claramente inventou. E é verdade porque, individualmente, cada seguidor de Olavo de Carvalho decidiu que é verdade. E, desde 29 de outubro, dia seguinte ao segundo turno eleitoral, é verdade também porque Olavo de Carvalho é a referência intelectual do presidente da (ainda) oitava economia do mundo.
A partir de suas autoverdades, Olavo de Carvalho indicou dois ministros do novo governo: o das Relações Exteriores, o diplomata Ernesto Araújo, e o da Educação, o colombiano radicado no Brasil Ricardo Vélez Rodríguez. Na mesma entrevista, Carvalho conta o processo pelo qual conseguiu emplacar dois ministros para governar o Brasil:
"Coloquei no Facebook, creio que coloquei também na área de mensagens do Eduardo Bolsonaro (em rede social). Foi tudo. Eu sei que o Bolsonaro lê as minhas coisas e a gente está vendo que leva bastante a sério. Eu fico muito lisonjeado com isso. (...) Sugeri esses dois simplesmente porque me ocorreu na hora".
A conturbada escolha do ministro da Educação explicitou a forma como o novo governo já começou a operar. O primeiro indicado, Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, foi derrubado pelos evangélicos porque seria “esquerdista”. Em seguida, foi cogitado o procurador Guilherme Schelb, próximo do líder evangélico Silas Malafaia e defensor do “Escola Sem Partido”, projeto que busca censurar conteúdos e professores. Ao sair do encontro com Bolsonaro, Schelb fez a seguinte afirmação à imprensa:
"Eu não posso dar tarefa de casa, como tem sido feito, para criança de 8, 9 anos aprender discussão de gênero, o que é sexo grupal, como dois homens transam? O que é boquete? Isso é uma discussão de gênero, é uma violação da dignidade da criança".
Como a autoverdade dispensa os fatos, Schelb não foi incomodado pelo inconveniente de provar o que diz. Como por exemplo: em quais escolas do país e em quantas escolas do país crianças de 8 e 9 anos estão aprendendo sobre o que é boquete e sobre como dois homens transam? Onde está a tarefa de casa em que uma criança de 8, 9 anos precisa descrever um boquete e como dois homens transam?
A sociedade é levada a acreditar que as salas de aula são uma suruba permanente enquanto o real problema é empurrado para as sombras
Seria preciso perguntar onde isso está acontecendo e em que proporção isso está acontecendo no país. E o procurador precisaria responder. Com provas verificadas. Mas não há necessidade de provar. Basta dizer. Qualquer coisa. E assim vai crescendo no país o número de pessoas que acreditam que o cotidiano das salas de aula brasileiras é uma suruba permanente, quando os reais problemas, o baixo salário dos professores e a comprovada baixa qualidade do ensino ministrado no Brasil, são convenientemente empurrados para as sombras.
Dito de outro modo: o problema inventado se torna mais real do que o problema que de fato existe e que condena milhões de brasileiros às consequências de uma educação falha, limitando seu acesso ao mundo e suas possibilidades de uma vida plena.
Por fim, Bolsonaro acolheu a indicação de seu guru, Olavo de Carvalho: entre as várias crenças de Vélez Rodríguez, o futuro ministro da Educação, está a de defender que 31 de março de 1964, data do golpe que deu origem a uma ditadura de 21 anos, “é um dia para ser lembrado e comemorado”. Também critica a Comissão da Verdade, que apurou as torturas, sequestros e assassinatos cometidos por agentes de Estado durante o regime de exceção: “A malfadada ‘Comissão da Verdade’ que, a meu ver, consistiu mais numa encenação para ‘omissão da verdade’, foi a iniciativa mais absurda que os petralhas tentaram impor”. Nos próximos meses, a sociedade brasileira descobrirá como será ter a área da educação comandada por alguém que frauda os fatos históricos.
O futuro chanceler acusa a esquerda de ser “antinatalista”, mas omite que seu chefe defendeu a esterilização de mulheres para combater a pobreza e o crime
Vélez Rodríguez foi o segundo nome emplacado por Olavo de Carvalho. O primeiro foi Ernesto Araújo. As crenças do futuro chanceler já se tornaram piada internacional. Em seu blog chamado “Metapolítica 17” (número de Bolsonaro na cédula eleitoral), criado para apoiar seu futuro chefe, Araújo afirma que mudança climática é uma “ideologia de esquerda”. Também acusa o PT e a esquerda de “criminalizar o desejo do homem pela mulher, os filmes da Disney, a carne vermelha” e “o ar-condicionado”. Chegou a escrever que o PT “quer impedir que crianças nasçam” porque, para a esquerda, “todo o bebê é um risco para o planeta porque aumentará as emissões de carbono”.
Ao empilhar falsidades, Araújo omitiu uma verdade comprovada e documentada sobre seu candidato e agora chefe: nas últimas duas décadas, Bolsonaro defendeu a esterilização de mulheres e um rígido controle de natalidade como meios para combater a pobreza e a criminalidade. Mas quem se importa com fatos quando seus seguidores acreditam em qualquer mentira que ele disser que é verdade?
O problema é que nenhuma das afirmações escritas do futuro chanceler é piada. Ao contrário. É muito sério. Primeiro, porque Bolsonaro e parte de seu entorno manipulam essas mesmas mentiras. Segundo, porque os seguidores do presidente acreditam que são verdades. Terceiro, porque elas já começam a produzir consequências. O Brasil desistiu de sediar a próxima Conferência do Clima, a COP 25, em 2019, uma distinção que o governo brasileiro pediu e, dois meses atrás, Michel Temer (MDB) comemorou. Bolsonaro afirmou ter participado desta decisão e feito uma recomendação ao seu futuro ministro, Ernesto Araújo, para evitar a realização do mais importante evento mundial do clima no Brasil.
Está em curso a sexta extinção em massa na trajetória do planeta, a primeira causada pelos humanos
A liderança no debate da crise climática é a única que o Brasil teria as melhores condições para disputar, por ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do planeta, estratégica para o controle do aquecimento global. O país é também o mais biodiverso do mundo. Entre 1970 e 2014, a humanidade já destruiu 60% de todos os mamíferos, pássaros, peixes e répteis. Desde que os humanos apareceram na Terra, já desapareceram metade das plantas. O continente sul-americano é um dos que mais rapidamente está perdendo biodiversidade. Está em curso a sexta extinção em massa, a primeira causada pelos humanos.
Até a eleição de Bolsonaro, o Brasil tinha um papel de protagonista no debate do clima e da biodiversidade, no cenário mundial. Estes são os dois maiores desafios da atualidade, porque afetam todas as outras áreas, inclusive e muito fortemente o agronegócio. Hoje, em Katowice, na Polônia, é realizada a COP 24. Graças às declarações de Bolsonaro e Araújo, o Brasil é má notícia. Como foi má notícia no final de novembro, durante a Conferência Mundial da Biodiversidade.
Ao aceitar o convite para ser o futuro chanceler, Araújo abriu uma conta no Twitter. Como seu chefe, ele quer falar diretamente com os seguidores. Recentemente, escreveu um texto defendendo que sua indicação representaria um “mandato popular” no Itamaraty. Suas crenças supostamente representariam a vontade do povo no cenário externo. Araújo tenta seguir o mesmo caminho de seu padrinho, Olavo de Carvalho. Falando diretamente com os seguidores e desqualificando qualquer mediador, como a imprensa, a academia e mesmo seus pares, Araújo não precisa provar o que diz nem ter suas afirmações confrontadas com os fatos. Fala sozinho. Mas, para isso ser legítimo, como membro de um governo populista, precisa convencer o povo que fala pelo povo. Ou que o povo fala pela sua boca.
A certa altura, escreve: “E o povo brasileiro? Vocês não se preocupam com o que o povo brasileiro vai pensar de vocês? Sabem quem é o povo brasileiro? Já viram? Já viram a moça que espera o ônibus às 4 horas da manhã para ir trabalhar, com medo de ser assaltada ou estuprada? A mulher que leva a filha doente numa cadeira de rodas precária, empurrando-a de hospital em hospital sem conseguir atendimento? O rapaz triste que vende panos no sinal debaixo do sol o dia inteiro para mal conseguir comer? A mulher que pede dinheiro para comprar remédio, mas na verdade é para comprar crack e esquecer-se um pouco da vida? O outro rapaz atravessando a rua de muletas, com uma mochila toda rasgada às costas, na qual pregou o adesivo do Bolsonaro, talvez sua esperança de dar dignidade e sentido à sua luta diária? O pai de família com uma ferida na perna que não cicatriza nunca porque ele precisa trabalhar três turnos para poder alimentar os filhos? Aí está o povo brasileiro, não está no New York Times”.
Não é porque o chanceler de Bolsonaro não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões de pessoas
Como Araújo pretende falar diretamente com “o povo”, mas numa via de mão única, em que ele fala e o povo engole, ele prefere não explicar ao povo que são os mais pobres que sofrerão o maior impacto das mudanças climáticas. As pessoas em regiões de baixa renda têm sete vezes mais chances de morrer quando expostas a riscos naturais do que populações equivalentes em regiões de alta renda. Os mais pobres também têm seis vezes mais chances de serem feridos ou de precisarem se deslocar, abandonando suas terras e casas. O Brasil tem perdido mais de 6,4 bilhões de reais por ano com eventos extremos, como tempestades e inundações, provocados por mudanças climáticas.
A crise do clima tanto reflete a desigualdade abissal do Brasil quanto a amplia. São estas mesmas pessoas que Araújo diz conhecer – e seus críticos não – as que vão sofrer mais por ter um chanceler como ele. Não é porque Araújo não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões também no Brasil.
Ao final do texto, o chanceler se trai. Parte do povo, aquela que discorda dele, não entende nada. O chanceler com “mandato popular” diz ao “povo” que ele precisa deixar as decisões para quem sabe e para quem estudou: “Se você repudia a ‘ideologia do PT’, mas não sabe o que ela é, desculpe, mas você não está capacitado para combatê-la e retirá-la do Itamaraty ou de onde quer que seja. Ao contrário, você está ajudando a perpetuá-la sob novas formas. Se a prioridade é extrair a ideologia de dentro do Itamaraty, não lhe parece conveniente ter um chanceler capaz de compreender a ideologia que existe dentro do Itamaraty? Alguém que estuda essa coisa nos livros, há muitos anos, e não simplesmente ouviu alguma referência num segmento do Globo Repórter?”.
Como tudo pode ser muito pior, o Brasil não tem apenas um chanceler desastroso, mas dois. Na semana passada, o presidente eleito despachou um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, para bajular Donald Trump, o terceiro personagem de sua trindade. Como ressaltou Matias Spektor, na Folha: “O filho chegou fazendo compromissos numa agenda cara ao governo americano —Cuba, Jerusalém, China e Venezuela. Nada pediu em troca além da deferência americana a Bolsonaro. Como Trump não respeita quem faz concessões unilaterais, a equipe de Bolsonaro desvalorizou o próprio passe. (...) Trata-se de crença irracional que ignora o gosto de Trump por arrancar concessões de seus principais parceiros a troco de nada. (...) Os americanos irão à forra".
Como a Família Bolsonaro pretende conseguir os melhores acordos para o Brasil usando o boné de quem está do outro lado da mesa de negociações?
Ao cumprir agenda oficial em Washington, o filho do presidente usou um boné onde estava escrito “Trump 2020”. Talvez a maioria possa compreender como é constrangedor um representante do presidente eleito do Brasil usar um boné defendendo a reeleição do atual presidente americano. É como se o próprio Brasil estivesse usando um boné de Trump 2020. Como se espera negociar os interesses do país em boas condições a partir desta posição de subalternidade explícita, como se fosse um fã vestindo a cabeça com o nome do seu ídolo? O pai não fez melhor durante a visita ao Brasil do assessor de Trump, John Bolton. Como se fosse um subalterno, bateu continência. E não foi correspondido.
É isso. Os “malucos” estão dançando no palco e não precisam que ninguém dê palco para eles. Nem precisam das palmas de setores que acreditavam ter o monopólio dos aplausos. Ao dançar, afirmam que os fatos são “fake News” e que a ciência é “fake News”. Como estão em posições de poder, e um deles será o próximo presidente do Brasil, os jornais são obrigados a reproduzir suas falas e sua dança.
As universidades serão governadas por eles. A política científica será decidida por eles. A Escola Sem Partido pode virar lei, estabelecendo a censura com a justificativa de combater um problema que não existe. E tudo indica que o SUS poderá ser desmantelado em nome da privatização da saúde. O destino da Amazônia e de seus povos será determinado por aqueles que querem abrir a floresta para exploração.
Quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade?
Ernesto Araújo se tornou uma piada internacional porque suas afirmações são absurdas. Elas não se sustentam quando confrontadas aos fatos. Mas, quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade? Esta é uma pergunta crucial neste momento. E um desafio para o qual precisamos construir uma resposta. E rápido.
Quando já não há uma base comum de fatos a partir da qual se pode conversar, não há linguagem possível. Por exemplo: nas últimas décadas, religiosos fundamentalistas defendem que a teoria da evolução, de Charles Darwin, deveria ser ensinada nas escolas junto com o “criacionismo”, crença pela qual tudo foi criado por Deus. Segundo eles, as duas se equivalem. A questão é que essa afirmação equivale a dizer que uma cadeira e uma laranja são o mesmo. Não são.
A evolução é uma teoria científica, o criacionismo é uma crença religiosa. A primeira foi preciso provar pelo método da ciência. Mesmo se você não acreditar nela, os processos que a teoria da evolução descreve continuarão existindo e agindo. A segunda você pode acreditar ou não e jamais poderá ser provada pelo método científico. As duas não se misturam nem se comparam. Misturá-las faria com que deixássemos de compreender uma parte da Ciência que faz esse mundo funcionar – e faria também com que a dimensão mítica dos textos religiosos se perdesse naquilo que têm de mais poético.
O mesmo vale para a mudança climática provocada por ação humana. Não é uma questão de crença ou de fé. Está provado pelos melhores cientistas do mundo. É tão evidente que a maioria já pode perceber mesmo numa investigação empírica, na sua própria experiência cotidiana. Se o futuro chanceler do Brasil acredita que o aquecimento global é uma “ideologia de esquerda”, o planeta não vai deixar de aquecer por conta da sua crença. Só crianças muito pequenas acreditam que algo vai deixar de existir se elas fingirem que não existe.
Como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar?
Mas, ao tratar fatos como crença – ou como “ideologia” –, tanto Araújo como o presidente eleito podem impedir que o Brasil faça o que precisa para reduzir as emissões de CO2, as principais responsáveis pelo aquecimento global, assim como impedir que o Brasil tome medidas de adaptação ao que está por vir. Temos apenas 12 anos para impedir que o planeta aqueça mais de 1,5 graus Celsius. Se passar disso, os efeitos serão catastróficos. É grave que, nestes 12 anos, em pelo menos quatro o Brasil terá no poder pessoas que confundem fatos com crenças. Ou, para seu próprio interesse, afirmam que aquilo que é fato é a “ideologia” dos outros.
A segunda pergunta crucial neste momento é: como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar? Também precisamos construir uma resposta. E rápido.
A terceira é como devolver o significado às palavras. Por exemplo: uma laranja. De novo. Eu e você precisamos concordar que uma laranja é uma laranja. Se eu disser que uma laranja é uma cadeira, como vamos conversar? Podemos discutir qual qualidade de laranja é melhor, como melhorar a produção de laranjas, de que forma ampliar o acesso de todos ao consumo de laranjas etc etc, mas não podemos discutir se a laranja é uma cadeira ou uma laranja, do contrário não avançaremos em nenhuma das questões importantes sobre a laranja. Tudo o que é relevante, como seu valor nutricional e a evidência de que os mais pobres não têm possibilidade de comprar ou plantar laranjas, ficará bloqueado pelo impasse de o interlocutor insistir que a laranja é cadeira.
Não é uma questão de opinião a laranja ser laranja – e não cadeira. Também não há fatos alternativos. Há fatos. E não há alternativa de a laranja ser uma cadeira. Atualmente, porém, o truque de tratar laranjas como cadeiras para impedir o debate é amplamente utilizado.
Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido, os temas que afetam a vida das pessoas são decididos sem participação popular
Se as palavras são esvaziadas de significado comum, não há possibilidade de diálogo. É o que está acontecendo com a palavra “comunismo”, entre muitas outras. Não há uma base mínima de entendimento sobre o que é comunismo. Então, tudo o que os seguidores de Bolsonaro não gostam ou são estimulados a atacar é chamado de “comunismo”, assim como todos aqueles que eles consideram seus inimigos são chamados de “comunistas”.
O significado de comunismo, porém, foi quase totalmente perdido. E assim a conversa está interditada, porque o que é laranja virou cadeira para uma parte da sociedade brasileira. Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido ou querer ser, os temas que afetam diretamente a vida das pessoas estão sendo decididos sem debate nem participação popular, como, por exemplo, a reforma da previdência.
Os “malucos” que hoje dançam em todos os palcos não são tão malucos assim. Ou, se são, também parecem bem espertos. É claro que há alguns deles que acreditam que, por exemplo, crise climática é “climatismo” ou uma “ideologia de esquerda”, como diz Araújo. Mas a maioria deles sabe que afirmar isso é quase tão estúpido quanto dizer que a Terra é plana. Então, depois de fazer bastante alarme com isso, eles vão para a próxima etapa do roteiro. Qual é?
Enquanto a turma de Bolsonaro faz a dancinha da invasão estrangeira, a Amazônia vai sendo tomada por seus amigos
Afirmar que, sim, é claro que o aquecimento global é um fato, mas “os países ricos já destruíram todas as suas riquezas naturais e agora usam a crise climática para manipular países como o Brasil”. Basta acompanhar as declarações recentes de Bolsonaro e outros do seu entorno para constatar que a estratégia usada para manter os seguidores alinhados será reavivar a falsa acusação de que os indígenas e as ONGs internacionais querem tomar a Amazônia do Brasil. A mentira da ameaça à soberania nacional nunca deixou de se manter ativa na disputa da Amazônia. Mas, em tempos de WhatsApp, pode atingir muito mais gente disposta a acreditar. Já começou.
Enquanto parte dos brasileiros se distrai com a dança dos “malucos”, os ruralistas vão tentar avançar no seu propósito de abrir as terras indígenas para exploração. Não custa lembrar, mais uma vez, que as terras indígenas são de domínio da União. Os indígenas têm apenas o usufruto exclusivo sobre elas. Quando Bolsonaro compara os indígenas em reservas com “animais num zoológico” e diz que os indígenas “querem ser gente como a gente”, querem poder vender e arrendar as terras, ele não está sendo apenas racista.
Ele também está manipulando. A sua turma quer que as terras públicas sejam convertidas em terras privadas, que possam ser vendidas e arrendadas e exploradas. Enquanto fazem a dancinha da invasão estrangeira, a floresta vai sendo tomada por dentro. O nacionalismo da turma de Bolsonaro bate continência não só para os Estados Unidos, mas também para os grandes latifundiários e para as corporações e mineradoras transnacionais.
No futuro bem próximo assistiremos ao que acontece quando um delírio coletivo, construído a partir de mentiras persistentes apresentadas como verdades únicas, é confrontado com a realidade. Às vezes parece que Bolsonaro acredita que tudo vai acontecer apenas porque ele está dizendo que vai. Ele diz, depois se desdiz, aí diz que inventaram que ele disse o que disse. Em resumo: ele diz qualquer coisa e o seu oposto. Em alguns sentidos, Bolsonaro parece uma criança extasiada com o sucesso que faz no mundo dos adultos, com bonés e figurinhas de seus ídolos. Parte do seu entorno, que não é burra, acredita que pode controlar a criança mimada e voluntariosa – e convencê-la a agir conforme seus interesses. Veremos.
Em algum momento, o seguidor de Bolsonaro vai descobrir que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira
O confronto das promessas com o exercício do poder já começou. Como explicar que serão mais de 20 ministérios e não os 15 prometidos? Ou como explicar as consequências de transferir a embaixada para Jerusalém, desrespeitando parceiros comerciais importantes como os árabes? Como lidar com a China, grande importador dos produtos brasileiros, batendo continência para Trump em meio a uma guerra comercial entre as duas grandes potências? Como lidar com os impactos que tudo isso terá na economia e na vida dos mais pobres? Como justificar que postos de saúde poderão ficar sem médicos porque os cubanos foram embora e os brasileiros não querem ocupar os lugares mais difíceis e com menos estrutura? Como lidar com o possível aumento de gestações na adolescência, assim como de Aids e DSTs por falta de políticas públicas de prevenção e educação sexual nas escolas?
A realidade é irredutível. É quando o seguidor descobre que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira. Bolsonaro e sua turma já começaram a experimentar esse confronto. A compreensão ainda não atingiu seus seguidores. Mas atingirá.
Quem se anima com essa ideia, porém, deveria se envergonhar. Quem sofre primeiro e sofre mais numa sociedade desigual são os mais pobres. Se os “malucos” estão dançando no palco é também porque a maioria da população brasileira foi excluída da conversa mesmo na maior parte do período democrático e mesmo na maior parte dos governos do PT. Ainda que Bolsonaro tenha conseguido unir as pessoas em torno não de um projeto, mas de um afeto, o ódio, seu grande número de seguidores se sentiu parte de algo. Desde 2013 já havia ficado muito claro que havia um anseio da sociedade brasileira por maior participação.
Durante parte de sua permanência no poder, o PT também investiu mais nos afetos do que na construção de um projeto junto com as pessoas. Parou de conversar, não achou que precisasse mais das ruas e foi expulso delas em 2013. Depois da corrupção do PT no poder, e não me refiro apenas à corrupção financeira, a esquerda se mostrou incapaz de criar um projeto capaz de unir as pessoas. Isso não é culpa de Bolsonaro. Não adianta acusar o outro de ter um projeto de destruição. É preciso lidar com as próprias ruínas e apresentar um projeto de reconstrução e reinvenção do Brasil que convença as pessoas porque junto com elas.
Se alguém ainda não compreendeu, é o seguinte: para disputar uma ideia de Brasil será preciso, primeiro, ter uma ideia; segundo, convencer a maioria dos brasileiros que este é o melhor projeto para melhorar suas vidas; terceiro, tentar voltar a dançar no palco para recompor a linguagem, restabelecer a importância dos fatos e devolver substância às palavras. Não vai ser fácil.
A maior vitória de Bolsonaro é quando seu opositor fala como ele
Nestas eleições, o Brasil foi esgarçado até quase rasgar. Em alguns pontos, rasgou. Talvez o maior triunfo de Bolsonaro tenha sido interditar qualquer possibilidade de diálogo. Esse processo não foi iniciado por ele nem ele é o maior responsável. Mas, sem bloquear o diálogo, Bolsonaro possivelmente não ganharia a eleição. Hoje, de um lado e outro, as pessoas só sabem desqualificar – e destruir. Aqueles que denunciam Bolsonaro não compreenderam que, ao adotar o mesmo vocabulário e a mesma sintaxe, apenas em sentido oposto, tornam-se iguais. E dão ao seu opositor a maior vitória que ele pode ter. Neste sentido, o do ódio, Bolsonaro unificou o país. Todos odeiam. Não há complemento nesta gramática. Odiar esgota-se no próprio verbo, mas o substantivo destruído é o corpo dos mais frágeis.
Quem quer resistir à redução do Brasil, em tantos sentidos, precisa primeiro resistir na linguagem. Diferenciar-se, também para poder acolher. O único jeito de voltar a conversar é voltar a conversar. Mesmo que para isso tenhamos que falar sobre laranjas e cadeiras.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Matias Spektor: Aliança com 'Lula do Oriente Médio' traz custos para Bolsonaro
Presidente eleito prometeu uma guinada em prol de Israel desde o início da campanha
Jair Bolsonaro está prestes a cometer equívoco do qual pode se arrepender com amargura: colar sua imagem ao "Lula do Oriente Médio".
Pela terceira vez consecutiva, a polícia de Israel denunciou Binyamin Netanyahu por recebimento de propina, fraude e quebra de decoro.
O esquema envolve conglomerados de mídia e indústria de defesa, sua própria esposa, parentes e assessores.
Assim como Lula, Netanyahu se apresenta como vítima de uma conspiração das “elites” incapazes de derrotá-lo pelo voto. Acusa também os investigadores de vazarem informações sensíveis à imprensa.
Como uma parcela do eleitorado acredita cegamente em suas palavras, Netanyahu pode até vencer as próximas eleições, mas seu nome está definitivamente maculado.
Sua perspectiva de poder também. Chefes militares israelenses começaram a criticá-lo, e deputados de sua base iniciaram o desembarque da aliança.
Esse revés cria um problema para Bolsonaro.
O presidente eleito prometeu uma guinada em prol de Israel desde o início da campanha, visitando o país com os filhos e defendendo a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém.
No entanto, Bolsonaro e sua equipe passaram a perceber o tamanho da conta a pagar, caso o Brasil abandone a postura de equilíbrio na questão Israel-Palestina, que é marca registrada da política externa pelo menos desde o governo do general Costa e Silva.
O primeiro custo seria diplomático: isolamento. Apenas os EUA e a Guatemala têm embaixadas em Jerusalém. O Paraguai tentou, mas foi forçado a recuar. O Brasil faria seu movimento por romantismo, a troco de nada. É o pesadelo de qualquer especialista em geopolítica.
O segundo custo seria material: há superávit de quase US$ 8 bilhões com o mundo árabe, em produtos de defesa e proteína animal.
Haveria, ainda, um custo político para Bolsonaro, na forma de articulação entre a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e as grandes multinacionais verde-amarelas com presença no Oriente Médio. De quebra, o custo humano: como disse o comandante da Força-Tarefa da ONU no Líbano, a eventual transferência da embaixada pode tornar tropas brasileiras alvo de terrorismo.
Agora, o custo da guinada acaba de ficar ainda mais alto.
Afinal, o que dá lastro ao alinhamento entre Bolsonaro e Netanyahu é a promessa de vultosos negócios nas áreas militar e de segurança cibernética. O governo brasileiro tem muito a ganhar cooperando com Israel em segurança das fronteiras e combate ao crime organizado e ao narcotráfico.
Só que Netanyahu acumula as pastas de Defesa e Relações Exteriores. A devassa da polícia promete respingar para tudo quanto é canto. Inclusive no exterior.
*Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.
Luiz Werneck Vianna: Bye bye, Brasil?
Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve
Bye bye, Brasil, querem nos embarcar para uma terra nova – por ora, está difícil de evitar – sem reinações de Narizinho, sem Jubiabá, sem um catolicismo gordo e compassivo, sem o culto da cordialidade, sem o jagunço do Euclides da Cunha e os retirantes de Graciliano, o abolicionismo do Nabuco, sem Gilberto Freyre, sem a Coluna Prestes, até sem a Petrobrás e o Banco do Brasil, sair assim, com as mãos abanando e as cabeças vazias. O embarque deve ser imediato, para que nós, que mal conhecemos o liberalismo, num país onde jamais o capitalismo foi uma ideia popular, passemos direto ao neoliberalismo e ao culto da teologia da prosperidade, glória a Deus.
Cirurgia de tal envergadura não é obra solitária, ela foi concebida durante décadas com argumentos vindos de vários setores da vida social, inclusive do PT, que desde suas origens investiu contra a tradição republicana brasileira e o centro político que a encarnava, tal como no episódio famoso, ocorrido em pleno regime militar, em que sua principal liderança declarou que o principal inimigo das classes trabalhadoras era a CLT, e não o AI-5, vindo a sustentar um sindicalismo de resultados em oposição às antigas lideranças sindicais, em boa parte tradicionalmente associadas ao centro político. Em outro momento, com Lula candidato em segundo turno à sucessão presidencial vencida por Collor, seu partido recusou a participação em seu palanque de Ulysses Guimarães, um dos grandes próceres do nosso liberalismo político, como antes declinara assinar a Carta de 88, obra, no fundamental, do centro político, sob a inspiração desse mesmo Ulysses, que a apresentou ao mundo com palavras memoráveis.
A desconstrução do centro político contou com a ação de outros personagens, como setores das elites originárias da dimensão do mercado, desde sempre, tal como no caso da sua acirrada oposição, nos anos 1930, à legislação social, refratária à regulação pelo direito da vida social e ao embrião de social-democracia admitido pela Carta de 88. E mais recentemente, pela ação do Ministério Público, que interpretou em chave salvacionista a luta justa e necessária contra a corrupção sem atentar para as suas consequências e sem discriminar alhos de bugalhos, comportando-se como um macaco solto numa loja de louças, com o que levou à lona a sua representação política.
Estamos em pleno mar, navegando com mapas incertos e pilotagem inexperiente, ela própria sem saber para onde nos quer levar. Os quadros econômicos selecionados pelo governante eleito, os principais formados na ortodoxia da Escola de Chicago, com seus compromissos conceituais e práticos com os processos de globalização, inarredáveis na medida em que correspondem a movimentos seculares das coisas pertinentes à economia mundo, ao menos desde as grandes navegações empreendidas pelo Ocidente – nossa Ibéria à frente –, em suas cabines de comando já se encontram contestados pelo trumpismo do futuro chanceler Ernesto Araújo. A bússola deve estar apontada para qual destino: o da globalização ou o da denúncia do globalismo?
Ruma-se para qual direção, a da autarquia e a do nacionalismo (isso com a turma do Paulo Guedes?), que, na linguagem de Trump, significa America first, atrelando nossa pobre carroça aos objetivos imperiais do presidente americano, que se deixou embair pela anacrônica guerra de civilizações ideada por Samuel Huntington?
Logo nós, que não viemos da matriz anglo-saxônica, mas da ibérica, e somos da família dos bandeirantes, e não da dos pioneiros, para lembrar as antigas lições de Viana Moog; nós, que seguimos a estrada universal em direito do sistema da civil law, esta, sim, entranhada na História do Ocidente, ao contrário do sistema da common law, que Hegel, por exemplo, não reconhecia como filho da razão, e sim do casuísmo de uma cultura singular, sem protagonismo, portanto, na marcha do espírito com que a criatura buscava seu encontro com seu Criador. O Ocidente é uma criação europeia e é aí que nós, os americanos, como reconheceram os fundadores da grande República do Norte, cultores dos autores do Iluminismo nos Federalist Papers, estamos instalados, não se podendo omitir, no caso brasileiro, a criação do seu Estado pelo herdeiro de uma dinastia europeia.
A metafísica rústica dos ideólogos do trumpismo, como o célebre personagem de Voltaire, ignora a sociologia do risco, tão bem estudada pelo sociólogo Ulrich Beck, na crença ingênua de que tudo no mundo se encaminha no sentido da sua melhor solução. Nosso planeta não conheceria uma crise ambiental, em que pesem os alarmes emitidos pela comunidade dos cientistas, inclusive da Nasa, uma agência americana de indiscutida legitimidade científica, acerca dos dados que se acumulam sobre os perigos do aquecimento global. A crer no que enuncia uma parte dos nossos futuros governantes, o desmatamento da Amazônia em nome de uma política expansiva das fronteiras do nosso capitalismo para o agronegócio e a mineração não importaria em riscos e sua denúncia não passaria de fabulações de intelectuais desavisados.
Não se deve chorar o leite derramado. O lado vencedor na sucessão presidencial foi esse que aí está. A oposição a ele não tem por que se precipitar. O mundo gira e a Lusitana roda. Por quanto tempo ainda haverá Donald Trump? E os militares, mais uma vez no proscênio, terão perdido a memória de suas grandes personalidades do passado, dos que lutaram em torno da bandeira do petróleo é nosso, do marechal Rondon, dos pracinhas que em campos de guerra na Itália enfrentaram com bravura o fascismo, das virtudes sem mácula do marechal Lott? E os seres subalternos, até quando suportarão o capitalismo sans phrase, em bruto e sem amortecedores, que ameaça vir por aí?
Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve.
Murillo Camarotto: A ideologia que cabe no ônibus do Itamaraty
Aversão à ideologia parece esquecida na questão de Israel
Ainda não foi apresentada nenhuma explicação razoável para a troca da embaixada brasileira em Israel, confirmada nesta semana pelo deputado Eduardo Bolsonaro, que tem feito as vezes de enviado especial do futuro governo de seu pai em uma visita a autoridades em Washington.
Talvez essa explicação simplesmente não exista, visto que, mais uma vez, o presidente eleito teve que vir a público para consertar as declarações do "garoto". Jair Bolsonaro disse ontem que a mudança de Tel Aviv para Jerusalém seria apenas uma possibilidade - reforçada pela confirmação da vinda de Benyamin Netanyahu para a posse, em 1º de janeiro.
Feita com boné na cabeça, a política externa do futuro governo tem como prioridade a defesa dos interesses de quem anda de ônibus, conforme defendeu em artigo recente o próximo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Esse movimento, de acordo com o chanceler, faz parte da tarefa de extirpar o viés ideológico de dentro do Palácio do Itamaraty.
Segundo seu raciocínio, parte da diplomacia nacional ignora a existência e os interesses da "moça que espera o ônibus às 4 da manhã" ou "do rapaz triste que vende panos debaixo do sol". Fica, no entanto, a pergunta sobre o interesse dessas mesmas pessoas no logradouro da embaixada brasileira na Terra Santa.
A aversão à ideologia - pregada pelo novo chanceler e pelos "garotos" de Bolsonaro - parece esquecida quando o assunto é a delicada questão árabe-israelense. Se há razões não ideológicas para o envolvimento do Brasil nesse conflito, por que elas ainda não foram apresentadas para a população que anda de ônibus?
Bolsonaro passou a campanha citando Israel como exemplo do país que se transformou em potência mesmo diante de grandes adversidades em termos de recursos naturais. Objetivamente, contudo, mencionou somente a tecnologia usada em sistemas de irrigação, que transformou o semiárido israelense em oásis.
Em outra frente, a promessa de mudança da embaixada poderia ser justificada pelo desejo do presidente eleito em fazer um aceno ao eleitorado evangélico, que lhe proporcionou expressiva votação. No caso dos Estados Unidos, o agrado aos religiosos foi a principal explicação para polêmica escolha de Jerusalém.
Por aqui, entretanto, essa justificativa não para em pé. A sede da embaixada brasileira em Israel passa longe das prioridades dos evangélicos. Alguns admitem que gostariam de ver a mudança, mas reconhecem que a esmagadora maioria dos fiéis não está preocupada com o tema.
O que sobra são os potenciais prejuízos. O comércio com os países da Liga Árabe proporcionou ao Brasil um superávit de US$ 8 bilhões no ano passado. As exportações - sobretudo de carne bovina e frango - poderiam ser abaladas caso a embaixada siga mesmo o rumo de Jerusalém.
Certamente, os milhares de trabalhadores dessa cadeia produtiva - muitos dos quais devem andar de ônibus - têm interesse no assunto, mesmo que não estejam acompanhando diariamente as declarações do governo eleito.
Fora da seara econômica, há outros estragos no horizonte. Quais as vantagens para o Brasil em sair de uma posição de neutralidade para, eventualmente, entrar no mapa de extremistas que cometem atentados contra cidadãos inocentes? As justificativas apresentadas até aqui pelo novo governo são precárias.
A boa diplomacia ensina que, independentemente de ideologias, não é recomendável entrar em contenciosos desnecessários. Na linguagem da "moça que espera o ônibus às 4h da manhã" é bobagem entrar em bola dividida quando não há benefícios no horizonte.
No caso em debate, não há. A não ser que Bolsonaro esteja escondendo uma grande parceria estratégica com Israel, com magníficos resultados práticos para a população, a tomada de posição do Brasil no conflito trará apenas desgastes.
No caso americano, o presidente Donald Trump virou nome de praça e de time de futebol em Jerusalém, mas mesmo para esses exemplos não é razoável a comparação com o Brasil. Os Estados Unidos podem ser dar ao luxo de entrar em mais uma polêmica com os árabes ou com os chineses, algo que não está ao nosso alcance.
Jair Bolsonaro venceu as eleições e tem a legitimidade das urnas para implementar o programa que apresentou ao país quando candidato. Fora do palanque, contudo, seu governo deve satisfações a toda a sociedade, e não apenas aos seguidores de redes sociais.
Até o momento, algumas manifestações vindas do novo centro de poder - incluída a questão da embaixada em Israel - parecem ser apenas uma imitação simplória do modus operandi de Trump. Até a postura do presidente americano em entrevistas coletivas já foi replicada por Bolsonaro, que recentemente ignorou uma pergunta e pediu pela próxima, após ser confrontado com um questionamento vindo de um determinado veículo de comunicação.
Assessora "sênior" do pai, a ex-modelo Ivanka Trump foi a responsável pelo descerramento do pano que marcou a inauguração da embaixada americana em Jerusalém, em maio. Não é difícil imaginar algo parecido com Eduardo Bolsonaro, que já é chamado ironicamente nos bastidores do Itamaraty como "o chanceler de fato".
Herdeiros
Assim como na política externa, os filhos do presidente eleito também influenciam o tabuleiro no front interno. Ao chegar para uma reunião no gabinete de transição, anteontem, Flávio Bolsonaro disse aos jornalistas que não será "um senador comum". Ele foi questionado se a presença de herdeiros do presidente nas duas casas do Congresso não poderia esvaziar o papel das principais lideranças do Parlamento.
Em 2009, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva saiu em defesa de José Sarney, que estava sob uma chuva de denúncias relacionadas à criação de cargos e nomeação de parentes por meio de atos secretos. Na ocasião, o petista disse que Sarney "não podia ser tratado como pessoa comum".
Monica De Bolle: Relações alucinadas
Na próxima reunião do G-20, em Buenos Aires, estará exposta a rivalidade entre a China e os Estados Unidos
Às vésperas da reunião de cúpula do G-20 na próxima sexta-feira, o novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, escreveu para a Gazeta do Povo artigo em que explica a importância de ser Ernesto no atual momento. Dentre as razões listadas, diz ele que “algumas pessoas gostariam que o presidente eleito Jair Bolsonaro tivesse escolhido um chanceler que saísse pelo mundo pedindo desculpas”.
“Queriam uma espécie de ministro das Relações Envergonhadas”, diz ele, que pedisse desculpas a todos pela eleição de Bolsonaro. Alucinações exteriores à parte – que o dito artigo contém de sobra – o que me fez parar nesse parágrafo foi a incrível percepção distorcida da importância do Brasil no mundo. Sim, o noticiário internacional cobriu a eleição de Bolsonaro. Sim, a imprensa externa ficou abestalhada com as falas do ex-capitão sobre a democracia, a tortura, Augusto Pinochet, e tantas outras coisas mais. Mas daí a achar que o Brasil tem relevância geopolítica global a ponto de desculpas serem necessárias aos supostos parceiros é salto quântico do futuro ministro das Relações Exteriores.
O Brasil é uma das economias mais fechadas do planeta, está atrasadíssimo nos temas de convergência regulatória para o comércio e o investimento, não tem grande presença nos fóruns mundiais, o que ficará mais uma vez em evidência na reunião de Buenos Aires no dia 30 de novembro. Contudo, o novo chanceler julgou premente escrever um artigo cujo principal objetivo foi atacar de modo pueril os comentaristas da imprensa – aqueles que são “nutridos pela convivência com diplomatas pretensiosos”, ofendendo seus colegas de Itamaraty – e a ONU, deixando entrever o complexo de vira-lata que ainda está entranhado em algumas cabeças brasileiras. Afinal, se Trump ataca a ONU, o Brasil tem de atacar também. Se Trump ataca o New York Times, o Brasil tem de atacar também. Se Trump ataca a China...Sobre isso o futuro ministro resolveu não falar, por enquanto. As bravatas contra o jornal americano e a organização internacional são apenas isso – nem o New York Times, nem a ONU darão ouvidos à sinceridade de Ernesto. Mas a China, bem a China é diferente.
Na próxima reunião do G-20, estará exposta a rivalidade entre a China e os Estados Unidos. A América Latina como anfitriã do encontro, estará entre a cruz e a espada. Não têm condições os países latino americanos de escolher lado – os Estados Unidos têm grande importância para a região, mas hoje a China tem relevância maior.
Após quase duas décadas de ausência de uma política externa que priorizasse a região, a China ocupou o vácuo com investimentos e parcerias crescentes para tudo que é lado. Quando Bolsonaro ensaiou retórica trumpista em relação à China, o Brasil levou um chega-pra-lá imediato. A deduzir da admiração intensa que têm Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro – que por ora, passeia aqui por Washington a discorrer sobre a política externa do novo governo para variadas audiências – pelo governo Trump, é provável que o discurso anti-China volte com alguma força. Assim como é bastante possível que o governo Bolsonaro queira adotar o estilo linha-dura do assessor de Trump para assuntos de segurança nacional, John Bolton, com Cuba e Venezuela.
Em tempo: o estilo linha-dura nada mais é do que um tanto de retórica inflamada misturada com ameaças de mais sanções financeiras na Venezuela e medidas semelhantes em relação a Cuba. Até o momento, as sanções tiveram pouca ou nenhuma eficácia no enfraquecimento do regime ditatorial de Maduro, que enxerga na beligerância a sua própria sobrevivência ao atacar os “imperialistas”. Se algum efeito tiveram as sanções, esse foi o de agravar a crise migratória venezuelana que atinge a Colômbia, o Brasil, o Peru, entre outros países latino americanos. Por fim, a China tem interesses econômicos tanto em Cuba, quanto na Venezuela. Difícil imaginar que ficarão quietos ante tentativas do governo Bolsonaro de comprar a briga ineficaz dos norte-americanos.
É difícil exagerar a importância de Ernesto ficar calado nesse momento tão delicado. Mas o novo chanceler, assim como o filho do presidente eleito que o entrevistou, tem sonhos de grandeza sincera. “Em matérias de grave importância, estilo, não sinceridade, é o que é vital”. Já dizia Oscar Wilde. Preparem-se para grandes alucinações externas e relações externas bastante alucinadas.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Bernardo Mello Franco: A viagem do chanceler
Ernesto Araújo está irritado com as críticas. Em vez de moderar o tom, o futuro ministro reforçou a pregação contra o ‘alarmismo climático’ e as ‘pautas anticristãs’
O novo chanceler está irritado. Ernesto Araújo não gostou das críticas à sua escolha para o Itamaraty. Nessa ele tem razão. Em geral, as reações foram de preocupação e espanto. Fora da bolha bolsonarista, ninguém esperava ver um militante da alt-right no comando da política externa brasileira.
As críticas deveriam ter convencido o futuro ministro a moderar o tom. Ele escolheu o caminho oposto. Em artigo na “Gazeta do Povo”, voltou a se apresentar como um cruzado contra “pautas abortistas e anticristãs”. Também atacou o “alarmismo climático”, como se os estudos sobre o aquecimento global fossem meros boatos de WhatsApp.
Araújo se aproximou do mundo real ao comentar a repercussão da sua escolha. “Alguns jornalistas estão escandalizados, alguns colegas diplomatas estão revoltados”, constatou. Depois voltou a orbitar o seu mundo particular, onde o “marxismo cultural” estaria por trás de uma trama “para que as pessoas não nasçam”.
Dirigindo-se a um interlocutor imaginário, o novo chanceler julgou necessário informar que não precisa de uma camisa de força. “Quando me posiciono, por exemplo, contra a ideologia de gênero, contra o materialismo, contra o cerceamento da liberdade de pensar e falar, você me chama de maluco”, queixou-se.
Depois ele retomou a pregação contra as Nações Unidas, que o Brasil ajudou a fundar depois da tragédia da Segunda Guerra. “No idioma da ONU, é impossível traduzir palavras como amor, fé e patriotismo”, escreveu.
Enquanto Araújo defende ideias exóticas e bajula o novo chefe, prometendo se guiar por sua “mão firme e confiante”, cresce a sensação de o Itamaraty pode ter papel decorativo em sua gestão.
Ontem o deputado Eduardo Bolsonaro assumiu funções de chanceler e anunciou um regime de metas comerciais para os embaixadores. Os que “não trouxerem resultado”, disse, serão removidos de seus postos.
Em visita a Washington, o filho do presidente desfilou com um boné onde se lia a inscrição “Trump 2020”. A turma ainda não subiu a rampa do Planalto e já quer decidir o próximo ocupante da Casa Branca.
O Globo: Chanceler de Bolsonaro diz que combaterá adesão da diplomacia a 'pautas abortistas' e 'anticristãs'
Em artigo para jornal, Ernesto Araújo defende nomeação de 'quem entende de ideologia' para extirpar marxismo e seus 'disfarces' no Itamaraty
RIO — Anunciado como ministro das Relações Exteriores do próximo governo, Ernesto Araújo descreve, em artigo publicado na segunda-feira no jornal "Gazeta do Povo", de Curitiba, como pretende levar adiante a missão de "libertar o Itamaraty" que lhe foi confiada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro. Aráujo afirma que pautará sua atuação pelo combate a políticas que, no próprio Ministério das Relações Exteriores, compactuam com o "alarmismo climático", as "pautas abortistas e anticristãs em foros multilaterais" e a "destruição da identidade dos povos por meio da imigração ilimitada".
Segundo o futuro chanceler, a meta é extipar das relações internacionais brasileiras a "ideologia do PT", que segundo ele nada mais é do que o "marxismo cultural", aquele que busca controlar não mais os meios de produção material, mas de produção intelectual na imprensa e na academia. "Quando me posiciono, por exemplo, contra a ideologia de gênero, contra o materialismo, contra o cerceamento da liberdade de pensar e falar, você me chama de maluco. Mas se isso não é o marxismo, com estes e outros de seus muitos desdobramentos, então qual é a ideologia que você quer extirpar da política externa?"
No início do texto, Araújo aponta que parte da imprensa e dos colegas diplomatas esperava ver Bolsonaro escolher um chanceler "que saísse pelo mundo pedindo desculpas". "Um Ministro das Relações Envergonhadas", ironizou. Essa pessoa seria responsável por "frear o ímpeto de regeneração nacional" e garantir aos pares que nada mudaria no posicionamento global do país.
Contra esse ideia, o futuro chanceler defende uma política externa que traduza a "sagrada voz do povo", entendida como a voz do presidente eleito. Essa voz, segundo Araújo, deve ser autêntica e não "dublada no idioma da ONU", "pois no idioma da ONU é impossível traduzir palavras como amor, fé e patriotismo".
"Isso é um gigantesco equívoco. Em uma democracia, a vontade do povo deve penetrar em todas as políticas. Mas as pessoas daquele sistema midiático-burocrático, que gostam tanto de falar em democracia, não sabem disso. Perguntam-se, assustadas: 'O que vão pensar de mim os funcionários da ONU, o que vai dizer de mim o 'New York Times', o que vai dizer 'The Guardian', 'Le Monde?'", escreveu o embaixador.
No artigo da "Gazeta do Povo", Araújo indica que, quando fala em povo brasileiro, fala da parcela da população que se identifica com as propostas e a ideologia bolsonarista — embora, em seu blog, Metapolítica 17, o futuro chanceler já tenha dito que quem tem ideologia são os outros, já que ele só tem "ideias". Segundo ele, o Itamaraty deve se preocupar com o que esse povo pensa e se relacionar com "o sofrimento, a paixão e a fibra dessas pessoas".
"Alguns jornalistas estão escandalizados, alguns colegas diplomatas estão revoltados. Revoltados por quê? Porque pela primeira vez terão de olhar o seu próprio povo na cara e escutar a sua voz?", arrematou.
O futuro ministro defende que o país precisa de "alguém que entenda de ideologia" para acabar com ela no Itamaraty, ao conhecer suas "causas, manifestações, estratégias e disfarces"."Vencida na economia, a ideologia marxista, nas últimas décadas, penetrou inscidiosamente na cultura e no comportamento, nas relações internacionais, na família e em toda parte", afirma.
Além das propostas de controle do aquecimento climático, de descriminalização do aborto e das que chama genericamente de "anticristãs", Ernesto Araújo inclui entre as pautas a combater dentro do Itamaraty "o terceiro-mundismo automático e outros arranjos falsamente hegemônicos", a "transferência brutal de poder econômico em favor de países não democráticos e marxistas" (supostamente uma referência à China) e "a suavização do tratamento dado à ditadura venezuelana".
Nelson Ernesto Araújo foi confirmado para o cargo ministerial em 14 de novembro. Até então, era diretor do Departamento de Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos e nunca havia chefiado uma missão no exterior. O "brilhante intelectual", como classificou o presidente eleito, se aproximou do bolsonarismo por meio do guru da direita Olavo de Carvalho, radicado nos Estados Unidos. Carvalho elogiou um artigo de Araújo publicado no ano passado na revista do centro de estudos do Itamaraty, intitulado "Trump e o Ocidente". No texto, o embaixador diz que o ocupante da Casa Branca assumiu a missão de resgatar a civilização ocidental, sua fé cristã e suas tradições nacionais forjadas "pela cruz e pela espada" do "marxismo cultural globalista", cujo marco inicial seria a Revolução Francesa, anterior a Karl Marx.