Itália
25 de Abril: Um dia com história em Portugal... e em Itália. Do 'Bella Ciao' à 'Grândola, Vila Morena'
Correio da Manhã*
Foi a 25 de Abril de 1974 que a 'Revolução dos Cravos' acabou com a ditadura do Estado Novo em Portugal. Mas nem só por terras lusas este dia é comemorado como o da libertação de regimes ditatoriais. Corria o ano de 1945 quando, em Itália, o povo italiano colocou um ponto final na ocupação nazi no seu território.
O 25 de Abril é uma das datas mais importantes e mais comemoradas no calendário italiano desde então. Nos movimentos de libertação participaram cerca de 300 mil pessoas. Há investigadores que dizem que este número está nivelado por baixo.
Em Portugal, a 'Grândola, Vila Morena' de Zeca Afonso foi o hino da libertação do Estado Novo. Em Itália, Bella Ciao - popularizado nos últimos anos com a série 'La Casa de Papel' - foi o hino da Resistência Italiana - os partigianos - contra o fascismo de Benito Mussolini e das tropas nazis durante a Segunda Guerra Mundial.
Bella Ciao é uma música cuja origem é desconhecida, historiadores defendem que terá tido origem no final do século XIX. sabe-se apenas que foi baseada em algumas composições antigas, tanto a nível de letra como musical.
Foi no dia 25 de Abril de 1945, há 75 anos atrás, que os partigianos - resistência italiana - anunciaram pela rádio, acompanhada do hino da liberdade, o Bella Ciao, a tomada de poder e a pena de morte para todos os fascistas. Foi a partir dessa data que foram recuperados os últimos territórios que ainda eram ocupados por tropas fascistas ou nazis em Itália. Em menos de uma semana, todas as cidades italianas foram libertadas. Benito Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista em Itália, acabou por ser detido e executado, a 28 de maio de 1945.
*Texto publicado originalmente no Correio da Manhã
Revista online | Lições da Itália ao Brasil de 2022
Vinícius Müller*, especial para a revista Política Democrática online
As mudanças que ocorreram na Itália após a queda do fascismo servem como mote para que Giuseppe Vacca, em A Itália em Disputa: Comunistas e democratas–cristãos no longo pós-guerra (1943-1978), descortine crise que, embora italiana, nos serve de exemplo da complexidade e da temporalidade que formaram o mundo do segundo pós-guerra.
A primeira dimensão remete à bipolaridade entre EUA e URSS e ao entendimento de como esta situação, engessada nas análises sobre a Guerra Fria, foi muito mais dinâmica do que percebemos. Isso porque não só a bipolaridade oscilou entre aproximações e acirramentos, mas também se ajustou em países tão díspares, como o Chile, esmagado pelo golpe de 1973, ou a Hungria, calada após sua revolta contra o stalinismo.
Foi nesta oscilação que a Itália vivenciou seu arranjo entre a Democracia Cristã e o Partido Comunista, ambos de grande apelo popular e amplamente voltados à "desfascistização" do estado italiano. O livro de Vacca mostra o árduo processo para a criação de uma linguagem pedagógica que os unissem em nome do pacto socialdemocrata e de sua versão econômica do estado do bem-estar social. O esforço era voltado para que a direita moderada da democracia cristã pendesse ao seu lado centrista de modo a se aproximar dos comunistas. Esses deveriam, analogamente, ampliar sua disposição de se aproximarem da centro-esquerda.
A dificuldade residia em sustentar estes movimentos em meio às incertezas da ordem internacional. Isso porque, além das tendências em direção daquilo que seria a União Europeia, a recuperação econômica dependia do posicionamento dos EUA e de sua moeda. Por outro lado, tanto o pacto socialdemocrata, como o bem-estar social traziam possíveis inversões ao modo como se entendia o capitalismo. De modo objetivo, esta inversão, crítica e condizente com a crise do liberalismo que se arrastava desde ao menos 1914, dependia de uma reorganização da infraestrutura e dos investimentos, ambos sustentados em partes pelo Plano Marshall. Dependiam, ainda, da capacidade do Estado de garantir não só a oferta de bem-estar, mas, também, exatamente por isso, manter salários baixos como o caminho para o pleno emprego. Este papel do Estado, entre suas variações de intensidade e qualidade, foi visto por muitos como uma concessão ao socialismo. O que poderia significar que a própria trajetória da história estava se realizando: das contradições do capitalismo ao comunismo.
Assim, entre uma situação interna que exigia uma reorganização do Estado após o fascismo e uma externa que envolvia a Guerra Fria e suas nuances, a Itália dependia de tênue ajuste entre dois grandes partidos que, além de terem matrizes diferentes, competiam eleitoralmente. A possibilidade do acordo, portanto, era dependente da qualidade de suas lideranças, destacadamente do democrata cristão Aldo Moro. Seu assassinato em 1978 marcou o colapso do que ainda sobrava do ajuste político do segundo pós-guerra na Itália. E tornou ainda mais confusa a análise sobre as causas da ruptura do pacto político que vigorava há três décadas. As mudanças no cenário internacional, marcadas pelo fim do padrão de Bretton Woods, pela crise do petróleo e pela reorganização da Guerra Fria a partir da aproximação entre EUA e China - e, consequentemente, pelo recrudescimento da bipolarização entre os norte-americanos e os soviéticos – tornaram ainda mais difícil a manutenção da linguagem comum necessária ao ajuste entre democratas-cristãos e comunistas.
Por outro lado, a Itália, assim como a Europa ocidental, se debatia com os limites de sua autonomia na disputa da Guerra Fria e via, a exemplo de alguns de seus vizinhos, o bem-estar social e a socialdemocracia serem fortemente golpeados pelo próprio limite econômico e social que este modelo keynesiano-fordista apresentava: crise fiscal e esclerose institucional.
Não à toa, um ano após o assassinato de Aldo Moro, Margaret Thatcher ascenderia ao governo britânico, e Paul Volcker prepararia, com sua abrupta mudança na condução das taxas de juros nos EUA, o cenário da retomada do liberalismo. A Itália, neste contexto, perdia mais do que a liderança de Aldo Moro, mas também o timing do ajuste necessário para o novo horizonte que nascia: a ascensão de lideranças populistas em meio à crise do bem-estar social, da retomada do liberalismo globalizado e, por que não, da própria desqualificação da democracia. Cada um a em seu tempo.
Ou seja, Vacca nos mostra tanto as possibilidades de um pacto em defesa da democracia como os equívocos produzidos pelo frágil entendimento das mudanças que, inexoravelmente, ocorrem. Lança luzes sobre o papel das lideranças que são capazes de acelerar o processo de adaptação a estas mudanças, e, mais importante, que entendem que essa agilidade pode ser a diferença entre a vida e a morte da democracia. Foi assim na Itália, entre 1943 e 1978, mas poderia ser no Brasil de 2022.
Saiba mais sobre o autor
*Vinícius Müller é Doutor em História Econômica. Membro do Conselho Curador da FAP.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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RPD || Gianluca Fiocco: Da pandemia se sai pela esquerda?
Alemanha teve eleições com resultado histórico, que favorece a causa europeísta
Gianluca Fiocco / RPD Online
A recente votação na Alemanha marcou, de alguma forma, o fim de uma era. Angela Merkel, cuja chancelaria caracterizou fortemente o cenário alemão e europeu por 16 anos, não se candidatou. Seu afastamento representou sério problema sobretudo para seu partido, o CDU, que ficou órfão de sua presença carismática e estabilizadora. Mas todo o sistema partidário, desprovido de líderes minimamente comparáveis a sua estatura, sofreu com o fechamento desse ciclo.
Podemos considerar históricos os resultados que saíram das urnas: pela primeira vez desde o pós-guerra, as duas colunas tradicionais da política alemã – a socialdemocrata e a democrata-cristã – ficaram ambas abaixo de 30%. A ligeira prevalência do SPD (25,7% dos votos) conduziu as negociações para a formação de uma coligação que está sendo chamada de "semáforo" – vermelha, amarela e verde, respectivamente, dos socialdemocratas, liberais (11,5) e do partido ecológico do Grünen (14,8). As negociações foram anunciadas, porém não são fáceis, e seu fracasso também recolocaria a CDU no jogo.
Em todo caso, o debate antes e depois das eleições favoreceu a causa europeísta. A capacidade de Merkel de colocar a UE em novos caminhos, realçando seu perfil, foi especialmente enfatizada. Com exceção dos partidos mais extremistas (a eleição foi particularmente ruim para a esquerda do Linke, mas também para a direita ultranacionalista do AFD, que seguiu o mesmo ritmo), todos os candidatos se perfilaram para assegurar as responsabilidades alemãs na Europa e a centralidade da dimensão europeia nas grandes escolhas da Alemanha. Também a anunciada intenção de reunir no programa do futuro governo as questões sociais, as necessidades de estabilidade financeira e os objetivos da transição ecológica (com a meta de abandonar o carvão até 2030) representa um dos desafios políticos que hoje está diante de toda a Europa, como "potência civil" capaz de representar um modelo de desenvolvimento equitativo e sustentável.
Uma das primeiras atitudes de Merkel após as eleições foi visitar Roma, onde encontrou Mario Draghi e o Papa Francisco. Foi uma iniciativa significativa já que a própria conexão Merkel-Draghi se revelou fundamental para o lançamento das políticas de auxílio do Banco Central Europeu que têm salvaguardado o euro e a solidez da UE.
A Itália também vivenciou eleições, embora apenas em nível local. Cidades importantes como Roma e Turim estiveram envolvidas. Ao contrário da Alemanha, onde o sistema partidário mostrou sua vitalidade e o nível de participação dos cidadãos foi alto, o voto italiano mostrou um difuso descontentamento com a dimensão administrativa e rachaduras gritantes na relação entre os cidadãos e as forças políticas. Um observador autorizado como Sabino Cassese chegou à amarga conclusão de que "todos perderam. Perderam as forças políticas que tiveram de encontrar seu candidato fora delas, porque dentro delas não foram capazes de selecionar e formar uma classe dirigente. Perderam as classes políticas locais porque os eleitores nas eleições municipais diminuíram na última década mais do que o dobro em relação às últimas eleições gerais. Perderam os vencedores dos segundos-turnos porque só conseguiram o apoio de um quarto ou um quinto do eleitorado".
Se nos anos noventa a eleição direta de prefeitos encarnou na Itália a ideia de renovação das instituições, mais próximas das necessidades das pessoas, agora parece evidenciar as dificuldades dos partidos em manter raízes efetivas na sociedade. Este é um sinal de alerta a ser levado em conta frente às futuras eleições para a renovação do Parlamento. Os dados estatísticos dos últimos anos indicam que existe um interesse pelas questões políticas em comparação com os dados de muitos parceiros europeus, mas a confiança nos mecanismos e no valor da participação na vida política tem caído.
Os resultados da Itália premiaram claramente a centro-esquerda, ao passo que a direita (tanto a Lega, no governo, quanto Fratelli d’Italia, na oposição) sofreu duro golpe. Nestes casos, é difícil, talvez impossível, estabelecer em que medida os fatores locais ou nacionais favoreceram o êxito. Talvez não seja tão forçado dizer que fatores europeus também pesaram: a associação da direita com os chamados soberanistas (embora bastante moderados na versão italiana) não rendeu, e até se mostrou negativa, nesse momento em que o apoio da UE aparece como uma esperança de sair da crise sanitária, econômica e social desencadeada pela pandemia. Os fundos europeus extraordinários da Next Generation EU permitiram o lançamento do ambicioso “Plano Nacional de Recuperação e Retomada”, que é gerido por uma figura intimamente ligada ao plano pró-europeu, como Mario Draghi. O Partido Democrático (PD) foi visto como o defensor mais consistente desse plano, e seus candidatos se beneficiaram dele.
A aposta europeísta expressa precisamente a forte conexão entre os votos da Alemanha e da Itália. Em ambos os países, as questões europeias têm influenciado as escolhas dos eleitores de uma forma que parece demonstrar confiança generalizada no papel que a UE vem desempenhando na segurança e no bem-estar dos seus cidadãos. Como observou o historiador Sandro Guerrieri, “a União Europeia funciona quando se encontram soluções que representam um valor agregado às políticas e linhas de conduta dos governos individuais”. O atual esforço de recuperação é um desses momentos e pode ser decisivo para uma retomada do europeísmo de cunho social e progressista. “Da pandemia se sai pela esquerda”, declarou o secretário do PD, Enrico Letta, comentando o novo equilíbrio político alemão. Se o novo chanceler for realmente uma expressão da aliança vermelho-amarelo-verde, essa perspectiva certamente ganhará impulso.
*Tradução de Alberto Aggio
Saiba mais sobre o autor
Gianluca Fiocco é professor e pesquisador de História Contemporânea vinculado a Universidade Roma2, “Tor Vergata”. É também membro do Conselho de Direção Científica da Fundação Gramsci de Roma. Dentre as suas publicações está Togliatti, il realismo della política, Roma: Carocci, 2018.
Dezenas de milhares protestam contra o fascismo na Itália
Italianos saem às ruas de Roma a favor da democracia e pedem proibição de grupos neofascistas
Dezenas de milhares de italianos saíram às ruas de Roma em protesto contra o fascismo neste sábado (16/10), uma semana depois de extremistas de direita invadirem a sede da maior associação sindical da Itália, durante atos contrários às medidas anticoronavírus no país.
A manifestação antifascista foi liderada pelo chefe da federação sindical CGIL, Maurizio Landini, ao lado de outros líderes sindicais, sob o slogan "Fascismo nunca mais". Organizadores estimaram que até 100 mil manifestantes estiveram reunidos na praça de San Giovanni in Laterano – historicamente associada à esquerda.
"Esta não é apenas uma réplica ao 'esquadrismo' fascista", disse Landini à multidão, citando uma palavra usada para se referir às milícias fascistas que começaram a operar após a Primeira Guerra Mundial. "Esta praça também representa todos aqueles na Itália que querem mudar o país, que querem fechar as portas à violência política."
Alguns dos presentes agitavam cartazes onde se lia "Si vax" (vacina sim), uma resposta direta aos manifestantes armados com pedaços de pau e barras de metal que destruíram a sede da CGIL na capital italiana em 9 de outubro, sob o símbolo "No vax".
Na ocasião, a polícia deteve 12 pessoas, incluindo líderes do partido de extrema direita Forza Nuova (Força Nova), após milhares saírem às ruas contra os chamados "passes verdes", recém-impostos aos trabalhadores italianos.
Desde esta sexta-feira, só podem comparecer ao local de trabalho na Itália os funcionários que estiverem vacinados, tiverem se recuperado de covid-19 ou apresentarem um teste negativo.
Em Roma, os protestos do fim de semana passado descambaram para a violência. Várias centenas de pessoas se separaram da manifestação na capital italiana e tentaram marchar até o Parlamento e, aparentemente, também invadir o escritório do primeiro-ministro, Mario Draghi, que fica nas proximidades. Houve confrontos com a polícia. Outros invadiram a sede da CGIL, atacaram guardas e destruíram escritórios. Alguns policiais ficaram feridos.
"Um país sem memória não pode ter um futuro"
Landini, secretário-geral da CGIL, comparou a invasão de sábado passado com os ataques às uniões sindicais por parte do recém-fundado Partido Nacional Fascista em 1921. O líder fascista Benito Mussolini assumiu o poder no ano seguinte e depois levou a Itália à Segunda Guerra como aliada da Alemanha nazista.
A CGIL e outros dos principais sindicatos italianos, também presentes na manifestação deste sábado, pediram ao governo que dissolva e proíba grupos neofascistas e neonazistas, bem como o partido de extrema direita Forza Nuova.
"Pedimos atos concretos, não apenas conversa fiada. É hora de o Estado demonstrar sua força democrática na aplicação da lei e da Constituição", afirmou Landini. "Um país que perde sua memória não pode ter um futuro."
O chefe da Confederação Geral do Trabalho Italiana (CISL), Luigi Sbarra, por sua vez, afirmou que o ataque contra sindicatos liderado pelo Forza Nuova fez com que "estar ali fosse a única escolha, unidos contra todos os tipos de fascismo". Ele também clamou pela rápida dissolução da legenda por parte das autoridades italianas.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/dezenas-de-milhares-protestam-contra-o-fascismo-na-it%C3%A1lia/a-59529232
Especialistas debatem modelos da Alemanha e Itália para eleições no Brasil
Webinar da FAP será realizado no dia 16 de outubro com participação de Renata Bueno, Arlindo Fernandes e Soninha Francine
Cleomar Almeida,da equipe da FAP
Especialistas vão discutir possíveis contribuições ao sistema eleitoral brasileiro por parte de experiências da Itália e Alemanha, onde os social-democratas de centro-esquerda venceram por uma pequena margem o partido da chanceler Angela Merkel nas eleições realizadas no mês passado. O debate será realizado, no dia 16 de outubro, a partir das 10 horas, em evento online da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
O webinar terá transmissão, em tempo real, no portal, na página do Facebook e no canal da fundação no Youtube. Confirmaram participação a primeira cidadã nascida no Brasil a tornar-se deputada no Parlamento italiano, Renata Bueno, que também é ex-vereadora de Curitiba (PR); a ex-vereadora de São Paulo Soninha Francine e o consultor do Senado Arlindo Fernandes, especialista em direito eleitoral.
Assista!
Fernandes diz ser muito comum o sistema eleitoral alemão ser adotado como referência no mundo quando se discute o assunto. “Lá, eles adotaram sistema eleitoral misto”, afirma o consultor do Senado. “Não havia maioria, na Constituinte de 46, nem para adotar o sistema proporcional nem para adotar o sistema majoritário distrital”, explica.
Na época, conforme lembra o especialista, a Alemanha fez um acordo para adotar o sistema misto, “considerado, tecnicamente, bastante desenvolvido”. “Nas últimas décadas, com a onda de democratização e reformas dos sistemas eleitorais, em democracias mais consolidadas, como Nova Zelândia e Itália, o modelo alemão tem sido o sistema adotado em países que mudam o sistema eleitoral”, diz.
Na avaliação de Fernandes, “o sistema alemão é possível ser adotado no Brasil porque não ofende, não afronta, a cultura política, com a qual o povo brasileiro está acostumado, que é a do voto na pessoa”. “Tem o voto no partido, mas também tem o voto na pessoa”, observa o consultor.
Renata Bueno, por sua vez, acredita que o resultado da eleição na Alemanha, um dos líderes fundadores da União Europeia, provocou uma “boa mudança no cenário político” no país e em todo o restante do quadro europeu, “justamente porque levanta uma bandeira de mais centro-esquerda”.
Ela também acredita que o modelo italiano seja interessante. “Na Itália, é parlamentarismo. São as listas eleitorais que acabam somando a maioria no parlamento, e isso gera a vaga para o primeiro-ministro. Eles votam lei eleitoral próximo a eleição, dando detalhes de como funcionará aquela disputa”, explica.
“Na última lei eleitoral na Itália, eles seguiram muito o modelo alemão, com alguns votos uninominais e outros por listas proporcionais, isso porque ali tem Senado e Câmara e acaba tendo voto misto. Seria quase um distrital misto com vários detalhes também”, compara ela.
Na avaliação de Soninha Francine, a discussão de modelo político, a partir de experiências de outros países, pode ajudar muito o Brasil a adotar um sistema mais adequado para as eleições. “Não tem como evoluir, como discussão política, se não entender melhor do que está falando. Analisar os modelos de outros países pode fazer a maior diferença”, ressalta.
Webinar sobre sistemas eleitorais na Alemanha e Itália
Data: 16/10/2021
Horário: 10 horas
Transmissão: portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da FAP
Realização: FAP
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Ampla frente democrática será discutida pela FAP como alternativa a Bolsonaro
Luiz Carlos Azedo: O braço armado de Bolsonaro
“No establishment econômico, institucional e militar, a interrogação é se chegaremos em 2022 com Bolsonaro no poder”
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O imponderável da democracia brasileira, com eleições limpas e apuração instantânea, é o voto popular. Vem daí o medo que Jair Bolsonaro sente das urnas eletrônicas, porque sua reeleição subiu no telhado, em razão de o país estar à matroca — com inflação em alta, desemprego em massa, crise sanitária e risco de apagão. Por isso, ameaça tumultuar as eleições de 2022. O presidente da República teme não se reeleger, desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva despontou como favorito nas pesquisas de opinião, mesmo sabendo que ninguém ganha eleição de véspera. Outros postulantes querem romper essa polarização: João Doria (PSDB), Ciro Gomes (PDT), Henrique Mandetta (DEM), quiçá Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, e Sérgio Moro, o ex-juiz que não se assume como candidato e continua pontuando nas pesquisas. Nas simulações de segundo turno, Bolsonaro perderia para todos. Obviamente, esse cenário ameaça até sua presença no segundo turno.
Pressionado psicologicamente, diante do próprio fracasso político-administrativo, a 14 meses das eleições, Bolsonaro aposta na polarização ideológica e na radicalização política extrema. Busca um atalho para se manter no poder. Apoiado por partidários fanatizados, escala um confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF) e trabalha para melar as eleições, ao levantar suspeitas sobre a integridade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na condução do pleito. Tenta intimidar a oposição, a imprensa e os ministros do Supremo, e arrastar as Forças Armadas para uma aventura golpista. Não obteve sucesso até agora. Quer transformar o Sete de Setembro, no qual pretende realizar duas grandes manifestações, uma em Brasília e outra em São Paulo, numa demonstração de que pode resolver no braço o que não consegue pelo convencimento, como fazem os valentões.
Os próximos meses serão complicados. Bolsonaro tem um pacto com os violentos. Primeiro, com as milícias do Rio de Janeiro, cujo modelo de atuação naturalizou e traduziu para a política. Aproveitando-se dos interesses corporativos de categoriais profissionais embrutecidas pelos riscos da própria atividade, mobiliza atiradores e indivíduos que cultuam a violência por temperamento ou ideologia, fundamentais para a formação de falanges políticas armadas, para as quais conta com a expertise de militares reformados e agentes de segurança pública. A violência sempre presente nos territórios dominados por atividades transgressoras ou na fronteira da economia informal, onde não existe título em cartório e as dívidas são cobradas sob ameaças, é o caldo de cultura de que se aproveita.
Establishment
Na Itália do jurista, político e ex-primeiro-ministro Aldo Moro, assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas, os terroristas escreveram nos muros da sede da Democracia Cristã: “Transformar a fraude eleitoral em guerra de classes”. Com sinal trocado, quando fala que o povo deveria comprar fuzil e não feijão, Bolsonaro sinaliza na direção de que pretende transformar as eleições numa guerra. Está armando os militantes que pretende mobilizar para tumultuar o pleito, como tentou Donald Trump nas eleições americanas, diante da impossibilidade de mobilizar as Forças Armadas para dar um golpe de Estado.
No establishment econômico, institucional e até mesmo militar do país, porém, a grande interrogação é se chegaremos às eleições de 2022 com Bolsonaro no poder. Sua escalada contra as regras do jogo democrático e contra o Supremo não tem como dar certo. No limite, propõe a discussão sobre a eventualidade de interdição por insanidade mental ou inelegibilidade por atentar contra a democracia. Talvez seja essa a aposta do presidente da República, para provocar uma crise institucional de desfecho violento.
A democracia é uma conquista civil da qual não se pode abrir mão precisamente porque, onde ela foi instaurada, substituiu a violenta luta pela conquista do poder por uma disputa partidária com base na livre discussão de ideias. Condenar as eleições, esse ato fundamental do sistema democrático, em nome da guerra ideológica, nos ensina o mestre Norberto Bobbio, significa “atingir a essência não do Estado, mas da única forma de convivência possível na liberdade e através da liberdade que os homens até agora conseguiram realizar, na longa história de prepotência, violência e cruel dominação”. Deixemos o povo resolver as disputas pelo voto, em clima de eleições pacíficas e ordeiras.
Travessia política: Gramsci
Gilvan Cavalcanti de Melo, Blog Democracia Política e Novo Reformismo
Agradeço o convite para debater, nesta travessia política as ideias de um italiano que há anos se tornou referência para mim. Trata-se de Antonio Gramsci, o mais importante - talvez o maior - pensador da tradição marxista-ocidental do século passado, cujos 116 anos do nascimento foram celebrados em 22 de janeiro de 2007.
Gramsci morreu em 27 de abril de 1937, aos 46 anos. A morte o derrotou no instante em que conseguira a liberdade. Dois dias antes, recebera o documento assinado pelo Juiz do Tribunal Especial de Roma com a declaração de que fora suspensa qualquer medida de segurança em relação a ele, que foi preso por ordem de Mussolini em 8 de novembro de 1926. No processo-farsa montado pelo Estado fascista, o promotor pediu aos juízes sua condenação; olhando-o sentenciou: ”É preciso impedir este cérebro de funcionar”. O castigo ocorreu, mas não se conseguiu impedir que, de dentro da prisão, fosse escrita uma obra monumental, para a eternidade (Für ewig).
Condenado, Gramsci fez com que sua inteligência penetrasse na densidade sombria da realidade. Recusou a vaidade demagógica de uns e o dogmatismo mofado dos outros. Não pensou em formular uma nova e original filosofia da práxis. Só mais tarde manifestou a consciência do valor de sua reelaboração. Ousou, do interior do cárcere, na solidão, inclusive política, desafiar a ignorância e as banalidades stalinistas. Foi por muito tempo negligenciado e desconhecido até pelos que, ao contrário, deveriam tê-lo amado e o honrado mais intensamente.
Por que minha curiosidade por esse homem e sua obra? Originalmente, meu contato com Marx se deu com leituras de textos de outro italiano, Antonio Labriola (1843/1904). Era uma espécie de vacina antidogmática. A partir daí, descobri Gramsci rapidamente. No início senti comoção por aquele homem frágil, sofredor e perseguido. Na sequência, admiração pela sua coragem e combatividade. Depois, interesse crescente pelo seu pensamento denso. Mais tarde, aceitei seus ensinamentos e visão sobre a filosofia de Marx. Esse encontro ocorreu entre os anos 1958 e 1962, por meio de publicações argentinas que chegavam a Recife. Nesse contexto, um papel importante foi desempenhado nessas minhas descobertas pelo gerente da livraria Editora Nacional, na Rua da Imperatriz.
Até hoje, há uma polêmica sobre o porquê da recusa de Gramsci em usar o termo materialismo ou marxismo. Uma grande parte de estudiosos atribui o fato a uma maneira de ultrapassar a rigidez da censura. É preciso ressaltar, entretanto, que aqueles termos estavam relacionados a uma visão economicista, dogmática e ortodoxa, cujo símbolo mais conhecido era o manual Ensaio popular, de Nicolau Bukarin. Em sua defesa Gramsci foi buscar o exemplo de Marx no prefácio de O capital. Ali, o corifeu da nova filosofia falava de “dialética racional” e “dialética mística” em vez de dialética materialista e dialética idealista.
Estou convencido de que o uso do termo filosofia da práxis foi consciente, no sentido da revalorização da atividade cultural e da dimensão ético-política. Ao mesmo tempo em que travava uma batalha contra os dogmáticos, Gramsci considerava que a filosofia da práxis deveria reconquistar a força criadora da qual se apoderara o pensamento moderno preconceituoso em relação a Marx: Bérgson, Sorel, Croce, Weber, Veblen, Freud, o pragmatismo e, através de Spengler, Nietzsche também.
Seria interessante recordar a crítica de Gramsci às duas correntes principais existente na época: a ortodoxa e a oposta. A primeira era representada por Plekhanov, cuja obra Os problemas fundamentais do marxismo, não foi a poupada por Gramsci, que a chamou de materialismo vulgar e a considerou típica do método positivista. Já a segunda queria ligar a filosofia da práxis ao kantismoou outras correntes não positivista e não materialistas; era representada por Otto Bauer, que chegou a afirmar que o marxismo poderia ser baseado em - e integrado por - qualquer filosofia. Daí, a preocupação de Gramsci em colocar em circulação o pensamento de Antonio Labriola. Tratava-se do contraponto ao grupo intelectual alemão que exercia uma forte influência em determinada leitura de Marx, na Rússia. Gramsci valorizava a ideia de Labriola de que a filosofia da práxis era independente de qualquer outra filosofia, sendo auto-suficiente.
Ao meu ver, é interessante destacar o núcleo do pensamento gramsciano: a palavra chave era o homem como bloco histórico. O tema foi polemizado com Lukács. Vejamos a refutação da teoria da dualidade:
“Deve-se estudar a posição do professor Lukács em face da filosofia da práxis. Lukács, ao que parece, afirma que só se pode falar de dialética para a história dos homens, não para a natureza. Pode estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue unificar e relacionar o homem e natureza mais do que verbalmente. Mas se a história humana deve ser concebida também como história da natureza (através também da história da ciência), como então a dialética pode ser destacada da natureza? Lukács, talvez, por reação às teorias barrocas do Ensaio Popular, caiu no erro oposto, em uma forma de idealismo”.
E reafirmando sua concepção unitária do homem, Gramsci escreve:
“É possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central. Neste sentido o verdadeiro filósofo é – e não pode deixar de ser - nada mais do que o político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma personalidade significa adquirir consciência destas relações, modificar a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações”.
Nessas palavras, está presente uma visão, uma interpretação da décima primeira tese sobre Feuerbach, escrita por Marx: conhecer a realidade e transformá-la.
A chave bloco histórico está presente na relação entre intelectuais e não-intelectuais, por meio dos conceitos senso comum e de bom senso. Gramsci salientava que todos os homens são filósofos e definia os limites e as características dessa peculiaridade. Essa singularidade está contida, em primeiro lugar, na própria linguagem, isto é, um conjunto de conceitos com conteúdos, bom-senso. Em segundo lugar, no senso-comum, na religião popular, em todo o sistema de crenças, superstições, etc.
Gramsci também encontrou a chave para unificar, criticamente, esse conjunto de filosofia, através da análise do conceito de senso comum e bom senso. Vejamos como ele resolve a questão de maneira muito clara:
“Passagem do saber ao compreender, ao sentir e vice-versa, do sentir ao compreender, ao saber. O elemento popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual sabe, mas nem sempre compreende e, em especial, sente. É preciso reconciliar os dois extremos. Sem essa conexão entre intelectuais e povo/nação, não se faz política: unidade, bloco histórico”.
Esse conceito, unitário perpassa todo o trabalho e a formação de outros conceitos e categorias. Está presente também na relação estrutura e superestrutura. Vejamos outro exemplo, quando Gramsci se refere às “ondas” dos movimentos históricos: de um lado, chama a atenção para o exagero de economicismo ou de doutrinarismo pedante; e, de outro, para o limite extremo de ideologismo.
Essa separação poderia levar a graves erros na arte política de construir a história presente e futura e dar lugar a fórmulas infantis de otimismo e bobagens. Por isso, Gramsci estabeleceu uma distinção metodológica de dois momentos para a análise de uma situação concreta, circunstância ou conjuntura. O primeiro está unido à estrutura, objetiva, ao grau de desenvolvimento das forças materiais de produção, à formação dos agrupamentos sociais, suas funções e posição na produção. Essa realidade permite investigar se numa determinada sociedade já existem as condições indispensáveis e suficientes para sua transformação. O segundo é a relação das forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciência e organização adquirido pelos diferentes grupos sociais. Gramsci considerava que esses momentos se confundiam reciprocamente na vida real.
Mais uma vez, ele procurava resolver duas questões apresentadas por Marx no prefácio à Crítica da economia política: a) uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente forte e vigorosa, e novas relações de produção mais adiantadas jamais se firmarão antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade; b) a humanidade mira apenas os problemas que pode resolver, pois a tarefa só aparece onde as condições materiais da solução já existem, ou, pelo menos, onde são captadas no processo do seu devir.
Gramsci, ainda desenvolveu o conceito de revolução passiva, deduzindo-o dos dois princípios estabelecidos por Marx, no mesmo prefácio e reportando-o à descrição daqueles dois momentos que podem distinguir a situação concreta e o equilíbrio das forças com a máxima valorização do segundo: a relação de forças políticas.
O mesmo conceito de bloco histórico serviu-lhe para resolver um falso problema da separação - que só existe metodologicamente - entre Estado e sociedade civil. Mas Gramsci deixou bem explicitado que essa relação dialética exigia um reconhecimento do terreno nacional. Ao analisar formações sociais atrasadas (Oriente) e adiantadas (Ocidente), estabeleceu um critério de estudo: Nos países pouco desenvolvidos, o Estado é tudo, e a sociedade civil, primitiva e viscosa; nos países capitalistas mais avançados, há entre o Estado e a sociedade civil uma relação de disputa, pendência, e diante de qualquer tremor ou oscilação do Estado, descobre-se imediatamente, uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado é apenas um posto avançado, por trás do qual se situa uma poderosa rede de proteção blindada. Partindo dessa visão Gramsci reexaminou o conceito leniniano de hegemonia.
Entre os elementos força e consenso, deu ênfase aos ordenadores do sistema de hegemonia: as organizações e instituições políticas e culturais nas quais esse sistema se materializa e os sujeitos, forças sociais e instituições que o constroem e se reproduzem. Ao mesmo tempo, demonstrou que os sistemas hegemônicos não são eternos, mas históricos, bem como salientou o processo e a possibilidade de se construir uma nova hegemonia político-moral.
Mais uma vez, estou convencido de que por meio de uma série de problemas examinados por Gramsci dentro do pensamento filosófico, no início da década de 30, foi possível antecipar as novas contradições das sociedades modernas - suas complicações, crises econômicas e morais - e a passagem do velho individualismo econômico para a economia programática, uma nova hegemonia. De fato Gramsci vislumbrou as grandes transformações capitalistas. Com o famoso texto “Americanismo e fordismo” demonstrou sua enorme capacidade de olhar o mundo além do seu tempo.
A mesma coerência unitária é destacada em sua visão de partido político. Ele partia do questionamento da necessidade histórica de sua existência, recusando-se a aceitar um tipo de organização oriental burocrática, e propunha algumas condições, para a sua realização, entre elas a possibilidade de seu triunfo, ou, pelos menos, uma via pera esse triunfo fosse alcançado.
Contudo, para que o partido exista, é necessária a unidade de três grupos de elementos: a) um elemento de homens comuns, médios, cuja participação é oferecida pela disciplina e fidelidade; b) um elemento principal de coesão, que o unifique no campo nacional, torne eficiente e poderoso um conjunto de forças (Esse grupo é dotado de determinadas premissas, como criatividade, perspectiva e união; c) um elemento médio, que articule o primeiro grupo com o segundo, colocando-os em sólido contado intelectual e moral.
Evidentemente, não concordo com aqueles estudiosos e críticos de sua obra que tentam fragmentá-la, em várias interpretações: os que, em matizes, formas e graus diferentes, colocam Gramsci no campo exclusivo do leninismo; os fundamentalmente, interessados, nas inovações que ele introduziu nas análises das superestruturas; e os que o preferem como o filósofo da sociedade industrial.
Ora, Gramsci respondeu à pergunta: “O que é o homem?” e afirmou que esta é a primeira e principal questão da filosofia. Também perguntou: como respondê-la? A resposta foi resumida mais ou menos assim: “O homem é o que o homem pode se tornar, se pode controlar seu próprio destino, se pode se fazer, se pode criar sua própria vida”. Portanto, o homem é um processo, exatamente o processo de seus atos. Em suma, a humanidade se reflete em cada individualidade e é composta de distintos elementos: o indivíduo; os outros homens e a natureza, isto é, bloco histórico. Como fragmentá-lo?
Gramsci, modesto como era, não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e fecundo que grandes correntes de opinião formavam. Assim o faz quando estudou o conceito de classe política de Gaetano Mosca, relacionando-o com o conceito elite de Vilfredo Pareto. Foi Benedetto Croce, um dos mais importantes filósofos italiano, seu principal interlocutor. O conjunto dos Cadernos do cárcere, na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e positivista do marxismo. Hoje, as categorias gramscianas são reconhecidas e estudadas, nos meios acadêmicos, como instrumentos de análise da modernização conservadora brasileira e de suas complexas superestruturas.
A vida de Gramsci, pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia ser designada como a de um homem derrotado. Mas a ignorância de uma época iluminou a extraordinária força moral e o rigor intelectual do sujeito que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas, fontes de energia para recomeçar a avançar. Ele suportou o seu destino, com coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e patético, conservando sempre o controle racional dos sentimentos.
Diante disso, como resistir à tentação de falar sobre Gramsci e sua obra tão rica, fecunda, dando-lhe o papel de herói num mundo cheio de vilões teóricos?
Para finalizar, nada melhor do que me referir a outro Italiano, Norberto Bobbio, Ele dizia que, para garantir um lugar entre os clássicos, um pensador deve preencher estes três requisitos: a) ser considerado intérprete da época em que viveu, não se podendo prescindir de sua obra para conhecer o “espírito do tempo”; b) ser sempre atual, no sentido de que cada geração sinta necessidade de relê-lo e, relendo-o, de dedicar-lhe uma nova interpretação; c) elaborar categorias gerais de compreensão histórica que não possam ser dispensadas para interpretar uma realidade, mesmo distinta daquela a partir da qual essas categorias derivaram e à qual foram aplicada.
Hoje, ninguém, duvida que Gramsci deva ser considerado um clássico na história do pensamento.
*O presente texto foi apresentado no Colóquio Internacional Travessias: políticas, urbanas, literárias e cinematográficas, realizado nos dias 10 e 11 de agosto de 2006, no auditório do Consulado Italiano, no Rio de Janeiro. Teve a parceria da Fundação Biblioteca Nacional com o Instituto Italiano de Cultura.
O mesmo texto foi reproduzido no livro TRAVESSIAS – Brasil-Itália – organizadores: Cléia Schiavo Weyrauch, Maria Aparecida Rodrigues Fontes e Aniello Ângelo Avella - Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2007 P. 129-136
Gianluca Fiocco: Comunismo e democracia em Togliatti - 100 anos do PCI
STORIA POLITICA: O PSI inicialmente aderiu à Terceira Internacional. Quais foram as principais motivações? Quais ideias tinham o grupo de L’Ordine Nuovo e Togliatti nesta primeira fase?
GIANLUCA FIOCCO: O PSI não aderiu à União Sagrada de 1914, contrariamente a outros partidos socialistas, e com a guerra em andamento sustentou iniciativas para relançar um projeto internacionalista depois do colapso da Segunda Internacional [1]. As turbulências russas de 1917 foram saudadas pelos socialistas italianos como grande evento libertador, mesmo com diferenças entre o componente reformista e o maximalista. A clara predominância deste último no Congresso de Bolonha (outubro de 1919) coincide com a adesão à recém constituída Terceira Internacional. Mas o PSI do biênio vermelho, como se sabe, não escolhe coerentemente nem uma linha revolucionária nem uma linha reformadora. Fala-se muito de revolução, projetando uma onda subversora em toda a Europa, mas não há nenhuma atividade preparatória neste sentido.
Em Turim, ponta avançada da classe operária italiana, os jovens dirigentes de L’Ordine Nuovo dão vida à experiência original dos conselhos de fábrica, nestes percebendo o correspondente italiano dos sovietes. Os ordinovistas, entre cujos dirigentes fundadores está Togliatti, operam ativamente pela revolução, considerando que no país existem as condições para uma tomada do poder. Chega-se assim ao teste de força da ocupação das fábricas em setembro de 1920. Em Turim se nutre a esperança de poder dar um golpe decisivo na classe patronal, mas na realidade a contraofensiva de classe está às portas. Togliatti, enviado a Milão para estimular uma ampliação em sentido revolucionário da luta em curso, se choca com as ideias bem diferentes das direções do PSI e da CGIL. Com amargo sarcasmo, Togliatti recordaria nas notas biográficas recolhidas por Marcella e Maurizio Ferrara as objeções bizantinas que lhe foram dirigidas no Conselho Nacional socialista: “Quem autorizou a Seção Socialista de Turim, órgão político, a desencadear um movimento de natureza sindical? E quais eram as reivindicações? Elas foram apresentadas tempestivamente aos órgãos superiores de direção? E por que se deveria ampliar o movimento? Estes conselhos de fábrica, pelos quais se fazia a greve, eram algo ortodoxo, que havia nos estatutos, ou eram uma invenção de intelectuais?”. A Togliatti só restou voltar melancolicamente para Turim, onde participou das negociações com as autoridades para estabelecer formas e tempos da retomada do trabalho.
SP: De que modo o grupo de L’Ordine Nuovo e Togliatti contribuíram para a criação do PCd’I? Quais eram as diferenças em relação às ideias de Bordiga?
GF: No outono de 1920, tanto os ordinovistas quanto os bordiguianos já estavam determinados a romper com os reformistas, considerados traidores e inimigos dos reais interesses do proletariado. Mas também com os maximalistas a convivência se tornou dificílima, uma vez que não pretendiam se separar dos reformistas. Esta separação havia sido pedida por Lenin no II Congresso da Internacional (julho de 1920), mas o líder maximalista Giacinto Menotti Serrati não acolheu a solicitação, incluída nas chamadas “vinte e uma condições” ditadas para a filiação à Internacional. Entre elas, a mudança de denominação de partido socialista para partido comunista. Era precisamente do centro do nascente movimento comunista que vinha a ordem de assumir uma posição inequivocamente revolucionária. O nascimento do PCd’I ocorreu a partir da convergência do grupo de Bordiga e do turinense, com o primeiro em posição predominante, mesmo porque possuía maior ramificação nacional. Entre os dois grupos não faltavam diferenças até relevantes: os ordinovistas se caracterizavam por um costume de síntese político-cultural inteiramente peculiar; além disso, sua concepção da relação entre partido e classe operária era distante da de Bordiga. Mas nesta fase prevaleceu a ideia comum da necessidade de constituir um partido novo, que devia ser disciplinado e impermeável a qualquer influência do reformismo e do pacifismo burguês. Isto fez com que pusessem de lado todas as potenciais divergências, que ressurgiriam mais à frente.
SP: Que posições Togliatti expressou no Congresso de Livorno?
GF: Togliatti acompanhou desde Turim a evolução congressual e compartilhou plenamente a decisão de separar-se do PSI e fundar o novo partido comunista. Esteve certamente entre os que não cumpriram este passo com otimismo superficial. Nos seus escritos daqueles dias surge a consciência de que se iniciava um caminho necessário, mas também marcado por grandes problemas e incógnitas. A perspectiva revolucionária, que parecera ao jovem dirigente, concreta durante a ocupação das fábricas, agora parece algo a ser construído com um trabalho difícil e paciente. As derrotas ensinaram a todo o grupo turinense, que empreende uma reflexão sobre as diferenças entre as várias zonas do país, entre operários e camponeses, entre Norte e Sul. Iniciavam-se as expedições punitivas do esquadrismo fascista. Togliatti começará a dedicar grande atenção ao seu estudo, enquanto os bordiguianos negarão a especificidade do fascismo.
SP: De que modo o exílio na União Soviética influenciou Togliatti no segundo pós-guerra?
GF: Togliatti viveu toda a dureza e todos os dramas da “guerra civil europeia”. Depois da sua volta à Itália, é provavelmente o dirigente do comunismo ocidental que mais se esforça e aposta na possibilidade de deixar para trás esta fase terrível e iniciar um novo caminho na construção do socialismo. Um caminho que não passe por novas catástrofes bélicas. Certamente a sua é uma geração comunista que com a URSS estabelece uma “ligação de ferro” – a definição, como se sabe, pertence ao próprio Togliatti –, consolidada pelas perseguições, pelo esforço de modernização empreendido pelo colosso soviético, pela difusão dos fascismos na Europa até a agressão nazista de 1941. Togliatti adere aos traços fundamentais do stalinismo: a URSS é o baluarte do socialismo e sua defesa é a tarefa primeira de todo comunista. Ao mesmo tempo, nos anos do exílio Togliatti várias vezes se propõe o problema da nacionalização dos partidos comunistas, da importância do seu enraizamento e do estudo de programas e formas de luta calibrados segundo os contextos específicos em que os comunistas veem agindo. Trata-se de uma experiência que determina em Togliatti uma atenção sistemática ao nexo nacional-internacional: os partidos comunistas devem agir sempre como parte de um movimento global, mas nenhuma estratégia global pode ser imposta a cada partido, sem levar em conta as tradições locais e o contexto em que operam.
SP: Quais ideias de Togliatti do primeiro pós-guerra sobre a ideia de partido encontramos no segundo pós-guerra com o “partido novo”?
GF: A página do segundo pós-guerra é uma página nova. O PCd’I nasceu e se desenvolveu como pequena formação de militantes temperados e disciplinados, em luta contra violências e perseguições. A refundação na metade dos anos vinte, com Gramsci secretário, mudou programas, métodos e perspectivas, mas o partido continuava a ser de “revolucionários profissionais”, entre o exílio e a conspiração interna. Costumes e mecanismos severíssimos de adesão ao partido são abalados por Togliatti quando chega a Nápoles em 1944. Vários testemunhos da época nos referem o desconcerto dos dirigentes com o modelo do partido de massas que é adotado. Togliatti refletiu sobre as características inovadoras introduzidas pelo partido fascista, sobre as características de massa que a política deverá necessariamente manter e reforçar, agora num contexto pluralista. Inicia-se um desafio com os católicos para conquistar adesões na sociedade. Uma seção do PCI para cada campanário: esta é a meta indicada por Togliatti. Certamente, dentro do partido de massas se conserva e atua um núcleo “leninista” selecionado pelo exílio e pela Resistência. A este núcleo mais duro cabe a tarefa de cerrar as fileiras do partido durante o inverno da guerra fria.
O partido novo, pois, como descontinuidade fundamental possibilitada pela História e pelas suas reviravoltas. Podemos, no entanto, observar que há uma lição do primeiro pós-guerra que permanece em Togliatti: o fato de que os movimentos, por mais avançados que sejam (pensemos nos conselhos de fábrica), necessitam de um partido que organize a luta política e cultural, servindo de articulação com a sociedade. Esta visão se reforça ainda mais a partir de 1944, quando os comunistas aceitam o horizonte da democracia. “Os partidos – observa Togliatti na Constituinte de julho de 1946 – são a democracia que se organiza. Os grandes partidos de massa são a democracia que se afirma, que conquista posições decisivas, as quais nunca mais serão perdidas”.
SP:Que papel teve Togliatti na fase constituinte e como mudou depois de 1947?
GF: Ao lado da edificação do partido novo, os esforços principais de Togliatti foram destinados à conquista da República e à sua caracterização no sentido mais progressista possível. Entre os principais líderes políticos, foi o que mais participou dos trabalhos da Constituinte, na qual operou ativamente na Comissão dos 75 e, em seguida, no Comitê dos 18, encarregado de costurar num texto único os artigos formulados pelas diversas subcomissões. Na primeira reunião dos deputados comunistas disse que toda concepção agitatória e retórica do parlamentarismo devia ser abandonada: aquela era a Assembleia conquistada pelo povo, que devia traçar o caminho para uma inserção cada vez mais plena das massas populares na vida do país e nos seus centros de direção.
Togliatti considerou o terreno da Constituinte como um encontro de culturas diversas, chamadas a buscar elementos originais de convergência, sem erigir muros ou cair em disputas ideológicas. Só através de um esforço rigoroso se chegaria a uma Constituição duradoura, capaz de acompanhar o povo italiano num caminho de paz e progresso. A Constituição não devia se limitar a registrar as condições do tempo presente: representava também um programa para o futuro. Esta posição togliattiana foi bem percebida na época por Piero Calamandrei.
Podemos dizer que em Togliatti, como em tantos outros pais da República, esteve presente naquele período um espírito risorgimentale. Ao Estado unitário surgido em 1861 se devia conferir nova linfa, reorganizando-o e abrindo-o definitivamente em sentido democrático. Este era o papel histórico que recaía em primeiro lugar sobre os partidos de massa. Togliatti atribuiu particular importância ao diálogo com a DC, por ele considerada como o eixo do sistema político. Com os “professorzinhos” democrata-cristãos da primeira subcomissão houve uma negociação muito intensa, de modo que as esperanças comuns permitiam declinar positivamente as diferenças.
O gelo da guerra fria que recrudesceu no correr de 1947 não fez com que Togliatti recuasse dos seus propósitos. O espírito constituinte foi preservado – mesmo depois da exclusão dos comunistas do governo – na Constituição apôs sua assinatura Umberto Terracini, presidente comunista da Assembleia por cuja nomeação Togliatti se batera depois da demissão de Saragat. Foi um desfecho destinado a se revelar importante para a manutenção do sistema republicano, bem diferente do que aconteceu na França, onde o PCF decidiu não aprovar a Carta constitucional, mesmo tendo contribuído fortemente para sua redação.
O ano de 1948 foi ainda mais duro – com o “choque de civilizações” de 18 de abril e os dias dramáticos do atentado de Pallante [2] –, mas o limiar que podia conduzir a um banho de sangue não foi ultrapassado. Para este resultado contribuíram a moderação e o realismo de Togliatti, mas também sua fidelidade à aposta democrática que fora feita. Por certo, à expectativa de democracia progressiva sucedeu o cenário de uma guerra de posição de duração provavelmente longa e com mil incertezas, em que se fazia sentir o perigo de uma ilegalização do PCI.
SP: Quais foram as críticas de Togliatti ao centrismo e à centro-esquerda? Que críticas dirigiu ao PSI durante a centro-esquerda?
GF: Para Togliatti, o centrismo tinha uma dupla e gravíssima culpa: em política externa ligava a Itália intimamente ao bloco ocidental e à batalha contra o comunismo; em política interna negava as dimensões progressistas de 1944-1947 e permitia, ao contrário, a “restauração capitalista”, no sentido da reproposição do modelo de baixos salários e baixo consumo que sempre marginalizara as massas. Togliatti amadurece um fortíssimo ressentimento em relação a De Gasperi, sente-se traído pelas suas escolhas. Ao mesmo tempo, tenta sempre aproveitar a oportunidade de sair da trincheira da guerra fria, de demonstrar que os comunistas podem oferecer uma contribuição à evolução democrática do país. Mesmo julgando limitadas e insuficientes as reformas do centrismo, reivindica o papel do PCI ao favorecer sua adoção. Em outras palavras, para ele o centrismo freou e desvirtuou o caminho prefigurado na Constituinte, mas não fechou todas as portas. Na DC permanecem forças progressistas e sensíveis às instâncias populares, que se deve aproveitar. Também daqui nasce o conhecido apelo de 1954 “por um acordo entre comunistas e católicos para salvar a civilização humana”.
Em relação à centro-esquerda, distinguimos em Togliatti diversas fases, ligadas à evolução do quadro político. Depois da derrota da “lei trapaça” [3], bate-se para que se concretize a “abertura à esquerda”, que permita superar as barreiras do centrismo. Para o PCI existe o perigo de que esta abertura redunde em afrouxamento dos laços com o PSI, mas num certo ponto Togliatti aceita que os socialistas adquiram maior liberdade de movimento (depois dos abalos de 1956 a coisa se torna inevitável). O que para Togliatti não é aceitável é que um acordo de governo entre DC e PSI se torne uma operação transformista que perpetue o sistema de poder democrata-cristão. Sobre isso se inflama periodicamente o choque com Nenni.
Para Togliatti, o PCI deve aproveitar toda brecha para levar adiante, em sentido progressista, a dialética da luta política. Em 1962 anuncia uma oposição construtiva à centro-esquerda “programática” e apoia suas reformas, ainda que observando nelas uma série de limites. Togliatti reconhece as transformações sociais e econômicas em curso – são os anos do “milagre” – e se abre para a possibilidade de se criar na Itália as condições para uma política reformadora em linha com a dos países europeus mais avançados: diante desta possibilidade o PCI deverá fazer sua parte no debate das ideias, no Parlamento, no corpo da sociedade. Mas a seguir, depois das eleições de 1963, quando a centro-esquerda recua e as resistências tradicionais à mudança surgem fortíssimas, Togliatti se torna bastante mais pessimista. Aos seus olhos, a burguesia italiana volta a mostrar a face reacionária e a DC continua a ser sua fiadora. No seu último editorial em Rinascita antes da morte, se perguntará angustiado: “Em que medida os grupos dirigentes da grande burguesia italiana, industrial e agrária, estão dispostos a aceitar nem que seja só um conjunto de modestas propostas de reformismo burguês? Isto é, em que medida é possível, na Itália, um reformismo burguês?”. Por trás destas interrogações se repropõe a tarefa histórica do proletariado italiano de compensar os limites da burguesia nacional. Estas interrogações também nos fazem compreender a máxima togliattiana segundo a qual na Itália, para fazer as reformas, é preciso ser revolucionário.
SP: Que aspectos, segundo o senhor, deveriam ser aprofundados por ocasião deste centenário do PCI?
GF: Creio que a tarefa principal para a investigação histórica é, hoje, aprofundar o modo pelo qual terminou o PCI, até porque seria uma contribuição fundamental para reconstruir o fim da primeira fase da República. Trata-se de um episódio em que os fatores internacionais são fundamentais. Com a grande transformação dos anos setenta, produz-se a crise fatal dos sistemas comunistas, e o PCI, que apostava na possibilidade de reformar estes sistemas, sofre um golpe terrível. Inicia para Botteghe Oscure [4] uma navegação solitária: não mais inserido no movimento comunista como antes, o PCI permanece, ao mesmo tempo, fora do mundo da socialdemocracia. Com o final da guerra fria e o advento da globalização, ambas as famílias históricas do movimento operário europeu restam sob os escombros do muro de Berlim. Deste ponto de vista, podemos inserir o fim do PCI no ocaso geral da esquerda do século XX. Mas também existem especificidades italianas sobre as quais se deverá continuar a indagar e a refletir. É uma reflexão necessária: passaram-se trinta anos, mas o sistema político italiano não conseguiu se dotar de instrumentos sequer comparáveis ao papel de cimento que desempenhavam os tão vituperados partidos da “primeira República”. Voltar à razão por que, num certo momento, não foram mais capazes de desempenhá-lo pode ser útil em relação aos desafios do tempo presente.
Gostaria de encerrar com duas observações. A primeira (negativa) é que a inevitável transformação do PCI poderia e deveria ter sido gerida de modo mais razoável, realista e respeitoso da sua tradição política e cultural. Por que isso não ocorreu? Eis a pergunta crucial e reveladora de problemas mais gerais da história do nosso país. A segunda (positiva) é que a batalha do PCI para transformar os súditos em cidadãos, emancipar as massas e inseri-las na vida pública, foi um componente fundamental do esforço, coroado de sucesso, realizado pelo povo italiano para deixar para trás as ruínas da ditadura e da guerra, e empreender um novo caminho de progresso. Enquanto o PCI cumpriu estas tarefas, necessárias para o desenvolvimento da Nação, foi um partido vital, que extraía linfa dos próprios efeitos da sua ação. Em certo ponto, porém, quando se tratou de repensar este papel à luz das transformações da Itália e do mundo, não conseguiu fazê-lo adequadamente. Refletir sobre o declínio e o fim do PCI representa, pois, uma chave importante para raciocinar sobre tais transformações que produziram o mundo em que vivemos hoje.
Notas
[1] A Union Sacré, na França, garantiu o apoio de boa parte dos socialistas franceses ao esforço de guerra do seu governo contra a Alemanha, na Primeira Guerra Mundial. Implicava naturalmente o abandono da sua tradição pacifista e internacionalista dos socialistas.
[2] Em 18 de abril de 1948, realizaram-se as eleições parlamentares que garantiriam à Democracia Cristã, apoiada pelo Ocidente, seu prolongado domínio na vida do país, quebrando a unidade antifascista que havia caracterizado o imediato pós-guerra. Antonio Pallante foi o autor, em 14 de julho de 1948, de grave atentado contra a vida de Palmiro Togliatti, abrindo no país até mesmo a possibilidade de guerra civil.
[3] Na história política italiana, a “lei-trapaça”, de 1953, pretendia dar um forte prêmio de maioria às forças que conseguissem a metade dos votos válidos. Desenhada em função dos interesses democrata-cristãos, a lei não entrou em vigor: nas eleições políticas do mesmo ano, as forças que a promoviam ficaram a poucos milhares de votos do limiar proposto.
[4] Botteghe Oscure, a sede histórica do PCI na rua de mesmo nome, no centro de Roma.
(Entrevista originalmente publicada no blog Storia e politica – www.storiapolitica.altervista.org , em 28 de fevereiro de 2021. Tradução de Luiz Sérgio Henriques).
Gianluca Fiocco: Uma virada na Itália? O Governo Draghi e o que pode seguir
A Itália tem um novo governo, presidido por Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, uma figura de indiscutível prestígio internacional. Seu nome começou a circular enquanto se consumava a crise do segundo governo Conte, aberta pela decisão de Matteo Renzi de retirar seu movimento (Italia Viva) do Executivo por conta de desentendimentos surgidos em diversos assuntos. Em geral, Renzi lamentou a falta de uma estratégia forte e clara para superar a crise sanitária, social e econômica.
Giuseppe Conte compareceu ao Parlamento para defender o governo e manteve o voto de confiança, mas nos dias seguintes não conseguiu criar uma nova maioria estável. Nesse momento, o chefe de Estado jogou um papel decisivo e após verificar que as forças políticas no Parlamento não conseguiam dar vida a um novo acordo de governo, deu a tarefa a Draghi. Esta solução foi favorecida pelo facto de que quase ninguém queria eleições antecipadas em razão da difícil situação provocada pela Covid19. Percebia-se também a crescente demanda por unidade nacional e colaboração entre os vários partidos.
Draghi deu vida a um governo que é “técnico” e, ao mesmo tempo, “político”. Técnico porque ministérios importantes foram atribuídos a pessoas escolhidas por sua experiência no setor e se reportam diretamente ao Primeiro-Ministro; político porque alguns ministérios foram distribuídos entre diversas forças políticas, de direita e de esquerda, chamadas não só para apoiar o trabalho dos técnicos, mas também para dar uma contribuição direta à ação governamental, a partilhar escolhas e programas com forte peso e responsabilidade.
Draghi conseguiu o apoio de uma grande maioria no Parlamento. Apenas o partido de direita liderado por Giorgia Meloni (Fratelli d’Italia) permaneceu na oposição, mas garantiu que terá uma postura construtiva e, de vez em quando, estará disposto a examinar sem preconceitos as medidas enviadas à Câmara. Algumas pesquisas recentes indicam que esse posicionamento talvez possa recompensar o partido nas próximas eleições.
Com a chegada de Draghi ao Palazzo Chigi, a atual legislatura conhece o terceiro tipo de acordo político: depois de um governo Lega-5Estrelas e um governo de Partido Democrático-5Estrelas, agora os três partidos estão juntos no poder (também acompanhados por Forza Italia, partido de Silvio Berlusconi que mantém uma relação de amizade com Draghi). Todas as três forças estão pagando o preço de terem feito a opção de apoiar o novo governo e enfrentam tensões internas expressivas.
Para o PD foi uma decisão obrigatória dado o caráter pró-europeu do partido e sua luta para fazer da Itália uma protagonista da recuperação concebida em chave europeia. Deste ponto de vista, a figura de Draghi oferece a melhor garantia possível. O PD sofre uma certa perda de viço: no último ano e meio tentou com seus dirigentes realçar a imagem partidária de competência, boa governança e coesão social, obtendo alguns feedbacks positivos. O ministro da Economia, Roberto Gualtieri, cujas ideias influenciaram a ação governamental em pontos cruciais, assumiu um protagonismo particular.
A crise, no entanto, foi caracterizada por um deslocamento do eixo político para a direita e o PD não é mais o centro de equilíbrio como antes. Não conseguiu nem mesmo dar uma marca particular ao novo programa de governo: a proposta mais original e progressista, a de introduzir um Ministério para a transição ecológica (aceita por Draghi) foi apresentada pelo Movimento 5 Estrelas. Entretanto, este último também conheceu uma disputa interna muito forte da sua ala mais radical e “antissistema”. A essa altura, duas almas dificilmente compatíveis parecem se confrontar: uma “governista”, que se atribui um papel de controle e defesa de conquistas como a “renda cidadã”; e outra, ao contrário, que reivindica a plataforma original do movimento, em forte polêmica com as instituições europeias e marcada por uma condenação generalizada das demais forças políticas. A transformação do 5 Estrelas é indiscutível: nascidos como uma força que não queria se contaminar com as outras e pedia a refundação de todo o sistema, mas no caminho fez acordos primeiro com a direita, depois com a esquerda, e agora com ambos ao mesmo tempo. Muitos se perguntam o que será do movimento em sua capacidade de encarnar e representar uma Itália dividida entre a nostalgia do passado e perspectivas de renovação.
Quanto à Liga, sua adesão foi apresentada como um ponto de inflexão pró-europeista, mas na realidade já estava claro há algum tempo que o “soberanismo” de Matteo Salvini era diferente e muito mais moderado do que o dos “falcões” que se impuseram na Europa Oriental. Em todo o caso, existe efetivamente um certo dualismo entre a componente salviniana e a chamada “Liga dos administradores” (prefeitos, governadores, dirigentes municipais e regionais), esta última ávida por fazer o melhor uso dos recursos europeus do “Fundo de Recuperação” (Recovery Fund) e ter um papel nas decisões de como usá-los.
Esta é precisamente a questão crucial que enfrenta o novo governo: a Itália é um dos principais beneficiários desta extraordinária iniciativa europeia, criada para combater a crise gerada pela pandemia. O governo anterior tinha elaborado um plano nacional de utilização dos fundos europeus (também com projetos importantes), mas não lhe deu “alma”, uma caracterização em torno de objetivos-chave capazes de suscitar apoios e mobilização ativa.
Trata-se agora de saber se esses recursos irão servir somente para mitigar emergências ou também para dar a Itália um novo rumo de longo prazo, reformando seu modelo econômico e social para torná-lo mais adequado ao mundo globalizado em que vivemos. O país necessita de uma filosofia unificadora que oriente as ações governamentais, apoiada em ideias precisas sobre o futuro. Se o governo Draghi, como parece estar determinado a fazer, se mover nessa direção, poderá deixar uma marca que ficará além desta legislatura. Em outros momentos difíceis de sua jornada, o povo italiano mostrou uma capacidade de superação e uma vitalidade surpreendente. Esperemos que tais qualidades se confirmem uma vez mais.
Gianluca Fiocco é professor e pesquisador da Universidade Roma2, “Tor Vergata” (tradução Alberto Aggio).
Lourenço Cazarré: Laços de sangue, igreja católica e trabalho duro
Bem mais que um livro sobre a imigração italiana dirigida ao Sul do Brasil no Século 19, Tutti brasiliani (Editora Libretos, 205 páginas), é uma obra cujo verdadeiro centro é o fantástico desdobramento dessa onda migratória já no Brasil, fenômeno que acabou por transformar o nosso país num dos maiores produtores de grãos do mundo. Mas vamos com calma.
Comecemos pela viagem dos Bortot para o Brasil, muito bem documentada, e que seguramente pode ser vista como uma mostra do que ocorreu com dezenas de milhares de outras famílias. Usando um sobrenome que em sua mais remota origem pode ser francês ou austríaco, os Bortot trabalhavam há, no mínimo, três séculos como meeiros de um grande proprietário de terras na região de Belluno, nos Alpes italianos. Lá, em uma pequena área, criavam uns poucos animais – vacas, ovelhas, burros, porcos e galinhas – e mantinham algumas culturas – videiras e trigo – que os sustentavam ao longo do ano. E, para reforçar as proteínas, caçavam pássaros com redes. Para fazer suas roupas, fiavam cânhamo, lã e linho. E esfolavam raposas, toupeiras e lebres para vender a pele.
Em meados do século 19, parte dessas famílias italianas de muitos filhos, apertadas em sítios modestos, começaram a migrar para a América em busca de melhores perspectivas de futuro. Na ordem de preferência: Estados Unidos, Argentina e Brasil.
Os Bortot, que chegaram ao Brasil em 1893, receberam do governo (financiada, a ser paga em alguns anos) o que julgavam ser uma vasta porção de terra, vinte hectares, algo impensável no país de origem. Uma das curiosidades da onda italiana dirigida ao Sul do Brasil é que, na quase totalidade, os emigrantes eram agricultores.
No Rio Grande do Sul, eles foram contemplados om glebas na zona da Serra. Basicamente, terrenos inclinados, cobertos de mato e perdidos nos cafundós intransitáveis. Os alemães, que desembarcaram antes, a partir de 1825, receberam lotes às margens dos rios. Por isso, como puderam desde logo comercializar seus produtos em Porto Alegre, enriqueceram mais rapidamente.
No meio da mataria cerrada, os filhos de Dante Alighieri tiveram de se virar. Foi o que fizeram. Botaram abaixo as árvores centenárias e com elas ergueram suas casas. Quase todos eles, além das habilidades agrícolas, tinham noções de marcenaria, carpintaria e ferraria. Assim, utilizando-se de conhecimentos centenários trazidos da terrinha, passaram a criar seus porcos, a plantar trigo e a tratar de suas videiras. Comiam sua polenta e bebiam vinho e grapa. E passaram também a consumir os surpreendentes pinhão e palmito. O excesso de produção, quando havia, entrava no escambo por, digamos, sal e fumo. Uns abriram comércios para reforçar o caixa. Outros, mais habilidosos, começaram, nas raras horas vagas, a instalar moinhos e a fabricar carroças e arados. Dessas ferrarias de fundo de quintal, surgiria, depois, a pujante Caxias do Sul, a Manchester guasca.
Passados uns poucos anos, ressurgiu a necessidade de buscar novas terras, e mais baratas, para a descendência crescente. Em 1920, os Bortot partiram para o Noroeste do Rio Grande do Sul, onde podiam adquirir propriedades maiores e, o que era o mais importante, com terrenos planos. Alguns dos filhos dos pioneiros fixaram-se em Paim Filho, numa região cuja cidade mais importante é hoje Sananduva.
Depois, no começo dos anos 1930, mais uma vez empurrados adiante pela redução das propriedades, determinada pelos inventários, alguns dos Bortot partiram para o Sudoeste do Paraná. Fixaram-se em um pequeno vilarejo, que é hoje Pato Branco (85 mil habitantes). O Sudoeste do Paraná era então, e seria por mais uns vinte anos, o nosso Faroeste.
A descrição do crescimento das cidades paranaenses, fundadas majoritariamente, por descentes de italianos partidos do Rio Grande do Sul, é um dos pontos altos do livro. O autor fala de incontáveis tiroteios, jagunços assalariados, grileiros impiedosos, tocaias, violações, assassinatos, falsificação de documentos, terras tomadas à bala e misteriosas empresas protegidas por políticos inescrupulosos…
Ao longo de sua saga, em duas oportunidades, os Bortot foram vítimas das muitas guerras travadas pelas elites intelectuais do Rio Grande do Sul – leia-se: caudilhos ricos formados em Direito em São Paulo, em geral palavrosos e arrogantes – que costumavam brigar, de vez em quando, por motivos impenetráveis para gringos que mal arranhavam a língua portuguesa. Na revolução de 1893, os Bortot foram depenados. Tropas famintas comeram todos os animais e todos os grãos. Repetiu-se o mesmo em 1923. E a gringada, o que poderia fazer? Ora, que fosse se queixar ao Papa porque não havia autoridade pública brasileira à qual pudessem apresentar a conta.
Lê-se o livro de Ivanir José Bortot como se fosse um romance sobre uma família europeia que vem fazer a América. Exatamente como em um livro de ficção, a cada geração, dois ou três membros do clã se destacam. Ora é uma mulher forte que cria seus muitos filhos sem a ajuda do marido precocemente falecido. Ora é um sujeito empreendedor que funda muitas empresas e dá trabalho a irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas. Ora é um nonno, que guarda as memórias da família, que pede ao neto que lhe segure a mão no instante em que vai partir deste mundo. Ora é o ingresso de alguém – descendente de terceira geração – em uma universidade.
Sim, esse é um fato muito importante para os imigrantes: a ocasião em que um neto ou um bisneto – pode ser de italiano, alemão, polaco, português ou ucraniano – enverga uma fatiota e senta-se a uma escrivaninha para ganhar, às vezes em um mês, no conforto do ar-condicionado, o que seus ancestrais levavam décadas para amealhar sob o sol impiedoso.
Esse livro será ampliado no futuro, tenho certeza, porque a saga dos descentes de italianos do Rio Grande do Sul – e, também, dos alemães e poloneses – ainda não foi contada. Partindo do Estado original, eles tomaram nos anos 1920 o Oeste de Santa Catarina. Chegaram ao Paraná nos anos 1930 e continuaram a subir pelo mapa: Mato Grosso, Rondônia, Pará e Amazonas foram colonizados a partir de 1970. Depois, nos anos 1980, a diáspora gaúcha seguiu para o Sul do Maranhão, o Norte de Goiás (Tocantins) e o Oeste da Bahia. E, aparentemente, termina quando chega ao Sul do Piauí, em 1990. Em resumo, falta contar a epopeia dessa gente que forjou o semicírculo da produção agrícola que sustenta, há várias décadas, as contas desta nação inzoneira, cartorária e carnavalesca.
Por fim, destaco outra peculiaridade deste livro. Ivanir Bortot exerce o jornalismo há cerca de cinco décadas. Na maior parte desse tempo, atuou em publicações voltadas à economia. Daí que seu livro, desde as primeiras páginas, dá números ao que está sendo descrito. Um porco custa tanto. Uma vaca equivale a tantas barricas de vinho. Esse fato, o fato de que toda coisa tem seu preço, em geral, é pouco abordado nos livros escritos pelos historiadores genuínos, os de carteirinha. Nada contra os mestres catedráticos, mas no trabalho de Bortot vemos claramente como vai se formando o patrimônio de uma família ao longo de décadas. Não apenas o patrimônio palpável, físico (casas, lojas, hotéis, serrarias, veículos, culturas agrícolas, transportadoras, indústrias), que aumenta à força de muito suor e trabalho incessante. Mas não é só isso. Ivanir Bortot registra também os valores morais – impalpáveis, outra espécie de riqueza – que alicerçam o progresso. Valores como, por exemplo, a solidariedade, já que nesses grupos, por décadas, o patrimônio é um só e é de todos. Uma solidariedade que é, ao mesmo tempo, a previdência social e o plano de saúde da família. A solidariedade que aflora toda vez que a tragédia arrebenta com um deles.
A confiança alicerçada nos laços de sangue faz com que o controle dos negócios seja delegado às mãos do mais talentoso, o líder nato, aquele que em geral é aceito e reconhecido por todos ou pela maioria.
Se fosse possível sintetizar esse movimento migratório tão importante na história nacional, talvez se pudesse dizer que os descendentes dos peninsulares instalados no Sul do Brasil há mais de um século e três décadas – e que hoje se espalham do Norte ao Sul – construíram sua história baseados em três pilares: os laços de sangue, os valores da igreja de Roma e a ética do trabalho duro, incessante.
Luiz Carlos Azedo: A segunda onda
Alguma transferência de renda precisa ser assegurada à população mais pobre no próximo ano, e o Congresso precisa encontrar uma saída. O governo não quer cortar na própria carne
Tudo indica que realmente está havendo uma segunda onda da pandemia na Europa — principalmente na Inglaterra, na Espanha e na Itália —, mas não se pode afirmar, ainda, que o mesmo esteja ocorrendo no Amapá, no Amazonas e em Roraima, onde o número de casos voltou a subir. A média nacional de transmissão da pandemia abaixo de 1/1 indica que o pior já passou, realmente, embora o número de casos confirmados continue muito alto. A sensação é de que estamos no meio de uma montanha russa, que parece não tem fim. São 142, 2 mil mortes e 4,7 milhões de casados confirmados até ontem, número só ultrapassado pelos Estados Unidos.
A média móvel de mortes nos últimos sete dias foi de 678 óbitos, o que dá uma média de 28 mortos por hora. Mas é um número 15% menor do que o da semana anterior, o que realmente representa um alento. O presidente Jair Bolsonaro não está nem aí para essa discussão sobre segunda onda, naturalizou o número de mortes como fizeram os generais e políticos italianos em Trento e Trieste, até que a História, muitos anos depois, cobrou-lhes a responsabilidade.
Já comentei esse assunto por aqui, mas não custa relembrar. Quando a Itália entrou na I Guerra Mundial, em 1915, ao lado da “Entente” (aliança entre França, Inglaterra e Rússia), os políticos e militares italianos acreditavam que seria uma oportunidade de libertar Trento e Trieste do jugo estrangeiro e declararam guerra ao Império Austro-Húngaro. Centenas de milhares de jovens foram recrutados e lançados à batalha.
No primeiro confronto, porém, o exército inimigo manteve as suas linhas de defesa de Izonso e o ataque foi contido. Morreram 15 mil italianos. Na segunda batalha, foram 40 mil mortos; na terceira, 60 mil. Os italianos lutaram “por Trento e por Trieste” em mais oito batalhas, até que, em Caporreto, na décima-segunda, foram derrotados fragorosamente e empurrados pelas forças austro-húngaras às portas de Veneza. Citado no livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari (Companhia das Letras), o episódio ficou conhecido como a síndrome “Nossos rapazes não morreram em vão”. Foram contabilizados 700 mil italianos mortos e mais de 1 milhão de feridos ao final da guerra.
Por que isso aconteceu? Por que a autocrítica não é o forte dos militares nem dos políticos. Depois de perder a primeira batalha de Izonzo, havia duas opções: admitir o erro e assinar um tratado de paz com o Império Austro-Húngaro, que enfrentava outros três exércitos poderosos; ou continuar a guerra e apelar para o patriotismo. Prevaleceu a segunda, porque a primeira tinha o ônus de ter que explicar para os pais, as viúvas e os filhos dos 15 mil mortos de Izonso por que eles morreram em vão.
Bolsonaro não teme um segundo ciclo da covid-19, já anda criticando o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), que estuda fazer um novo lockdown para conter o aumento do número de casos na capital do Amazonas, que desmente a tese de que já haveria “imunização de rebanho” no estado. O presidente da República naturalizou as mortes por covid-19, a “gripezinha”, e culpa governadores e prefeitos pelo desemprego em massa. Na sua avaliação, a política de isolamento social é responsável pela desorganização da economia e não o novo coranavírus, como acreditam sanitaristas e economistas.
Renda Cidadã
Na verdade, teme — com razão — uma segunda onda de desemprego, maior do que a primeira, em decorrência da recessão e do fim do auxílio emergencial. Mesmo com a flexibilização do isolamento social na maioria das cidades — a razão da lenta queda do número de casos e de mortes —, a atividade econômica não se recuperou nos níveis esperados. O governo arrecada menos, os investidores foram embora, e muitas atividades econômicas deixaram de existir, por falta de consumidores. Houve uma revolução nos hábitos pessoais, com grande impacto na mobilidade urbana, fazendo com que muitos negócios desaparecessem.
É nesse contexto que a discussão sobre o Renda Cidadã, o programa que Bolsonaro pretende lançar para substituir o Bolsa Família, está sendo posta. Existe um ingrediente eleitoral inequívoco, cuja digital é a extinção do Bolsa Família, mas a preocupação de Bolsonaro com a situação das pessoas que ficaram sem trabalho e perderão toda a renda faz sentido. Alguma transferência de renda precisa ser assegurada à população mais pobre do país no próximo ano, e o Congresso precisa encontrar uma saída. O governo não quer cortar na própria carne, reduzindo gastos desnecessários — está mais do que provado que existem — e privilégios do serviço público; prefere meter a mão nos precatórios, empurrando as dívidas judiciais para as calendas, e pongar o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaçao Básica (Fundeb), desviando recursos para o Renda Cidadã.
O curioso nessa história é que o ministro da Economia, Paulo Guedes, passou de cavalo a burro. Antes, era a política econômica que ditava as propostas do governo, aos políticos cabia defendê-las no Congresso; agora, são os líderes do governo na Câmara e no Senado que dão as cartas, a equipe econômica corre atrás de soluções técnicas para viabilizá-las, o que geralmente não acontece. As reformas tributária e administrativa colapsaram. O mercado está reagindo: alta do dólar e queda na Bovespa. Os investidores estão cada vez mais cabreiros com o Brasil.
Luiz Carlos Azedo: O país está parando
“O coronavírus provoca a reorganização do trabalho, em razão das medidas de distanciamento social; governadores e prefeitos se antecipam ao governo federal”
Quem observa o cotidiano da população já constata a redução do movimento de pessoas e de carros nas ruas; filas nas farmácias e supermercados. Não se trata de pânico, mas de prudência, as pessoas estão se dando conta de que o distanciamento social é realmente necessário e começam a se preparar para o confinamento doméstico. O medo do coronavírus é justificado, basta olhar o que está acontecendo no mundo e prestar atenção nas entrevistas e decisões dos governadores e prefeitos.
Ontem, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, voltou a falar como um sanitarista experiente, em entrevista na qual dispensou a máscara cirúrgica. Não escondia a tensão em que se encontra, diante do avanço da epidemia. No começo da noite, já havia 635 casos confirmados no país, em 21 estados e no Distrito Federal, com transmissão comunitária em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Sergipe. Sete mortes foram contabilizadas até ontem, cinco em São Paulo e duas no Rio, ou seja, 1,1% dos casos confirmados.
As notícias que chegam do mundo justificam a apreensão da população. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), eram 207.855 casos confirmados e mais de nove mil mortes por Covid-19 em 166 países e territórios. Em Hubei, província chinesa onde se originou o surto, ocorreram 34% das mortes, com 3.130 óbitos, antes de a epidemia ser controlada. Entretanto, a Itália ultrapassou a China, com 3.405 mortes pelo novo coronavírus, apesar da população algumas vezes menor. Tecnicamente, o Brasil se encontra numa situação em que a curva da doença ainda não se definiu, ou seja, um momento no qual há três cenários, o pior deles é o italiano. O melhor é o cenário da Coreia do Sul, que conseguiu controlar a letalidade da doença.
O ministro Mandetta trabalha com o modelo inglês. Como não somos uma ilha, talvez por isso, a principal medida efetiva de distanciamento social adotada pelo governo federal tenha sido o fechamento das fronteiras, anunciado ontem, no caso dos países vizinhos, alguns dos quais já tinham tomado essa decisão. Outra preocupação foi orientar os planos de saúde privados a não descarregar nos hospitais públicos os seus segurados. Um novo protocolo de atendimento foi anunciado: pessoas com febre, tosse ou dor de garganta e/ou dificuldade respiratória receberão máscaras e serão encaminhadas para isolamento respiratório.
Solidariedade
Pessoas acima de 60 anos, pacientes com doenças crônicas, imunossuprimidos, gestantes e mulheres até 45 dias após o parto terão prioridade. Todas as pessoas com mais de 60 anos deverão evitar comparecimento ao trabalho ou demais ambientes fechados; empregadores devem buscar adaptar-se a essa solicitação. A recomendação é sair de casa apenas para atividades essenciais (mercado, farmácia, serviços de saúde), que não possam ser realizadas por outra pessoa. Comunidades, vizinhos, grupos de amigos devem ajudar as pessoas com mais 60 anos a obter seus bens de primeira necessidade sem sair de casa.
O coronavírus está provocando a reorganização do trabalho, em razão das medidas de distanciamento social; governadores e prefeitos estão se antecipando ao governo federal. Em Brasília, o governador Ibaneis Rocha (MDB) decretou, ontem, a suspensão das atividades de atendimento ao público em comércios na capital. A medida inclui restaurantes, bares, lojas, salões de beleza, entre outros. O decreto também determina a suspensão de missas e cultos. Poderão funcionar: clínicas médicas, laboratórios, farmácias, postos de gasolina, mercados, lojas de materiais de construção, padarias, atacadistas, peixarias e delivery. No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel (PSC), que já vinha adotando medidas duras, quer fechar as divisas do estado e interromper a ponte aérea Rio-São Paulo.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou um auxílio para os trabalhadores que recebem até dois salários mínimos e forem afetados pela redução de jornada e salários proposta nesta semana pelo governo federal, que pretende pagar os primeiros 15 dias de afastamento se o trabalhador tiver contraído o coronavírus. O auxílio, destinado aos mais vulneráveis que tiverem renda e jornada reduzidas, busca contemplar 11 milhões de trabalhadores, a um custo de R$ 10 bilhões, com recursos provenientes do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-pais-esta-parando/