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IstoÉ: 'O Brasil é muito maior do que Bolsonaro', diz Celso Lafer

O jurista Celso Lafer, 78 anos, foi um personagem de destaque em vários momentos da história brasileira.

Vicente Vilardaga, IstoÉ

Coube a ele, por exemplo, organizar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92. Além disso, ocupou o cargo de ministro das Relações Exteriores por duas vezes, nos governos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso. Escritor profícuo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Lafer sempre esteve alinhado com a democracia e com os direitos humanos. Neste momento, portanto, ele tem muito com que se preocupar. Tanto que foi um dos signatários do manifesto Basta!, lançado no dia 31 de maio contra os persistentes ataques do presidente Jair Bolsonaro às instituições democráticas. Mais de 600 advogados assinaram o documento, que denuncia a ofensiva do presidente contra os outros poderes da República. Para Lafer, o governo Bolsonaro substituiu a lógica da cooperação pela do confronto, tanto no plano interno como nas relações internacionais, e está fazendo o País perder credibilidade. “Vivemos um momento de exacerbação dos ódios e o governo dá uma contribuição significativa para isso”, disse à ISTOÉ.

O senhor é um dos signatários do manifesto Basta!, contra os ataques sucessivos de Bolsonaro à democracia. Qual é o objetivo desse manifesto?

Nós aqui no Brasil estamos vivendo um momento politicamente tenso e difícil, que está ligado à crise política, que se soma aos problemas econômicos e ao desafio da pandemia. Temos uma crise de saúde imensa, uma crise econômica muito respeitável e uma crise política que se soma às outras duas. É um problema triplo. E ela tem se colocado também em termos de debate e discussão muito acirrada por parte do Executivo sobre o papel dos demais poderes do Brasil, entre os quais o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. Acho que para voltar ao tema básico da divisão dos poderes deve haver aí um respeito aos parâmetros que a Constituição estabelece. E a Constituição de 88, que é fruto da redemocratização, colocou como um de seus valores fundamentais a vida democrática e o pluralismo de ideias e opiniões, além do papel próprio das instituições nesta dinâmica.

O senhor acha que a democracia está ameaçada?

Acho que as instituições são fortes e que você tem uma sociedade civil que está se manifestando com muita clareza, como se manifestou na semana passada em diversos documentos e declarações de múltipla abrangência, inclusive com o manifesto Basta!, e de pessoas de diversas linhas e de diversas orientações que sentiram importante manter esse terreno comum, onde pode haver concordância e discordância, mas onde é necessário que haja respeito e civilidade.

O problema é que o ódio está dominando as relações políticas. Como evitar isso?

Nós estamos vivendo um momento de exacerbação dos ódios e para isso o governo dá uma contribuição muito significativa, pelo espírito que alimenta as facções que o apóiam e, inclusive, pela maneira de sustentá-lo por via das fake news. O filósofo espanhol Ortega y Gasset, em um dos seus primeiro livros, a Meditações do Quixote, diz que o ódio é um sentimento que conduz à aniquilação dos valores, promove a falta de conexão entre as pessoas e, ao fabricar essa falta de conexão, isola e desliga, pulveriza e corrói o papel dos indivíduos. O ódio tem um efeito deletério que corrompe e avilta o espaço público.

Há um crescimento do preconceito e da intolerância?

Um dos objetivos da República, entre outros, é o de promover o bem de todos sem discriminação de qualquer espécie. E sem preconceitos, que é a ideia da tolerância. Busca-se construir uma sociedade livre, justa e solidária. Norberto Bobbio dizia que uma das virtudes da democracia é contar cabeças e não cortar cabeças. E o que justamente esses escritos e mensagens de ódio dos grupos radicais almejam é fechar o espaço para o pluralismo de ideias, de opiniões e valores que são característicos da sociedade brasileira. Não creio que uma sociedade abrangente como a nossa deva se abrir para a obscuridade dos ódios públicos no qual o ressentimento desempenha um grande papel. A Hannah Arendt discute isso quando analisa o caso Dreyfus e o Rui Barbosa também trata desse tema dos espasmos de ódio. Machado de Assis diz, com razão, que não haverá pior coisa que mesclar o ódio às opiniões. Creio que, neste momento, a intolerância dos radicais torna difícil a gestão de um país complexo como o nosso. O que serviu para o presidente ganhar a eleição, que foi, justamente, o confronto, não serve para administrar o País. E os grupos de ódio representam uma maneira de minar as instituições e a democracia.

O senhor percebe um esforço do governo de fazer uma mudança cultural, de abolir a cordialidade e a solidariedade da nossa cultura?

Em princípio, a cultura une, diz Bobbio, e a política divide. O que o governo está fazendo no âmbito da cultura é uma política voltada para dividir, separar e isolar e acho que isso vai contra o espírito da Constituição e vai contra a criatividade que sempre caracterizou a cultura brasileira. Ou seja, eles estão remando contra a maré de uma realidade sociocultural cuja importância me parece indiscutível. Você não consegue fazer uma política de estímulo cultural contestando todos os atores culturais.

Fala-se no combate ao marxismo cultural. O governo diz que há uma visão esquerdista que se impõe na cultura. Como o senhor vê isso?

Vejo como uma visão distorcida do que é a cultura brasileira nas suas múltiplas dimensões. Claro que é uma cultura que tem várias vertentes e tem também uma vertente de sensibilidade de esquerda, mas você não mudará isso com afirmações e colocações como essas que caracterizam o gabinete de ódio e os seguidores do Olavo de Carvalho. Você precisa ter um elemento de persuasão, de convencimento, você precisa ter uma capacidade de abrangência. Se quisermos mudar a cultura ou influir sobre a cultura, é necessária certa abrangência para atingir uma sociedade com 200 e tantos milhões de pessoas com muitos desníveis. Não é por uma ação de força que você vai conseguir isso.

Como o senhor vê a posição das Forças Armadas neste momento?

A Constituição conferiu um papel constitucional às Forças Armadas de preservação das instituições. Acho que no correr da nossa história, elas tiveram oscilações, mas as Forças Armadas, como um todo, consideraram importante a redemocratização e creio que houve uma valorização do seu papel social e político. As Forças Armadas têm muitas virtudes, como a noção de responsabilidade, de missão e de patriotismo e acredito que isso não faltará na preservação da democracia.

Em que medida a reunião ministerial que levou à demissão do ex-ministro Sérgio Moro é reveladora do funcionamento caótico desse governo?

A reunião acabou iluminando as características do processo decisório do governo e revelou uma total falta de governança. Hoje em dia há muita preocupação com a governança. Gestão de riscos, por exemplo, é uma preocupação que qualquer um que exerça uma função pública ou privada deve ter. Pois essa reunião ministerial revelou pouca preocupação com os riscos do que foi dito, seja em matéria de meio ambiente, em matéria de educação, de direitos humanos, de investimentos, ou do relacionamento do País com outros países.

Era uma reunião que deveria tratar de pandemia

E não se tratou do assunto. Mostra uma falta de foco. Um dos grandes problemas do país é, indiscutivelmente, a pandemia e as políticas públicas de saúde. Mas o assunto não mereceu atenção na reunião ministerial.

Há uma aversão do governo às questões técnico-científicas, uma recusa a tomar decisões baseadas na ciência. O que isso revela?

No mundo contemporâneo, onde a inovação científica e tecnológica afeta de maneira tão dramática a vida de todos não é possível você ignorar o conhecimento no processo de gestão. Isso envolve tudo. Envolve desde temas como saúde e passa evidentemente pelos problemas do meio ambiente e da economia. Reduzir as coisas ao achismo ou ao negacionismo é levar o país para a deriva. A agricultura brasileira, por exemplo, que tem um papel tão significativo na vida econômica do País, foi fruto da capacidade empreendedora, mas, ao mesmo tempo, da incorporação da ciência e da tecnologia na área produtiva. Não foi o desmatamento, mas a Embrapa que deu ao agronegócio brasileiro as suas vantagens comparativas. E isso está sendo dilapidado. Estamos perdendo crescentemente nossa credibilidade.

O presidente deveria estar estabelecendo um plano de ação conjunta, mas perde tempo numa briga sem fim com os governadores. Aonde isso vai levar?

O Brasil é uma federação, não é um estado unitário. E os estados e os municípios têm competências próprias e competências que são concorrentes. Cabe ao governo buscar uma ação coordenada para atingir objetivos e fins comuns. Mas não é isso que acontece. O governador Montoro, que era uma figura muito interessante, gostava de fazer uma citação do filósofo Teilhard de Chardin, que dizia que é pela elevação que se chega à convergência. O que caracteriza o atual governo não é a elevação, mas é justamente o oposto, é o rebaixamento, que leva à divergência.

Há uma proliferação de movimentos em defesa da democracia se formando no País. A sociedade brasileira será capaz de conter os desmandos do governo?

Como diz Hannan Arendt, o poder surge do agir conjunto. E as manifestações da sociedade mostram que está havendo um agir conjunto de uma parcela majoritária da cidadania brasileira. A sociedade tem poder de conter o arbítrio ou o potencial do arbítrio.

O senhor crê que o resultado dessa luta será virtuoso?

É um ciclo de contenção da ameaça à democracia e de qualquer ameaça de poder arbitrário fora daquilo que são as competências estabelecidas pela Constituição. O Bolsonaro quer medir o Brasil com a própria régua, mas a régua dele é pequena para o tamanho do País. O Brasil é muito maior do que o Bolsonaro.

Como o senhor vê a diplomacia do governo Bolsonaro?

Tenho sido muito crítico com a diplomacia nesse governo. É uma diplomacia que não atende os interesses nacionais. Sempre considero que a política externa é uma política pública. E ela tem como objetivo traduzir necessidades internas em possibilidades externas, o que envolve uma análise daquilo que é importante para o País e da possibilidade de obter espaços no plano internacional. Aqui existe uma tradição diplomática importante. A diplomacia teve um papel na construção do País e o livro do Rubens Ricupero (“A Diplomacia na Construção do Brasil”) mostra isso com muita clareza. Devemos à diplomacia a construção de um país como o nosso em paz com seus dez vizinhos.

E onde ela está falhando agora?

Acho que esta tradição diplomática brasileira está mais ou menos consolidada nos princípios que regem as relações internacionais no país. E um desses princípios é a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Mas o governo Bolsonaro tem sustentado uma diplomacia de confronto e de combate. É uma expressão no plano externo na maneira de atuar e operar do presidente, que é voltada para o conflito e para confronto. Não sei se esse confronto atende a nossa necessidade. Ele cria dificuldades para nossa inserção no mundo e cria conflitos desnecessários com parceiros importantes para o Brasil, como a Argentina, a França, a Alemanha e, evidentemente, a China.

O Brasil abandonou seus próprios interesses?

A gente tem um sistema internacional muito tenso com lógicas de confronto e tensões de hegemonia, entre as quais esta que caracteriza a maneira pela qual o Trump vê o mundo e a relação dos Estados Unidos com a China. Não é uma agenda do interesse do País e não temos porque endossá-la. Temos sempre que buscar aquilo que foi a característica da nossa presença internacional, que é a de ter um contato construtivo com os países e, além disso, buscar sempre nos valer não apenas das instâncias bilaterais, mas das multilaterais. É justamente a recusa em reconhecer a importância do multilateralismo um dos traços da política externa de Bolsonaro, seja em relação à ONU, à OMS ou aos mecanismos regionais de cooperação.

Qual é a nossa opção?

O Brasil sempre teve um papel criativo e construtivo no âmbito da nossa região e está afastado da possibilidade de exercê-lo. Para nós cabe buscar com nossos vizinhos uma aproximação e transformar nossas fronteiras em fronteiras de cooperação e não de separação. Mas nós estamos nos confrontando com uma situação de isolamento. Basta ver que até mesmo no caso dessa pandemia não estamos sendo vistos como um país que lida com a doença de maneira construtiva e positiva. O Brasil é um país de escala continental, não é uma grande potência, mas tem um papel construtivo, que pode ser exercido na ordem mundial e atender nossos interesses. É o que se chama de “soft power” da nossa dimensão internacional. Estamos dilapidando esse componente de credibilidade.

Isso se percebe no debate sobre o meio ambiente.

É um exemplo óbvio. O Brasil desempenhou desde a Rio-92 um papel importante na área do meio ambiente e na área da sustentabilidade, clima, biodiversidade e na compreensão de que o meio ambiente não é uma externalidade, mas uma coisa a ser incorporada nos processos decisórios das políticas públicas e privadas. Além do mais nos confrontamos com a questão da mudança climática, um tema de natureza global que afeta a tudo e a todos. Por essa razão na área de investimento e nas questões de natureza econômica ter um reconhecimento da importância do meio ambiente é fundamental.

Quais as consequências dessa perda de credibilidade?

No mundo que virá depois dessa grande pandemia, que terá alterações, sejam construtivas ou destrutivas, nossa posição estará profundamente enfraquecida pelos erros de visão e de orientação da diplomacia no governo Bolsonaro.

O Brasil está assumindo uma posição submissa aos interesses dos Estados Unidos? E a relação com a China?

Não nos cabe comprar a agenda de outros países. O que nos cabe é cuidar da nossa própria agenda. E devemos manter uma sábia equidistância dessa grande tensão internacional e aproveitar a capacidade de diálogo que temos com os Estados Unidos e com a China. Não se trata de fechar caminhos, mas de abrir portas. Obviamente há mudanças nas placas tectônicas políticas e econômicas da ordem mundial. E os Estados Unidos e o Trump identificam a China como seu grande rival estratégico. Não é um tema nosso. O que devemos fazer é manter um diálogo aberto. Os americanos falam em “american first”, mas, para nós, o Brasil deve ficar sempre em primeiro lugar.


IstoÉ: A democracia vai passar por um teste inédito, diz Sérgio Abranches

Por Vicente Vilardaga, da IstoÉ

As eleições da semana passada definiram uma nova composição para o poder Legislativo, que nada tem a ver com a que vigorou nos últimos 24 anos da República, dominada pela tríade PSDB, PT e PMDB. Ocorre agora uma fragmentação inédita, uma ascensão do baixo clero e uma mudança de agenda e de rumos, com 30 partidos ocupando pelo menos uma vaga na Câmara e nove deles tendo entre 28 e 37 representantes. Dois deles têm mais de 50 deputados, o PT (56) e o PSL (52), partido de Jair Bolsonaro. O desafio para o novo presidente será compor uma maioria robusta que lhe garanta a sustentação no poder. Em entrevista para a ISTOÉ, o cientista político Sérgio Abranches, 69 anos, que acaba de lançar o livro “Presidencialismo de Coalizão — raízes e evolução do modelo político brasileiro” (Companhia das Letras), explica como isso poderá ser feito. Para Abranches, “presidencialismo de coalizão” é o tipo de regime em que há uma diluição do poder parlamentar em vários partidos. “O PSL saiu do nada para formar a segunda maior bancada e com isso a lógica mudou porque não há mais um partido estruturador”, afirma.

O que caracteriza o presidencialismo de coalizão?
É o modelo político brasileiro desde 1946. A primeira versão dele entrou em colapso em 1964, com o golpe militar. Foi retomado em 1988, com a promulgação da nova Constituição democrática. Caracteriza-se pelo fato de combinar uma série de traços, de elementos estruturais ou institucionais que o tornam muito diferente do modelo presidencialista norte-americano. A principal diferença é que lá o presidente pode governar em minoria. É frequente na história política dos Estados Unidos o que eles chamam de governo dividido — o Congresso com a maioria de um partido e o Executivo com um presidente de outro partido. Aqui no Brasil tem se mostrado impossível governar em minoria.

Esse modelo ainda funciona?
Depende do ângulo que a gente olha. O fato de que o presidente não consegue governar sem maioria e de não conseguir fazer maioria com seu próprio partido (o partido do presidente nunca consegue mais de 20% das cadeiras), torna o modelo vulnerável e sujeito a crises. Toda vez que a coalizão se desfaz há uma crise política. Mas se a gente considerar o fato de que ele foi pensado para resistir a traumas que levassem a rupturas e à instabilidade democrática, certamente funcionou muito bem. Os constituintes conseguiram colocar no modelo uma série de elementos de defesa da democracia que fizeram com que fosse muito mais resiliente do que o modelo anterior.

O eleitor sente-se representado pelos nossos políticos?
Em nenhum lugar do mundo a população está satisfeita com a maneira pela qual vem sendo representada pelo sistema político. O problema local é mais grave por algumas razões. A primeira delas é que a crise de representatividade se associa a uma forte crise econômica e social, a mais grave da nossa história republicana. A segunda é que a gente já vinha numa tendência de esgotamento do sistema partidário que dominou os últimos trinta anos da República. As lideranças não se renovaram e os partidos envelheceram, se tornaram mais oligárquicos e controlados por um pequeno grupo de personalidades, quando não por uma personalidade só, como o PT.

De que forma isso explica a migração para a direita no espectro político?
Isso está muito embutido nessa tendência de realinhamento partidário. O que essa eleição produziu foi justamente isso, uma onda muito forte para a direita, liderada por um político que tem uma mentalidade claramente autoritária. O processo de realinhamento foi acelerado e atingiu gravemente os partidos que dominaram o jogo político a partir de 1994, principalmente o PT e o PSDB.

O PSDB parece ser o maior derrotado nesse processo.
É o maior perdedor. Sua bancada em 2014 tinha 54 parlamentares e agora tem 29. Foi derrotado em estados importantes e perdeu o papel estruturador na disputa presidencial. Sofreu uma derrota fragorosa exatamente no eixo da disputa que dominou por duas décadas. E não vai retomar sua posição porque não tem condições de liderança. O partido se deteriorou de uma forma avassaladora.

Qual o saldo das urnas para o PT?
O PT também foi fortemente derrotado. Ficou confinado no Nordeste, onde mantém alguma força, e viu a sua bancada desidratar. Embora seja a segunda maior bancada do Congresso, perdeu treze deputados — tinha 69 cadeiras e passou para 56. E perdeu também substância no Senado.

O senhor acredita que o MDB terá força para se rearticular nessa nova composição?
O MDB nunca disputou a Presidência para valer. Disputou a presidência três vezes, com Ulysses, Quércia e agora com Meirelles, e foi um fracasso retumbante. Nunca teve essa vocação de galvanizar o País numa disputa presidencial. Dedicou-se a formar bancadas numerosas e ser o pivô de qualquer coalizão, em qualquer governo. Agora, caiu de 66 cadeiras para 34 e é um parceiro descartável em todos os cenários.

Qual vai a ser a configuração do Congresso?
É uma configuração com bancadas médias, dez partidos terão bancadas com cerca de 30 parlamentares e duas com mais de 50 parlamentares, o PT e o PSL. Mudou muito a configuração. O PSL saiu do nada para formar a segunda maior bancada e com isso todo processo de montagem de coalizão mudou, a lógica mudou porque não tem mais um partido pivô, se perdeu o partido estruturador.

A onda anti-petista é determinante nessa eleição?
É importante, mas o fator determinante é a guinada do eleitor para a direita e para a extrema direita. O discurso que pegou foi anti-PT e a favor de uma série de valores morais conservadores. Surgiu uma pauta muito autoritária.

E de onde veio essa pauta moral conservadora?
O Brasil sempre teve uma parcela da sua elite com uma mentalidade autoritária e muito conservadora. Sempre foi assim. E com o avanço das igrejas evangélicas não tradicionais, essa visão ultramoralista, com interpretações unilaterais e estreitas da realidade, cresceu na população em geral, sobretudo entre os mais pobres. Por outro lado, o próprio regime de liberdade produziu a emergência de setores mais avançados, mais liberais e com padrões de comportamento muito diferentes da média da família tradicional brasileira. Esses setores progressistas exacerbam os sentimentos dos mais conservadores.

A votação de Bolsonaro é uma vitória personalista sem qualquer sustentação partidária importante?
Acho que sim, a campanha dele é uma campanha praticamente familiar, dois ou três generais, ele, o presidente do partido e os filhos. Ele e dois filhos tiveram um sucesso eleitoral espantoso. A partir de uma base sem estrutura, conseguiram produzir lideranças no Legislativo e dar alguma vertebração a um movimento muito personalista.

A classe média se alinhou com Bolsonaro?
Houve uma saída da classe média da base de Lula para a direita. Essa mesma classe média que apoiou o Lula e produziu vitórias espantosas ao longo das últimas eleições começou a se dividir na eleição da Dilma e agora migrou definitivamente para a direita. Ela foi frustrada pelo colapso econômico produzido pela Dilma.

Caso se eleja. Bolsonaro vai governar com maioria?
Ele está dando sinais, sobretudo através do deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), de que negocia por dentro da estrutura partidária com várias lideranças. Bolsonaro conhece bem o baixo clero e tem a vantagem de que parte da renovação foi por conta do PSL. Acho que vai tentar fazer uma coalizão, que vai ser pouco vertebrada, heterogênea e com a adesão de muitos oportunistas, como aconteceu com o Collor. No livro que acabei de publicar analisei os presidentes de Collor para cá e todos tiveram capacidade de aprovar sua agenda prioritária. Nos primeiros seis meses de governo nenhum deles sofreu qualquer contestação significativa do Congresso.

Como deverá ser a relação de Bolsonaro com a mídia?
Já é uma relação estressada, como, de resto, foi também com o PT. O Bolsonaro tem mostrado uma característica que se vê também em Donald Trump de preferir falar com uma emissora em particular e de usar as redes sociais para se comunicar diretamente com o público. Até agora ele fez isso e a maneira que ele escolheu para agradecer os votos foi um “live” nas mídias sociais. Sem imprensa, sem nada. Ele tem uma relação antagônica com a mídia.

O que representa a entrada de mais militares e policiais na esfera política?
Isso já ocorria nos Estados. A diferença agora é a presença de vários generais da reserva na campanha política e o aumento, nos últimos dois anos, dos pronunciamentos e das manifestações políticas dos militares, inclusive da ativa. É um fator político novo que devemos considerar com cuidado.

Pode-se dizer que a democracia está ameaçada?
A democracia vai passar por um teste inédito, pelo qual não passou até agora. Essa terceira república começou sofrendo um trauma muito forte, que foi a decepção quase instantânea com o Collor, que perdeu o apoio do eleitorado, da sociedade, e sofreu um impeachment. Mas ela conseguiu se recompor a partir do governo Itamar Franco. Com a estabilização da economia e o sucesso macroeconômico foi criado um plano de estabilidade e de apoio às instituições democráticas que durou 30 anos. Agora nós estamos diante de uma sucessão de traumas e a democracia vai passar por um teste sem precedentes.

As minorias estão ameaçadas?
Um governo com essas atitudes, com essa mentalidade autoritária, e com esse discurso tão extremado, como o do Bolsonaro, cria um risco social. O governo sofrerá as limitações institucionais típicas do nosso regime constitucional e provavelmente as obedecerá. O problema é o empoderamento das pessoas nas ruas: o policial que pode sacar a arma com facilidade, já que se sente autorizado, ou o rapaz homofóbico que se sente autorizado a atacar um homossexual. Há uma responsabilidade do Bolsonaro, se eleito, de segurar os seus radicais.