isolamento
Oliver Stuenkel: Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço
Com derrota da Donald Trump, Brasil fica ainda mais isolado em sua política radical e negacionista
Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro executa uma política externa precisa e disciplinada, cujo objetivo é manter sua base mobilizada. Trata-se de uma postura internacional feita sob medida para a cozinha de casa, e não para o mundo lá fora. Atitudes como não parabenizar o novo líder argentino, alegar que Joe Biden venceu as eleições de maneira fraudulenta, atacar a ONU, Xi Jinping, Emmanuel Macron e quem mais aparecer pela frente integram uma retórica cuidadosamente articulada para atiçar os ânimos de sua torcida. Ter se aproximado do Centrão e se afastado do discurso anticorrupção e antissistema fez com que o presidente dependesse ainda mais desses comentários bombásticos para garantir a fidelidade de seus seguidores mais radicais.
Mas a política antiglobalista tem um preço. Em dois anos de mandato, Bolsonaro deteriorou praticamente todas as relações do País. A reputação nos quatro mercados mais relevantes para a economia brasileira – o chinês, o norte-americano, o europeu e o latino-americano – é a pior em décadas. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, a retórica antiambientalista fortalece aqueles que se opõem a uma aproximação com o Brasil. Em círculos diplomáticos europeus, fala-se abertamente que o presidente brasileiro é o pior inimigo da ratificação do acordo comercial com o Mercosul. Fora os nacionalistas da Hungria, Polônia e Eslovênia, não há um único chefe de Estado da União Europeia que receberia uma visita oficial de Bolsonaro hoje em dia.
Com a onda ambientalista que vem dominando a política europeia, cresce o risco de boicotes mais amplos contra os produtos daqui. Isso ocorre não só pelas escolhas problemáticas do presidente no campo interno, mas também porque Jair Bolsonaro abriu mão de uma arma poderosa da qual os governos anteriores dispunham. Ao rifar as relações externas para manter sua popularidade interna, o presidente atou as mãos de um dos Ministérios de Relações Exteriores mais sofisticados do mundo. Até poucos anos atrás, o Itamaraty servia de escudo para a reputação do País no exterior mesmo em momentos em que o governo brasileiro estava obviamente errado. Essa proteção foi crucial em crises como os massacres do Carandiru e da Candelária, em 1992 e 1993, ou quando as taxas de desmatamento tiveram uma aceleração, nos anos 1990 e 2000. Enquanto um chanceler normal mobilizaria as missões brasileiras no exterior para reagir à crise de reputação, o atual chefe do Itamaraty amplia o isolamento ao defender teorias conspiratórias, e faz tempo virou chacota mundial.
Se antes a atuação independente do Itamaraty ajudava a reparar os danos de catástrofes nacionais, hoje o órgão encontra-se escanteado por um governo que ofusca até o que deveria capitalizar. Avanços com a reforma da Previdência de 2019 foi o grande exemplo disso. Em vez de ficar calado e deixar que uma medida celebrada pelos mercados ganhasse visibilidade na imprensa especializada, Bolsonaro lançou uma bomba que deixou o assunto em segundo plano: a tentativa de emplacar seu filho como embaixador nos EUA.
Com a vitória de Biden, o risco econômico da política bolsonarista tende a aumentar ainda mais. As nomeações do democrata sugerem que o tema ambiental será um pilar de seu mandato tanto no âmbito interno quanto no externo. A futura secretária do Interior, Deb Haaland, tem sido uma das críticas mais ferrenhas da política ambiental do presidente brasileiro. O desmatamento da Amazônia foi citado por Biden ainda em campanha. Na ocasião, Bolsonaro foi ao Twitter dizer que a soberania nacional não seria negociada. O atrito dá uma amostra do que vem pela frente na relação com os EUA. Para piorar a situação, é provável que o governo Biden coordene sua política ambiental com a União Europeia.
A derrota de Trump deixa o Brasil ainda mais isolado em sua política radical e negacionista. Antes ofuscadas pela atuação do colega americano, as patacoadas de Bolsonaro devem ganhar ainda mais atenção negativa dos observadores internacionais. Tivemos uma prévia disso logo em dezembro, quando ele virou notícia internacional por ser o último líder de um país democrático a parabenizar Joe Biden pela vitória.
Em 2021, cada aparição de Bolsonaro no noticiário internacional será um risco para a já combalida economia brasileira. O mesmo se estende ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e ao Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. No caso desses dois, sua mera permanência no cargo já contamina qualquer tentativa de apaziguar investidores europeus e americanos preocupados com o desmatamento.
Se em 2019 Hamilton Mourão e Tereza Cristina foram a Pequim tentando desfazer o mal-estar causado pela retórica anti-China, em 2021 já não existe campanha publicitária ou iniciativa de quadros mais moderados que possa consertar a imagem tóxica da ala radical do governo.
A substituição de Salles e Araújo reduziria o risco de boicotes, fugas de investidores estrangeiros e complicações na ratificação de acordos comerciais. O problema é que eles representam dois grupos-chave de sustentação do governo: ruralistas e antiglobalistas. Sobretudo no caso de Salles, a facilitação do desmatamento e o desmonte das estruturas de fiscalização estão no cerne do programa bolsonarista. Desistir disso complicaria as relações do governo com uma parte obtusa, porém importante, do setor ruralista.
Em meio a essa confusão, avanços diplomáticos como a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) já são improváveis, e os riscos de reputação do País inevitavelmente entrarão na conta de qualquer investidor. O País está aprendendo de um jeito doloroso que a imagem externa é uma abstração com consequências bastante reais, e que doem no bolso.
* COORDENADOR DA PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV-SP
Conteúdo Completo:
A vida de milhões de pessoas vai piorar em 2021
Os desafios da economia em 2021
Nunca estivemos tão perto e tão longe da reforma tributária
Política ambiental é entrave ao crescimento
Privatização mesmo só veremos nos governos estaduais
Reforma administrativa é a agenda que precisa caminhar
O governo Bolsonaro precisaria se reinventar, mas isso é muito improvável
O grande risco para o Brasil este ano é interno, e não externo
Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço
O que é bom para os EUA nem sempre é bom para o Brasil
Sergio Lamucci: Um país cada vez mais isolado
Com a derrota de Trump nas eleições americanas, o Brasil fica distante de todas as principais potências globais
Novembro foi mais um mês em que o presidente Jair Bolsonaro se esforçou ao máximo para criar incidentes diplomáticos com parceiros comerciais importantes do Brasil, contando ainda com a ajuda de seu filho Eduardo Bolsonaro para a tarefa. Como resultado desse empenho, o país está cada vez mais isolado no cenário externo, especialmente por causa da política ambiental. Para Matias Spektor, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), é o momento em que as relações exteriores do Brasil “estão mais deterioradas” desde a transição para a democracia.
Há pouco menos de 20 dias, Bolsonaro ironizou Joe Biden, o vencedor das eleições nos EUA. Ao comentar declarações do americano sobre eventuais sanções ao Brasil por causa do desmatamento da Amazônia, o brasileiro lançou uma bravata, dizendo que “apenas pela diplomacia não dá” e que “depois que acabar a saliva, tem que ter pólvora - não precisa nem usar a pólvora, tem que saber que tem”. Na semana seguinte, ameaçou divulgar o nome de países que comprariam madeira ilegal do Brasil. Ele voltou atrás, mas já havia causado outro mal estar com países europeus.
Por fim, Eduardo Bolsonaro provocou mais um ruído nas relações com a China na semana passada. Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o filho do presidente escreveu que o governo apoiou a aliança “Clean Network”, lançada por Donald Trump, por ser uma frente global para um “5G seguro, sem espionagem da China”. Eduardo apagou a publicação, que recebeu resposta agressiva da embaixada chinesa, advertindo para “consequências negativas” dessa retórica.
Com a derrota de Trump nas eleições americanas, o Brasil fica distante de todas as principais potências globais. Até o momento, Bolsonaro não fez nenhum gesto em direção a Biden. O brasileiro é um dos poucos chefes de Estado ou de governo a não ter cumprimentado o americano pela vitória. Ontem, Bolsonaro disse ainda que tinha informações de que houve “muita fraude” nas eleições americanas.
Spektor diz que a “relação interpessoal entre Bolsonaro e Biden será difícil, tendo em vista a “reação visceral” que o brasileiro “provoca no Partido Democrata de modo específico, mas também “na classe política americana de modo mais geral”. Segundo ele, não se trata apenas do meio ambiente, mas também dos valores que o brasileiro representa, vistos no contexto americano não só “como antiquados, mas como politicamente incorretos”.
O mal estar em relação ao Brasil não se resume à política ambiental, mas esse será o terreno em que o país tende a enfrentar maiores problemas com os EUA. A nomeação do ex-secretário de Estado John Kerry como czar do ambiente mostra a importância central que o tema terá no governo Biden, diz Spektor. “O meio ambiente será para Biden o que a reforma do sistema de saúde foi para Barack Obama no primeiro mandato” avalia ele, observando que isso coloca o Brasil numa situação muito difícil, num momento em que se consagrou a ideia e a imagem do país como um “vilão do clima”. Para Spektor, reverter essa tendência demandaria um esforço muito forte do Brasil, algo que até o momento o governo Bolsonaro não parece disposto a fazer.
Para Spektor, há “um risco enorme” para as exportações brasileiras por causa desse tema. “O mundo está avançando numa direção na qual as normas internacionais de preservação ambiental não serão implementadas pelo Conselho de Segurança da ONU, pela Otan, por um país invadindo o outro. O processo de implementação será feito via regras comerciais. É nos acordos comerciais que os países vão sentir a pressão para se adequarem”, afirma ele, para quem já parece “contratada” essa crise do comércio exterior brasileiro. Ou o Brasil se adapta a essas normas e dá uma sinalização clara de que está em conformidade com elas ou o setor exportador brasileiro arcará com esse custo, diz Spektor. Segundo ele, para todos os efeitos, os países europeus não vão ratificar neste momento o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul.
O governo Bolsonaro também tem se especializado em criar ruídos com a China, o principal destino das exportações brasileiras. Spektor diz que, nesse front, “o que está em jogo agora, para além da briga pública entre a embaixada chinesa e o deputado Eduardo Bolsonaro, é o papel do Brasil diante da presença econômica chinesa na América Latina”. É o país da região no qual a China enfrenta mais dificuldades, nota ele. “Um exemplo disso é o processo licitatório do 5G. Para onde o Brasil vai avançar deve depender da relação com os EUA, de quanto pressão os americanos colocarão”, diz Spektor. “O Brasil é a principal economia que ainda não tomou a decisão para que lado penderá. A Argentina não tem muita opção, a não ser pender para a China, idem o Chile, idem a Colômbia. No caso do Brasil, ainda há incerteza.”
Dada a orientação do governo Bolsonaro para a política externa e a política ambiental, o isolamento do Brasil se acentua. Para Spektor, é uma tendência que vem de antes de Bolsonaro. “A operação Lava-Jato aumentou muito o isolamento brasileiro na América do Sul, por causa dos efeitos deletérios que teve para a classe política, sobretudo da Argentina, Peru, Colômbia e México”, diz ele. O ponto é que, com Bolsonaro, a tendência de um Brasil isolado se reforçou, afirma Spektor, observando que o brasileiro não foi capaz nem sequer de montar uma coalizão com os governos de direita da região, como Iván Duque na Colômbia ou Sebastián Piñera no Chile. “O nosso isolamento já está contratado, e pelo menos hoje não parece haver um sinal de que essa tendência será revertida. À medida que o tema ambiental ganhar força, essa tendência deve se acirrar”, diz Spektor. Para ele, o Brasil começa a se colocar numa posição um “pouco análoga” a que o país tinha em meados dos anos 1980, quando estava assolado por uma crise ambiental (por fatores como o desmatamento na Amazônia, a poluição em Cubatão e o assassinato de Chico Mendes), uma imagem muito negativa da classe política e uma crise fiscal com implicações inflacionárias.
Para ele, este é o momento em que o país se encontra mais isolado desde a época da transição para a democracia, há mais de 30 anos. “É uma notícia muito negativa para a qualidade de vida dos brasileiros, porque boa parte do bem-estar da população depende ativamente do sistema internacional, da economia internacional, do comércio internacional, da taxa de juros internacional, da capacidade de cooperação em áreas como saúde global no contexto da pandemia”, lamenta Spektor.
Celso Lafer: Diplomacia e conhecimento
O negacionismo nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional
Robert Zoellick, ex-presidente do Banco Mundial, acaba de publicar o livro America in the World. Nele, com conhecimento e experiência diplomática, examina o papel da política externa na construção do poderio dos Estados Unidos no mundo. Um capítulo é dedicado a Vannevar Bush, por ele qualificado como o “inventor do futuro”.
Bush dirigiu o Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento nos governos Roosevelt e Truman. Escreveu Science: The Endless Frontier, excepcional documento de 1945, que inspirou a criação da Fapesp. A Vannevar Bush se deve a concepção do sistema americano de ciência e tecnologia após a 2.ª Guerra Mundial, levando em conta a interdependência da ciência básica e aplicada e da complementariedade entre os distintos papéis do governo, de uma comunidade científica e universitária livre e independente, da indústria e dos empresários privados.
A implementação das concepções de Bush criou um modelo de inovação que eclipsou o sistema soviético, estatal. Esse é um dos dados do sucesso americano na dinâmica da bipolaridade Leste/Oeste. O desafio do presente é a competição entre o modelo de pesquisa e inovação dos EUA e o que vem sendo construído com apreciável sucesso pela China.
Bush antecipou a velocidade com que a cultura científica da pesquisa expande vertiginosamente as fronteiras do conhecimento e vem trazendo mudanças significativas em todas as esferas e dimensões, alterando as condições da vida em escala planetária e impactando a dinâmica da ordem mundial. Henry Kissinger observou que a era digital colonizou o espaço físico e permitiu a ubiquidade do funcionamento das redes que operam na instantaneidade dos tempos. Isso vem induzindo grandes transformações, até na maneira de conduzir a política externa e de atuar no campo diplomático.
Ciência e conhecimento são dados de base do cenário mundial do século 21, o que confere realce especial à afirmação de Bacon “conhecimento é poder”, nela se incluindo o poder da sociedade de dar rumos aos seus caminhos.
Desde o Renascimento a ciência é uma atividade internacional que se alimenta do intercâmbio de ideias e descobertas. Daí as atividades internacionais das academias científicas, incluída a brasileira, no exercício de uma diplomacia da ciência.
As formas como a ciência se insere na pauta internacional e interna levaram a Royal Society inglesa a elaborar novas formulações que vão além da tradicional diplomacia da ciência. Daí o destaque dado à ciência na diplomacia e nas políticas públicas em geral e da ciência em prol da diplomacia. Essas vertentes são ingredientes de grande relevo para um juízo diplomático apropriado para identificar as necessidades internas do País e avaliar possibilidades de melhor inserção internacional.
Dois itens da pauta interna e internacional são reveladores de um negacionismo do papel da ciência e do conhecimento nas políticas públicas e na diplomacia do governo Bolsonaro. O primeiro diz respeito à sua postura no enfrentamento da crise da covid-19, que fez aflorarem novos riscos para a saúde do mundo. A gestão desses riscos requer conhecimento e cooperação internacionais. Demanda as pontes de um multilateralismo permeado pela ciência na diplomacia. Não está no horizonte de uma diplomacia de confronto, que rejeita o acervo de realizações da tradição da política externa brasileira e se alinha aos muros dos unilateralismos excludentes.
O segundo diz respeito ao meio ambiente, tema global, transversal, que permeia a vida internacional. Foi o conhecimento que identificou os riscos que põem em questão a integridade dos ecossistemas, que, no seu conjunto, sustentam a vida na Terra. Foi o aprofundamento do conhecimento que ampliou o escopo operativo da gestão de riscos nessa matéria.
O paradigma do desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92 assinala a presença internacional ativa do Brasil nesse campo e é um exemplo da ciência na diplomacia. O desenvolvimento sustentável é o caminho para lidar, com o apoio do conhecimento, com a interligação economia e meio ambiente.
O desabrido negacionismo do governo Bolsonaro, por atos e palavras, em relação ao tema do meio ambiente é uma denegação do prévio acervo de realizações das políticas públicas brasileiras e de suas instituições de conhecimento. Corrói a credibilidade internacional do Brasil. Põe em questão a nossa capacidade, como país, de lidar criativa e construtivamente, pelo conhecimento, com a riqueza da nossa natureza e com o nosso potencial de crescimento econômico.
Em síntese, como diz o provérbio, “pior cego é o que não quer ver e pior surdo, o que não quer ouvir”, manifestado neste governo por um duplo e interconectado negacionismo: a denegação da importância dos fatos que a ciência e o conhecimento revelam e a recusa do papel da ciência e do conhecimento como o caminho para o seu deslinde. É o que nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional.
*Professor emérito da USP, ex-presidente da Fapesp (2007-2015), ex-ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002), é membro da Academia Brasileira de Ciências.
Demétrio Magnoli: Réplica a um confinado bacana
Eu, que furo a quarentena, sou pretexto para você desviar tua indignação
Li a tua carta a um não confinado, na Folha (9 de maio). Vesti a carapuça e o jornal abriu espaço para essa minha resposta. Você é um cara bacana, ama o planeta, valoriza a vida, me despreza. Concordo com teus argumentos sobre a necessidade de confinamento.
Só não pratico o que acho certo: furo a quarentena todos os dias. Coerência é coisa de bacana, num outro sentido.
Sou "zé povinho", como você escreveu. E, pior, não estou entre os mais pobres. Tenho um estabelecimento (não direi de que tipo, nem onde fica), que toco com minha mulher e dois funcionários. Fechei por três semanas, cumprindo a ordem do governador. Reabri, clandestinamente, para evitar a falência. Enquanto você vê Netflix e até pinta, passo o dia no Whats, marcando hora com clientes. Levanto a porta, eles entram, abaixo rápido. Um "ser antissocial", na tua síntese bacana.
Você me odeia; eu te invejo. Suspeito que o epidemiologista mencionado na tua carta, aquele da quarentena por "mais de um ano", tem salário garantido na universidade ou em cargo público, com grana do meu imposto. A moda dos bacanas com renda certa é posar de bacana diante dos sem renda certa. O governo declarou-me "não essencial" e proíbe que eu ganhe a vida, mas não me dá um tostão. Diz que devo salvar vidas, mas não salva a minha. Bacana, né?
Ciência! Consciência! Não sou doutor, mas entendi a história do vírus. Nem precisa recomendar pra eu lavar as mãos. Sei que as UTIs funcionam no limite. Um senhor de idade, vizinho, morreu de Covid-19. Tinha problema no coração, mas parecia bem.
Mesmo assim, nada --nenhum gráfico ou imagem chocante-- me convence a transferir minha família para a pobreza. Tudo que tenho é meu negócio, que paga as contas de casa, a faculdade do meu filho, o salário dos auxiliares.
"Economia, consertamos depois", né? Juntos, no mesmo barco, sem individualismo. Ok: você topa dividir tua renda comigo?
Não sou tão desinformado como você imagina. Bolsonaro, já vi, não cuida da saúde de todos nem protege a renda do "zé povinho". Seu companheiro de jornada é o caos --ou seja, eu. O Capitão Morte investe no meu desamparo para desmoralizar a quarentena. Tem a cooperação involuntária de um prefeito que substituiu aglomerações de carros por aglomerações de gente que não possui vários carros.
Sou o caos, mas estou na companhia de muito bacana. Você, a ordem, quer chamar a polícia sanitária para fechar meu negócio. Parabéns: salva vidas, às custas da minha.
Quem lê tanta notícia? Um certo Daniel Balaban, do Programa Mundial de Alimentos da ONU, calcula que 5,4 milhões de brasileiros serão rebaixados à pobreza extrema. Conheço um que já foi, meu primo.
Jardineiro, mora na favela. Dois meses parado: vocês, bacanas, não querem "gente estranha" em casa. A mulher, doméstica, ainda empregada, segura as pontas. Chegaram, finalmente, os tais R$ 600. Dois moleques sem escola: o menor não sai da rua; o maior vai hoje a um baile funk. Meu filho vai com ele. Vetores de contágio, é assim que agora se fala, não é?
"'Lockdown' já!", você exige, com milhares de cadáveres de razão. Pergunto, porém, de que marca? Europeia, chinesa ou brasileira? Não fiz faculdade, como você, mas acho que nada vem sem embalagem.
O "lockdown" europeu precisa da Europa toda: sociedades de classe média com governos funcionais. O chinês, que você elogia, precisa da China inteira: ditadura total, o governo acima de todos. Sobra o brasileiro, me engana que eu gosto, aplicado em São Luís: a cidade dividida entre a quarentena dos bacanas e o fuzuê dessa gentinha sem Netflix.
Sei que eu, não confinado, te atrapalho. Mas, pense bem, também ajudo: minha existência, essa incômoda presença, fornece a você o pretexto perfeito para desviar tua indignação. Não é culpa deles, os governantes. É minha.
Assino: um cidadão transgressor. Volto ao Whats.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Bernardo Mello Franco: Aflições da Casa-Grande
Em Belém, o prefeito tira as domésticas do ‘lockdown’. Em Brasília, lobistas cobram a volta da produção. Em SP, um bilionário garante: o Brasil ‘está bem’
Há 120 anos, Joaquim Nabuco profetizou: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.
Cleonice Gonçalves, 63 anos, foi a primeira vítima do coronavírus no Estado do Rio. Empregada doméstica desde os 13, trabalhava num apartamento no Alto Leblon. A patroa voltou da Itália com sintomas da Covid-19, mas não quis dispensá-la do serviço. Ao contrair a doença, a diarista foi despachada de táxi para Miguel Pereira, a 120 quilômetros dali. Morreu no dia seguinte, num hospital municipal.
O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho, incluiu o trabalho das domésticas entre as “atividades essenciais”. Com isso, faxineiras, lavadeiras, cozinheiras e babás poderão ser convocadas no período de lockdown. Segundo o tucano, a medida beneficiará quem “precisa ter alguém em casa”. A capital do Pará não tem mais vaga nos hospitais, mas os ricos encontraram uma alternativa. Passaram a fretar “UTIs aéreas”, que decolam para São Paulo por até R$ 200 mil.
Há 25 anos, Darcy Ribeiro escreveu que “os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada como falsa ‘democracia racial’, raramente percebem os profundos abismos que por aqui separam os estratos sociais”. “Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social que perpetua a alternidade”, afirmou.
O presidente da XP Investimentos, Guilherme Benchimol, declarou que o Brasil “está bem” no combate à pandemia. “O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo”, disse, na terça-feira. O bilionário também se mostrou indiferente ao acirramento da crise política. “Se as reformas estiverem avançando, eu acho que não atrapalha”, resumiu. O flerte da XP com o bolsonarismo é correspondido. No último mês, cinco ministros estrelaram lives da corretora.
Na quinta-feira, o presidente da República liderou uma marcha de lobistas e empresários ao Supremo Tribunal Federal. Com permissão do ministro Dias Toffoli, a comitiva fez comício pelo relaxamento das medidas sanitárias. “A indústria está na UTI”, disse Marco Polo de Mello Lopes, com a sensibilidade de uma Regina Duarte de gravata. “Haverá morte de CNPJs”, emendou Synésio Batista da Costa, que cobra o retorno dos operários às fábricas de brinquedos. Ontem o país ultrapassou a marca de dez mil mortes de CPFs causadas pelo coronavírus.
Patroas, prefeitos, industriais e especuladores renovam traços antigos de certa elite brasileira, que agora vê no capitão um porta-voz de suas aflições. Chutado do Ministério da Saúde, Luiz Henrique Mandetta recorreu a Gilberto Freyre para explicar o barulho contra o isolamento social. “Só quem está gritando é a Casa-Grande, que vê o dinheiro do engenho cair”, disse à “Folha de S.Paulo”. “A Casa-Grande arrumou o quarto dela, a despensa está cheia. Tem o seu próprio hospital. Lamenta muito o que está acontecendo, mas quer saber quando o engenho vai voltar a funcionar”.
Marco Aurélio Nogueira: O pão de cada dia
Ficar em casa é atitude de solidariedade, respeito ao próximo e responsabilidade
Quarenta dias depois de iniciado o confinamento domiciliar recomendado pelos órgãos sanitários, duas questões chamam atenção quando se observa a cena brasileira. Ambas são de natureza comportamental.
Em que pesem todos os alertas e apelos médicos, as mortes que se acumulam, uma parte da população não aceita ficar em casa. Movimenta-se, aglomera-se sem necessidade, criando o ambiente de que necessita o vírus para se espalhar. São pessoas que parecem imunes à dor e à solidariedade. Para elas, o problema é sempre dos outros.
Há que fazer um desconto nessa constatação. Muitos simplesmente não podem ficar em casa. Precisam trabalhar, ganhar o pão de cada dia, tocar a vida. Outros não têm como se isolar, vivem em habitações exíguas, sub-humanas, em bairros de densidade demográfica tão alta que as casas parecem formar um monólito indivisível. Sem levar na devida conta essas circunstâncias, não conseguiremos ir além de uma leitura moralista da situação.
Há, porém, uma fatia importante da população que não se enquadra nesses casos. São pessoas que jogam futebol ao ar livre, fazem atividades em grupo, não dispensam os contatos interpessoais. Também não tomam precauções nem procedem com cautela. Enchem os belvederes em dia de sol, levam os filhos para brincar nos parquinhos, frequentam bares, vão às “feiras do rolo” que continuam a se realizar, como na Sé, em São Paulo.
Sabe-se que continuam a ocorrer bailes funk em periferias urbanas. Em Manaus, onde a epidemia tem sido particularmente devastadora, noticiou-se que o Estádio Carlos Zamith, que funcionou como centro de treinamento para a Copa do Mundo de 2014, abrigou uma festa regada a bebidas alcoólicas. Em Blumenau, uma multidão invadiu os shopping centers reabertos pela prefeitura, sendo recebida com aplausos pelos lojistas.
É um assombro que haja tanta indiferença justamente entre nós, com nossa alma latina, sempre pronta a se derramar em lágrimas e a se comover com a desgraça alheia.
Algumas dessas pessoas pretendem-se “ativistas”. Protestam contra o isolamento, fazem carreatas, detonam políticos e autoridades, agitam faixas e bandeiras nos portões de palácios e quartéis. Aceitam o obscurantismo anticientífico e o negacionismo, atacam as instituições e pregam a volta da ditadura, como se isso fosse um desejo da maioria dos brasileiros. Muitas delas são manipuladas por profissionais e influencers de extrema direita. Mas nem sequer se dão conta disso. Deixam-se levar, convictas de que prestam um serviço ao País.
Intriga que tais pessoas não mudem mesmo quando tudo indica que o caminho não é do confronto e da negação dos fatos, quando o presidente, em plena pandemia, dispara uma cretinice por segundo, que só faz piorar a situação. A atitude não tem que ver com posição política ou ideológica. É de natureza psíquica, liga-se a um egoísmo entranhado na alma e na mente.
São pessoas levadas pelo ódio: ao PT, às esquerdas, aos políticos, à democracia. Muitas dizem carregar Jesus no coração, mas estão orientadas por uma raiva doentia, que as cega e embrutece. Estão expostas a um tipo de veneno que inebria e aliena, que vai sendo destilado dia a dia pelo presidente e por seu “gabinete do ódio”, com seus robôs incansáveis e suas fake news. São pessoas reativas, que não pensam. Acreditam que o “mito” está certo, haveria mesmo uma “conspiração” sendo articulada contra ele. No fundo, agem contra a sociedade, a ordem institucional, o Estado como comunidade política de homens e mulheres. Sua mentalidade é de manada, de tribo.
Sair do confinamento não é uma questão econômica, ligada à retomada dos negócios. Só terá sentido se souber se articular com a preservação da vida. A solução não é a saída abrupta de milhões de pessoas sem que o sistema de saúde esteja preparado para a multiplicação dos doentes graves. Porque todos serão infectados, não haverá como evitar. A volta à normalidade é algo muito mais sanitário que econômico. Precisa, por isso, ser planejada com inteligência estratégica, considerando que o vírus permanecerá ativo e agressivo.
Ficar em casa é uma medida defensiva, de proteção à vida pessoal e familiar. Mas é também uma atitude de solidariedade, respeito ao próximo e responsabilidade. Com base nela, pode-se retardar a disseminação do vírus para que todos os doentes, em especial os mais frágeis, possam ser atendidos pelo sistema de saúde.
O “ficar em casa” a que estamos sendo conclamados não é uma restrição opressiva. Há como se movimentar um pouco, tomar sol, caminhar. O que não se pode é agir como manada, sem manter distância cautelar mínima e cuidados de higiene. Não é difícil de entender.
Constatar que existem pessoas que não conseguem compreender isso faz com que se desconfie da humanidade dos humanos e da sua capacidade de reagir com lucidez nos piores momentos. Prova que estamos carentes de fraternidade e solidariedade, entregues à crueldade do mundo, como costuma dizer o filósofo Edgar Morin.
Mario Sergio Conti: O inferno são os outros, e os outros fazem carreatas em defesa da peste
Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, 'Entre Quatro Paredes'
A peste pegou em cheio a linguagem pública e a particular. A pública porque ela é manipulada pelo poder para perverter a realidade. A particular porque, apinhados e à míngua entre quatro paredes, os pobres foram silenciados. A verborreia dos dominantes mantém a mudez dos dominados.
Ilustração de carros verdes enfileirados dando a volta em um quadrado amarelo. O quadrado parece um cômodo vazio com uma pessoa deitada no chão. Há um círculo azul na imagem e algumas bandeiras do Brasil em alguns carros.
A perturbação linguística desmoraliza clichês da idade clássica. Caso do Rubicão, o rio que generais eram proibidos de cruzar para não se acercarem com tropas do coração do império, Roma. Júlio César o cruzou e disse: “A sorte está lançada”. Deu-se bem e virou ditador.
Bolsolígula disse que a peste era gripezinha e o confinamento, asneira. Propagou perdigotos. Pregou a ditadura nas barbas do Supremo e do Congresso, exortando a tropa a atropelá-los. Enxotou o ministro da Saúde e depois o da Justiça, cortesãos sebosos que tantos serviços lhe prestaram.
Toda vez que Bolsonero atravessou o Rubicão, ouviu-se a algaravia da indignação oficialesca, acompanhada por semblantes graves. Mas sobressaiu na cacofonia o vagido ameno, o bacharelês castiço, o dó de peito impotente dos potentados: “Lamentável sob todos os aspectos etc.”.
Já não há Rubicões: eis a novidade além-linguagem. Ele foi cruzado tantas vezes que quase dispensa uma boa quartelada. Na republiqueta do Messias, milicos mandam e paisanos obedecem. Antes, contudo, as vestais de toga encaram os fardados e, altivas, questionam: “Quer um café, general?”.
A última azeitona verde-oliva na empada do Planalto é o interventor na Saúde. Ele logo avisou: “Vou como instituição, não como Eduardo Pazuello”. Ao funéreo ministro nominal, o chofer do rabecão, cabe olhar o chefe nos olhos e indagar: “Que tal uma fatia de bolo, general?”.
Militares na política têm uma vantagem crucial sobre políticos civis. Como não querem votos, e sim cargos e salários, não posam de Miss Simpatia. Dirigem suas piscadelas coquetes apenas ao capitãozinho que tem a caneta.
Mas a má fé dos de quepe é idêntica à dos sem-quepe.
Mal chegados ao Planalto, os generais já prometeram um Plano Marshall. Há 81 anos, o plano original respondeu à pressão dos povos europeus que venceram o nazismo.
Em 1945, houve guerras civis na Grécia e nos Balcãs; insurreições na França e na Itália; expropriações no Leste.
O Plano Marshall respondeu também ao interesse americano em reconstruir a Europa. Os Estados Unidos investiram ali o equivalente a US$ 100 bilhões. Pois bem. Existe pressão popular hoje? Há interesse em pôr capital produtivo no Brasil? Alguém vê US$ 100 bilhões à disposição?
A quimera militar, pois, é como a mitológica: tem cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. É uma figura especiosa da retórica, uma mentira troncha para enganar os trouxas. Como diz o vulgo, é uma fake news —um meticuloso amálgama do simbólico com o real.
Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, “Entre Quatro Paredes”. Ela se passa dentro de um quarto, onde se digladiam um escritor heroico que se acovarda, uma patroa infanticida e uma funcionária ressentida.
Sem referências rombudas, por meio de uma linguagem estupenda, se percebe que, fora do quarto, rondam os lobos acinzentados, os nazistas, os colaboracionistas da ocupação. No fim, se revela que, sem demônios de tridente, enxofre e labaredas dramáticas, o quarto é na verdade o inferno.
As três personagens estão condenadas a se atormentarem por toda a eternidade. A última fala da peça marcou época: “O inferno são os outros”. Ao contrário do clichê que se tornou, ela mostra o primado da vida social, a interdependência entre o ser e os outros, e não sua solidão infinita.
Ela pode ser completada por duas outras frases de Sartre: “a existência precede a essência” e “o marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo”. Enquanto a sociedade estiver dividida em classes, a liberdade será motivo de engajamento, um devir. O inferno são os outros.
Alguns outros. Os lobos promovem carreatas pela peste na avenida Paulista e Brasil afora. Seguem ordens do presidente e de seu clã, dos seus generais, empresários e milicianos. A linguagem deles não é a da lei nem a da urbanidade. É a da mentira, da força, da agressão. São fascistas.
Eles devem ser enfrentados como tais. Com firmeza, união e audácia, e não com nhenhenhém. A existência da peste, vivida entre quatro paredes, ensina o que está na essência de Bolsonaro e sua gangue: a vontade de destruir e dominar.
*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
El País: Trabalhadores já encaram cortes nos salários
Em meio à crise com o coronavírus, não perder o emprego é motivo de celebração. Contratados como pessoas jurídicas também viram sua remuneração reduzida
Com a escalada da pandemia de coronavírus no Brasil e a paralisação de grande parte das atividades econômicas, várias empresas já começaram a demitir funcionários. Outras já começam a cortar salários, amparadas na Medida Provisória editada no início deste mês, que abriu essa brecha para este momento de emergência. Luciana* (nome fictício porque prefere não aparecer) foi contemplada por essa redução e precisou reajustar sua vida prática. Cancelou a pós-graduação e passou a terapia, que fazia semanalmente, para o regime quinzenal antes mesmo de saber quanto exatamente do seu salário seria cortado. “No dia 20 de março, deixamos de receber o vale-transporte e vale-refeição”, diz. Naquele momento, ela já havia sido avisada sobre uma possível renegociação salarial. Isso tudo antes de o presidente Jair Bolsonaro editar, na quarta-feira (1 de abril) a MP que permite a redução da jornada de trabalho e dos salários em até 100%, com uma compensação proporcional paga pelo Governo, mas só até o teto do seguro-desemprego (1.813,03 reais).
Funcionária de uma construtora e contratada via CLT, Luciana achou que, quando as primeiras conversas sobre renegociações ocorreram, a medida afetaria os altos cargos da empresa, que são contratos via Pessoa Jurídica (PJ). “Não imaginei que respingaria em todo mundo”, afirma. Mas nesta sexta-feira, ela recebeu a informação oficial da empresa: corte de 10% no salário de quem ganha até 5.000 reais e de 20%, para quem ganha acima desse valor, ao menos até junho. Para ela, foi um alívio. “Achei que seria de 40%”, diz. “Então não deixa de ser uma boa notícia”.
Embora o setor da construção civil tenha permissão para seguir operando durante a quarentena, a empresa onde trabalha Luciana é especializada em projetos em condomínios fechados. E as administrações dos condomínios suspenderam a realização de obras neste período, por medida de segurança. “A empresa está completamente parada”, conta. Com poucas informações sobre como funcionará a MP, ela diz não saber se vai ter direito a receber o complemento prometido pelo Governo diante do que a empresa está cortando em seu salário. “Não sei como vai funcionar, se vamos ter que ir ao banco, se teremos de dar entrada ou se o pagamento é automático”, afirma. “Vou esperar que as pessoas que mais precisam consigam receber [o complemento via seguro desemprego] e aí eu dou entrada no meu”. O Governo estima que 24,5 milhões de pessoas terão o contrato reduzido ou suspenso no país.
Segundo a nova lei, a condição de suspensão completa do contrato de trabalho poderá ter um prazo máximo de dois meses. Há, ainda, a possibilidade de redução de jornada. Nesse caso, o limite de tempo são três meses. A legislação permite que as negociações sejam feitas individual ou coletivamente. Além disso, o texto garante um período de estabilidade para qualquer trabalhador com contrato reduzido ou suspenso. Ao longo de todo o tempo em que estiver vigente o acordo, o trabalhador não pode ser dispensado. E fica estável por igual período ao fim do acordo.
Trabalhadores sem carteira no limbo
A contrapartida do Governo diante dos cortes atende, no entanto, só aos trabalhadores formais de empresas privadas com carteira e dos domésticos com carteira. Os dois grupos somam atualmente 35 milhões de pessoas, o que representa 53,5% da força de trabalho, segundo o IBGE. Os trabalhadores que muitas vezes são contratados como pessoas jurídicas para diminuir os custos trabalhistas das empresas ―a chamada pejotização― ficarão de fora de uma contrapartida do Governo caso tenham os salários reduzidos.
É o caso de Lucas*, que foi avisado no início da semana sobre o corte de 40% no seu salário, a princípio, durante abril e maio, já que a empresa de marketing em que trabalha, de cerca de 300 funcionários, sofreu uma drástica queda na demanda. “Na segunda-feira me informaram que irão reduzir o salário e a jornada de todos da empresa, do presidente ao motorista. Mas como sou PJ, acho que infelizmente não entro nessas regras de ajuda do Governo”, afirma. “No início, fiquei bravo com a situação, até porque trabalho com muitos prazos, então provavelmente não vou conseguir reduzir as horas da minha jornada para conseguir finalizar o que preciso, só o meu salário será cortado. Ainda assim, é melhor do que ser demitido, lá ninguém foi demitido ainda”, diz.
Estatais e empresas de capital misto não entram na MP
O engenheiro Henrique* teve o salário e a jornada reduzidos, mas também não receberá nenhuma compensação do Governo, porque é concursado da Petrobras. Estatais e empresas de capital misto, como Eletrobras e Petrobras, não poderão se beneficiar da MP, porque os regimes jurídicos são diferentes, e as contratações feitas por concurso público. Segundo o secretário especial de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, o objetivo da nova lei é preservar os empregos dos trabalhadores do setor privado.
Apesar de ter um trabalho estável, o engenheiro explica que o corte que ele e os colegas irão sofrer de um quarto do salário irá pesar para quem tem filhos e muitos compromissos financeiros. “No setor da energia estamos vivendo uma crise dupla. Temos de um lado uma forte queda de demanda por causa da epidemia de coronavírus e do outro, um excedente de petróleo por conta da guerra entre Arábia Saudita e Rússia”, diz ele, lembrando que os preços do brent foram para o chão. “A operação está próxima de não ser viável”, completa. Apesar da empresa ter reduzido seu horário de 8h para 6h ao dia, acredita que continuará trabalhando a carga horária de sempre porque trabalha com projetos que necessitam agilidade. “Ontem já não cumpri as 6 horas, porque estou com muitos projetos. Temos uma equipe muito comprometida”, explica.
Henrique afirma que está incomodado com a diferenciação que fizeram entre os cortes dos salários dos trabalhadores do regime administrativo ―do qual faz parte— e daqueles que ocupam cargos com gratificações extras. Este último grupo, que inclui gerentes, consultores, assessores e supervisores, terão a postergação do pagamento —entre 10% e 30%—, da remuneração mensal até setembro. “É tragicômico que justamente as pessoas com uma das melhores remunerações da empresa não sofrerão cortes, apenas um adiamento de parte do salário”, afirma.
Em nota ao EL PAÍS, a Petrobras justificou que os empregados em regime administrativo trabalharão por menos horas e a sua remuneração manterá o mesmo valor por hora trabalhada. “Já os gestores, é comum ficarem à disposição da companhia permanentemente durante todo o dia. Esses empregados não terão redução de jornada e, em momentos de crise, podem ser acionados inclusive em horários estendidos”, disse a petroleira, explicando que, a medida adotada foi de redução temporária da remuneração com postergação do pagamento.
Informais ainda não sabem como e quando receberão auxílio
Enquanto os trabalhadores formais se adaptam a uma realidade que não se sabe até quando vai durar, os informais de baixa renda ainda não sabem quando exatamente receberão um auxílio emergencial de 600 reais em decorrência da pandemia da Covid-19, que consta em outra MP sancionada pelo presidente, voltada para os informais. A dúvida geral é como ter acesso ao dinheiro.
Em um dos cruzamentos da avenida Pedroso de Morais, na zona oeste de São Paulo, o catador de lixo Luiz Antonio resolveu pedir dinheiro em um dos sinais de trânsito já que não consegue mais vender o material reciclável que recolhe. “Estou passando fome. Quando isso tudo vai acabar? Ouvi falar que o Governo vai dar uma ajuda, mas como que faço para ganhar?", disse à reportagem.
Nesta sexta-feira, o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, afirmou que os trabalhadores informais elegíveis “muito provavelmente” receberão antes da Páscoa o primeiro pagamento. E que será usado um aplicativo para celulares para identificar os trabalhadores informais que não estão em nenhum cadastro do Governo mas têm direito ao benefício. O alcance do auxílio vai depender, portanto, da taxa de adesão dessas pessoas, uma tarefa que não será fácil para o Governo, já que muitas delas não possuem smartphones ou internet.
* Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.
Bernardo Mello Franco: Lula condenado, PT mais isolado
Depois da derrota para Bolsonaro, o PT se distanciou de aliados e perdeu influência no Congresso. Agora fica ainda mais longe de ver seu líder fora da cadeia
A segunda condenação de Lula tende a agravar o isolamento do PT. O partido não conseguiu unir a oposição e perdeu influência no Congresso. Agora fica ainda mais longe de ver seu líder fora da cadeia.
Em 2018, o PT foi varrido pelo furacão Bolsonaro. Só elegeu quatro governadores, todos no Nordeste. Em 2019, as perspectivas não parecem melhores. O ano mal começou e a sigla já sofreu derrotas significativas na Câmara e no Senado. Pela primeira vez em 17 anos, foi excluído das duas mesas diretoras.
Na Câmara, os petistas foram esnobados por Rodrigo Maia, que preferiu se aliar ao PSL. Fecharam um acordo de última hora com Marcelo Freixo, mas não conseguiram entregar nem 40 dos 54 votos da bancada. Agora correm o risco de não comandar nenhuma comissão importante.
No Senado, o PT escolheu abraçar Renan Calheiros. Foi uma decisão desastrada. O emedebista retirou a candidatura e deixou os parceiros ao relento. O governista Davi Alcolumbre virou presidente e deixou claro que não dará vida fácil a quem apoiou o rival.
Um ex-ministro petista afirma que o partido está sem rumo e “caminhando para o gueto”. Ele diz que a legenda adotou um discurso sectário e ficou imobilizada com a campanha “Lula Livre”. Na sua avaliação, o ex-presidente não sairá da cadeia tão cedo. Aos 73 anos, terá que esperar um habeas corpus humanitário.
Outro ex-ministro descreve a situação do PT como um “profundo isolamento”. Ele defende um esforço de reaproximação de aliados históricos como PDT e PCdoB. O problema é que as duas siglas ainda reclamam do tratamento que receberam na eleição. Preferiram apoiar Maia e sabotaram a formação de um bloco de esquerda na Câmara.
O PT recebeu 47 milhões de votos na corrida presidencial, mas não sabe o que fazer com eles. Fernando Haddad voltou às salas de aula e resiste a assumir o comando do partido. Só tem sido visto no Twitter, onde faz críticas pontuais a Bolsonaro.
A presidência da sigla continua nas mãos de Gleisi Hoffmann, rebaixada de senadora a deputada. Ela é cada vez mais contestada pelos colegas. Tem dado motivos para isso. Sua última trapalhada foi baixar na Venezuela para a posse de Nicolás Maduro.