intransigência

Pedro Doria: A febre

Cancelamentos são uma febre, um dos muitos sinais de que o debate público quebrou

Por conta do Big Brother, cancelamentos voltaram ao debate. Mas, como tudo no ambiente de polarização, não conversamos o suficiente sobre eles. Sobre como a dinâmica de redes sociais e algoritmos os tornam mais agressivos e, por vezes, inevitáveis. Vai além: como focamos demais naqueles cancelamentos promovidos por militantes identitários, com frequência não percebemos que seu impacto é mais amplo e tem um custo muito alto para o debate público. Em todas as correntes políticas, as conversas estão travadas.

É só prestar atenção: quando é que, no meio de uma conversa, somos surpreendidos por um argumento novo? É cada vez mais raro. As identidades ideológicas se cristalizaram. Desta forma, se uma deputada ligada à esquerda considera necessária uma reforma da Previdência, ela é imediatamente atacada pelos seus próprios. Se uma militante trans se declara liberal é também atacada pelos seus. Como o conservador favorável a educação sexual na escola pública é de presto lapidado nas redes. São, todos, exemplos reais.

A cristalização das identidades transforma o debate político num pacote fechado. Quem carrega uma determinada etiqueta ideológica deve, quando conversando sobre política nas redes, repetir todas as opiniões pré-formatadas sob o risco de cancelamento. Mudar de opinião é, igualmente, um risco.

O fenômeno não é natural — é construído. Faz parte da transformação de política em tribalismo e tem duas origens. Começa nos algoritmos — o software que decide aquilo que aparecerá para nós no Twitter, no Face, no YouTube. Como o objetivo desta inteligência artificial é que fiquemos a maior quantidade de tempo na plataforma, ela mostra aquilo que, acredita, vai nos deixar ligados. Sempre acerta.

Na sequência há nossa interação com o software. Como buscamos likes, como buscamos atenção, aprendemos que tipo de mensagem devemos escrever para levantar a onda.

O resultado final é pasteurização. E à pasteurização dos argumentos no debate público se segue a intolerância com qualquer desvio. Daí a patrulha ideológica.

Mas esta não é aquela patrulha ideológica dos anos 1970 — é nova. Funciona como pegar uma onda no mar. Vemos uma, duas, três pessoas atacando uma quarta. Os argumentos para o ataque — sempre os mesmos. E, claro, o crime costuma ser de desvio ideológico. É ver que a onda está crescendo. No quinto ataque, fica óbvio que basta se juntar àquelas vozes e muita gente lerá seu tuíte, dará um like. É pegar a onda.

Com frequência, muitos argumentam que são só ‘críticas’. É um ‘debate’ ocorrendo. Não é. Há uma moeda corrente nas redes sociais que é a do like, dos curtires diversos, o polegar para cima, o coração clicado. Ícones positivos, muitas vezes, para simbolizar a aprovação a uma torrente que expressa emocionalmente raiva ou ódio. Aquela curtida vale muito psicologicamente, assim como a pedra lançada na forma de tuíte — ou vídeo, ou post — sinaliza outra coisa muito importante. Sinaliza, para quem é do grupo, que quem apedrejou subscreve os argumentos congelados e imutáveis. Sinaliza virtude.

Não é debate por um motivo muito simples. Quem é cancelado não vê argumentos. Vê, isto sim, num longo deslizar do dedo contra a tela uma lista infindável de ataques. Não dá pra ler. E não há chance de uma resposta agradar. Ou ajoelha no milho ou se cala e espera passar. Não houve um convite à reflexão, não há a possibilidade de diálogo.

Acontece todos os dias. Cancelamentos são uma febre, um dos muitos sinais de que o debate público quebrou. Estamos nos transformando numa sociedade movida pela pulsão de morte e incapaz de se fascinar com novas ideias.