intervenção
Ivan Alves Filho e Alcileia Morena: A propósito da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro
Esquematicamente, alinhamos alguns pontos que, talvez, possam contribuir para um melhor entendimento da questão da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro:
1) Começamos por uma pergunta: qual a alternativa à intervenção federal na segurança pública?
2) Dizer que essa intervenção se resume a uma manobra do Governo Temer é extremamente redutor, e faz tábua rasa da complexa – e concreta – situação vivida pelo Estado do Rio de Janeiro. Lidamos com gestos concretos e não com essa ou aquela intenção (e pouco interessa aqui o que se passa pela cabeça de Michel Temer. Esse é um problema da psicanálise e não da política, propriamente).
3) Os últimos governos do Estado do Rio de Janeiro foram tanto de responsabilidade do PMDB quanto do PT – e isso desde a gestão Garotinho. Mais: foi o Governo Lula – e não somente o PMDB – que viabilizou as vitórias de Sergio Cabral,para o governo estadual, e Eduardo Paes para a prefeitura. O Temer pouco tem que ver com isso, apesar de ser do mesmo partido que o Cabral e o Paes. Até porque, o PMDB nunca foi uma agremiação que primasse pelo centralismo, sendo muito mais uma federação de partidos regionais.
4) O objetivo da intervenção, a nosso juízo, não é reprimir os “pobres” , como querem alguns. Pelo contrário, pensamos que a intervenção atua para evitar que os trabalhadores – aí sim – fiquem reféns do crime organizado nas áreas mais carentes. Quem impõe o terror à população em geral é essa quadrilha que praticamente transformou o Brasil em um narcoEstado, como foi o caso da Bolívia,do Panamá, da Venezuela e da Colômbia. O fato é que o Brasil está se decompondo em determinadas regiões. As pessoas estão perdendo o direito de ir e vir em muitas das nossas cidades. Foram 59 mil assassinatos em 2017. Até quando vamos permanecer assim?
5) A palavra trabalhador não aparece muito em algumas textos e comentários. Este raciocínio se torna cada vez comum em certas faixas políticas, que revelam algum fascínio pelo lumpesinato. Nunca é demais lembrar ter sido a aliança das camadas médias radicalizadas com os marginais que abriu a via para o nazismo na Alemanha. Não por acaso, o PT hoje é o partido dos “pobres” (enquanto muitos se enriqueciam com esse “discurso”) e alguns almejam se candidatar à Presidência da República ora com uma plataforma voltada quase que exclusivamente para a violência, ora para a defesa do lúmpen.
6) A exemplo do lumpesinato, o Brasil possui hoje uma burguesia do crime. Ou seja, gente que ganha dinheiro com atividades ilícitas, independentemente da origem social de seus integrantes (“ricos”, “pobres”). Bandido é bandido, venha de onde vier.
7) As Forças Armadas podem perfeitamente cumprir uma ação pacificadora. A alternativa não se dá entre ditadura e caos. Precisamos contornar essa esparrela. A democracia pressupõe uma ordem. Democrática, mas ordem. Se ficarmos entre o caos e a ditadura, vencerá esta última. O fascismo sempre se infiltra por aí também.
8) As Forças Armadas pisaram na bola, como se diz, em 1964, Mas não decepcionaram, muito pelo contrário, nos acontecimentos de 1889, 1930, 1942, 1945, 1955 e 1985. É preciso reconhecer isso, até por uma questão de honestidade intelectual e política. O autoritarismo porventura presente nelas é o mesmo que grassa na sociedade brasileira. Mais a sociedade se democratiza, mais as Forças Armadas também se democratizam.
Não se pode identificar Exército e repressão, mecanicamente. Os comunistas, por exemplo, lutaram contra a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e ela era civil. Combateram-na porque era uma ditadura. Giocondo Dias, com sua habitual lucidez, chegou a escrever sobre o regime de 1964: “Não combatemos o regime ditatorial porque ele continha traços militares; combatemô-lo porque ele é antidemocrático”. Devemos ao Exército figuras do porte de Cândido Rondon, Euclides da Cunha, Teixeira Lott, Mascarenhas de Morais, Gregório Bezerra e Nelson Werneck Sodré.
9) O Estado tem o monopólio da violência e não podemos admitir que grupos de marginais armados controlem áreas imensas do território fluminense. Não podemos ignorar, de forma alguma, a ação terrorista do crime organizado. O contributo que essa intervenção pode dar é o de ajudar a organizar uma nova política de segurança pública.
10) A extrema-direita perdeu o chão, sim. Mas talvez seja melhor evitarmos estes termos direita e esquerda e operarmos com outras categorias (populismo, campo democrático, conservadores etc). Categorias como “direita” e “esquerda” excluem do campo democrático parcelas que são de “direita” e incluem nele parcelas que são de “esquerda”. Exemplificando: o presidente francês Charles de Gaulle, por ser de “direita”, ficaria excluído do campo democrático, e um ditador sanguinário como Nicolas Maduro, por ser de “esquerda”, seria incluído nele. Uma tremenda injustiça, naturalmente. De Gaulle combateu o nazismo que buscava destruir seu país e esse fantoche Maduro governa a Venezuela (até quando?) recorrendo às torturas e à corrupção. Sob essa ótica, vamos dizer de cara: o grande advers&a acute;rio é o populismo de base fascista (dito de “direita” ou de “esquerda”, pouco importa).
11) Finalmente, diríamos que o confronto hoje se dá entre Civilização e Barbárie. Daí pedirmos um lugar, nisso tudo, para o Humanismo.
Fernando Gabeira: Intervenção parcial
Para atacar o crime em seus diferentes universos, a Lava-Jato poderia avançar nos processos contra os políticos
Governo que fez intervenção é impopular, mas o Exército tem grande credibilidade. A intervenção federal no Rio foi feita por um governo impopular. E feita apenas parcialmente. Deveria ser completa.
Não creio que seja o caso de defendê-la diante das teorias conspiratórias, de esquerda ou direita, que veem nela uma espécie de ataque ao seu projeto eleitoral. É inevitável que as pessoas fixadas na luta pelo poder interpretem tudo, mesmo um fato dessa dimensão social, como simples contador de votos.
A intervenção está aí. O governo é impopular, mas o instrumento é o Exército, com grande credibilidade. Se escolher atos espetaculares para tirar Temer do sufoco vai afundar com ele.
Logo, a primeira e modesta tese: o norte é a prática militar, com preparo e meios materiais necessários, e não o oportunismo político. Se prevalecer a superficialidade do governo, a batalha será perdida.
A intervenção tem de saber o que quer, para definir a hora de acabar. Isso não se define com uma data rígida no calendário, mas com a realização da tarefa: estabilizar a situação do Rio para que a polícia tome conta depois de reestruturada. É isso que fazem as intervenções, mesmo num país como o Haiti.
Para reestruturar a polícia é preciso contar com a parte ainda não corrompida e pagar todos os salários em dia.
A maioria parece apoiar a intervenção. É fundamental respeitar a população, conquistar corações e mentes. Nesse sentido, foi um grande passo civilizatório o vídeo de três jovens orientando os negros a evitar a violência policial e a se defender, legalmente, dela. Está na rede. É um texto que deveria ser levado em conta, pois revela como as pessoas de bem se comportam nessa emergência.
Circulou uma notícia de que as favelas ocupadas por traficantes armados seriam considerados territórios hostis. É um equívoco, creio eu. As favelas são territórios amigos, ocupados por forças hostis. Parece um jogo de palavras, mas é uma diferença que implica em táticas e estratégias diversas.
A quarta modesta tese: como não foi realizada a intervenção completa, a Lava-Jato poderia avançar nos processos contra os políticos. Seria a maneira de combinar um ataque ao crime organizado em seus diferentes universos. Creio que fortaleceria o trabalho da intervenção.
Finalmente, algo que me parece também decisivo. Quem acha que é a única saída do momento, apesar de sua fragilidade, precisa ajudar.
O que significa ajudar? A sociedade já se move de muitas formas, inclusive, na internet, colaborando com aplicativos como Onde Tem Tiroteio, Fogo Cruzado e dezenas de outras iniciativas.
Isso vai depender também da intervenção. Se a visão for de aglutinar o esforço social, o general Braga precisa apresentar as linhas gerais de seu plano. Delas podem surgir uma indicação de como ajudar.
Compreendo que a esquerda diga que a violência foi superestimada pela mídia. O próprio general Braga derrapou no primeiro momento, ao afirmar que é muita mídia.
Ele tem razão, de certa forma. Sou um velho jornalista. No século passado, as notícias eram produzidas apenas por profissionais. Hoje, não: a estrutura industrial ampliou seu alcance diante de milhares de colaboradores filmando tudo. Quem filma os tiroteios no morro? E os assaltantes que tentam enforcar uma velha? Não são repórteres. Nenhum dos atos violentos foi desmentido. Não houve fake news, uma vez que caindo no circuito industrial os dados foram checados.
Não se trata, portanto, apenas de muita mídia. São muitos fatos. De qualquer forma, ganhariam as redes sociais.
É com eles que vamos. Ou não vamos.
Que Segurança Pública queremos para assegurar um amanhã mais promissor?
Que Segurança Pública queremos para assegurar um amanhã mais promissor? O #ProgramaDiferente exibe a íntegra do evento que busca uma resposta para essa reflexão, com abertura de Luiz Alberto Oliveira, curador do Museu do Amanhã, e de Ilona Szabó, cientista política e diretora executiva do Instituto Igarapé. A mesa de debates é composta por Maria Laura Canineu, diretora-geral do Human Rights Watch; Paula Mascarenhas, prefeita de Pelotas (RS); Fernando Veloso, ex-chefe de Polícia Civil; e por MV Bill, escritor e ativista. A moderação é do jornalista da TV Globo, Caco Barcellos.
Murillo de Aragão: Segurança Pública e Eleições
Intervenção dos militares na sociedade civil desperta sentimentos contraditórios
Por que a intervenção federal na segurança pública no Rio de Janeiro gera confusão? São várias razões. Vamos a algumas delas. Parte das elites acadêmicas e midiáticas do país confundem autoridade com autoritarismo. Assim, uma intervenção dos militares na sociedade civil desperta sentimentos contraditórios que revelam a existência, ainda, de preconceito em relação às Forças Armadas. Alguns chegam a dizer que a intervenção deseja promover o genocídio de negros e pobres. Um completo despautério, já que são os negros e os pobres os que mais sofrem com a violência.
Outra camada de confusão decorre das narrativas políticas. A intervenção federal pode repercutir eleitoralmente, até mesmo pelo fato de o tema segurança pública ser imprescindível nos debates das campanhas. Assim, o eventual sucesso da iniciativa pode colocar o presidente Temer de forma positiva no processo eleitoral. Basta ganhar alguns pontos em sua aprovação pela população para o seu cacife aumentar, tanto para uma eventual candidatura à Presidência da República quanto para o apoio a algum candidato de seu interesse.
O tema tem outras intercessões. O governador de São Paulo, o presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB), tem tido um desempenho bastante razoável na segurança pública. Houve queda relevante, de quase 5%, no número de homicídios dolosos em 2017 em relação a 2016, número que vem caindo consistentemente desde 2001, início da série histórica. São Paulo tem hoje uma das menores médias de homicídio do país: oito a cada 100 mil habitantes no estado (no Rio de Janeiro são 30 a cada100 mil). Mesmo assim, a sensação de insegurança ainda é grande.
Portanto, deve-se concluir que o sucesso na intervenção pode ser benéfico para a imagem do governo. Mas apenas um sucesso mais do que retumbante teria o “efeito de Plano Real” na popularidade de Temer. Enquanto isso, Geraldo Alckmin, apesar da evolução positiva dos números em torno da questão da violência urbana, não consegue ganhar tração utilizando-se desse sucesso. Existe um enigma a ser decifrado: como fazer a melhoria da segurança pública influir eleitoralmente?
Tenho a certeza de que o diferencial – entre a percepção de sucesso ou de fracasso – será decidido pela capacidade da intervenção produzir resultados sem acidentes de percursos e da boa capacidade de comunicar os resultados.
* Murillo de Aragão é cientista político
Raul Jungmann: Mandado coletivo, uma falsa polêmica
Tome-se por hipótese que uma investigação policial identificou em determinado prédio residencial o cativeiro em que sequestradores mantêm reféns. A polícia, no entanto, não sabe em que apartamento estão o bandido e suas vítimas. Pede, então, ao juiz um mandado que lhe permita vistoriar todo o prédio para localizar o esconderijo e salvar vidas.
Esse é o fundamento de um mandado coletivo de busca e apreensão, que tanta celeuma causa há dias, apesar de ser utilizado desde 2012, ainda que não tenha produzido jurisprudência específica. O recurso pode ser essencial em algumas circunstâncias para a conclusão de um trabalho de inteligência e investigação, depende de concessão judicial e não constitui regra, mas exceção. Não obstante, é alvo de questionamentos que o condenam por antecipação, na suposição de que será utilizado ao bel-prazer da autoridade policial, quando e onde bem entender.
Antes de mais nada, é preciso enfrentar a hipocrisia intelectual que, à semelhança dos traficantes nas favelas, coloca os inocentes como escudo de suas teses para aparentemente defendê-los (sem mandato para tal) de um instrumento que os favorece e que só pode ser utilizado com autorização judicial, caso a caso. Valem-se da topografia carioca, de morros e asfalto, para condenar os mandados em comunidades cuja característica é de habitação geminada, comumente utilizada pelos traficantes — não raro à força — para esconder seus arsenais de armas e drogas, dificultando a ação da polícia.
Outros argumentam que a intervenção federal, pelo fato de ser exercida por um general, ameaça os direitos humanos e, mesmo, as vidas de inocentes, pobres e oprimidos em ambiente em que só o traficante é livre.
Como se a intervenção já não configure uma reação máxima do governo federal a um cenário de violência fora de controle, em que milhares de inocentes morrem — agora até mesmo no útero, agravando estatísticas maiores que as de guerras em curso no mundo.
E como se os milhões de habitantes que vivem em comunidades sob o controle do tráfico não estejam espoliados nos seus direitos constitucionais mais elementares, entre os quais o de ir e vir e o de votar livremente.
A intervenção veio resgatar a ordem democrática, e sua decretação cumpriu os preceitos constitucionais que a regem — e dentro deles se manterá.
Foi uma decisão político-administrativa, amplamente aprovada pelo Congresso Nacional e restrita ao aparelho de segurança estadual.
Sabe-se que o Rio não centraliza as preocupações apenas por suas estatísticas de violência, mas pela dominação de territórios pelo crime que faz vigorar suas próprias “Constituições”, inclusive determinando quais candidatos podem ali fazer suas campanhas.
Tem-se aí um Estado paralelo com representação parlamentar e, portanto, com prerrogativa para indicações políticas na estrutura pública, porta de passagem da criminalidade para o Estado.
Entre outros objetivos, a intervenção visa a romper as cadeias de transmissão entre áreas do setor público com o crime organizado, sendo o mandado judicial um entre tantos instrumentos legais para legitimar as ações policiais em qualquer área — e não só nas comunidades mais pobres.
Tratar instrumento judicial como demofobia, para além da rima, pode soar uma demagogia que nos aprisiona em uma falsa polêmica.
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Raul Jungmann é ministro da Defesa
Roberto Freire: Segurança na ordem do dia
Desde há muito, como atestam todos os levantamentos feitos pelos principais institutos de pesquisa, o temor em relação à escalada da violência e a sensação de insegurança generalizada aparecem no topo das preocupações dos brasileiros de norte a sul do país. No Rio de Janeiro, em especial, o índice de 40 mortes por 100 mil habitantes registrado em 2017 (ante 36,4 por 100 mil em 2010), além dos 688 tiroteios ou disparos com arma de fogo mapeados somente em janeiro deste ano pelo aplicativo Fogo Cruzado, escancaram uma situação que já atingiu as raias da calamidade pública. Para que se tenha uma ideia, houve um aumento de 117% nesses registros em relação ao mesmo período de 2017 – em média, foram 22 tiroteios por dia no primeiro mês do ano.
Nesse sentido, é evidente que o decreto de intervenção federal nas áreas de segurança pública e inteligência no Estado do Rio, assinado na última semana pelo presidente Michel Temer e aprovado por ampla maioria tanto na Câmara quanto no Senado, é uma medida drástica e extrema, mas necessária neste momento. É importante destacar que tal decisão foi tomada com base na Constituição (Art. 36, § 1º), com indicação prévia de sua amplitude, do prazo limitado e das condições de execução, além da nomeação de um interventor, no caso um general do Exército brasileiro. Tudo de acordo com o texto constitucional e a democracia em pleno vigor no país.
Não há dúvidas de que o grande problema no Rio é a relação de total promiscuidade entre setores do aparelho de Estado e dos órgãos de segurança e inteligência com o próprio crime organizado – alimentada durante décadas por meio de uma estrutura completamente corrompida. É isso, fundamentalmente, que tem de ser combatido pela intervenção federal. O importante é ter tolerância zero com a corrupção que ali campeia, desmontando todos os tentáculos de um sistema viciado.
Do ponto de vista político, há que se lamentar o comportamento constrangedor adotado por lulopetistas e bolsonaristas em seus pronunciamentos no plenário da Câmara durante a votação do decreto na madrugada da última terça-feira (20). Tanto à esquerda quanto à direita, os representantes do atraso se limitaram a contestar o atual governo e nada falaram de significativo sobre a gravíssima crise de violência no Rio. Na verdade, ao se posicionarem contra a necessária intervenção, demonstram não estar preocupados com a segurança e o bem-estar das famílias cariocas e fluminenses – que apoiam o decreto de forma incontestavelmente majoritária, como mostram as pesquisas –, mas meramente com os seus próprios interesses político-eleitorais.
No caso do deputado Jair Bolsonaro, aliás, ficou evidenciado o seu desconforto com a perda do monopólio do discurso sobre a segurança pública. Inicialmente, se manifestou de forma frontalmente contrária à intervenção determinada pelo governo e, no fim das contas, votou a favor do decreto no plenário, visivelmente constrangido diante do inequívoco apoio da opinião pública à medida.
Essa é a oposição brasileira atual, liderada pelo PT e seus aliados, cada vez mais isolada, desconectada da realidade e sem penetração junto à sociedade. É importante lembrar, inclusive, que todas as últimas administrações do Rio de Janeiro foram aliadas de primeira hora dos governos de Lula e Dilma, numa simbiose que até hoje, evidentemente, traz consequências desastrosas do ponto de vista político.
Ainda na seara política, a intervenção no Rio representa certa retomada de iniciativa pelo governo Temer. A medida acaba por afastar, neste momento, qualquer possibilidade de votação da reforma da Previdência, deixando esse tema fundamental para o governo a ser eleito em outubro deste ano – por imposição constitucional, o Congresso está impedido de votar qualquer Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enquanto a intervenção estiver em vigor. De qualquer forma, todos os indicadores apontam que, mesmo sem a reforma neste ano, a economia brasileira já consolidou um sólido processo de retomada, o que não é pouca coisa depois de mais de três anos de profunda recessão.
O que devemos fazer todos os que temos responsabilidade com o país e, sobretudo, consciência da gravidade da situação que vive o Rio de Janeiro, é apoiar a intervenção federal no estado e acompanhar com atenção, passo a passo, o desenrolar dos acontecimentos. A batalha contra o crime não é fácil de ser vencida nem terá um desfecho rápido, muito pelo contrário. Trata-se de um enfrentamento longo e árduo, e por isso mesmo o apoio da sociedade é fundamental. Apesar do esperneio da oposição lulopetista, a aprovação do decreto presidencial no Congresso foi uma importante vitória para o Rio e o Brasil. O primeiro passo está dado e não há tempo a perder. Vamos adiante.
Marco Aurélio Nogueira: A intervenção no Rio, a segurança, a política
Não foi preciso mais que alguns minutos. Anunciada, na tarde de sexta-feira, dia 16, a intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro, com a nomeação do general Walter Braga Netto como seu coordenador, a reação foi imediata. As redes se contagiaram de protestos, alertas e manifestações de preocupação. Especialistas, intelectuais, políticos, ativistas e cidadãos saíram a campo para entender o fato e repercuti-lo, cercando-o de críticas e de muito ceticismo.Uma densa névoa desceu sobre a Cidade Maravilhosa e a política nacional. O que haveria por trás da decisão de Michel Temer? Teria ela alguma potência para confrontar o avanço do crime organizado no Rio de Janeiro e mitigar o clima de insegurança que atinge sua população? Ou a intervenção não passaria de um “factoide” para espetacularizar o problema, desviar a atenção das fraquezas do governo federal e justificar o arquivamento da reforma da Previdência?
Há duas dimensões a serem consideradas. Uma diz respeito à segurança pública em sentido estrito, ao efeito da intervenção sobre o crime organizado e a corrupção que contaminou a política e a polícia do Rio. Outra tem a ver com a repercussão política da intervenção, com seus efeitos sobre a popularidade de Temer e a disputa eleitoral que se avizinha.
A segurança como problema
Quanto à primeira, há a essa altura alguns consensos. O problema não é somente do Rio: a “metástase” é nacional, vem de antes e afeta várias outras cidades. Algo precisa ser feito além de alertas e protestos, no mínimo para dar alguma proteção à população e especialmente aos seus segmentos mais pobres, que são os que mais sofrem. Terceiro: é impossível obter resultados efetivos no combate ao crime somente com intervenções pontuais e aumento da repressão. Uma “ocupação” militar não faria sentido, e nem está sendo cogitada.
O interventor é um general, mas a intervenção não é militar e sim federal. Faz diferença. Não irá salvar a lavoura, mas pode ajudar ou atrapalhar. O problema é tão mais vasto que requer uma combinação de iniciativas e políticas públicas, que considerem a estrutura policial, mas avancem bem além dela. Abraçadas à segurança estão a educação e a saúde, a atenção aos jovens, a política habitacional. Não é só a segurança.
O Exército atua no Rio já faz tempo. Mesmo que se possa avaliar que sua presença não trouxe resultados, não há por que menosprezar que algum ganho operacional poderá ser obtido com a intervenção. Depende do que vier a ser feito e do modus operandi da operação. Atacará ela o tumor que mina o organismo carioca e fluminense? Irá a força militar para as ruas, para o enfrentamento direto com criminosos e a varredura dos morros, ou se concentrará no trabalho logístico, de coordenação das polícias, de informação estratégica, de inteligência? Será uma força de pacificação ou de guerra?
Nada disso está definido, o que sugere que se deve dar um pouco mais de tempo para ver o rumo que o processo tomará. Críticas precisam ser feitas e consideradas, sobretudo quando acompanhadas de propostas de encaminhamento e apresentadas com senso de viabilidade, rigor técnico e serenidade. A hora talvez seja mais de reflexão que de protesto. A acusação de que a intervenção é outra etapa do mesmo “golpe” que estaria a ser dirigido contra a esquerda e os movimentos populares, por exemplo, não tem pé nem cabeça, só ajuda a deixar a névoa mais espessa.
A dimensão política
A segunda dimensão também requer avaliação cuidadosa. Temer pretende faturar com a intervenção, trazendo o tema da segurança pública, da “ordem” e da “paz” para a agenda governamental. Nada a objetar quanto a isso. Está trocando a reforma da Previdência, que já demonstrava estar praticamente morta, por um tema de forte apelo popular, com o qual as chances de identificação são altas. Se for assim mesmo, o presidente demonstra uma sagacidade inesperada: quer sobreviver e terminar seus dias com alguma dignidade. Isso, claro, se o plano der certo.
Temer pode ganhar alguma coisa, mas é impossível que ganhe tudo, ou mesmo o principal. Não dará vida a uma centro-direita que lhe seja subserviente, pois o centro, hoje, é um espaço amplo demais para ser monopolizado por personagens desprovidas de molejo político e sem capacidade de dialogar com a esquerda. O centro que Temer pode impulsionar é só um pedaço do centro, e o pedaço menos importante. É muito difícil que um governo fraco produza um candidato forte.
Bolsonaro talvez seja o que mais perde, pois foi despojado do tema militar e da segurança. Mesmo assim, ele seguirá em circulação. Poderá obter algum ganho no Congresso caso pautas mais conservadoras entrem em discussão (redução da maioridade penal, por exemplo) ou os parlamentares se deixem contagiar pela passionalidade. Mas não parece razoável que se diga que a intervenção o beneficiará porque passará a ideia de que os militares são a solução para os problemas do país.
Os adversários da “luta contra a corrupção” não ganharão nada, ao menos à primeira vista. Poderão até mesmo ficar mais encurralados, na eventualidade da intervenção se concentrar na cauterização das feridas abertas pela máquina corrupta. Se uma associação mais estreita vier a ser feita entre criminalidade, segurança pública e corrupção, não se poderá dizer que o combate à corrupção é uma forma disfarçada de combate à política. A própria população se encarregará de resolver a equação.
Um fato novo se produziu. A entrega ao general Braga Netto de poderes de governo, com os quais ele poderá demitir e contratar na segurança pública, representa a subordinação das polícias civil e militar, do Corpo de Bombeiros e do sistema carcerário.
O governador Pezão, que já estava mal das pernas, converteu-se assim numa figura decorativa, sem acesso ao fundamental. Seu governo não criou o problema da segurança. Nem o de Sérgio Cabral. O que ambos fizeram – aliados a Jorge Picciani e a uma vasta rede política – foi azeitar uma máquina corrupta que praticamente dizimou o que havia de racionalidade gerencial no Rio, levando água abaixo as finanças, as polícias e os sistemas públicos.
Havia no Rio um governo semimorto, comido pela corrupção, pela falta de credibilidade e pela inoperância. Esse governo agora morreu de vez. Com ele, é de se esperar que se dissolva todo um sistema que abocanhou o Estado e o converteu em reserva de caça.
As chances da intervenção
A melhor chance que tem o general Braga Netto está em conseguir enfiar sua espada nesse sistema e fatiá-lo em pedaços incomunicáveis. O pior é se ele permitir que a operação descambe para a execução de razias nos bairros pobres e a caça de “suspeitos”, o que só reforçará o que de há de racismo e discriminação na política de segurança pública. Nos próximos dias é de se esperar que algo fique mais claro nesse ponto.
É preciso atentar para a sustentabilidade da operação. Em parte, ela poderá vir da população. Mas em parte dependerá do governo federal, de suas verbas e de sua capacidade de apoiar politicamente o que vier a ser feito. A esse respeito, há uma interrogação piscando no horizonte.
Um governo fraco, devorado ele também por desmandos e corrupção, tem como prover recursos e apoios para algo que se pretende grandioso?
O problema passa assim para o Exército. O que esperar dele, de seus quadros e de sua inteligência? Não se pode descartar o que a corporação tem de recursos e experiência. Mas ela estará pisando em terreno minado, precisará de tempo para se aprumar e traçar uma estratégia. Haverá esse tempo? Como gerenciar um problema cuja solução depende de medidas articuladas e de longo prazo com uma intervenção focalizada e de curto prazo?
É um paradoxo. São muitas as possibilidades de fracasso – de simulação, de barulho improdutivo, de varreção da sujeira para baixo do tapete, de agravamento da situação – e muitas as possibilidades de sucesso, ainda que relativo.
Quanto estará o Exército disposto a “ir para o sacrifício”, modificando em parte sua vocação original, para tentar resolver uma questão dramática que tem ingredientes que escapam à lógica militar? É bom lembrar que o Exército, em particular, sempre cumpriu funções extramilitares, de apoio logístico a muitas iniciativas públicas em todo o território nacional. Nunca se dedicou exclusivamente a defender as fronteiras do país ou a combater agressões internas à Nação. Sempre fez mais do que isso. E o Exército da ditadura não existe mais.
Se o modelo a ser inventado pela intervenção conseguir cercar a criminalidade que se alimenta da corrupção e invade a política, um passo será dado.
Militares continuarão a ser militares, por mais treinamento que recebam para atuar em zonas urbanas não para fazer a guerra, mas para construir paz e solidariedade. Não substituirão os políticos e os gestores civis, pois o país não mais comporta isso nem as Forças Armadas parecem dispostas a enveredar pela trilha.
Por vias transversas, o Exército poderá dessa forma se reencontrar com suas melhores tradições. Já fez isso no Haiti, com sucesso reconhecido internacionalmente. Pode repetir a fórmula por aqui.
Estamos patinando no terreno. Intelectuais, especialistas, gestores e parlamentares não conseguiram até hoje achar uma saída para a crise da segurança pública, que não é evidentemente exclusiva do Rio de Janeiro. Há ideias e recomendações oportunas, muita pesquisa acadêmica, mas pouco disso consegue se traduzir em termos práticos. A animosidade e a dificuldade de diálogo têm bloqueado muita coisa.
Não terá chegado a hora de rodar outro filme?
Míriam Leitão: Os dois atos
A criação do Ministério da Segurança não representa coisa alguma, a não ser a transferência de órgãos de um lado para outro da Esplanada, já muito abarrotada de ministérios, e mais cargos para nomeação. Dependendo de quem for escolhido para comandá-lo, pode ser ainda pior do que já está. Por que a Polícia Federal ou a Polícia Rodoviária Federal ficariam melhores saindo da Justiça?
Ao anunciar ontem que vai criar o novo órgão, o presidente Temer reduz a força de sua própria decisão de sexta-feira de decretar a intervenção na segurança do Rio. No primeiro ato, é a tentativa de encontrar uma saída para problema agudo. O segundo é inútil e demonstra falta de foco. A ameaça principal vem do narcotráfico. Ele ficou muito poderoso nos últimos anos. Antes o país tinha uma soma de facções locais, agora mudou. “O crime organizado virou um empreendimento multinacional”, diz uma autoridade. Contra ele, os braços do Estado precisam se unir, com soma de esforços e troca de informações.
A intervenção só terá resultados se houver muito planejamento, inteligência e uso intensivo da tecnologia. Nunca funcionou, e não funcionará agora, o “prender e arrebentar”, apesar de ainda hoje existir quem defenda esse caminho, com aplausos de plateias desavisadas. O crime sofisticou-se e há a complicação territorial. Os moradores das favelas são seus escudos e primeiras vítimas. Uma das muitas dificuldades do novo comando da segurança será saber com que parte da Polícia pode contar e que parte já trabalha para o narcotráfico.
Não há uma crise de segurança exclusiva do Rio. Há uma crise de segurança. Ela atinge vários estados, e o Rio é apenas a ponta mais visível desse iceberg. O combate ao crime exige todos os recursos que o Estado puder mobilizar. Para que funcione, é preciso apostar no que há de mais moderno em tecnologia de vigilância e controle.
Antes de mergulhar na atual confusão, a partir das suas declarações sobre o processo do presidente Temer, o diretor-geral da Polícia Federal, Fernando Segóvia, foi em visita oficial às agências de segurança dos Estados Unidos. FBI, INL (departamento de combate ao narcotráfico), DSS (setor de segurança do Departamento de Estado), ICE (segurança de imigração). Ouviu propostas de cooperação e ofertas de compartilhamento de tecnologias com a Polícia Federal. Independentemente da crise interna no órgão, essa é uma agenda importante que tem que continuar tendo desdobramentos.
O Brasil carrega ainda a cicatriz do velho trauma do autoritarismo. Por fundadas razões. Por isso, teme a vigilância e o controle como se fossem sinônimos de cerceamento de direitos. Mas nenhum país constrói hoje um bom sistema de combate ao crime organizado sem o uso intensivo de tecnologia. O problema no país é que até o aparato das Forças Armadas lembra outros modos e períodos. O general Sérgio Etchegoyen, respondendo a um jornalista, na sexta-feira, disse que “As Forças Armadas jamais foram ameaça à democracia..." Até esse ponto a frase espantou porque parecia a negação da História, mas ele completou: “desde a redemocratização.” O ministro Raul Jungmann reforçou a ideia, lembrando que as Forças Armadas estão obedecendo a comandos constitucionais. A necessidade de fazer esse esclarecimento mostra como o Brasil ainda tem velhos medos. A intervenção federal com o uso das Forças Armadas foi entendida, por alguns, como intervenção militar, o que evidentemente não foi o que aconteceu.
Agora o país vive outra história, e as Forças Armadas reclamam internamente do uso excessivo de suas tropas em ações para as quais não foram treinadas nem destinadas. Reclamam, mas cumprem as ordens. Nada há de errado em usar as Forças Armadas sob o comando constitucional.
Há muito a aprender com o que deu certo no passado. Na Operação Suporte, da Polícia Federal, na época sob o comando do diretor Paulo Lacerda, foi construída a tecnologia de cruzamento de dados e informações que levou à criação futura das UPPs. Nessa operação trabalhava José Mariano Beltrame, que depois assumiu a secretaria de Segurança do Rio. Existem experiências que podem ser estudadas. A luta não é perdida, mas é muito difícil. O trabalho será demorado e intenso, mas desistir dele seria desistir do país.
Elio Gaspari: Pezão precisa sair do governo do Rio
A ideia da intervenção do governo federal na Segurança do Rio veio tarde e é curta. O governador Luiz Fernando Pezão precisa ir embora. Não tem saúde, passado, nem futuro para permanecer no cargo num estado falido, capturado por uma organização criminosa cujos chefes estão na cadeia. Como? Ele desce do gabinete, entra no carro e vai para casa.
Na quinta-feira, quando esteve no Planalto, Pezão disse a Temer que a situação da Segurança Pública do Rio saíra do seu controle. Ao deputado Rodrigo Maia, mencionou a “calamidade” e acrescentou: “Não podemos adiar nem mais um dia.” Há duas semanas, o mesmo Pezão se orgulhava da qualidade e da eficiência de suas polícias, reclamando do que seria uma “cobertura cruel.”
Desorientado (há tempo), o governador construiu um caso clássico para demandar uma intervenção ampla, geral e irrestrita no Rio. Nada a ver com o que se armou no Planalto.
Sérgio Cabral (patrono de Pezão) e Jorge Picciani (“capo” do PMDB) não estão na cadeia pelo que fizeram na Segurança. Ambos comandaram a máquina corrupta que arruinou as finanças, o sistema de ensino e a saúde pública do estado. A corrupção e a inépcia policial são apenas o pior aspecto da ruína.
Colocar um general como interventor no aparelho de Segurança, sem mexer no dragão das roubalheiras administrativas, tem tudo para ser um exercício de enxugamento de gelo. Ou algo pior: o prosseguimento de uma rotina na qual as forças policiais invadem bairros pobres e proclamam vitória matando “suspeitos.”
A intervenção proposta por Temer coloca Pezão e seus amigos no mundo de seus sonhos. Num passe de mágica, o problema do Rio sai do Palácio Guanabara (onde mora há décadas) e vai para o colo de um general. Esse semi-interventor assumiria com poderes para combater o crime organizado. O Planalto deve burilar sua retórica, esclarecendo que não se considera crime organizado aquilo que o juiz Marcelo Bretas vem mostrando ao país.
Temer conhece a Constituição e sempre soube que podia decretar a intervenção federal no governo do estado. A Constituição impede que se promulguem emendas constitucionais havendo unidades sob intervenção, mas a reforma da Previdência poderia ser votada na Câmara (se fosse) para ser promulgada no dia da posse do governador, em janeiro de 2019.
Há um cheiro de marquetagem na iniciativa: a reforma seria congelada por causa da intervenção na Segurança do Rio. Patranha. Ela encalhou por falta de votos e a intervenção, podendo ser integral, será light. Temer, que presidiu o PMDB até ser substituído pelo notável Romero Jucá, estancou a sangria, ajudou os correligionários que destruíram o estado e jogou a batata quente no colo de um general.
A saída de Pezão permitiria o desmantelamento do esquema de poder do PMDB antes da eleição de outubro. Sérgio Cabral e Picciani, “capos” dessa máquina, estão trancados, mas ela está viva. Leonardo, filho de Picciani, é o ministro do Esporte de Temer, cujo governo tem dois ex-ministros na cadeia (Geddel Vieira Lima e Henrique Alves). Todos do PMDB, como o exgovernador Moreira Franco, conselheiro especial do presidente.
A intervenção federal permitiria que o Estado do Rio passasse por uma faxina. Até a posse do governador que será eleito em outubro, o interventor poderia desmantelar a teia de ladroagens que arruinou o estado. Quem seria esse interventor? Para que a conversa possa prosseguir, aqui vão dois nomes: Pedro Parente e Armínio Fraga. Os dois estão bem de vida e odiariam a ideia, mas nasceram no Rio e sabem que devem algo à terra. Parente administrou a crise de energia no governo de Fernando Henrique Cardoso e está ressuscitando a Petrobras. Deem-lhe uma caneta e alguns pares de algemas e ele ergue o Rio.
Esse seria um cenário de emergência para uma situação de calamidade. Pode parecer ideia de maluco, mas nem o maior dos doidos poderia imaginar que, em menos de cinco anos, o Rio chegasse onde chegou.
Fernando Gabeira: Rios da indiferença
Um governador que não se prepara para o carnaval é uma figura inútil
Durante o carnaval, consegui tempo para ler o último livro de Oliver Sachs, o brilhante psiquiatra que morreu em 2015. Tinha uma doença terminal e enfrentou a morte com coragem e bom humor, escrevendo e revendo ensaios, no leito, com a ajuda de amigos. O livro se chama “Rio da consciência”, mas o ensaio que me chamou atenção, de início, foi o “Uma sensação generalizada de desordem”. O título, na verdade, é a descrição que um paciente faz da enxaqueca, doença que Sachs muitas vezes, como psiquiatra, enfrentou. A enxaqueca não me fascinou tanto quanto a descrição do sistema nervoso autônomo, um conjunto — células, hormônios, redes neurais — que monitora o equilíbrio de nosso organismo. Diferente do sistema nervoso central, o autônomo não coordena o que fazemos, mas é uma indicação de como estamos.
Escrevo a caminho de Pacaraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Saí diretamente do Rio para cá. Suponho que a sociedade também tenha essa tendência ao equilíbrio, uma espécie de sistema nervoso autônomo. Se é assim, creio que já deu sinais de que algo vai mal tanto no organismo nacional como no sul-americano.
O Rio foi tomado por inúmeros casos de violência e assalto. Apesar de tantos avisos, o governador Pezão confessou que o estado não se preparou para o carnaval. Como se uma festa tão antiga e previsível fosse um raio em céu azul. O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, disse que iria aproveitar a folga do carnaval e viajar para a Europa, em busca de experiências “inovativas”. Folga, como assim? Trabalhei no carnaval por escolha, se quisesse poderia estar fantasiado em qualquer esquina. Mas um prefeito não tem folga no carnaval. É precisamente o período em que tem de cuidar de tudo, para evitar o pior. Pezão ainda não conseguiu ler o plano de segurança. Crivella se elegeu dizendo que iria cuidar das pessoas. Será que foliões, fantasiados, seminus e alegres, não são pessoas?
Essas coisas nos colocam próximos de uma desordem generalizada. As principais autoridades parecem não entender o que está se passando. A tarefa do equilíbrio, a homeostase, torna-se cada vez mais complicada.
Aqui na fronteira, as coisas não são diferentes. Estive em Pacaraima duas vezes, e uma em Santa Helena, já na Venezuela. Previ que a situação iria se agravar, o que não é nenhuma vantagem, apenas o óbvio. Por aqui já passaram mais de 40 mil. Na Colômbia, um milhão de refugiados cruzaram a fronteira. As ferramentas diplomáticas, Mercosul, Unasul e mesmo a OEA, são incapazes de achar uma saída. Talvez o único caminho seja internacionalizar uma crise que transcende a capacidade sul-americana. Mas o que pode fazer a ONU? A Europa está sobrecarregada pelo fluxo de refugiados no Mediterrâneo. E os Estados Unidos, com a escolha de Donald Trump, fecham-se cada vez mais para as tragédias do mundo.
Como um sistema nervoso autônomo, os mecanismos de monitoramento continuam funcionando. Eles registram os desequilíbrios, indicam as desordens. No entanto, não se encontra remédio. A tarefa do sistema nervoso central está atrofiada, não há antecipação planejada , apenas uma espera na crise para intervir quando for tarde demais. O colapso do governo no Rio, por corrupção e incompetência, já era um sinal de que a crise de segurança se agravaria. A escalada repressiva de Maduro, uma certeza do êxodo em massa para Colômbia e Brasil.
Assim como no corpo, o sistema nervoso autônomo na sociedade precisa de mais atenção. No corpo, é ele que nos desestimula, por exemplo, a disputar uma corrida depois de um farto almoço.
Embora isso não explique tudo, creio que os governantes em Brasília e no Rio não se importam tanto com esses desequilíbrios porque estão atentos a outros sinais. Ambos têm problemas com a polícia, ambos se esforçam para escapar dela. Não creio que uma antecipação conseguiria resolver as crises em Pacaraima ou Copacabana. Mas, certamente, ajudaria.
Um governador que não se prepara para o carnaval, um prefeito que vê nele uma folga para buscar soluções na Áustria, na Alemanha e na Suécia, são figuras inúteis.
No caso da Venezuela, Temer pode dizer que o governo anterior não só apoiou como se tornou cúmplice da tragédia produzida por Maduro. Mas Temer era vice-presidente. Não é possível que só tenha percebido agora como o Brasil errou.
E, agora, as coisas são bem mais difíceis. Em Roraima, segundo as pesquisas, a população, majoritariamente, rejeita os imigrantes. Em termos regionais, nas eleições, pode acontecer ali algo que aconteceu na Europa: um avanço da xenofobia.
Nesse caso, como aliás em tantos outros, é preciso preparar o corpo para pancadas de todos os lados. A direita gostaria de ver a fronteira fechada. E a esquerda, assim como Crivella, que não vê pessoas na multidão carnavalesca, dificilmente enxerga direitos humanos nas milhares de famílias que fogem do socialismo do século XXI, como se autoproclama a aventura bolivariana.
Alon Feuerwerker: A mega UPP de Temer no Rio e seus efeitos no que interessa na política: a disputa eleitoral
É zero a probabilidade de a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro produzir uma solução estrutural e aplicável aos demais estados. Na prática, trata-se de uma mega UPP, a ocupação do território por forças da ordem ainda prestigiadas (as Forças Armadas) para pacificar uma situação de conflito que produz desgaste para as autoridades.
Mas não se deve subestimar o efeito político positivo de uma momentânea descompressão. Será inteligente por parte do crime organizado um recuo, recomendado quando na guerra assimétrica a correlação de forças é decisivamente desfavorável. Uma maneira de produzir paz é exibir músculos suficientes para provocar o esperado efeito-dissuasão. Está nos manuais.
Além disso, as autoridades não precisam de estratégias que perdurem para todo o sempre, precisam apenas de algo que reduza a turbulência daqui até a eleição. A intervenção na segurança do Rio é uma espécie de "Plano Cruzado" da segurança. Se mudar algo para melhor no curto e no médio prazos, terá cumprido os objetivos. As primeiras coisas primeiro, diz o ditado.
Mas talvez o aspecto mais interessante da iniciativa seja a mudança de ambiente para as narrativas. Se a inabilitação eleitoral (só) de Lula mais o baixo crescimento da economia mais a reforma da previdência mais a impopularidade presidencial vinham sendo um meio quase ideal para a esquerda, a inoculação da segurança no centro da pauta dá um gás e tanto para a direita.
Todas as pesquisas mostram que a maioria do eleitorado concorda com a esquerda nos assuntos da economia, do tamanho do estado e na maneira de buscar a melhora dos serviços públicos. E a maioria do eleitorado concorda com a direita nos temas do enfrentamento da criminalidade e das políticas de segurança pública, e nas medidas para proteger o cidadão comum contra os bandidos.
Até porque é histórica a incapacidade de a esquerda enfrentar o debate da segurança. A tese "mais justiça social significa automaticamente menos crime" não resiste à realidade. Nos governos do PT o Nordeste cresceu e distribuiu renda como nunca. E nos governos do PT a criminalidade no Nordeste cresceu como nunca, com exceções que apenas confirmam a regra.
Eis por que a intervenção no Rio seja possivelmente a primeira chacoalhada num cenário antes coagulado. Lula e a esquerda vinham defendendo bem seu mercado eleitoral colocando no centro da agenda temas em que a população pende para a esquerda. Mas como a esquerda e o PT atravessariam uma campanha eleitoral em que a segurança pública estivesse no foco?
É previsível que a oposição denuncie a incapacidade de essas medidas enfrentarem e resolverem estruturalmente os desafios na segurança. Mas essa é uma colheita para o futuro. Se esse futuro chegar antes da eleição, por a intervenção ter falhado redondamente, o cenário será um. Se, assim como no Cruzado, a coisa sobreviver até a urna, o cenário será outro.
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As Forças Armadas acabam de ser convidadas para uma dança que não desejavam mas não têm como recusar. É emblemático que o general responsável pela intervenção no Rio vá se reportar diretamente ao presidente da República. A esta altura os fardados devem estar quebrando a cabeça em busca de uma estratégia de saída.
Militar não entra na guerra sem alguma ideia de como sair dela. A vitória total, com a eliminação do crime dentro das fronteiras do Rio, é uma impossibilidade. Por isso, o desejável será conseguir sair em ordem em algum momento e devolver o abacaxi ao poder civil. A eleição, num cenário otimista, pode facilitar por trazer um novo personagem, zerado.
Até porque, convenhamos, criar um ambiente em que as Forças Armadas possam lá na frente recuar em ordem interessa a todos os atores que contam no teatro de operações. Todos sem exceção.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Míriam Leitão: Intervenção na segurança do Rio tem validade imediata e durará até o fim do ano
O senador Eunício Oliveira terá 24 horas para convocar sessão conjunta do Congresso para em dez dias aprovar a intervenção na área de segurança do Rio, mas ela terá validade imediatamente. O decreto deve ser publicado até o meio dia de hoje. A área de segurança do Rio ficará sob intervenção até dezembro de 2018.
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Com o decreto, haverá uma espécie de governador para a área de segurança do Rio. O general Braga Netto, nascido em BH e morador do Rio, é chefe do Comando Militar do Leste e vai assumir a área, passando a ter poderes de comando sobre toda o setor de segurança, inclusive Bombeiros, sistema prisional e Secretaria de Segurança.
A decisão de decretar a intervenção no Rio foi tomada depois de uma série de reuniões com o governador Pezão, com os comandantes militares. Inicialmente os comandantes relutaram, mas entenderam como missão.
Quando for o momento de votar a reforma da Previdência, a intervenção será suspensa por 24 horas. Votando-se, o resultado que for, ela voltará a ter seus efeitos. Pela Constituição quando há uma intervenção não pode haver votação de emendas constitucionais. O problema será resolvido desta forma.
Essa medida é inteiramente nova e está baseada no artigo 34 da Constituição. Chegou a ser pensada também uma intervenção na área de Finanças e Planejamento, mas depois foi descartado.
Nas discussões, também foram ouvidos os ministros da Fazenda, Henrique Meirelles, e o Planejamento, Dyogo Oliveira.