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O Estado de S. Paulo: Milicianos mataram Marielle por causa de terras, diz general

O crime estava sendo planejado desde 2017, muito antes de o governo federal decidir decretar a intervenção federal no Rio, diz secretário de segurança pública do Rio

Por Marcelo Godoy, de O Estado de S. Paulo

SÃO PAULO - A vereadora Marielle Franco (PSOL) foi morta porque milicianos acreditaram que ela podia atrapalhar os negócios ligados à grilagem de terras na zona oeste do Rio. O crime estava sendo planejado desde 2017, muito antes de o governo federal decidir decretar a intervenção federal no Rio. As revelações foram feitas pelo general Richard Nunes, secretário da Segurança Pública do Rio. Nunes, que assumiu a pasta no dia 27 de fevereiro, relatou os casos que encontrou na secretaria e diz que vários generais que vão assumir cargos na área no próximo ano procuraram o comando da intervenção no Rio para levar o modelo de gestão para outros Estados. Leia, a seguir, sua entrevista:

O senhor imaginava o tamanho do problema que encontraria aqui?
Imaginava. Primeiro porque sou do Rio e acompanhei a evolução do quadro da Segurança no Estado. Segundo, porque comandei a força de pacificação na Maré (ocupação militar de complexo de favelas, zona norte do Rio, de abril 2014 a junho de 2015), vendo de perto no nível tático, na ponta da linha, o que estava acontecendo no Estado e, depois, como comandante da Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) era um tema de estudo nosso. Não me surpreendeu, mas o fato de não me surpreender não significa que eu não tenha me deparado com ações que eu não imagina.

Dos R$ 1,2 bilhão enviados pelo governo federal, por enquanto o gabinete da intervenção conseguiu empenhar 39,06% do total ou R$ 468 milhões. Qual foi a dificuldade para se conseguir gastar esse dinheiro?
Esse é um aspecto fundamental do início da ação: compreender as restrições impostas pelo regime de recuperação fiscal; Isso não estava claro para ninguém. O regime de recuperação fiscal estabelecido em setembro de 2017 nos causou embaraço de todas ordem. Tanto que a verba federal alocada aqui teve de ser administrada por uma estrutura que não existia, que nós tivemos que criar. Ai foi uma luta contra o tempo. Em uma intervenção de curta duração, tivemos de montar esse processo ao mesmo tempo em que montávamos a estrutura para fazer as licitações. No âmbito da secretaria, colocamos em funcionamento o Fised, o Fundo Estadual de Segurança Pública e e Desenvolvimento Social. Ele é uma dádiva. São 5% dos royalties do petróleo. Neste ano, já superamos R$ 300 milhões e no próximo nossa expectativa é superar R$ 400 milhões.

Como estava frota da polícia quando o senhor chegou?
O índice de indisponibilidade era de 50%. Metade da frota sem condições de rodar e as últimas aquisições datando dos grandes eventos, coisa de cinco anos. A crise econômica que se abateu sobre o Rio provocou dois efeitos graves: o atraso de pagamento de salário e o Estado deixar de honrar contratos, como o de manutenção. Os carros iam enguiçado e sendo encostados. Tinha batalhão com menos de dez viaturas para rodar. O policiamento virou a pé com consequências gravíssimas para os indicadores de criminalidade. Não tínhamos ostensividade. Mesmo que tivesse policial não tinha viatura para transportá-lo.

O senhor tinha ideia disso quando assumiu?
Víamos a criminalidade se expandir e não víamos mais a polícia. A polícia desapareceu. A polícia estava a pé. E a desmotivação era completa. O quadro que encontramos em fevereiro era muito negativo. Com pagamentos atrasados – o 13.º só foi sair no final de abril –, sem equipamento, sem capacidade de mobilização, pois algumas verbas de premiação não eram pagas, como o regime adicional de serviço, no qual o policial trabalha na folga. Criou-se um descrédito, porque a crise econômica cria uma crise moral e as pessoas começam a deixar o interesse público em segundo plano. Era um salve-se quem puder. Tivemos de atacar fortemente isso aí, e foi na garganta, pois não tínhamos o que entregar. Era pegar o pessoal e dizer: acredite que vai melhorar. Nossa intervenção foi de gestão, de atrair os policiais com maior senso de liderança para os postos chaves. Hoje, a situação da frota não é a ideal, mas nós conseguimos fazer a entrega e comprar cerca de 2 mil viaturas. Isso com recursos do Estado. As com recursos federais tem mais 1,5 mil viaturas que devem chegar de um licitação de R$ 200 milhões (hoje a PM do Rio tem 3,5 mil viaturas e a Polícia Civil tem 1,3 mil viaturas). E também criamos uma estrutura logística para a manutenção.
Víamos a criminalidade se expandir e não víamos mais a polícia. A polícia desapareceu. A polícia estava a pé
Richard Nunes, Secretário de Segurança Pública do Rio

O senhor considera que esse foi o principal efeito da intervenção?
Esse foi o grande diferencial dessa intervenção, o legado que acredito que vai ser apropriado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. O general Guilherme Cals Theophilo Gaspar de Oliveira virá aqui se reunir comigo e com o general Braga Netto; o (futuro) secretário de Segurança de São Paulo, o general João Camilo Pires de Campos, o futuro secretário do Paraná, general Luiz Carbonell, estiveram aqui conversando. Está havendo um interesse nas experiências da intervenção federal que possam ser úteis em outras partes do País. E o grande diferencial foi exatamente esse. Fizemos a intervenção com propósito muito mais de reestruturar os órgãos do que de tratarmos do dia a dia da criminalidade. Segurança Pública é muito absorvida pela temática da criminalidade, mas ela não é só isso. Nossa preocupação é que o legado da intervenção tenha prosseguimento. O maior risco que a gente corre aqui é a divisão da secretaria, como pretendido pelo novo governo. É como acabar com o Ministério da Defesa. Como acabar com essa estrutura e fazer a integração? Já deixei patente em várias reuniões. Eu e o general (interventor) Braga Netto, mas o tempo vai passando, e a gente vai ficando cada vez mais preocupado. Não adianta ficar pedindo GLO (operações de garantia da lei da ordem com emprego de tropa das Forças Armadas na segurança pública). Esse negócio de GLO virou uma panaceia.

Aliás, continua GLO depois do fim da intervenção?
Não. GLO morre com a intervenção, no dia 31 de dezembro.

O senhor é crítico do modelo das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs). Ele deve ser abandonado?
A minha crítica não é ao modelo em si, mas à maneira indiscriminada como ele foi empregado. Imaginar que em uma área de atuação de um batalhão existe uma organização comandada por um oficial inferior com efetivo superior ao do batalhão que não presta contas ao batalhão. Isso é um contrassenso. Há locais em que você pode ter uma polícia de proximidade dentro do conceito de pacificação perfeitamente e fazendo isso integrado ao batalhão da área. Não extinguimos as UPPs. Fizemos uma rearticulação. Sete delas deixaram de ser UPPs e passaram a ser companhias de batalhão, que é o caso da Cidade de Deus (favela na zona oeste do Rio). Ali não tem sentido fazer uma UPP. Como faz polícia de proximidade em uma área enorme daquela? É colocar no ombro da polícia uma responsabilidade maior do que ela pode assumir. E começa a dar errado, pois o policial se torna refém de uma estrutura montada no terreno inadequada para o enfrentamento daquela realidade. Imobiliza a polícia. Ela precisa ter dinamismo, deslocar-se no terreno, ter liberdade de ação. Determinadas UPPs se tornaram uma prisão para os policiais. Eles tinham de permanecer em bases sem a menor condição de fazer o patrulhamento daquela área. Foi um desperdício de recursos e daí a perda de credibilidade. Seria melhor preservar as UPPs naquelas iniciais para que elas se consolidassem. Porém, o interesse político falou mais alto e houve expansão das UPPs para outras áreas onde não havia condições de dar certo porque naquela época era uma marca positiva e trazia dividendos político-eleitorais. Tivemos de romper com isso e só a intervenção podia fazer isso. Pela autonomia política que desfrutamos a gente pode fazer esse movimento sem causar maiores comoções. O modelo UPP não está proscrito. Está sendo revisto e poderá funcionar em outras regiões do País.

General, o caso Marielle foi uma afronta à intervenção?
Não foi. O que entendo hoje é que os criminosos superestimaram o papel que a vereadora poderia desempenhar. Era um crime que já estava sendo planejado desde o final de 2017, antes da intervenção. Isso aí nós temos já; está claro na investigação. O que aconteceu foi o contrário. Os criminosos se deram conta da dimensão que tomou o crime por ter sido cometido na intervenção. Não podemos entender como afronta porque eu assumi em 27 de fevereiro. E dei posse ao comandante da PM no dia 14 de março, que foi o dia do crime. Estávamos iniciando um trabalho. E hoje com os dados de que dispomos de 19 volumes de investigação fica claro que se superestimou o papel que ela desempenhava.

Durante os noves meses de intervenção militar no Rio, o número de mortes decorrentes de ações policiais somou 1.151 no Estado Foto: Wilton Júnior/Estadão
O que entendo hoje é que os criminosos superestimaram o papel que a vereadora poderia desempenhar
Richard Nunes, Secretário de Segurança Pública do Rio

Que papel?

Ela estava lidando em determinada área do Rio controlada por milicianos, onde interesses econômicos de toda ordem são colocados em jogo. No momento em que determinada liderança política, membro do legislativo, começa a questionar as relações que se estabelecem naquela comunidade, afeta os interesses daqueles grupos criminosos. É nesse ponto que a gente precisa chegar, provar essa tese, que está muito sólida. O que leva ao assassinato da vereadora e do motorista é essa percepção de que ela colocaria em risco naquelas áreas os interesses desses grupos criminosos.

Como ela colocaria em risco?
A milícia atua muito em cima da posse de terra e assim faz a exploração de todos os recursos. E há no Rio, na área oeste, na baixada de Jacarepaguá problemas graves de loteamento, de ocupação de terras. Essas áreas são complicadas.

A atuação dela seria de fazer...
Uma conscientização daquelas pessoas sobre a posse da terra. Isso causou instabilidade e é por aí que nós estamos caminhando. Mais do que isso eu não posso dizer.

O sr. ou a intervenção receberam pressões por esse crime?
Zero. O que há é muita especulação. Houve um movimento para tentar federalizar esse investigação totalmente desprovido de fundamento. Então foi um incômodo que não auxiliou em nada a investigação. Houve essa sugestão sob a suspeita de que a Polícia Civil não estaria fazendo um trabalho isento. Isso não tem fundamento. Temos de ter muito cuidado em não dar voz a criminosos que se encontram preso e colocam em xeque o processo de investigação (ele se refere á acusação feita pelo miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando de Curicica, um dos suspeitos de participar do crime). É um absurdo em uma nação democrática colocar em xeque uma investigação a partir do depoimento de um preso.

Esse criminoso faz isso como peça de sua defesa?
É lógico. Ele está sendo muito bem tratado por certa parcela da mídia e de determinadas instituições que estão dando voz para ele. Aquilo ali não é uma delação premiada coisa nenhuma. Está colocando sombras onde as próprias famílias (das vítimas) estão seguras de que se está fazendo o melhor trabalho possível.

Hoje depois desse tempo todo pode-se dizer que as milícias são hoje um perigo maior para o Rio do que as facções criminosas?
Acho que se equivalem. O que há de perigoso nas milícia é o modo como ela explora determinadas atividades. Ela é mais insidiosa. Porém, facções de tráfico têm adotado práticas de milícia e vice-versa. Então, como secretário de segurança, não há como estabelecer um grau de risco diferenciado. No momento em que a milícia passa a aceitar o tráfico de drogas na comunidade de sua presença e quando o traficante também se dedica a modalidades de crimes semelhantes ao que a milícia tem realizado, para mim o cenário indica que temos de combater ambos esses movimentos criminosas com a mesma intensidade.

O senhor vai conseguir deixar a secretaria com o anúncio da prisão dos envolvidos nesse crime?
Não tenho ideia. Nossa luta é contra o tempo; é coletar muitos dados que precisamos checar, de característica técnica, em um quadro de deficiência estrutural  grande que encontramos. Esse cruzamento de dados, para poder fechar em cima dos autores, é  demorado e complicado; filtros têm de ser feitos com precisão para que não se cometa erro. O erro que a gente não pode cometer não é deixar de anunciar até 31 de dezembro. O erro é anunciar precipitadamente e essas pessoas virem a ser inocentadas por um inquérito mal concluído.  Não sou um ator político, até porque continuo no Exército, vou seguir minha vida. Para mim, o mais grave seria tentar, de forma precipitada, apresentar alguns nomes que no futuro não sejam condenados. Centenas de depoimentos foram colhidos. Há 19 volumes de investigação. Nossa expectativa é resolver.

Alguns dos suspeitos estão mortos?
É provável que sim.

Queima de arquivo?
Queima de arquivo ainda é difícil de caracterizar. Mas porque são pessoas que vivem da prática de crimes com certa frequência estão mais sujeitos a esse tipo de desfecho.

Uma das críticas à polícia do Rio é sua letalidade. De 2013 a 2017, o Exército e a Marinha em suas operações mataram 19 pessoas e um militar morreu. Esse é nível de confronto menor do que os batalhões da PM. O que faz a ação das Forças Armadas tenham um nível de confronto menor do que a das polícias?

A capacidade dissuasória. A questão da mortalidade é mais complexa. Comparar o Rio com outros Estados é complicado. O Rio convive com três facções de tráfico que disputam espaço, além de grupos milicianos. É uma dinâmica de enfrentamento totalmente diferente do que ocorre em outros Estados, onde uma facção tem hegemonia. Então, temos no Rio uma quantidade de armamento nessas áreas considerável. Isso faz com que a polícia se depare com confrontos imprevistos. Nossa orientação é que operações em comunidade sejam feitas com absoluta superioridade de meios para dissuadir o enfrentamento. Não tem havido atuação indiscriminada da polícia. Isso é um exagero.

É necessário mudar procedimentos operacionais?
É questão de treinamento, que vamos tentar aperfeiçoar. Esse ano, tudo indica, vamos ter redução de mortes de policiais em confronto. Esse aumento de mortes em confronto com a polícia se tornou mais debatido porque outros indicadores de violência no Rio caíram, como roubos e homicídios, e esse não caiu na mesma proporção, pois tem havido uma atuação da polícia mais ostensiva. A polícia recuperou a ostensividade que  havia perdido. Ela está mais presente. Muitos casos caracterizam a legítima defesa dos policiais. Eu não comparo com as Forças Armadas porque seria até uma deslealdade com as polícias. Quando ocupei a Maré, tínhamos a superioridade absoluta de meios. Ai de quem nos enfrentasse. Não nos enfrentávamos porque não eram loucos.

O senhor acha que as regras de engajamento devem mudar como a questão do bandido armado com fuzil?
Sempre direcionei minha atuação como secretário para o nível político-estratégico e deixei o operacional e tático mais com diretrizes, pois não entendo que se resolva em nível tático um problema é que natureza estratégica. Mas é lógico que um criminoso armado com fuzil é uma ameaça. Não importa se ele está no ombro ou na mão.  Alguém que porte fuzil sem ser policial ou militar é uma ameaça à sociedade e é lícito, no meu entendimento, que ele seja engajado pela polícia diante de atitude tão agressiva. Mas não é com regras de engajamento que se resolve isso. É com mudança cultural, para que a sociedade toda entenda que isso é uma ameaça. Tratar um criminoso desses como vítima do sistema é extremamente grave e infelizmente esse discurso ainda é escutado aqui e acolá.

Com o senhor aqui, o (João Camilo Pires de) Campos em São Paulo, e o (Luiz Felipe)Carbonell no Paraná, o que o senhor acha que se deve essa opção do mundo político de ir procurar nas Forças Armadas gerentes para a Segurança Pública?
A sociedade chegou a um ponto de amadurecimento de entender que nossa maior crise era ética, muito mais do que econômica e social. E as Forças Armadas conseguiram atravessar todo esse processo mantendo alto grau de credibilidade. Ela conseguiram preservar-se pelos valores que encarnam. Outro aspecto inegável foi a intervenção, que sinalizou para o País que há condições de se enfrentar problemas gravíssimos por meio de uma correta percepção da realidade e encaminhamento de soluções que não sejam midiáticas e pirotécnicas e traduzam algo que pode ser colhido no futuro, que é próprio de quem não tem interesse político imediato.Nas figuras dos generais da reserva, identifica-se que eles não têm outro interesse do que o da sociedade e construíram uma vida calcada em princípios e valores éticos sólidos.

Mas esse interesse da política pelos militares não pode levar à divisões no Exército?
Estamos plenamente conscientes de que uma coisa são militares da reserva sendo chamados a atuar na esfera política. Outra coisa são as instituições militares se envolveram na vida político-partidária.  Não vejo que isso seja um risco, pois estamos deixando bem separadas as duas coisas.

Não entraremos em ciclo que pode gerar novas divisões, Dizia-se que o Exército devia ter a política do Exército e não no Exército. Mas nas décadas de 1940 a 1960 isso não ocorreu. A partir do momento que se tem um partido como o PSL com imagem fortemente vinculado à Forças Armadas a oposição não tende a buscar referências nelas, podendo levar a divisões internas?
Acho que nós todos temos muita consciência de todo o fenômeno histórico que caracterizou a República. Isso é algo que tem de nos preocupar no sentido de uma vigilância permanente. Não como risco efetivo de que isso possa nos dividir. Não permitimos que haja qualquer desvio de nossas normas e estatutos.

 

NÚMEROS DA SEGURANÇA NO RIO

60.471

É EFETIVO PREVISTO DA PM DO RIO

 

43.804

É O EFETIVO ATUAL DA PM DO RIO

 

23.126

É O EFETIVO PREVISTO DA POLÍCIA CIVIL DO RIO

 

9.164

É O EFETIVO EXISTENTE DA POLÍCIA CIVIL DO RIO

 

4.896

É A FROTA DE CARROS DAS POLÍCIAS DO RIO

 

R$ 468,7 MILHÕES

É TOTAL DO DINHEIRO FEDERAL EMPENHADO PELA INTERVENÇÃO FEDERAL NO RIO

 

R$ 731 MILHÕES

É QUANTO FALTA PARA SER EMPENHADO PELA INTERVENÇÃO FEDERAL DO RIO

 

 EVOLUÇÃO DOS DADOS CRIMINAIS DO RIO

(COMPARAÇÃO ABRIL A OUTUBRO DE 2017 COM MESMO PERÍODO DE 2018)

 

APREENSÃO DE DROGAS

+2%

 

ARMAS APREENDIDAS

+2%

 

PRISÕES EM FLAGRANTE

+2%

 

ROUBOS DE CARROS

-11%

 

ROUBOS DE RUA

-10%

 

ROUBOS DE CARGA

-24%

 

HOMICÍDIOS

-6%


Arnaldo Jordy: Viva Marielle e sua luta

O brutal assassinado da vereadora Marielle Franco é mais um a comprovar o clima de insegurança que atormenta todos os brasileiros. Nosso país tem por ano mais de 60 mil insuportáveis homicídios. A diferença é que, a exemplo do que já havia acontecido em 1988, quando da morte de Chico Mendes no Acre, houve uma comoção nacional e internacional, pela covardia, brutalidade e objetivo político desta execução, que, não tenho dúvidas, teve como finalidade tentar desmoralizar a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro e evitar que seja levantado o véu que cobre as relações entre o crime organizado e o poder político naquele Estado. Não há como a atividade criminosa progredir abrigando os interesses bilionários de narcotraficantes sem a cumplicidade das instituições e estruturas de poderes administrativos, a exemplo do que revelou o filme “Tropa de Elite 2”.

O Rio de Janeiro, por exemplo, teve três de seus ex-governadores presos recentemente e um deles, Sérgio Cabral, condenado a mais de 100 anos de prisão, depois de escândalos como os das obras superfaturadas para a Copa e as Olimpíadas; assim como quatro conselheiros do Tribunal de Contas, incluindo seu ex-presidente, e boa parte da elite política do Estado, incluindo o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. É um Estado apodrecido em suas estruturas políticas e também econômicas, haja vista as prisões de alguns dos seus mais fortes e simbólicos empresários, como o Rei do Ônibus, Jacob Barata, e Eike Batista, o maior representante da política dos “campeões” nacionais da era Lula e Dilma, robustecidos com dinheiro do BNDES. A Petrobras, outro símbolo do Rio, também foi saqueada pela corrupção. Com os cofres pilhados, o Estado não tem condições sequer de saldar suas dívidas com o funcionalismo público e tem grande parte de seu território controlado por traficantes ou milícias armadas. É impossível que não tenha sua estrutura de poder e comando contaminada pelo crime organizado, cuja capacidade financeira sobra para corromper agentes públicos.

É nesse clima de terra arrasada que viceja o banditismo e o dinheiro do tráfico corrompe setores da polícia. Para estes que querem que tudo fique como está, nada melhor que provocar o caos, matando alguém que simboliza a luta pelos direitos humanos. A ONU anunciou que monitora de perto a evolução do caso Marielle e aponta que o crime é sintoma de uma situação sombria, que já vem de longo tempo.

Dentro desse quadro caótico, ganham terrenos os radicalismos, sejam de direita, com pessoas tentando desqualificar a militância de Marielle, inventando ou espalhando mentiras sobre sua vida pessoal; seja de outras forças que tentam usar sua morte como bandeira para se opor à intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro. Certamente, são bandidos que querem manter o status quo do tráfico e da corrupção que lucram com a morte de Marielle.

A resposta que deve ser dada a essa situação é a apuração rápida e séria desse crime, para que os culpados sejam identificados e punidos, e que a intervenção federal na segurança do Rio seja levada adiante dentro dos princípios constitucionais que permitem esse tipo de ação emergencial, que está dentro da ordem democrática. Está claro que algo precisa ser feito no Rio de Janeiro contra o narcotráfico, um negócio multibilionário que envolve interesses inconfessáveis nos mais diferentes setores, da política ao sistema financeiro.

Evidentemente que a intervenção federal não é a solução estrutural para o problema da violência que passa, isto sim, pelo reforço da educação e pelo resgate da pobreza, da exclusão e do abandono em que vivem tantas pessoas no Rio de Janeiro e em todo o Brasil, pessoas pelas quais também lutava a vereadora Marielle. Precisamos mais de lápis do que de armas, mas as crianças do Rio de Janeiro já não conseguem mais frequentar a escola com medo de tiroteios e essa situação precisa acabar.

* Arnaldo Jordy é deputado federal pelo PPS-PA

 


Correio Braziliense: "Foi uma execução. E nada justifica," afirma Etchegoyen sobre Marielle

Ministro-chefe do GSI diz que a polícia deve trabalhar com todas as possibilidades para chegar aos autores do crime contra a vereadora Marielle Franco. Para ele, a intervenção federal no Rio de Janeiro foi a opção que restou para controlar a violência no estado

Por Leonardo Cavalcanti  e  Paulo de Tarso Lyra

Dois dias depois do assassinato da vereadora do PSol-RJ Marielle Franco, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Sérgio Etchegoyen, é taxativo: foi uma execução. Em entrevista exclusiva ao Correio, um dos homens fortes do governo Michel Temer e mentor da intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro vai além, apontando para camadas reacionárias que minimizaram o episódio. “Tenha sido ela mais ou menos agressiva, aguerrida, não interessa. Não há nada que justifique a execução, ela tinha a idade das minhas filhas”, resumiu.

O general, de 66 anos, assessor direto de Temer nas questões de segurança, afirma que o delegado responsável pela investigação precisa colocar à mesa todas as opções possíveis, sem descartar nada. A única convicção de Etchegoyen é que é uma loucura achar que o assassinato foi realizado para enfraquecer a ação das forças de segurança no Rio. “(Era) uma vereadora contra a intervenção. Estamos fazendo política rasteira em cima de um cadáver trágico. Eu achava que haveria uma reação à intervenção. A reação que eu estava imaginando era mais confronto entre facções, porque, quando você intervém, reduz o espaço dessa gente”, justificou.

Etchegoyen também não hesita em defender a atuação no segundo maior estado do país. “Eu vejo a intervenção como o que sobrou. O governo se envolveu lá atrás, investiu dinheiro, decretou a garantia da lei e da ordem e liga a televisão durante o carnaval, e acontece o que aconteceu? Quem estava cuidando do Rio de Janeiro?”, questionou com a habilidade, inclusive, para escapar das críticas de açodamento. “Em qualquer tempo, nós teríamos dificuldade. Se nós parássemos para planejar isso um mês depois, seria mais um mês perdido. Na consideração política, o tempo é uma variável”. Veja a seguir os principais trechos da entrevista:

O crime contra a vereadora tem todas as características de execução...
Não tem todas as características, foi uma execução. As razões para aquela execução, eu acho que não é prudente abandonar nenhuma. Eu, se fosse o delegado, deixaria todas em cima da mesa e iria afastando. Isso aconteceu há dois dias, com que velocidade anda a polícia técnica, os exames balísticos, a verificação de todas as câmeras? Tem que ouvir gente. Discorde-se ou se concorde, a moça tem a idade das minhas filhas. Tenha sido ela mais ou menos agressiva, aguerrida, não interessa, não há nada que justifique a execução. Não há nada que justifique que a execução de um adversário é uma opção presente no campo político. O que justifica no jogo político em um país sadio utilizar a execução? Porque compensa. Vamos imaginar a prisão dos assassinos neste momento, agora. O que vai acontecer? Eles vão ser presos preventivamente, vai se discutir quanto tempo essa prisão vai levar, vai haver uma investigação e eles vão ser julgados. Quando? Daqui a um ano e pouco, dois anos, vamos imaginar que ande rápido pelo clamor, mas eles continuam soltos, aí vão para a segunda instância, tem mais um período para caminhar. Vai se discutir se na segunda instância podem ser presos ou não, vamos para a terceira instância e vai até o trânsito em julgado, lá na frente. Quando chegar ao trânsito julgado, cinco ou seis anos, não sei ser otimista, nem pessimista, mesmo porque não sou advogado. Eles foram condenados a 30 anos, o máximo, vão cumprir 1/6 da pena e aí começa a progressão, eles vão cumprir cinco anos. Se tiver biblioteca vai reduzir mais um pouquinho e vão cumprir três anos. É com isso que nós estamos lidando.

O senhor está dizendo que esse ato vale a pena.
91,5% dos casos não são descobertos. O dela, pelo clamor, as pessoas que dependiam do trabalho dela certamente vão ajudar, tem o disque denúncia. Eu sou otimista, acho que se chega aos pervertidos, em quem fez isso. Pega um cidadão que coloca essa opção de execução de alguém como uma opção disponível, essa pessoa que acha que é uma coisa da vida dela, botar um fuzil, seguir alguém e fazer a execução que fez. Tente se colocar nessa situação, uma pessoa que é capaz de fazer um negócio desse, qual a expectativa de vida que ela tem? Será que não tem consciência que, com o tipo de vida que leva, daqui a pouco é a vez dela? Eu imagino que quem está em uma vida dessa, a qualquer momento… O cara olha para o horizonte dele, lá na frente vai pegar cinco anos de cadeia na pior hipótese.

No meio político começou a circular uma versão de que a inteligência trabalha com a possibilidade de o assassinato ser uma reação à intervenção...
Se isso fosse verdade, teríamos a inteligência mais burra do mundo. Não é possível, uma burrice monumental. Dois dias depois, sabemos a linha. Matou-se uma adversária da intervenção para protestar contra a intervenção? Mataram uma menina que tinha uma atuação política que incomodava muita gente e podia incomodar ao máximo, nada justificava uma torpeza dessa. Tem um lado muito triste, nós estamos fazendo política rasteira em cima de um cadáver trágico. Eu achava que haveria uma reação à intervenção. Mas não isso.

E qual seria essa reação?
A reação que eu estava imaginando era mais confronto, porque, quando você intervém, reduz o espaço dessa gente. O problema do Rio é que é o único lugar do mundo que o domínio de uma atividade criminosa implica no domínio de um território. Por isso tem fuzil lá porque é com fuzil que se detém território, não é com pistola. O fato de o Rio de Janeiro ter essa característica, e coloca uma intervenção, a polícia para subir o morro, bota as Forças Armadas para cercar o morro, começa a reduzir o espaço. Desde o ano passado, a gente, o governo, vem fazendo operação em círculos externos do Rio de Janeiro, da linha imaginária. Assunção, Santa cruz, Lima, Bogotá. Esse circo externo, eles negaram muita logística. Vou dar um dado para vocês. Vou pegar o exemplo da Amazônia. Em 2016, foram aprendidos na ordem de 6 toneladas de droga. Em 2017, 22 toneladas. Em janeiro de 2018, 8 toneladas, porque nós aumentamos a pressão na fronteira. Essa droga produz dinheiro, que vai produzir arma. Foram apreendidas mais de 700 armas. Mais de 100 mil cartuchos de munição, mais de cento e tantas toneladas de maconha e de cocaína. O Rio de Janeiro está ficando asfixiado, e com a presença policial, agora, mais dura.

Qual a reação que o senhor imaginava?
Um choque entre as facções. Ou elas vão se unir, ou disputar, ou virá apoio de fora. E aí, você já deve ter ouvido a história do PCC chegando ao Rio de Janeiro. Muito mais organizado que o Comando Vermelho. O PCC é uma estrutura departamental clássica. O comando vermelho é mais uma confederação. Enfim, imaginava-se que podia haver esse choque.

As regras sobre a atuação nos morros mudarão?
Tem que haver essa mudança na legislação e acho que está andando. O congresso elegeu um pacote que é chamado Pacote de Segurança Pública coordenado pelo Alexandre Moraes, do STF, e ele está andando.

Do ponto de vista do serviço de inteligência, a intervenção é viável?
Eu vejo a intervenção como aquilo que sobrou. Como a gente atua na intervenção? A Agência Brasileira de Inteligência é o órgão central do sistema brasileiro de inteligência. É o órgão que tem que integrar todas as inteligências que trabalham, e são muitas, 32, em benefício, nesse caso específico, da intervenção. Quais são as inteligências? Policial, , ANTT, Defesa, polícia estadual, Polícia Federal, toda essa estrutura é integrada pela Abin.

A Abin coordena?
A Abin responde à orientação que recebe. A competência, do ponto de vista do conhecimento, está lá. Esse é o papel que a gente desempenha na intervenção. É um fato administrativo, e isso tem sido pouco compreendido, não quer dizer que a culpa é de quem não compreendeu, às vezes, a culpa é de quem está falando. A intervenção é um ato administrativo, chegaram ao Rio,  tiraram a fatia de poder correspondente à polícia, segurança pública e administração penitenciária e nomearam um governador. De fato, tem dois governadores, um que governa tudo, menos isso, e outro que governa segurança pública e administração penitenciária, é muita coisa. Esse governador do Rio de Janeiro não recebeu nenhum poder extraordinário, não recebeu nada além do que está na Constituição do Estado que diz respeito a isso. As Forças Armadas não receberam mais competência do que têm com a garantia da Lei e da Ordem, que foi contínua desde julho do ano passado. A Polícia Militar e a Civil continuam com suas competências preservadas e fazem o trabalho delas. O problema todo era gestão, credibilidade de um sistema de gestão, de modelo. Existem problemas nas polícias do Rio? Óbvio, mas voltamos à questão da gestão, como lidar com eles. Aí você coloca um interventor que não tem compromisso nenhum com a próxima eleição nem com partido nenhum. Se o presidente coloca na intervenção do Rio de Janeiro a dona Maria ou seu João, alguém vai se lembrar que eles tinham uma ligação com o deputado fulano, vereador sicrano. Num momento extremamente complicado que estamos vivendo, tem que colocar alguém crivelmente neutro. O problema do Rio, o que aconteceu no carnaval, o gatilho que disparou a intervenção, foi a não foto, não filme. O governo vem investindo, desde muito no Rio, o que não tinha para investir.

Como assim?
Foi a primeira vez que o governo se envolveu, investiu dinheiro, colocou meios, decretou a garantia da lei e da ordem, colocou uma coisa tão longa trabalhando nisso em cima da garantia da ordem lei e da ordem que é desgastante, trabalhosa. E aí, liga a televisão durante o carnaval, e acontece o que aconteceu. Tinha claramente um vazio. Quem está cuidando do Rio? Será que é o primeiro ano que teve carnaval? Não era previsível que fôssemos ter problemas no carnaval?

Não foi muito rápida essa decisão, como no improviso?
Eu acho que o tempo é uma decisão política. Eu não sei responder sobre a decisão política do Temer. Em qualquer tempo, teríamos dificuldade. Se nós parássemos para planejar isso um mês depois, seria mais um mês perdido. Na consideração política, o tempo é uma variável.

Em cima da banda podre das polícias e das milícias, não deveria ter sido uma ação efetiva no primeiro momento?
Por que não é? Eu não vi publicado, também não ouvi, mas não tenho dúvida de que estão tratando. No segundo dia da intervenção foram presos um agente penitenciário, um delegado da Polícia Civil e cinco policiais ligados ao crime organizado. A primeira coisa que fizeram foi mudar os comandos. As figuras que foram colocadas ali, toda a sociedade aprovou, tem uma mensagem muito clara, não estou comparando com os outros. Aqui existem pessoas de conduta irretocável, aprovadas pela sociedade, por diversas organizações civis, esse é um grande recado. Agora, você pode decretar um ato institucional número 1, sair caçando todo mundo ou vai produzir investigação, dar o direito contraditório de defesa, fazer um devido processo legal e tomar as providências?

Nesse processo, avançou-se em relação às corregedorias, por exemplo?
As corregedorias foram contratadas com o governo do Rio. Em janeiro, assinou o memorando de entendimento e o item número 1 era a criação de corregedorias, autônomas, mais independentes. A corregedoria da PM está na PM, a corregedoria da Polícia Civil está na Polícia Civil e tinha a terceira corregedoria na Secretaria de Segurança Pública. Lá atrás, antes da intervenção federal, foi acertado com o governador do estado que essas corregedorias seriam autônomas e independentes. Já tem um compromisso do estado para fazer isso.


Fernando Gabeira: O Rio dilacerado

 
Acabou o tempo de espanto e espera. Como diz o poeta, o drama se precipita sem máscara
Apesar de tão distante do Rio, não posso deixar um minuto de pensar na tragédia que abalou o país: o covarde assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Ainda com informações precárias, considero a hipótese de execução a mais viável.
A relação entre número de projéteis disparados — nove segundo ouvi — e que encontraram o alvo revela que havia profissionais na realização do crime. Três tiros na cabeça, num carro com proteção visual aos ocupantes, indica que o atirador era experimentado.
Num caso desses, é uma questão de honra nacional descobrir os assassinos. E costuma ser uma longa batalha, começando pelo carro dos criminosos, possivelmente roubado, o Cobalt prata.
Li que Marielle Franco denunciava violência policial em Acari. É uma das hipóteses de investigação. Acari tem uma tradição de violência policial. Em 1990, houve a chacina de Acari, que levou sete jovens. As mães fizeram um movimento de denúncia. Uma delas também foi assassinada.
A 15 minutos de distância está Vigário Geral, onde também houve uma chacina. Estive lá no primeiro momento e falava-se muito na culpa de um grupo de PMs intitulado Cavalos Corredores.
Tudo isso parece sepultado no século XX. Mas a violência nunca desapareceu de fato e, agora, com a ruína do governo, o processo de decomposição dos órgãos policiais é ainda maior.
Outra hipótese são as milícias. Uma delas foi desbaratada na véspera do assassinato de Marielle. As milícias, também, com o processo de decadência do governo, ampliaram-se e, hoje, segundo ouvi, já ocupam 164 comunidades e mandam no cotidiano de dois milhões de pessoas.
Se conduzida com seriedade, a intervenção federal terá de encarar esses problemas.
A derrocada da polícia do Rio foi precipitada pela corrupção dos governantes. Vi, de relance, algumas pessoas na rua, pedindo o fim da PM. Mas, o que colocar no lugar? Talvez não seja nem a pergunta mais difícil. A mais difícil é essa: como trocar os pneus com o carro em movimento?
Todos nós queremos ter certeza de que não só o Rio vai emergir desta tragédia, mas que o próprio país, sobretudo o Nordeste, também vai encontrar uma saída para deter o avanço do crime organizado.
No entanto, a lacuna política é evidente. O Exército pode intervir na segurança pública do Rio. Isso aumenta a confiança, porque a polícia está em crise. Mas todos sabem que o problema é mais complexo.
O momento é de expressar minha solidariedade à família de Marielle, de Anderson, aos quadros e simpatizantes do PSOL. Divergências à parte, fomos todos atingidos.
O assassinato de dois jovens, uma promissora líder e o motorista que trabalhava duro para sustentar a família, levou muita gente a perguntar como chegamos a esse ponto.
Certamente foi um processo. A cada dia, a cada semana, as coisas iam se tornando mais graves no Rio, a ponto de a própria Marielle ter também se perguntado: “quantos precisam morrer ainda para acabar essa guerra?”
Sua pergunta é um desafio que precisa ser considerado em conjunto por todos que sofrem com tanto sangue derramado: o que precisamos fazer para acabar com essa guerra?

Acabou o tempo de espanto e espera. Como diz o poeta, o drama se precipita sem máscara.


Revista Piauí: Mal-estar na caserna

Intervenção no Rio expõe divergências entre generais e empurra o Exército para o centro do processo eleitoral

Por Fabio Victor, da Revista Piauí

Na véspera do anúncio da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, o general Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste, foi dormir contrariado. Naquela quinta-feira pós-carnavalesca, quando o então ministro da Defesa, Raul Jungmann, lhe apresentou a ideia, ele a rechaçou de pronto: disse que a intervenção era uma medida para casos de maior gravidade, um remédio extremo e amargo, e que a situação na cidade poderia ser controlada por meio de outras ações, como a operação de Garantia da Lei e da Ordem já em vigor. Deixou claro que, caso o Palácio do Planalto insistisse naquela direção, ele não gostaria de ser nomeado interventor. A despeito disso, o ministro o convocou para ir a Brasília no dia seguinte.

Na sexta-feira, ainda no Rio, o general participou por videoconferência do início de uma reunião extraordinária do Alto Comando do Exército para tratar da intervenção – era, até então, uma medida inédita no país desde o fim do regime militar. Soube ali que sua nomeação já estava decidida, notícia que também já pipocava na imprensa. Braga Netto comentou com oficiais seu desconforto com a situação e viajou para Brasília a tempo de pegar o final da reunião no Quartel-General do Exército.

Numa instituição pautada por planejamento e estratégia, o tom entre os generais de quatro estrelas que integram o Alto Comando foi de reprovação à intervenção em si e ao modo apressado e atabalhoado com que a medida acabou sendo imposta. O plano lhes parecia um festival de improvisos. O texto sucinto do decreto resumia seu objetivo a “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública” – conforme previsto na Constituição –, mas não embasava o propósito nem descrevia ações para atingi-lo.

Ainda na sexta, acompanhado do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, Braga Netto rumou ao Palácio do Planalto. Em audiência com o presidente Michel Temer, os dois militares reivindicaram dinheiro para as operações e medidas adicionais ao decreto, com ênfase em dois pontos: o governo deveria solicitar à Justiça mandados coletivos de busca e apreensão, além de assegurar regras mais flexíveis de atuação das tropas, entre as quais a permissão para atirar em civis “com intenção hostil”. Nos dias seguintes, o governo passou a testar a reação da sociedade às solicitações dos militares, e a acolhida não foi boa. O Ministério Público Federal, entidades de defesa dos direitos humanos, acadêmicos e jornalistas alertaram que a intervenção não poderia atropelar garantias individuais asseguradas pela Constituição.

Ao fim do encontro no Planalto, ao lado de Jungmann e de Sergio Etchegoyen, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), Braga Netto participou de uma entrevista coletiva na qual se manteve sério e em silêncio a maior parte do tempo. Mineiro que completará 61 anos no dia 11 de março, o general é um homem de poucas palavras. Não gosta de ser fotografado. Em sua primeira grande aparição ao país, o interventor nomeado a contragosto deu respostas especialmente monossilábicas. Não podia falar nada, disse com uma sinceridade cortante, pois acabara de receber a missão e não sabia ainda como tocá-la.

Os idealizadores do plano tampouco tinham respostas convincentes para perguntas que se acumularam na esteira do anúncio: se há estados brasileiros em que a violência é maior do que no Rio, por que intervir primeiro lá? Se o uso das Forças Armadas na segurança pública já se mostrou inócuo em várias outras ocasiões, em especial no Rio, por que insistir nessa opção? Se o governo estadual se dispõe a cooperar, por que intervir, em vez de buscar modalidades menos radicais de socorro?

 

Impacto
intervenção nasceu quando o presidente Michel Temer e seus ministros Moreira Franco, da Secretaria-Geral da Presidência, e Jungmann perceberam que uma medida de impacto na área da segurança tiraria do foco a derrota iminente da reforma da Previdência e poderia dar sobrevida a um governo que estava marcado para morrer – dez meses antes do término do seu mandato. Etchegoyen, o auxiliar de Temer que melhor conhecia o tema e já havia mencionado a intervenção como alternativa de choque à situação no Rio, se juntou à dupla para operacionalizar o plano. Ao lado de Moreira e de Jungmann, o general da reserva se tornou um dos estrategistas mais influentes do círculo do presidente.

O Carnaval propiciou as circunstâncias que o grupo palaciano necessitava. Antes da festa, Jungmann e o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, disseram em entrevistas que não viam necessidade de convocar as Forças Armadas para o período carnavalesco. Pezão foi para o interior e o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, viajou para a Europa.

Na segunda-feira, o Jornal Nacional começou destacando: “O Rio de Janeiro tem um Carnaval marcado pelos arrastões; moradores e turistas reclamam da falta de policiamento.” Na terça-feira, a queixa se repetiu, e a escalada (nome que se dá às chamadas que abrem o telejornal) exibiu um saque num supermercado da Zona Sul carioca e tiroteios em outros pontos da cidade. Na Quarta-feira de Cinzas, um derrotado Pezão dizia diante das câmeras que o governo não estava preparado para o policiamento no Carnaval (“Não dimensionamos isso”). Crivella, por sua vez, aparecia em seu giro europeu repetidas vezes no noticiário da Globo, claramente ridicularizado.

Na própria quarta, Michel Temer reuniu os comandantes militares para alertá-los do que viria. Na quinta, Jungmann e Moreira Franco foram ao Rio acertar com Pezão a intervenção. O governador, àquela altura, não tinha cacife para manifestar qualquer resistência. À noite, o governo bateu o martelo num encontro no Palácio da Alvorada. Como diria Etchegoyen dias depois, “ficou claro que estava esgotada a capacidade de gestão do Rio de Janeiro na área de segurança pública”.

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, chegou à reunião quando a decisão já estava tomada, tarde da noite, e não gostou do que viu. O parlamentar do DEM vinha planejando o anúncio, a partir de março, de medidas para o setor em que Temer se mexia. Seria uma tentativa de se descolar do fiasco na Previdência e de alavancar as pretensões eleitorais de sua família. Maia ainda não havia abandonado a fantasia de uma candidatura presidencial. Seu pai, o ex-prefeito do Rio César Maia, também tem pretensões eleitorais no estado este ano. Com a intervenção, ambos foram atropelados pelo também carioca Moreira Franco – que é casado com a sogra de Rodrigo. Uma semana depois da publicação do decreto, o presidente da Câmara convocou uma entrevista coletiva e lançou o Observatório Legislativo da intervenção, que promete fiscalizar o andamento das operações militares na cidade.

Apesar das imagens violentas exibidas na tevê, os índices de violência registrados no Carnaval se mantiveram estáveis em relação aos últimos anos – a maioria caiu, segundo a Secretaria de Segurança Pública.

Generais do Alto Comando do Exército avaliaram que o comportamento da mídia, em especial da Rede Globo, foi decisivo para o governo decretar a intervenção. Antes de se reunir com Temer no Planalto, Braga Netto foi abordado por jornalistas, que perguntaram se a crise do Rio era muito grave. Ele fez que não com o dedo e afirmou: “Muita mídia.”

Fortalecimento
Numa quadra histórica em que política e políticos são escorraçados pela opinião pública, a intervenção no Rio sob o comando do Exército coroa um fenômeno de fortalecimento da imagem dos militares entre os brasileiros. Um dos traços mais visíveis dessa tendência foi o crescimento das intenções de voto em Jair Bolsonaro. Deputado há 27 anos, o ex-capitão do Exército é um entusiasta do regime militar. Ocupa desde o ano passado a segunda colocação na corrida para a Presidência da República. Pesquisa do Datafolha em meados do ano passado registrou que as Forças Armadas eram a instituição em que a população declarava ter mais confiança. Não há motivo para pensar que isso mudou de lá para cá. Foi nesse caldo de cultura que prosperou o recurso aos militares na segurança pública nos estados, com as operações de Garantia da Lei e da Ordem – como são chamadas as missões, autorizadas pelo presidente da República, em que as Forças Armadas podem atuar com poder de polícia para combater casos de perturbação da ordem pública.

Em 2015, houve três operações de GLO, com o auxílio de 15 500 homens do Exército. Em 2016, ano de Olimpíada e eleições, o número de operações subiu para sete; o contingente, para 89 800 homens. No ano passado, foram seis operações, com efetivo de 45 900 soldados. Levantamento recente feito pelo jornal O Estado de S. Paulo mostrou que o emprego das Forças Armadas no combate ao crime organizado cresceu pelo menos três vezes nesta década em relação aos anos 90.

O governo Temer agiu para fortalecer a onda verde-oliva. Deu mais dinheiro às Forças Armadas, cujo orçamento fora depauperado na recessão iniciada sob Dilma Rousseff, depois de um período de bonança nos anos Lula. As despesas discricionárias (não obrigatórias por lei) do Ministério da Defesa, que haviam despencado para 11,5 bilhões de reais em 2016, passaram a ser de 15,3 bilhões de reais em 2017, já sob Temer, apesar da forte recessão do período.

Outras demandas da caserna também foram atendidas. No ano passado, Temer sancionou uma lei controversa, garantindo a militares envolvidos em crimes contra civis, em operações de segurança pública, a prerrogativa de serem julgados pela Justiça Militar. A “segurança jurídica” reivindicada pelo Exército para a intervenção no Rio é, portanto, uma salvaguarda adicional a um privilégio que a classe já conquistou, sob críticas de entidades de defesa dos direitos humanos.

A recente nomeação do general Joaquim Silva e Luna como ministro da Defesa – o primeiro militar na função desde que a pasta foi criada, em 1999 – no lugar de Jungmann, deslocado para o Ministério Extraordinário da Segurança Pública, é mais um sinal do prestígio das Forças Armadas no atual governo.

Ainda como presidente interino, Temer havia recriado o GSI – que Dilma havia extinguido –, nomeando um militar para chefiá-lo. Entre a Quarta-feira de Cinzas e a sexta-feira em que saiu o decreto de intervenção, Etchegoyen foi o auxiliar com quem Temer mais se reuniu – sete audiências oficiais, a sós ou em grupo, todas registradas na agenda do presidente.

O general à frente do GSI é um raro caso de militar que, na reserva, tornou-se mais poderoso do que na ativa. Enquanto o comandante do Exército, o general Villas Bôas, tem sob sua liderança 215 mil militares, Sergio Etchegoyen, sem comandar um único soldado, passou a ser a face militar mais influente da Esplanada, posição que a intervenção federal no Rio evidenciou.

Se o general palaciano ocupou o centro da cena, participando do teatro de operações e de sua difusão midiática, Villas Bôas, notório falante, se manteve mais discreto. Em parte porque o interventor, general Braga Netto, embora seu subordinado, responde diretamente a Temer, conforme os termos do decreto; mas também para não manifestar em público, com todas as letras, seu descontentamento com a intervenção.

O comandante do Exército, porém, enviou recados. No dia da assinatura do decreto, publicou três mensagens no Twitter – onde tem 80 mil seguidores, bem mais do que qualquer um dos ministros de Temer. Uma, declarando apoio ao interventor. Outra, que dizia que “os desafios enfrentados pelo estado do Rio de Janeiro ultrapassam o escopo de segurança pública, alcançando aspectos financeiros, psicossociais, de gestão e comportamentais. Verifica-se, pois, a necessidade de uma honesta e efetiva ação integrada dos poderes federais, estaduais e municipais”. E uma terceira, com um informe oficial em que comunicava ter apresentado a Temer “alguns pontos [da intervenção] que devem ser detalhados e regulamentados em Decreto Presidencial complementar”. Até o final de fevereiro não fora editado um decreto complementar.

As restrições de Villas Bôas ao emprego dos militares no combate à violência nos estados já era pública. Em audiência na Câmara, em julho do ano passado, o general afirmou aos deputados: “Eu quero deixar bem claro que nós não gostamos de participar desse tipo de operação.” E então contou uma experiência que viveu no complexo de favelas da Maré, no Rio, em 2015. “Eram onze horas da manhã ou meio-dia de um dia normal. E o nosso pessoal, muito atento, muito preocupado, muito crispado e armado, estava patrulhando a rua onde passavam mulheres e crianças. Falei: ‘Somos uma sociedade doente. O Exército está apontando armas para brasileiros.’ Isso é terrível.”

O comandante prosseguiu com a queixa. “O pior é que essa concepção de emprego das Forças Armadas, eu lhes digo, é inócua, porque nós passamos catorze meses nas favelas da Maré e, na semana seguinte à nossa saída, todo o status quo anterior tinha sido restabelecido, absolutamente todo. Por quê? Porque nesse tipo de situação o que obtém a solução […] não são as Forças Armadas. Elas são empregadas apenas para criar uma condição de estabilidade e segurança para que os outros braços do governo desenvolvam […]. Gastamos 400 milhões de reais, e devo dizer que foi um dinheiro absolutamente desperdiçado. Então, reconheço como positivo o governo estar repensando esse tipo de emprego das Forças Armadas, porque ele é inócuo e, para nós, é constrangedor.”

No dia em que Temer assinou o decreto arquitetado com a ajuda crucial de Etchegoyen, perguntei a um auxiliar direto de Villas Bôas como estava o comandante. “Na adversidade é que ele se fortalece”, respondeu.

Já Etchegoyen, sobretudo desde que entrou no governo, defende um plano integrado de segurança como solução possível ao quadro do Rio. Durante um seminário sobre segurança pública em agosto do ano passado, atribuiu o fracasso da cidade no setor à carga ideológica de acadêmicos que pesquisam o tema.

“Dependendo do governo e da abordagem, nós tínhamos alguma ideologia que era um ‘ismo’ qualquer, que tentava interpretar o fato social ‘crime’ a partir de uma visão ideológica, muitas vezes dogmática. E que, por ser dogmática, adaptava a realidade a uma compreensão da realidade, e não buscava entender a realidade a partir dela mesma. Produzimos teses, produzimos dissertações, produzimos monografias e eu pergunto: Quanto reduzimos da criminalidade?”, disse o general. E expôs sua receita: “Nós precisamos agir. Nós precisamos fazer. Existem dois fatores críticos para o sucesso disso: a adesão da sociedade no Rio de Janeiro e a compreensão que a mídia terá do que será feito. Isso é fundamental porque vamos ter insucesso, vamos ter incidentes. Estamos numa guerra. Vai acontecer, é previsível que aconteçam coisas indesejáveis, inclusive injustiças. Mas ou a sociedade quer ou não quer.”

Intervenção
intervenção federal no Rio criou um mal-estar entre os dois militares mais poderosos do país – e entre dois amigos de infância. Villas Bôas e Etchegoyen nasceram há 66 anos, num intervalo de três meses, na mesma cidade, Cruz Alta, noroeste do Rio Grande do Sul. As mães dos dois eram amigas desde meninas, os pais eram oficiais do Exército. Tratam-se ainda hoje pelos prenomes, Eduardo e Sergio. O primeiro da infantaria, o segundo da cavalaria, seguiram trajetórias de sucesso na carreira e sempre se mantiveram próximos. Ao assumir como comandante, Villas Bôas nomeou Etchegoyen chefe do Estado-Maior do Exército.

Neto, filho e sobrinho de militares que integraram governos conservadores ou participaram de levantes no século XX, o ministro do GSI se envolveu em pelo menos dois episódios para defender o pai, o general Leo Etchegoyen. Em 1983, o então comandante militar do Planalto, general Newton Cruz, chamou de “frouxos e incompetentes” os oficiais que depuseram à Comissão Parlamentar de Inquérito da Dívida Externa. Leo Etchegoyen era um dos convocados a depor. Durante uma palestra de Cruz, Sergio confrontou o general e recebeu voz de prisão no ato. Ficou detido por 23 dias.

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade incluiu, em seu relatório final, Leo Etchegoyen na lista de responsáveis por violações de direitos humanos, por integrar o aparato repressivo durante a ditadura (foi secretário de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, chefe do Estado-Maior do II Exército e chefe do Estado-Maior do III Exército). O filho rejeita as imputações e diz que o pai, morto, não teve o direito de defesa. Além de criticar o relatório, Etchegoyen, junto com sua família, entrou com uma ação na Justiça contra a Comissão da Verdade, para que o nome do pai seja retirado da relação. Cyro Etchegoyen (tio de Sergio), também integra a lista da Comissão, acusado de ter sido um dos chefes da chamada Casa da Morte, centro de tortura em Petrópolis.

O Etchegoyen do século XXI se declara um defensor da democracia e considera que a única saída para a gigantesca crise recente do país está na política – e nos políticos. Sustentou essa posição ao rejeitar uma sondagem para ser candidato a presidente. Em julho do ano passado, Carlos Marun, então líder da tropa de choque de Temer na Câmara e hoje ministro da Secretaria de Governo, abordou o ministro-general com a ideia de transformá-lo no nome do MDB na disputa pelo Planalto. Etchegoyen desconversou, e Marun voltou à carga em 15 de agosto, numa audiência oficial que solicitou com o ministro.

“Fiz consultas dentro do partido, muitos entenderam como positivo, estive no Rio Grande do Sul, já que ele é gaúcho, lá avançamos em algumas conversas, até que eu e o líder do MDB na Câmara, Baleia Rossi, fizemos o convite para o general entrar no partido e se transformar em uma opção de candidato à Presidência”, me contou Marun. Perguntei se Temer dera aval à operação. “Talvez eu tenha falado com ele em algum momento, mas não me recordo de ter marcado uma audiência”, respondeu Marun, ex-aluno de colégio militar em Porto Alegre. O escudeiro de Temer passou então a elencar o que o atrai no general: “Tem currículo suficiente, espírito de liderança, moral ilibada, amor à democracia. Não deve haver preconceito contra ninguém, o Brasil pode sim ser governado por um militar, desde que seja a vontade do povo expressa nas urnas. Mas ele se colocou completamente refratário à ideia e não quis nem se filiar.”

Perguntei a Etchegoyen o que ele achava do convite. Ele rechaçou a ideia sem meias palavras: “Não é meu talento, não é minha vocação. É uma coisa contrária à minha natureza. É uma mosca que não me morde e se morder não me entusiasma”, disse, numa tarde de novembro, em seu gabinete no 4º andar do Palácio do Planalto. Com um rosto rechonchudo a sustentar uma calva pronunciada, Etchegoyen tem olhos verdes e bigode à la Felipão. O que lhe resta de cabelo é espetado, conferindo ao general um ar enfezado. Descendente de bascos e alemães, é um homem circunspecto, cujas bochechas se avermelham quando sua fala adquire contornos enfáticos – na maior parte do tempo ele é cortês e tem a fala mansa.

“Na minha convicção, a solução do Brasil é política, o Brasil precisa de um político, não de um outsider. Eu não me enquadro nisso. Me olho no espelho e não vejo esse cidadão. Conseguimos avançar tanto na consolidação de instituições e da democracia que qualquer coisa que desviar disso na solução de que precisamos vai trazer muito mais solavancos”, disse Etchegoyen.

Isso, no entanto, não impede que o general defenda a geração de militares responsáveis pelo golpe de 1964. Foi, segundo ele, uma geração capaz de, na adversidade, formar discípulos legalistas. “Tu tens hoje uma liderança militar – o general Villas Bôas, o Alto Comando do Exército – com uma convicção republicana e democrática muito forte. Isso não se adquiriu num insight, numa experiência mística coletiva. Quem nos formou foi a geração que fez 64, é isso que vocês têm de se dar conta”, ele me disse, com seu forte sotaque gaúcho de erres intermináveis. “Essas pessoas, que podem ter cometido equívocos e exageros aqui e ali, tinham a honestidade de propósitos difícil de tu encontrar hoje em dia em qualquer instituição”, acrescentou Etchegoyen.

Mas e os excessos e os crimes que aquela geração cometeu não interferiram na formação desta? “No quê? A sociedade brasileira hoje tem tantos equívocos, tantos segmentos cometendo equívocos, que tu olha para um quartel e vê que ele está protegido de tantos equívocos. Acho que foram pessoas com muita honestidade de propósito. E nos educaram.”

Em novembro, quando conversamos, Etchegoyen sustentou que não havia risco de intervenção militar no país à revelia da Constituição, como cogitado pelo general Hamilton Mourão, oficial muito influente no Exército. Em palestra numa loja maçônica de Brasília, em setembro, ao ser indagado se as Forças Armadas não deveriam intervir para pôr fim à corrupção no governo Michel Temer, Mourão disse que poderia chegar “o momento em que ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso”.

Etchegoyen minimizou o ocorrido. “Os militares estão quietos há tanto tempo que quando um general fala vira um escândalo. Acho que foi um episódio supervalorizado”, disse, defendendo Mourão – “um homem bom, leal, um soldado respeitado”.

Segundo o ministro do GSI, “a instituição que mais se comprometeu integralmente com o processo democrático foram as Forças Armadas. Em nenhum momento tu tens nenhuma história para contar de que os militares trouxeram alguma truculência ao processo democrático. Imaginar que vão passar a ser agora?”.

Quando a conversa chegou a Bolsonaro, o general comentou: “Tu achas viável que num país que evoluiu tanto institucionalmente, consolidou uma democracia, alguém consiga governar para impor uma agenda totalitária, excludente?”

Etchegoyen se fortaleceu no Planalto num momento crítico da crise que engolfou o governo na época da delação da JBS. Em maio do ano passado, pouco depois de Temer ser alvejado por denúncias de corrupção, uma manifestação contra as reformas trabalhista e da Previdência terminou com quebra-quebra e violência na Esplanada dos Ministérios. Para contê-la, o governo convocou as Forças Armadas, assinando um decreto que permitia aos militares atuar com poder de polícia por uma semana. Houve, na ocasião, muitas críticas. Pressionado, Temer revogou o decreto um dia depois de tê-lo assinado.

A despeito do recuo de Temer, o ministro do GSI ganhou pontos com o chefe durante o episódio. Segundo Etchegoyen, a convocação dos militares se deveu a um incêndio que atingiu o prédio do Ministério da Agricultura, com feridos. As forças policiais e os bombeiros, relatou, não conseguiriam chegar em número suficiente à Esplanada para conter a situação.

“Ali só tinha duas opções: ou irmos para casa lamentando as vítimas que teriam morrido queimadas, mas politicamente satisfeitos por não termos empregado as Forças Armadas, ou não termos vítimas e irmos dormir aguentando a crítica de ter empregado as Forças Armadas”, argumentou Etchegoyen. O ministro contou que estava ao lado de Temer no Planalto no momento em que a decisão foi tomada. E de quem foi a decisão?, perguntei. “A decisão é sempre do presidente. O assessoramento é meu.”

 

SMU
8 quilômetros do gabinete de Etchegoyen, na Esplanada dos Ministérios, o Setor Militar Urbano (SMU) é o bairro do Exército em Brasília – um oásis de tranquilidade contíguo à ilha da fantasia que é o Plano Piloto. Ao lado do Clube do Exército, de um teatro, de uma igreja e da praça projetada por Burle Marx que virou ponto de lazer e piquenique, está a Vila Militar, com suas casas de cerca baixa evocando uma segurança que a maioria dos brasileiros não conhece. A residência de Villas Bôas fica numa quadra à parte, privativa para generais, numa área verde cercada por grades conhecida como Fazendinha. Está a menos de 500 metros do principal conjunto de prédios do bairro, o Quartel-General do Exército, chamado de Forte Apache.

O visitante que acessa o Forte Apache pela entrada principal do edifício, reservada a autoridades, dá num hall monumental de piso de mármore branco, decorado com enormes telas a óleo de batalhas do Exército brasileiro. Nos corredores, numa espécie de coreografia incessante, os subalternos batem continência à passagem de um superior. Quanto maior a patente, mais alto o estalo produzido pelo braço do subordinado na lateral do corpo “em movimento enérgico” (como previsto em um decreto presidencial que regulamenta esse tipo de saudação).

Numa manhã quente no final de novembro passado, o comandante do Exército me recebeu para uma entrevista em seu gabinete no Forte Apache. Eduardo Villas Bôas é um homem magro e alto, com rosto anguloso, queixo pontiagudo e olhos num tom entre o verde e o castanho. Seus cabelos, bem curtos, começam a branquear, principalmente nas laterais – recentemente ele resolveu pintá-los. Tem a fala calma, que, por causa da doença degenerativa que o acomete, às vezes é entrecortada por uma respiração arfante, como a de um asmático em crise.

A enfermidade do general, conhecida como doença do neurônio motor, ataca as células nervosas responsáveis pela atividade muscular. Há dezenas de subtipos da moléstia, cujo diagnóstico costuma ser difícil e impreciso. Diferentemente do Alzheimer, que debilita o cérebro e mantém o resto do corpo intacto, as doenças do neurônio motor geralmente devastam aos poucos o corpo sem causar danos ao cérebro. No caso de Villas Bôas, ela já lhe impediu de caminhar, afetou os músculos que auxiliam sua respiração e comprometeu movimentos dos braços e das mãos.

Quando entrei na sala, ele estava sentado em sua cadeira de rodas, atrás da mesa de reuniões do gabinete, e vestia seu uniforme do dia a dia, com camisa cáqui e calça verde. Em aparições públicas que não sejam solenidades oficiais, costuma optar pelo uniforme de combate, camuflado.

“Deixa em off ou põe em on?”, Villas Bôas perguntou à equipe de auxiliares em torno da mesa de reuniões de seu gabinete. De supetão, o comandante do Exército decidiu promover uma enquete com seus homens de confiança para saber se falaria abertamente ou off the record, quando a origem da informação é ocultada numa reportagem.

Tratávamos da aproximação entre militares e política. Villas Bôas expunha os ressentimentos que a cúpula do Exército tem com o Partido dos Trabalhadores. O ponto mais sensível, que exaltou os outros presentes à sala em sintonia com o comandante, era um trecho de uma “resolução sobre conjuntura” assinada pelo Diretório Nacional petista em maio de 2016. No texto, publicado dias após o Senado autorizar a abertura do processo de impeachment de Dilma e determinar o seu afastamento da Presidência por 180 dias até a votação final, o partido aponta como deveria ter agido para ter evitado a queda e se queixa por não ter interferido no sistema de promoção das Forças Armadas nem ter alterado o currículo das escolas militares.

“Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação”, diz o parágrafo que consta no documento de dez páginas.

Estavam na mesa os generais Otávio Rêgo Barros, chefe do CCOMSEx, o Centro de Comunicação Social do Exército; Tomás Ribeiro Paiva, chefe de gabinete, e Ubiratan Poty, chefe do Centro de Inteligência do Exército, além dos coronéis Alberto Fonseca, assessor do gabinete do comandante responsável por análises de conjuntura, e Alcides de Faria Junior, chefe da Divisão de Relações com a Mídia do CCOMSEx. Foi a eles que Villas Bôas perguntou se deveria falar “em off ou em on” naquele trecho da entrevista. Todos sugeriram que o comandante abordasse o assunto “em on”.

“Isso nos preocupa porque, se por um lado, nós somos instituições de Estado e não podemos participar da vida partidária, indica uma intenção de partidos interferirem no Exército”, iniciou o comandante. O general Tomás o seguiu: “Isso para mim foi o maior erro estratégico do PT, foi uma coisa burra.” “Essa é uma coisa que não é admitida pelas Forças Armadas, a intervenção em nosso processo educacional. Esquece”, emendou o coronel Fonseca. “Isso nos fere profundamente. Está na nossa essência, no nosso âmago”, concordou Villas Bôas.

No embalo, o grupo expressou insatisfação com a Comissão Nacional da Verdade, instalada no governo Dilma para apurar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Os militares se queixam de que a comissão restringiu seu foco à ditadura de 1964 a 1985 e só investigou violações “de um lado”, o deles.

Meses depois de nossa conversa, Villas Bôas se meteria numa enrascada ao evocar essa mesma posição diante da intervenção no Rio. Durante uma reunião para debater o decreto, o general cobrou de Temer garantias aos militares em ação no Rio para que mais tarde não fossem alvos de uma nova Comissão da Verdade. Foi como se pedisse um salvo-conduto para repetir nas favelas cariocas crimes cometidos durante a repressão. Um auxiliar do comandante definiu a declaração como “uma frase infeliz”.

 

Mais novo
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o assumir seu segundo mandato, em janeiro de 2015, Dilma trocou os chefes das três Forças. Villas Bôas estava entre os generais da lista tríplice enviada pelo Exército ao ministro da Defesa, o petista Jaques Wagner, que examinou os nomes e os submeteu à presidente, a quem cabe a nomeação. Embora o mais comum seja priorizar o general mais antigo da lista, naquele ano o escolhido foi o mais novo.

“Villas Bôas é um militar clássico, um brasileiro nacionalista e respeitador das leis. Onde chefiou sempre se transformou num líder porque é afável, corajoso e motivador. E é um democrata, um cara olhando para a frente, portanto qualquer movimento nesse sentido, de uma intervenção militar ao arrepio da lei, não encontraria nele um estimulador”, me disse Wagner, hoje secretário de Desenvolvimento Econômico do Governo da Bahia e provável candidato ao Senado em 2018, embora também seja uma alternativa do PT à Presidência caso Lula seja definitivamente impedido.

Desde cedo Villas Bôas rechaçou publicamente os murmúrios sobre recorrer às Forças Armadas como remédio para a crise, reiterando que cabe ao Exército cumprir a Constituição. Numa entrevista, chamou de “malucos” e “tresloucados” os entusiastas de um golpe. Quando conversamos, em novembro, disse que a chance de haver uma intervenção militar no Brasil era “absolutamente zero”.

Quando soube da gravidade da sua doença, meses depois de descobri-la, o comandante do Exército solicitou uma audiência com Temer e colocou seu cargo à disposição. Era março de 2017. “General, não preciso do seu físico, o que mais preciso do senhor é de sua cabeça e de sua liderança”, ouviu do presidente. Villas Bôas continuou na função. Dias depois da audiência, tornou pública sua enfermidade. Na ocasião, já tinha dificuldade para caminhar.

Quando, no rastro das denúncias contra Temer, a crise escalou e as menções a um golpe militar ultrapassaram a fronteira dos “tresloucados”, Villas Bôas precisou fazer política. A incendiária declaração do general Hamilton Mourão em setembro teve ampla repercussão na imprensa – de várias partes houve cobranças de que o general fosse exonerado do cargo de secretário de Economia e Finanças do Exército. Villas Bôas minimizou o episódio. Além de não punir o colega, na sua primeira manifestação pública posterior à confusão – uma entrevista ao programa Conversa com Bial, na Globo – definiu Mourão como “um grande soldado, uma figura fantástica, um gauchão”.

O comportamento de Villas Bôas dividiu opiniões. Parte o considerou condescendente com a linha dura que flerta com o golpismo, parte ouviu a fala do comandante como um lance habilidoso para não atiçar a parcela do Exército alinhada com Mourão – que não é pequena, mas está majoritariamente na reserva. Conhecedores do funcionamento das Forças Armadas concordam com a segunda leitura. Contemporizando, Villas Bôas desinflou o balão.

Adeptos da tese da condescendência, no entanto, se lembram de uma publicação de Villas Bôas no Twitter, depois do episódio com Mourão. Nela, o comandante cita uma frase de Samuel Huntington, conhecido cientista político conservador americano cujas ideias inspiraram o generalato brasileiro na ditadura. “Samuel Huntington nos instiga: ‘A lealdade e a obediência são as mais altas virtudes militares; mas quais serão os limites da obediência?’ O Estado, ao nos delegar poder para exercer a violência em seu nome, precisa saber que agiremos sempre em prol da sociedade da qual somos servos”, escreveu Villas Bôas em novembro.

A mulher do comandante, com quem ele é casado há 41 anos, também compartilhou no Facebook publicações simpáticas à causa dos “tresloucados”. “Intervenção militar não é golpe. Não é a volta da ditadura. Não é golpe na democracia. Intervenção militar é a garantia da democracia com a saída imediata dos políticos que destruíram nossa nação!”, dizia uma delas.

Menos de três meses depois de sua declaração bombástica na loja maçônica, Mourão daria outra palestra, desta vez no Clube do Exército de Brasília. A certa altura, disse: “Nosso atual presidente vai aos trancos e barrancos, buscando se equilibrar, e, mediante um balcão de negócios, chegar ao final de seu mandato.” O Palácio do Planalto chiou, e Mourão foi exonerado. Apesar de a punição ter sido publicada no Diário Oficial, na prática o general punido continuou na função até o final de fevereiro. Em 1º de março, entraria para a reserva.

Mourão – que não tem parentesco com Olympio Mourão Filho, o general que deu a largada no golpe de 64 ao marchar com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro – prepara sua candidatura à presidência do Clube Militar do Rio, mas não descarta disputar algum cargo, majoritário ou proporcional, na eleição de 2018. Diz ter sido sondado por alguns partidos, mas informou a amigos que, por enquanto, não se interessou.

 

Oficiais
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té o governo do marechal Castelo Branco, o primeiro do regime militar inaugurado com o golpe de 64, os oficiais de alta patente podiam permanecer por anos na ativa e transitar sem impedimento entre os quartéis e a vida política. Foi o caso do marechal gaúcho Cordeiro de Farias, governador biônico do Rio Grande do Sul (de 1938 a 1943) e governador eleito de Pernambuco (de 1955 a 1958), que em seguida continuaria a ocupar cargos estratégicos no Exército. O também marechal Henrique Teixeira Lott foi derrotado por Jânio Quadros na eleição presidencial de 1960. Outros militares que no século XX ocuparam a posição máxima na hierarquia das Forças Armadas tiveram intensa atuação política, como Newton Estillac Leal e Odílio Denys.

Castelo fez alterações no sistema de promoção de militares que asseguraram a renovação na cúpula do Exército. Entre as mudanças, estipulou que um general não poderia ultrapassar doze anos no posto e fixou prazos para que ascendessem dentro desta patente, de tal modo que cada um dos graus (brigada, divisão e exército) atualizasse anualmente seus quadros: um general de brigada que não for promovido em quatro anos a general de divisão, por exemplo, vai compulsoriamente para a reserva, e assim por diante.

Os militares com veleidades políticas também foram afetados: uma vez eleitos, passaram a ser transferidos para a reserva, automaticamente, no ato da diplomação. Castello também criou o mecanismo do domicílio eleitoral como condição para que um candidato pudesse ser elegível, inviabilizando, nas eleições estaduais de 1966, as candidaturas dos então generais Teixeira Lott, Amaury Kruel, Justino Alves Bastos e Jair Dantas Ribeiro aos governos da Guanabara, de São Paulo, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul.

A candidatura de um militar à Presidência, ainda que um militar da reserva, como Jair Bolsonaro, constitui uma novidade no cenário brasileiro pós-redemocratização. Villas Bôas associa a força do ex-capitão a uma reação da sociedade brasileira (“que é conservadora”, ressaltou) contra o que ele chama de “pensamento politicamente correto em suas várias vertentes”.

O general tentou explicar melhor o fenômeno Bolsonaro. Sem que os auxiliares o interrompessem, engatou a tese de que a moral e os bons costumes são a arma da direita contra o avanço do que ele definiu genericamente como “ideologia”. “Temos visto um movimento muito grande relativo à ideologia de gênero, vimos a questão dos museus. São coisas que para a população são agressivas”, disse Villas Bôas, fazendo alusão à performance de um homem nu que foi tocado por uma criança acompanhada pela mãe, no Museu de Arte Moderna, em São Paulo. “A ideologia tem dificuldade de trabalhar com a realidade. A atuação ideológica não visa solucionar o problema, ela visa fortalecer esse componente ideológico.”

Num só fôlego, o comandante passou a listar exemplos de causas que são prejudicadas pela “ideologia” de movimentos que as defendem. “Quanto mais se implanta um pensamento de preocupação ambiental, mais nós temos tido danos ambientais e desmatamento. Porque não visa atingir resultados, visa sim fortalecer todo o sistema que opera essas ideologias.”

Villas Bôas avançou até a questão indígena. “Quanto mais indigenismo se tem no Brasil, mais os coitados dos índios estão abandonados. Porque os índios ficaram reféns desses slogans ideológicos e não conseguem expressar suas reais necessidades.”

E chegou ao racismo: “A questão de preconceito racial – que é absolutamente pertinente, o preconceito é algo realmente odioso –, pela forma como tem sido conduzida, tem feito o Brasil deixar de ser um país de mestiços para passar a ser um país de brancos e pretos.” Arrematou com Bolsonaro: “Então, quando surge alguém que se contrapõe a esse pensamento, com coragem e capacidade de expressar isso, ele consegue representar uma parte grande da sociedade, que se sente até acuada, imobilizada diante dessa pressão tão grande. Daí o crescimento de uma candidatura como a do Bolsonaro.”

Villas Bôas considera que o ex-capitão tem uma aceitação ampla nas Forças Armadas e avalia que as chances dele dependem do surgimento ou não de um nome que una o centro – algo que, nas entrelinhas, o comandante parece acalentar.

 

Interventor
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ssim como seus colegas do Alto Comando do Exército, o interventor Braga Netto nutre respeito e admiração por Villas Bôas. Embora seja da mesma arma de Etchegoyen, a cavalaria, o general se entende melhor e ouve mais o comandante – a quem trata por “senhor” – do que o ministro do GSI. Braga Netto e Villas Bôas trabalham juntos para que a intervenção tenha como efeito colateral mais investimentos no Exército – é esse, de resto, o aspecto que julgam positivo nas operações de GLO. Os dois também alinharam o discurso de que os militares estão prontos a se sacrificar pelo sucesso da intervenção, desde que as outras partes envolvidas (“poderes constitucionais, instituições e, eventualmente, a população”, como descrito no informe oficial enviado a todos os integrantes do Exército) também estejam dispostas ao sacrifício.

A parceria desejada pelos generais se projeta turbulenta. Seja porque algumas das primeiras medidas da intervenção – como a de fichar, fotografar e revistar moradores de favelas – provocaram reações negativas; seja porque Braga Netto, antes mesmo de anunciar seu plano de ação, teve de lidar com um passivo de operações militares recentes no Rio.

Em novembro passado, oito pessoas foram assassinadas durante uma operação conjunta do Exército e da Polícia Civil no Salgueiro, conjunto de favelas em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. Segundo a autópsia, todas foram baleadas pelas costas. O episódio, que ficou conhecido como a chacina do Salgueiro, até hoje não foi esclarecido. Os soldados do Exército que participaram da ação não depuseram ao Ministério Público Estadual nem à polícia, somente ao Ministério Público Militar. Promotores civis solicitaram cópias dos depoimentos, mas não as obtiveram.

A organização Human Rights Watch criticou o interventor recém-empossado. “A obstrução das investigações por parte do general Braga Netto mostra a falta de comprometimento real em garantir justiça às vítimas nesse caso e mostra um flagrante desrespeito às autoridades civis. Isso é um péssimo sinal para os cidadãos do Rio de Janeiro, considerando seu novo posto como chefe da segurança pública do estado”, disse a diretora do escritório brasileiro da ONG norte-americana, Maria Laura Canineu.

Por meio de seu porta-voz no Comando Militar do Leste, Braga Netto informou que o Ministério Público Militar ouviu os soldados envolvidos na operação e está investigando o caso.


Fernando Gabeira: Não há plano, faz-se um plano

 

Arruinado, o Rio não consegue sozinho ocupar seu território. A situação é emergencial

Planejava escrever mais um artigo sobre política de segurança nacional, tal como espero que seja discutida em 2018. Celso Rocha de Barros, em sua coluna na Folha, me fez uma pergunta pertinente: afinal, qual a intervenção que apoio? Já tratei parcialmente do tema em artigos anteriores. Mas não gostaria de parecer vago a respeito do lugar onde vivo, sobretudo diante de um interlocutor qualificado.

Defendo uma intervenção completa num governo em ruínas. Mas já que se deu apenas no campo da segurança e tem como instrumento o Exército, ela deve deixar bem claro o momento de terminar. Esse marco final não é definido pela rigidez do calendário, mas pela execução da tarefa: reduzir, ainda que modestamente, os índices de criminalidade e reestruturar a polícia para que possa cumprir sua tarefa. Nesse campo, dois pontos são essenciais: o combate à corrupção, pois ela enfraquece as chances de reduzir a criminalidade; e dotá-la de equipamentos, treino e meios técnico-científicos de investigação.

Desde repórter policial, ainda garoto, percebia que a polícia estava atrás de seu tempo. Foi uma opção da sociedade brasileira, que subestimou sua importância. Essa escolha é uma fonte de violência, pois sem inteligência e métodos de investigação a busca de alguma eficácia induz à tortura e à intimidação. No caso da polícia do Rio de Janeiro, existe ainda uma questão elementar: pagar os salários em dia.

Quanto aos métodos, defendo uma intervenção que não veja as favelas como território hostil, mas como território amigo controlado por forças hostis. Isso implica o compromisso de respeitar as pessoas, algo que alguns já percebem também como o desejo dos militares.

E quais são as forças hostis? Os grupos armados ocupando territórios: traficantes de drogas, que se desdobram em ladrões de cargas, e as milícias, que vendem segurança, gás e transporte alternativo.

Sou contra a ocupação militar das comunidades. Há anos afirmo que nem o Exército chinês exerceria folgadamente essa tarefa. São mais de 800 só na capital, sem contar a Baixada Fluminense e cidades médias, como Campos e Macaé.

Como combater esses grupos sem ocupar? Essa é uma questão que inteligência e meios técnicos podem responder ao menos parcialmente. A tática de ocupar as comunidades leva os grupos armados a utilizar, instintivamente, um princípio da guerrilha: dispersar quando o inimigo se concentra, concentrar-se quando ele se dispersa.

Em 2010, no contexto da campanha política, traçamos um mapa da ocupação armada no território do Rio, indicando quem a dominava. Esta semana recebi um esboço que mostra como a mancha de território ocupado se expandiu.

Defendo também uma intervenção que estimule, por sua presença, o avanço da Lava Jato sobre o mundo político do Rio. Há muita coisa a fazer, até porque o atual governo era parte do esquema criminoso de Sérgio Cabral.

Finalmente, afirmei que a sociedade, que já se movimenta, via aplicativos como Onde Tem Tiroteio e Fogo Cruzado, poderia ajudar as forças de intervenção. Mas precisaria conhecer seu plano.

Os militares foram convocados de surpresa e precisam estudar melhor o quadro. E de mais treino no contato com a imprensa, que não é de seu cotidiano

Tenho consciência de que o governo Temer é impopular e terá grandes problemas com a Justiça quando perder o foro privilegiado. Mas sinto que vivemos no Rio uma situação emergencial. Outros Estados também sofrem com a violência. Constatei isso no Amazonas, no Maranhão, em Alagoas e pretendo mostrar os casos do Ceará e do Rio Grande do Norte.

Mas em nenhum ponto do País perdemos tanto território para grupos armados.

Os números sobre mortes no Brasil, superando os de muitos países em guerra, já eram um argumento para o tema subir ao topo da agenda nacional. Temer é o presidente que existe, o único capaz de convocar as Forças Armadas. Se alguém acha isso um golpe de mestre político, é porque tem visão curta.

O próprio Exército, com alta credibilidade, não se lançaria numa tarefa dessas para salvar um governo com alguns já na cadeia e outros arrumando a mala. Se Temer não cumprir as condições mínimas para a execução da tarefa, espero que isso fique claro no balanço dos interventores e o desgaste caia nas mãos de quem merece.

Em linhas gerais, essa é a intervenção que defendo. Posso alterar minha visão diante de argumentos contrários.

O mais difícil, entretanto, é convencer as pessoas que, como todos nós, acreditam que a segurança é limitada, que é preciso melhorar as condições sociais, a educação. Não percebem a emergência. Como chegar com serviços sociais a uma favela ocupada? Como ter eleições livres em áreas onde só podem entrar alguns candidatos?

Arruinado, o Rio não consegue sozinho ocupar seu território. Mesmo com ajuda federal e a presença do Exército é uma tarefa de longo prazo. Quem vê os militares se preparando para combater os grupos armados vê também um horizonte para a libertação territorial da cidade.

Defendi apenas alguns princípios da intervenção. Não explicitei planos porque isso é tarefa dos militares. Admito até que não tinham nenhum. O que fazer? Foram convocados para uma emergência. Não temos plano? Faz-se um. Visto com seriedade, para quem foi convocado de surpresa isso leva tempo.

O atraso na aceitação da segurança pública na agenda nacional atravessou a redemocratização. Entre nossos presidentes, havia um desprezo aristocrático pelo tema.

Com todas as críticas que faço ao governo Temer, procuro ter uma visão política; não reclamar quando o outro chega atrasado às evidências, mas simplesmente afirmar: é bom que, finalmente, tenha chegado.

Não vejo alternativa melhor para o Rio. Prefiro ajudá-la, contra os ventos e marés da esquerda. Não é a primeira vez que discordamos. Já estamos acostumados.

 


Alon Feuerwerker: A intervenção na segurança do Rio já é um sucesso de comunicação. Vamos aguardar os reflexos na política

É pueril criticar governos que governam criando fatos comunicacionais. Governar é decidir e saber comunicar a decisão. Há poucas coisas mais ingênuas, ou espertalhonas, que dizer “o governante deve ser um gestor”. Trata-se de uma tautologia, pois gerir é liderar e comunicar. E voltamos à ideia-matriz deste parágrafo introdutório.

Depois disso, que no jornalismo é chamado nariz-de-cera, vamos ao que interessa: a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro já é um sucesso de comunicação político-governamental. Não sei se a avaliação de Michel Temer deixou o fundo do poço, mas o ambiente sofreu uma mudança sensível. Pelo menos o ambiente jornalístico em torno do governo.

Recapitulando. Quando interveio no Rio, Temer estava na véspera de perder a votação da reforma da previdência. A certeza dessa derrota nasce de um fato: por que o governo não esperou alguns dias para decretar a intervenção? A tal “situação crítica” não era nem mais nem menos crítica que o habitual. Não havia nenhum “caos” inédito na rua. Talvez no noticiário. A tal comunicação.

Derrotado na previdência, ou se ela deixasse de ser votada por falta de votos, o governo entraria numa dinâmica ruim. Os analistas econômicos anunciariam o fim dos tempos, a oposição celebraria uma vitória, o noticiário seria tomado pela eleição e os atuais donos do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios ver-se-iam às voltas com o clássico cafezinho frio.

A jogada de mestre (sem aspas, foi de mestre mesmo) mudou o cenário. Governantes que pareciam destinados ao ostracismo jornalístico passaram a ser novamente assediados em busca de lides e manchetes. Veio a profusão de entrevistas e a produção em massa de coisas noticiáveis. Generais sentiram-se autorizados a exigir coletivas só com perguntas escritas.

Os custos humanos vão sendo empurrados para fora do notíciário.

E o mercado não parece estar nem aí pela previdência não ter ido a voto.

Há críticas, é claro. Constituiu-se uma oposição ideológica à intervenção, pela esquerda e pela direita. Essa resistência dará frutos no médio e longo prazos, quando vier o cansaço com a coisa e se verificar que ela não deu resultados espetaculares. O cálculo das Forças Armadas é estar fora dali quando tal momento chegar. O do governo, é a eleição já ter passado.

No curto prazo a coisa está funcionando. O céu pode ainda não ser de brigadeiro, mas ficou algo azul. O objetivo imediato de comunicação foi atingido, com a volta do “tem que dar certo” do Plano Cruzado. A intervenção no Rio ajudará o governo a sobreviver até dezembro e a aumentar sua influência no processo eleitoral. Do ângulo do poder, é uma conquista.

Mesmo as eventuais complicações neste início poderão ser explicadas pelo remédio não ter sido dado em maior dose. Pela falta, por exemplo, dos mandados coletivos de busca e apreensão. Ou por os soldados não poderem atirar em qualquer um que esteja indevidamente armado. O tratamento preconizado a combatentes inimigos numa guerra.

Outra coisa pueril em política é subestimar governos. Mesmo em estado terminal, eles têm poder de fogo, e às vezes é letal. Sarney estava politicamente desenganado em 1989, aí inventou a candidatura de Silvio Santos, articulada pelos aliados Edison Lobão, Marcondes Gadelha e Hugo Napoleão. Se a Justiça não tivesse bloqueado, tinha bagunçado bem a eleição.

O objetivo político-comunicacional imediato da intervenção no Rio foi atingido. Ao mostrar iniciativa num tema muito sensível ao eleitor, e mais sensível ainda ao eleitor mais pobre, Temer recolocou-se no jogo. O ridículo da Tuiuti já é história. Se vai ser candidato, se vai lançar outro nome pelo MDB ou se vai emplacar o vice numa chapa mais forte, são detalhes. Os fatos dirão.

As pesquisas imediatas podem até ser algo decepcionantes, mas isso não deve iludir. Privatização e austeridade fiscal não são populares, mas a caça aos bandidos é. Temer deu um gás à narrativa da direita para este processo eleitoral, e subestimar será um erro. É visível, aliás, que a esquerda ainda não encontrou uma resposta adequada ao novo cenário.

*

Da entrevista de Lula à Folha de S.Paulo deduz-se que o PT terá ou apoiará um candidato, e que estará aberto ao diálogo com os que eram seus aliados e hoje são aliados de Temer. Há porém um problema: pela primeira vez desde 1998, o PT está isolado. E quase sem máquina. Em 1989 tinha a prefeitura de São Paulo, e em 2002 também. Sem falar de 2006, 2010 e 2014.

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 


Cacá Diegues: Uma jovem democracia

Apesar do excesso de alguns militantes de todos os lados, homens públicos que não estão na cadeia por ladroagem estão muito mais dispostos a aceitar as regras do jogo

Uma contribuição decisiva do pós-modernismo para o entendimento do tempo em que vivemos é a formulação da vida vivida como um espetáculo, tanto na esfera privada quanto, sobretudo, na pública. E esse mundo do espetáculo não poderia evitar a política, o espaço em que ele se movimenta por excelência.

Hoje, a ideia de “democracia representativa” corresponde muito menos a poderes eleitos livremente pelo povo para que o representem do que ao próprio conceito teatral de representação. O político contemporâneo, visto por um pensador pós-pós-modernista, será sempre muito mais um ator num palco diante de grande plateia ululante, do que um autêntico representante sereno dessa mesma plateia.

O fenômeno talvez possa acontecer menos em democracias mais antigas, meio cansadas desse exibicionismo que acaba sempre em algum populismo enganador. Mas, nas “jovens” democracias, aqueles regimes que vivem entrando e saindo de ditaduras com certa frequência, cada vez que suas elites decidem não acreditar na capacidade da população de escolher seu próprio rumo, nessas democracias inaugurais a “representação” é sempre uma ilusão que se desfaz antes que caia o pano e os atores possam ir relaxar nas coxias.

A gente se esquece de que no Brasil, por exemplo, vivemos grande parte do século XX debaixo de algum regime de força, mais ou menos disfarçado. Na virada do século, ainda dependíamos do poder dos senhores de terras, os cafeicultores que se vingaram da Abolição e do fim do trabalho sem custo fazendo proclamar a República. Uma sucessão de presidentes — eleitos através de atas falsas e o voto dos fazendeiros que também votavam por seus empregados — dominou um país sem opinião pública, durante a chamada República Velha.

Em 1930, uma revolução liberal, comandada por jovens oficiais que tentavam modernizar o Exército brasileiro, transformou-se em cruel e sangrenta ditadura burguesa, sob o comando de Getúlio Vargas. O Estado Novo de Vargas, nomenclatura política inspirada no regime fascista italiano de Benito Mussolini, foi inaugurado em novembro de 1937 e durou até 1945, quando o ditador é deposto por movimento civil e militar. Getúlio ainda volta ao poder, eleito democraticamente em 1950, como um líder popular e nacionalista de esquerda, o que pouca gente conseguiu até hoje entender completamente. Inclusive eu.

Arrependidos de seu neogetulismo, os líderes militares trataram de planejar a queda do regime democrático, o que começou a acontecer com o suicídio de Vargas em agosto de 1954, se consolidando finalmente com o golpe de 1964 e a consequente ditadura que durou até março de 1985. Agora façam as contas. Durante os cem anos do século XX, o Brasil viveu plenamente sua sempre jovem democracia por apenas 32 deles, bem menos da metade do século. E olhe lá!

Já o século XXI tem sido um pouco mais generoso conosco. Pelo menos até aqui. Apesar dos movimentos raivosos de boicote ao Plano Real, do terrorismo político contra a eleição de Lula e do próprio impeachment sofrido por Dilma, quase tudo, na medida do possível, vem sendo feito dentro da Constituição e das leis, à luz dos princípios democráticos. Apesar do excesso de alguns militantes de todos os lados, os homens públicos atuais que não se encontram na cadeia por ladroagem estão muito mais dispostos a aceitar as regras do jogo, a perder uma mão para não perder a partida.

Ótimo exemplo desse desprendimento cívico está na entrevista recente de Lula à “Folha de S.Paulo”. Mesmo os que desejam vê-lo na cadeia, mesmo os que tratam como um pesadelo a possibilidade de ele se tornar candidato e presidente, têm que reconhecer sua firme confissão democrática: “Quem sabe eu virasse um moleque de 16 anos e fosse dizer que só tem solução na luta armada. Não. Eu acredito na democracia, eu acredito na Justiça”.

O contrário dessa confiança no regime democrático está naqueles que, sem reflexão, demonizam a intervenção militar na segurança do Rio de Janeiro. Parece uma repetição de tudo que acabou com o projeto das UPPs, um projeto que precisava do apoio de todos para fazer com que o poder público o completasse com educação, saúde, saneamento, subindo os morros pelas portas abertas pela segurança. Em vez disso, as UPPs foram tratadas como uma ocupação militar das favelas, como agora fazem com a intervenção do Exército.

É ridículo considerar a intervenção como uma “jogada eleitoral”. E se for, o que é que tem? Toda ação positiva de um governo será sempre, por definição, uma “jogada eleitoral”. Ou então os governos ficam condenados a não fazerem nada de positivo, para não serem mal interpretados. Ainda não sei dizer se a intervenção no Rio é uma boa para a cidade, acho que é cedo para ter certeza sobre o assunto. Por enquanto, apenas torço para que dê certo.

* Cacá Diegues é cineasta

 


Fernando Gabeira: A luta contra fantasmas

Existem várias comissões para fiscalizar a intervenção e poucas articulações para cooperar com o Exército

Outro dia, chamaram-me de general num desses blogs. Não me importo: são os mesmos de sempre, como diria um personagem de Beckett, depois de apanhar. O ponto de partida é minha visão positiva sobre o papel do Exército no Haiti. O que fazer? Estive lá duas vezes, vi com os meus olhos e ainda assim sempre consulto o maior conhecedor brasileiro do tema, Ricardo Seitenfus.

Não estive com o Exército apenas no Haiti. Visitei postos avançados de fronteira da Venezuela, junto aos yanomamis, em plena selva perto da Colômbia. Vi seu trabalho na Cabeça do Cachorro, no Rio Negro, cobri o sistema de distribuição de água para milhões de pessoas no sertão do Nordeste.

Não tenho o direito de encarar o Exército com os olhos do passado, fixado no espelho retrovisor. Além de seu trabalho, conheci também as pessoas que o realizam.

Nesse momento de intervenção federal, pergunto-me se o Exercito para algumas pessoas da esquerda e mesmo alguns liberais na imprensa, ainda não é uma espécie de fantasma que marchou dos anos de chumbo até aqui, como se nada tivesse acontecido no caminho.

Alguns o identificam com o Bolsonaro. Outro engano. Certamente existem eleitores de Bolsonaro nas Forças Armadas como existem na igreja, nos bancos e universidades. Mas Bolsonaro e o Exército não são a mesma coisa.

Existem várias comissões para fiscalizar o intervenção. Ótimo. Isso é democracia. Mas existem poucas articulações para cooperar com o Exército: isso é miopia.

Houve um certo drama porque os pobres foram fotografados por soldados. Quem dramatiza são pessoas da classe media que vivem sendo fotografadas, na portaria de predios, na entrada de empresas. Por toda a parte alguém nos filma.

Há uma lei especifica sobre identificação. É razoável discutir com base nela. Mas é inegável também que os tempos mudaram. Na Europa e nos EUA por causa do terrorismo, aqui por causa da violência urbana.

Não se trata de dizer sorria, você está sendo filmado. É desagradável e representa uma perda de liberdade em relação ao passado. Mas expressa um novo momento.

O Ministro Raul Jungman tomou posse afirmando que a sociedade do Rio pede segurança durante o dia e à noite consome drogas. É uma frase muito eficaz em debates e artigos. Creio que apareceu até no filme Tropa de Elite.

Na boca de um ministro, que considero competente, merece uma pequena análise.

Parisienses, londrinos, paulistas e novairorquinos também consomem droga, suponho. No entanto não existem grupos armados dominando o território urbano.

Se isso é verdade não é propriamente a abstinência que tem um peso decisivo, mas sim a presença do Estado que garante uma relativa paz, apesar do consumo de drogas.

Nucleos de traficantes deslocaram-se para o roubo de cargas porque o acham mais rentável. É impossivel culpar os consumidores de geladeiras e eletrodomésticos não só porque é uma prática legal.

As milicias pouco se dedicam ao tráfico de drogas. Vendem segurança, butijões de gás e controlam o transporte alternativo. São forças de ocupação.

Campanhas contra o consumo de drogas, nessa emergência, têm uma eficácia limitada, apesar de suas boas intenções.

Mas assim como há gente que vê um exercito fantasma, perdido nas brumas do século passado, pode ser um erro mirar no consumo de droga e perder de vista a ocupação armada do território.

Uma das frases mais interessantes no Terra em Transe de Glauber Rocha é quando o personagem diz que não sabe mais quem é o inimigo.

Há tantos combatendo exércitos fantasmas ou investindo contra moinhos que é sempre bom perguntar: afinal, qual é o foco?
 


Merval Pereira: Ventos policiais

Os palanques eleitorais para a eleição presidencial deste ano estão sendo montados aos trancos e barrancos, mais ao sabor dos ventos policiais do que dos políticos. E numa eleição casada, onde estarão em jogo nada menos que sete cargos eletivos — presidente da República, governadores, dois senadores, deputados estadual, distrital e federal —, quem tiver as melhores alianças partidárias terá o maior tempo de propaganda na televisão. Mas com o advento das redes sociais no mercado eleitoral, e o encurtamento da campanha oficial, não é possível garantir que o tempo de televisão seja mais importante.
Até que se prove o contrário, as alianças políticas regionais serão fundamentais para a captação de votos, mais até que o curto espaço que sobrará para a campanha de propaganda oficial de rádio e televisão, que terá a duração de apenas 35 dias, a partir de 31 de agosto.
A Bahia entrou ontem na lista dos estados que serão afetados pelas investigações da Operação LavaJato, que ao mesmo tempo em que dificultou a campanha regional do PT, atingiu em cheio a opção mais palatável eleitoralmente para substituir Lula como candidato presidencial.
O ex-governador e ex-ministro Jaques Wagner buscava na eleição quase certa para o Senado o foro especial que o protegeria justamente dessa investigação, que já fora arquivada no âmbito da Justiça Eleitoral local, normalmente mais exposta à influência do poder político incumbente. Mas era a melhor bala de prata petista para substituir Lula na campanha presidencial, apesar de não querer assumir essa missão.
Mesmo que o enfraquecimento da situação petista tenha beneficiado seu maior adversário político, o prefeito de Salvador, ACM Neto, do DEM, o governador paulista Geraldo Alckmin, virtual candidato tucano à Presidência, não compensa com essa revigorada — em fundamental estado nordestino — a perda que pode vir a ter com as descobertas sobre o dinheiro guardado no exterior pelo expresidente da Dersa paulista Paulo Preto.
O desvendamento da rota dos pagamentos clandestinos para obras viárias dos diversos governos tucanos em São Paulo necessariamente revelará o esquema que vem alimentando as vitórias do PSDB no estado pelos últimos 20 anos. Mesmo que recursos judiciais consigam retardar o processo ao ponto de os eventuais crimes descobertos prescreverem, politicamente o estrago está feito, e Alckmin fará uma campanha presidencial mais difícil do que normalmente se desenhava.
A busca por palanques regionais fez também com que o governador paulista oferecesse a legenda do PSDB ao ex-prefeito do Rio Eduardo Paes, que por sua vez luta para livrar-se do estigma do PMDB do Rio. Embora até agora nada tenha surgido contra ele nas investigações locais da LavaJato, a relação política estreita com o ex-governador Sérgio Cabral cobrará seu preço na campanha para o governo do estado, onde Paes, mesmo assim, aparece como uma força política de peso.
Outro tucano importante na estrutura partidária que se encontra em situação limite é o ex-governador mineiro Aécio Neves, derrubado politicamente por vídeos e áudios que registram negociação em dinheiro vivo com o empresário Joesley Batista.
Mesmo que, como pretende, consiga anular o processo contra ele depois que ficou constatado que o ex-procurador do Ministério Público Marcelo Miller participou do esquema montado para flagrar o presidente Michel Temer e Aécio Neves, os áudios e os vídeos não se apagarão da mente de quem os viu e ouviu.
O PSDB busca reconquistar o poder político em Minas, e a pressão para que Aécio Neves seja candidato a governador está grande, o que demonstra o desespero diante da falta de opção. O senador Antonio Anastasia recusa-se a aceitar a missão de tentar novamente o governo de Minas, e as opções tucanas são raras e arriscadas politicamente, mesmo que o governador petista Fernando Pimentel também esteja às voltas com diversas investigações.
Estes problemas que assolam PT e PSDB, os dois partidos que se acostumaram a dividir o poder político-partidário no país nos últimos 25 anos, mostram bem que eleição teremos dentro de pouco mais de sete meses, sem que se saiba hoje ao certo quais serão os candidatos que sobreviverão.

Arnaldo Jordy: Um remédio amargo

A decisão do governo federal de intervir na segurança pública do Rio de Janeiro já era especulada, diante da falência total da elite política e administrativa do Rio de Janeiro, que teve no final do ano passado a dramática situação de ter três ex-governadores presos: Sérgio Cabral, Anthony Garotinho e Rosinha Garotinho; o presidente e quatro conselheiros do Tribunal de Contas do Estado; o presidente da Assembleia Legislativa, Jorge Picciani; o influente ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, além de empresários como Eike Batista e outros, que simbolizaram a quadrilha que se instalou no Estado.

A intervenção já foi cogitada por diversas vezes pelo senador Lindbergh Farias, durante os governos de Lula e Dilma, ex-presidentes que, em diversas ocasiões, exaltaram os governos de Sérgio Cabral e assim, coniviram com o saque ao Estado, que ficou à beira da insolvência absoluta, especialmente após as obras superfaturadas para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Hoje, com as instituições desacreditadas e as contas falidas, o Rio vê o crime organizado tomar conta do Estado e controlar setores da própria polícia. Diante disso, não há como negar que a intervenção não é um ato despropositado. Algo precisa ser feito de imediato para conter esse câncer que tem o poder do tráfico de drogas para comprar mais poder, como bem retratado no filme “Tropa de Elite 2”, do diretor José Padilha. Não há como as organizações criminosas se desenvolverem a esse ponto sem uma certa cumplicidade do aparelho de estado.

O avanço do crime é um problema do Brasil inteiro, sim, mas é mais evidente no Rio de Janeiro, onde os territórios são disputados pelas organizações de traficantes em verdadeiras guerras que impedem até mesmo as crianças de ir à escolas, por medo de tiroteios e balas perdidas, e criam o caos na cidade em momentos como o carnaval. Por isso, é difícil encontrar naquele Estado quem seja contra uma intervenção. Só no ano passado, 134 policiais militares foram assassinados. Este ano, até quarta-feira, 21, outros 17 policiais haviam sido mortos.

Obviamente que nenhum desrespeito à Constituição deve ser tolerado. Esse tipo de intervenção está previsto na Carta Magna e todos os procedimentos devem ser cumpridos dentro do que diz a lei, com acompanhamento do Ministério Público Federal.

Mas a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro não pode ser considerada apenas uma panaceia, embora tenha, é verdade, um componente eleitoral, já que o governo trocou uma pauta negativa, a reforma da Previdência, que em nenhum momento teve o apoio necessário no Congresso, por uma positiva, o combate à insegurança e à violência. Espero que, também, o governo aja nos outros Estados, apoiando os governadores na luta contra o crime organizado e a insegurança em geral. No levantamento das 30 cidades mais violentas do Brasil, feito pelo IPEA em 2017, por exemplo, o Pará entra com três municípios, entre eles o primeiro colocado: Altamira, com com taxa de 107 mortes para cada 100 mil habitantes, em grande parte, em decorrência da migração desordenada causada por Belo Monte. Outras cidades paraenses destacadas na pesquisa são Marabá (11º lugar) e Marituba (16º lugar).

Em longo prazo, porém, é preciso é repensar todo o sistema de segurança pública, a começar pela valorização do capital humano das polícias, que precisa ser bem remunerado e blindado de cooptação pelas organizações criminosas. O uso de inteligência e de tecnologia nas investigações é fundamental, já que só uma parcela ínfima dos homicídios é desvendada, cerca de 8% em todo o país. Em vez disso, o que o governo federal fez em 2017 foi um contingenciamento de 40% no orçamento das Forças Armadas, essas mesmas que terão que resolver o problema da segurança no Rio. A defesa nacional, responsável pela vigilância das fronteiras, por onde entram a droga e as armas, teve corte de 71% no ano passado, o que provocou a paralisação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron). Na segurança pública, o contingenciamento foi de 54%.

A intervenção não será a solução estrutural, nem definitiva do problema, que passa pela redução da desigualdade, pelo investimento em educação, em cultura, em esporte, para toda a parcela da população que hoje se encontra marginalizada e que também é refém do tráfico e dos criminosos, mas poderá conter e avanço do crime organizado e reverter a grave situação desse momento.

* Arnaldo Jordy é deputado federal pelo PPS-PA

 


Gustavo Krause: A missão e o narcopaís

As prioridades podem se alterar, dependendo das circunstâncias históricas de um povo. A Segurança, não.

A Segurança Pública não é prioridade governamental. É elemento constitutivo do Estado. As prioridades podem se alterar, dependendo das circunstâncias históricas de um povo. A Segurança, não. Qualquer principiante no estudo de sociologia conhece o ensaio de Max Weber “A política como vocação” onde está dito: “O Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”.

Vale dizer que, sem o monopólio do uso legítimo da coerção, assegurando a harmonia social, prevalece a conflagração hobbesiana da “guerra de todos contra todos” que, atualizada, significa o triunfo trágico das organizações criminosas sobre as aspirações civilizadas da imensa maioria dos cidadãos.

No Brasil, há evidentes sinais da progressiva falência do Estado. O caso emblemático do Rio de Janeiro levou à medida extrema e arriscada da intervenção federal na área da segurança,

No Globo News Painel (17/02/18), Renata Lo Prete entrevistou três autoridades sobre o tema – Paulo Sergio de Lima, Celso Rocha de Barros e o General Augusto Heleno – todos com opiniões respeitáveis e esclarecedoras. Este último revelou, com a experiência no comando da missão de paz do Haiti, o domínio de conceitos e, sem meias-palavras, referiu-se ao Judiciário e à classe política. Seguem trechos da entrevista:

– “Tem que dá certo […] O que se espera é que o Exército tenha sustentação jurídica, mobilidade, flexibilidade e poder de polícia”.

– “Regras de engajamento é a maneira de operar […] O comandante da cena tem o poder de chegar ao ferimento letal. O sujeito armado de fuzil, assaltando carga, passa a ser um alvo. A partir daí, eu posso eliminá-lo. É duro? Mas, assim deve acontecer […]”.

– “O problema da segurança pública se transformou num problema de segurança nacional […] Se o país não se convencer disso (o tráfico de drogas começa na fronteira), nós vamos caminhar na direção de ser um narcopaís […]”.

– Corrupção policial: “[…] Um país aonde sua classe política derrete o país em corrupção, começando pela cúpula, pelo Presidente da República […] os exemplos são péssimos para o homem que está na ponta […]”

– Uso político do Exército: o entrevistado ressaltou que o Presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; reafirmou a consciência e o compromisso democrático das Forças Armadas (“isto não é um aperitivo de intervenção militar”).

Por fim, enfatizou o espirito missionário do Exército. Missão dada, missão cumprida.

* Gustavo Krause é ex-ministro da Fazenda do governo Itamar Franco