INTELECTUAL
Dia da língua nacional escancara analfabetismo como desafio urgente
O alfabetizando já sabe que a língua também é cultura, de que o homem é sujeito: sente-se desafiado a desvelar os segredos de sua constituição, a partir da construção de suas palavras – também construção de seu mundo. (Paulo Freire)
Luciara Ferreira e João Vítor*, com edição do coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida
A língua é uma das mais potentes formas de interação em sociedade e o que possibilita as pessoas a interpretar a realidade e intervir nela. Um mecanismo de desenvolvimento humano. Aquilo que faz cada um ter consciência do existir. No Brasil, porém, ainda é algo efetivamente distante, estranho, um embaraço, para 11 milhões de pessoas que não sabem nem ler nem escrever.
A situação é ainda pior no caso de crianças brasileiras, que são tratadas pela Constituição como “prioridade absoluta”, ao menos no papel. Isto porque 40,8% das que têm 6 e 7 anos não sabiam ler e escrever em 2021. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro Geografia e Estatística (IBGE) e foram divulgados pelo programa Todos pela Educação neste ano.
O dia da língua nacional, celebrado neste sábado (21/5), expõe a importância da principal ferramenta de comunicação e de expressão das nações e busca reforçar a necessidade do estudo e da atualização do idioma nativo a fim de manter a cultura do país viva. Por outro lado, revela, também, um desafio já entranhado na estrutura da nação, mas que deve ser encarado e solucionado: o analfabetismo.
Formada em letras pela Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ) e com parte de sua vida dedicada à função de professora, Maria Dulce Reis Galindo destaca a importância de valorização da língua nacional. “Tudo começa com a leitura”, diz ela, que também é conselheira da Fundação Astrojildo Pereira (FAP). “A educação deveria ser prioridade, em primeiro, segundo e terceiro lugar”, acrescenta.
“Não pode ser estático”
A língua portuguesa originou-se do latim, idioma disseminado na Europa inteira pelo Império Romano em meados do século 3 antes de Cristo, mas foi decretada como idioma oficial do Reino de Portugal em 1290, pelo rei Dom Dinis I.
Ao chegou ao Brasil, através da colonização portuguesa, em 1532, o idioma passou por diversas mudanças originadas de outras línguas, como o tupi-guarani. A presença indígena foi mantida em sua base, mas, conforme lembra Dulce Galindo, o vocabulário está sempre em movimento. “Isto é positivo. Não pode ser estático”, afirma.
O português é uma das principais manifestações culturais do povo brasileiro e traduz, de maneira única, o modo como as pessoas se mostram perante o mundo. A língua brasileira, assim como as de outras nações, sofre constantes variações, conforme o processo de globalização e no mundo cada vez mais interconectado, tanto física quanto virtualmente.
“O brasileiro é um povo orgulhoso de sua língua. Ela se espalha por todo território nacional com variações. Os cidadãos têm orgulho de ouvir canções de Tom Jobim e de ouvir os poemas de Vinicius de Morais”, diz ela, referindo-se, respectivamente, ao poeta e ao compositor e cantor, ambos nascidos no Rio de Janeiro.
Influências
A ex-secretária do Plano Nacional do Livro e Leitura do Brasil (PNLL) Renata Costa observa que, apesar da colonização portuguesa, diversos estados brasileiros tiveram influência por migração de vários países e línguas. “Um exemplo é o Ceará, que possui uma grande colônia holandesa”, pondera.
Renata, que também é gestora do projeto Palavralida – que começou como um blog de resenhas literárias, em 2009, e hoje dá consultorias na área dos livros e leitura –, aponta a relação do analfabetismo com a falta de interpretação de texto. “Ao olharmos para muitas pesquisas realizadas em torno do livro e da leitura, começamos a entender melhor o grau de importância do fomento à leitura”, diz.
A gestora dá destaque aos dados do Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf) que apontam que 3 a cada 10 brasileiros são considerados analfabetos funcionais e apenas 12% da população está no nível “proficiente”, o mais alto da escala.
Estimativas apontam que até 29% da população brasileira seja analfabeta funcional. É um agravante quando pessoas encontram dificuldades na busca por emprego. Outras, porém, não conseguem nem ler a placa do ônibus do transporte coletivo e identificam o veículo correto de seu trajeto por meio de número.
“Linguagem do povo”
Dulce Galindo lamenta que os governos alternados não tratem o acesso à educação como um direito que deve ser garantido a todas as pessoas, conforme previsto na Constituição de 1988, também chamada de Constituição Cidadã. Muitas escolas não têm nem material nem infraestrutura básica necessária.
“Isso envolve também os professores. As pessoas fogem do magistério. Salários mais altos tornam a carreira mais atrativa”, observa a conselheira.
O desafio histórico continua posto para todos os governantes e, sobretudo, para a sociedade em geral, que tem o poder de escolhê-los nas urnas, como vai ocorrer em outubro deste ano. Aprender a língua é ir além do saber ler ou escrever. É usar o instrumento que possibilita o caminho em busca da autonomia e do próprio existir, coletivamente, em sociedade.
Paulo Freire observou bem essa relação. “A linguagem do educador ou do político (e cada vez nos convencemos mais de que este há de tornar-se também educador no sentido mais amplo da expressão) tanto quanto a linguagem do povo, não existe sem um pensar e ambos, linguagem e pensar, sem uma realidade a que se encontrem referidos”, escreveu ele, em uma de suas obras.
*Integrantes do programa de estágio da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sob supervisão do jornalista, editor de conteúdo e coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida
RPD 33 || Luciano Mendes de Faria Filho: Astrojildo Pereira, intelectual mediador!
Nas décadas de 1930 e 1940, quando pesquisava sobre a edição das obras completas de Rui Barbosa pela Casa Rui Barbosa, deparei-me com a figura emblemática de Astrojildo Pereira. Ele foi um dos convidados por Américo Jacobina Lacombe, à época o Diretor da Casa e o responsável maior pela edição, para escrever um prefácio para um dos tomos das obras completas, em cujo projeto editorial o prefaciador é um intelectual, geralmente renomado, que empresta sua pena para fazer a mediação entre o tempo e a obra ruiana e os leitores que a receberão.
A Astrojildo Pereira, então um dos maiores intelectuais brasileiros, foi encomendado prefaciar o volume referente aos textos de Rui Barbosa sobre a escravidão. Seu prefácio, em pleno Estado Novo, é uma aula de História do Brasil e, sobretudo, da história da população negra no país. Adverte Astrojildo, contra muitos intelectuais de seu tempo, que o fim da escravidão não havia significado a liberdade para o povo negro. Faltou, dizia ele, o conjunto das reformas, a começar pela agrária, que possibilitaria integrar plena e dignamente, a população negra, e não apenas os/as ex-cativos/as, à vida nacional. Vale a pena ler e reler o texto! Aliás, vale lembrar também que a participação de Astrojildo Pereira no projeto político-cultural-editorial das obras completas foi, ao longo do tempo, alardeada por Jacobina Lacombe, homem oriundo das hostes católicas e com um pé na Ação Integralista, como uma demonstração do espírito democrático de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema e, de resto, o próprio Estado Novo, pois até mesmo um comunista convicto havia sido convidado a participar da edição.[1]
Anos depois, já no México, eis que encontro o mesmo Astrojildo Pereira envolvido num outro monumental projeto editorial, agora ligado à Editora Fondo de Cultura Económica. No projeto, a mesma posição de intelectual mediador e um apurado senso de responsabilidade e grande acuidade de conhecimento sobre o Brasil. Trato, no caso, da presença marcante do intelectual brasileiro na configuração de uma verdadeira “brasiliana” para a América Hispânica ler, parte dos projetos editoriais levado a cabo pela mais importante e prestigiosa editora mexicana e latino-americana de meados do século XX acima referida.[2]
No projeto político-econômico-editorial de integração latino-americana desenhado pelo editor e intelectual mexicano Daniel Cósio Villegas, em consórcio com seus pares de diversos países do continente, coube a Astrojildo Pereira não só receber o emissário da editora mexicana no Brasil, o intelectual argentino Norberto Frontini, no início de 1943, e ajudá-lo a fazer contado com a nata da intelectualidade brasileira, mas também coube ao militante comunista fazer a articulação desses intelectuais com a editora e contribuir decisivamente no desenho final da “brasiliana” que o Fondo pretendeu publicar.
As correspondências ativas e passivas depositadas no Arquivo da FCE. na Cidade do México, deixam claro o registo de que, no projeto editorial da Coleção Tierra Firma, que pretendia integrar a América Latina por meio do mútuo conhecimento de seus intelectuais, Astrojildo teve papel decisivo, tanto na articulação da intelectualidade brasileira, como na definição de temas que deveriam compor a Coleção.
No que se refere à articulação da e com a intelectualidade brasileira, coube-lhe o papel de projetar e animar a participação dos nosso grandes nomes – Gilberto Freire, Vinicius de Morais, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Lúcia Miguel Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, dentre outros – no projeto editorial, ocasião em que ele sugeria ou vetava nomes de participantes, como também sugeria temas que dessem visibilidade ao Brasil como um todo, e não apenas às suas paisagens mais conhecidas (Sudeste e Nordeste).
Dessa ação de Astrojildo Pereira, resultou uma “brasiliana” mais alargada do que a inicialmente prevista, bem como a clara tendência de convidar intelectuais do campo democrático para participar da iniciativa, razão, pelo que entendo, de não haver quase nenhum convidado ligado às hostes católicas antidemocráticas que abundavam o Estado Novo no projeto. No transcurso da elaboração e operacionalização do projeto editorial da Coleção Tierra Firme, corresponde a Astrojildo Pereira a delicada tarefa, como por exemplo, de defender insistentemente a participação de Lúcia Miguel Pereira que, sem motivos declarados, fora vetada pelo editor mexicano, assim como vetar a participação de intelectuais como Cassiano Ricardo, sob o argumento de que ele não possuía lastro cultural nem seriedade como outros que ele indicava.
Ainda que o projeto de uma brasiliana para o FCE não tenha sido levado a cabo, sendo poucos os livros encomendados efetivamente escritos e publicados no México, dele resultaram clássicos de nossa historiografia em várias áreas – Apresentação da Literatura Brasileira, de Manuel Bandeira; História Econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior; Música Popular Brasileira, de Oneida Alvarenga, dentre outros -, assim como nele registra-se a presença marcante de Astrojildo Pereira como importante intelectual mediador.
[1] Ver meu estudo: Edição e Sociabilidades Intelectuais: a publicação das obras completas de Rui Barbosa (1938/1948). Belo Horizonte, Autêntica/Ed. UFMG, 2017.
[2] Ver meu estudo: Uma Brasiliana para a América Hispânica: a editora Fundo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira (décadas de 1940/1950). São Paulo, Paço Editorial, 2021.
Luciano Mendes de Faria Filho é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (1996); Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, onde coordena vários projetos de pesquisa; autor de extensa obra, em que se destacam Edição e Sociabilidades Intelectuais – a publicação das obras completas de Rui Barbosa (Autêntica/Ed. UFMG, 2017), Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira (Paco Editorial, 2021), A primeira página e outros contos mexicanos (Veñas Abiertas, 2020) e Entre Mulheres (Caravana, 2021).
Bolívar Lamounier: Leôncio Martins Rodrigues
Conheci Leôncio Martins Rodrigues no primeiro trimestre de 1970, logo que me mudei para São Paulo. Lembro-me perfeitamente da situação. Foi num fim de tarde, num encontro promovido por Fernando Henrique Cardoso, que, naquela época, residia numa casa próxima ao Palácio dos Bandeirantes. Leôncio e eu ficamos trocando ideias sobre nossos respectivos interesses, num canto do jardim interno.
Gentil, simpático, falante, discorreu longamente sobre as pesquisas que andava a fazer sobre a formação da classe operária industrial e as mudanças que começavam a se operar no meio do antigo sindicalismo pelego da era getulista. Nesse campo, ele deu um vigoroso impulso à tradição da USP, que remontava aos trabalhos dos professores Aziz Simão e Juarez Rubens Brandão Lopes.
Não tive o privilégio de ser aluno dele. Tendo feito os estudos de graduação em Minas Gerais e a pós-graduação nos Estados Unidos, nutria a aspiração de lecionar numa universidade federal. Mas um fato insólito se interpôs entre meu regresso dos Estados Unidos e essa aspiração. Em abril de 1969, o governo decretou a aposentaria compulsória de certo número de docentes de várias universidades e entidades de pesquisa. Por alguma razão que Deus um dia me explicará, fui incluído entre os “aposentados”, embora não tivesse emprego algum, nem público nem privado. Lastreada no AI-5, essa medida não era suscetível de apreciação judicial. Daí decorreu que apenas pude lecionar por alguns anos na PUC-SP, passando depois à atividades de consultoria. Mas, decididamente, há males que vêm para bem. Na pós-graduação da PUC vim a conhecer minha mais que querida amiga Maria Teresa Sadek, que viria a ser a segunda esposa do Leôncio. Dessa forma, meus laços de amizade com ele se estreitaram muito.
O esdrúxulo decreto a que me referi antes foi a causa de eu estar na casa do Fernando Henrique naquela tarde. Fernando Henrique movimentava-se para criar um instituto (que viria a ser o Cebrap, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), graças ao qual diversos pesquisadores puderam permanecer no Brasil, em vez de serem punidos também com o exílio intelectual.
Por seu prestígio como professor e graças a seus trabalhos sobre o sindicalismo, Leôncio rapidamente se tornaria conhecido em todo o Brasil. Havia tempos que Leôncio abandonara o esquerdismo de sua adolescência para se dedicar com crescente afinco a pesquisas sérias, sobre temas relevantes. Um aspecto a destacar é que nos trabalhos dele o embasamento empírico se associava a uma fundamentação teórica que nada tinha que ver com as especulações nefelibatas que grassavam na USP, mercê da influência predominantemente francesa em nossa principal universidade.
Nessa época, à medida que essa concepção pragmática ganhava corpo nos Estados Unidos, na França a maioria dos cientistas sociais ainda ciganeava na vaporosa fragilidade de vários esquerdismos. Na trajetória do Leôncio, os estudos sobre o sindicalismo culminaram numa obra de peso, O Destino do Sindicalismo (Edusp, 1999), que já estaria publicada em outros países se não estivéssemos condenados a fazer nossas carreiras nesse pobre grotão intelectual.
Finda aquela primeira fase, centrada no sindicalismo, Leôncio voltou suas atenções para duas outras direções igualmente relevantes. Por um lado, resolveu conhecer a fundo a classe política brasileira. Conhecê-la não para elogiá-la ou sepultá-la, mas para mostrar importantes mudanças que nela se operavam, com o declínio dos bacharéis desvinculados de interesses grupais ou públicos relevantes e a ascensão de sindicalistas e outros profissionais mais organicamente situados na sociedade. É certo que esse novo veio trouxe em seu bojo o famigerado corporativismo, ou seja, grupos preocupados tão somente em incrustar seus estreitos interesses no casco da nau do Estado patrimonialista. Mas Leôncio, como antecipei, não se propôs a xingar ou elogiar tais grupos: quis “apenas” mostrar que esse é o material de que dispomos para construir nossa democracia. É pegar ou largar.
O outro lado da bifurcação, e a este Leôncio se dedicou com extraordinária paixão, foi o conhecimento dos regimes totalitários. Salvo melhor juízo, não creio que outro cientista político brasileiro se tenha aprofundado nessa área tanto quanto ele. Estudou vorazmente o stalinismo e o Estado soviético, assim como o hitlerismo e o nazi-fascismo. Se até hoje nossas universidades tratam esses magnos temas do século 20 em tom de aquarela, cumpre-nos dizê-lo sem meias-palavras: ninguém como Leôncio combateu o totalitarismo europeu e o ranço dele que ainda permeia nossa cultura. E reparem: Leôncio formou-se nessa área como um autêntico autodidata, caçando bons livros a laço, numa época muito anterior à internet e ao Google.
Eis por que, caros leitores, Leôncio Martins Rodrigues ficará em nossa memória como um amigo inesquecível, um grande intelectual, um pilar de nossa vida universitária e um cidadão exemplar.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,leoncio-martins-rodrigues,70003707957